terça-feira, 16 de julho de 2024

As muitas vidas de Frantz Fanon - por Arvin Alaigh

As muitas vidas de Frantz Fanon - por Arvin Alaigh

Numa biografia magistral, emergem o revolucionário, o pensador anticolonial, o psiquiatra rebelde. E surgem com mais nitidez a relação com a psicanálise, a dissidência política após a vitória e a visão nuançada sobre o papel da violência

A estatura de Frantz Fanon cresceu no final da década de 1950, à medida que ele atravessava o emergente Terceiro Mundo, conquistando apoio para a causa nacionalista argelina. Como membro da Frente de Libertação Nacional (FLN), o partido que travava uma guerra de independência contra os governantes coloniais franceses da Argélia, Fanon tinha um elenco assombroso de responsabilidades: oferecia tratamento psiquiátrico aos combatentes da FLN; ajudou a produzir o jornal oficial do partido; deu palestras sobre filosofia e história para soldados no front; e viajou por todo o continente africano como embaixador formal do governo provisório argelino no exílio, angariando capital político e financeiro para o movimento revolucionário.

Tal destaque resultou num risco enorme. À medida que Fanon ascendia na hierarquia da FLN, as forças francesas colocaram-no na mira. Em 1959, La Main Rouge, um esquadrão da morte paramilitar anti-FLN financiado pela espionagem francesa, seguiu-o até Roma, onde tinha viajado para receber tratamento médico após um acidente de carro em Marrocos. Pouco antes de um agente da FLN ir buscar Fanon no aeroporto, uma bomba detonou sob seu carro, matando uma criança próxima. Ao saber que seu paradeiro havia sido divulgado em uma reportagem sobre a explosão, Fanon exigiu mudar de quarto no hospital e escapou por pouco de um assassino armado que invadiu o aposento original. Após viver essa situação difícil, deixou Roma e voltou para Túnis, onde estava exilado.

Os inimigos de Fanon não estavam apenas nas forças coloniais francesas; ele também encontrou adversários dentro da própria FLN, uma organização marcada por lutas internas pelo poder. Crítico silencioso da liderança, ele poderia muito bem ter emergido como alvo dos expurgos pós-revolução, que levaram à expulsão de dezenas de militantes do partido e à morte de muitos outros. Mas morreu de leucemia aos 36 anos, meses antes de a Argélia conquistar a sua independência, em 1962. Um dos atos finais da sua vida truncada foi ditar à sua secretária, já no leito de morte, o que se tornaria seu trabalho mais influente. Os Condenados da Terra, apontado por Stuart Hall como a “Bíblia da descolonização”, diagnosticou as condições políticas, sociais e psicológicas do domínio colonial com um grau de clareza e força nunca visto até a sua publicação – ou desde então. Também defendeu o uso da violência revolucionária pelos colonizados contra os seus opressores coloniais, um aspecto do seu trabalho que recebeu atenção desproporcional e foi despido de todas as suas nuances.

Nos anos que se seguiram à sua morte, Os Condenados elevou Fanon ao panteão dos luminares anticoloniais. Movimentos nacionalistas radicais em toda a África, Ásia e América do Sul defenderam a obra, assim como o Partido dos Panteras Negras nos Estados Unidos.

Nas décadas de 1980 e 1990, o seu trabalho foi abraçado pela academia, onde a teoria da cultura e o pós-estruturalismo inscreveram o seu corpus em debates muitas vezes esotéricos e politicamente inertes. Enquanto isso, ativistas corretamente empenhados em evitar as tentativas de desfiguração de sua política revolucionária lutavam entre si para decidir qual Fanon era o autêntico. Na busca por definir “o” Fanon, porém, corremos o risco de perder o que o tornou tão extraordinário. Fanon não tinha identidade única. Ele passou a vida em movimento perpétuo – física, intelectual e politicamente.

Das numerosas biografias em inglês que narram a vida e a obra de Fanon, The Rebel’s Clinic: The Revolutionary Lives of Frantz Fanon, de Adam Shatz, é talvez a mais rica intelectualmente. Shatz, um dos grandes ensaístas do nosso tempo, apresenta uma figura imperfeita e brilhante – uma figura que compromete o mito predominante de Fanon como um apologista unidimensional da violência. Shatz fez, por mais de duas décadas, reportagens da França e do Norte da África, escrevendo sobre os legados persistentes do domínio colonial. Tem vasto domínio dos múltiplos contextos intelectuais e políticos que moldaram Fanon, incluindo o movimento Négritude, a filosofia francófona e o meio literário do pós-guerra, as fissuras que dividiram a FLN durante a revolução e os crescentes movimentos clínicos que substituíram a psiquiatria francesa ortodoxa.

A admiração de Shatz pelo seu tema é evidente, mas ele evita cuidadosamente o impulso hagiográfico que impulsiona grande parte dos estudos sobre Fanon. Examina a abordagem desconfortável e, às vezes contraditória, de Fanon sobre a violência revolucionária; revela dimensões mais profundas das dívidas de Fanon para com escritoras como Suzanne Césaire e Simone de Beauvoir; e avalia criticamente a aparente rejeição de Freud por Fanon, iluminando os numerosos legados que ele recebeu do fundador da psicanálise. No processo, Shatz dá vida a Fanon, incitando-nos a pensar ao lado dele para dar sentido ao nosso mundo atual.

* * *

O corpo de Fanon jaz num cemitério de mártires no leste da Argélia. Embora tenha morrido como argelino honorário, ele nasceu a milhares de quilômetros de distância, na pequena ilha caribenha da Martinica. Foi aqui que habitou pela primeira vez a hierarquia racial que estruturava a sociedade colonial, embora demorasse anos para desenvolver uma compreensão mais profunda da condição colonizada. Dois episódios ajudaram a fornecer esta consciência: o encontro com o racismo, por parte dos europeus brancos durante a Segunda Guerra Mundial, na qual lutou como membro das Forças Francesas Livres, e as suas experiências subsequentes como estudante de medicina em Lyon, no final da década de 1940. Seu primeiro livro, Pele Negra, Máscaras Brancas, é um amplo estudo sobre a alienação social dos negros colonizados e suas manifestações na política, literatura, filosofia e psicanálise. O livro começou como sua dissertação médica, até que seu departamento rejeitou o tópico (ele finalmente apresentou uma dissertação respeitosa, porém rigorosa, sobre a ataxia de Friedreich, uma doença neurodegenerativa).

Após sua residência e um curto período praticando psiquiatria na Martinica e na França, Fanon recebeu um posto clínico na Argélia em 1953, em Blida-Joinville, o maior centro psiquiátrico do país. Já politizado, juntou-se secretamente à FLN dois anos depois de se mudar para o país. Fanon tratou os policiais e militares franceses ocupantes em sua atividade clínica oficial durante o dia e os combatentes da resistência da FLN à noite.

Ao contrário de David Macey, autor da última grande biografia de Fanon há mais de duas décadas, Shatz oferece um exame robusto da carreira de Fanon como psiquiatra, um aspecto de sua vida que recebeu atenção renovada desde a publicação de dezenas de seus escritos psiquiátricos em 2015. Shatz explora a relação tênue, mas formativa, de Fanon com a psicanálise. As noções de inconsciente, repressão e estágio de espelho de Lacan informaram suas concepções da subjetividade negra e colonial, e ainda assim ele argumentou que as ideias psicanalíticas centradas nas estruturas familiares europeias, como o complexo de Édipo, não poderiam ser aplicadas acriticamente ao sujeito argelino. (Ele também manteve um interesse pessoal: “Assim que eu terminar esta revolução argelina”, disse ele à sua secretária, “farei uma análise”.) Como chefe da Blida-Joinville, ele se esforçou para reformar a abordagem terapêutica da clínica. Experimentou a psicoterapia institucional, uma forma radical de institucionalização que visava devolver a subjetividade aos pacientes, confundindo as fronteiras entre a sociedade e o hospital.

Para Shatz, o trabalho psiquiátrico de Fanon está no centro do seu projeto político. Foi a manifestação mais prática da sua ambição de restaurar a agência de sujeitos fundamentalmente alienados. Nas sociedades colonizadas, tal como nos hospitais psiquiátricos, a liberdade exigia o desenvolvimento da consciência através da criação ativa de novas estruturas sociais, políticas e psíquicas. Para Fanon, esta capacidade de liberdade era crítica – o que o distinguiu de segmentos do meio intelectual francês do pós-guerra que, sob o feitiço do surrealismo, romantizaram a loucura como uma força “visionária” ou libertadora. “Para um descendente de escravos numa antiga colônia açucareira”, escreve Shatz, “era impossível confundir a condição de desintegração mental e física com a emancipação de uma ordem social opressiva”.

* * *

No final da vida, Fanon encontrava-se cada vez mais desiludido com a FLN. Ele havia sido inspirado pela promessa de um movimento revolucionário que pudesse cultivar uma nação alicerçada numa consciência social libertadora. Mas agora via um partido invadido por militares míopes e ideologicamente desequilibrados, ansiosos por mobilizar o chauvinismo étnico-religioso para forjar uma identidade argelina que excluísse as minorias étnicas e religiosas. Com base nestas experiências, Fanon previu nos Condenados da Terra que a maioria dos movimentos de independência nacional terminaria com uma consolidação do poder político pelas elites nativas, cujos impulsos de auto-enriquecimento calcificariam as divisões sociais e económicas da era colonial. Entretanto, as potências neocoloniais, como as corporações transnacionais, continuariam a saquear as nações anteriormente colonizadas.

Contra este futuro sombrio, era fundamental construir a solidariedade internacionalista – para Fanon, isto significava um projeto pan-africano – capaz de libertar as nações recentemente independentes das estruturas de poder do velho mundo.

Ao contrário de alguns pensadores pós-coloniais, Fanon nunca rejeitou a modernidade ocidental per se. Em vez disso, como escreveu nos Condenados, procurou transcendê-la criando uma consciência universal enraizada num “novo humanismo”. Este projeto radical, que exigia “procurar noutro lugar além da Europa” em busca de inspiração para “inventar um homem completo”, continuou a ser o seu objetivo até ao fim da vida. A consciência nacional pós-colonial foi um canal para esse fim. É difícil dizer o que isso significou concretamente para um novo Estado-Nação.

Fanon fez algumas recomendações explícitas para uma sociedade pós-colonial, incluindo a redistribuição da riqueza, a fim de solapar o poder da burguesia nativa e das classes dominantes. Mas nunca forneceu modelos granulares de construção de instituições políticas, nem discutiu detalhadamente a mecânica da governação. Como escreveu Edward Said em Cultura e Imperialismo, Fanon não apresenta “uma receita para fazer uma transição após a descolonização”. Ainda assim, podemos esboçar os contornos de uma nação pós-colonial reordenada segundo as linhas fanonianas: uma sociedade emancipada, democrática, pluralista e coletivista, sintonizada com as necessidades de reparação psíquica e comprometida com o desmantelamento das hierarquias coloniais.

Esta visão ambiciosa foi em grande parte ofuscada pelo envolvimento controverso de Fanon com a questão da violência. O prefácio de Jean-Paul Sartre a Condenados, que exalta a virtude da ação violenta, acabou ofuscando e descaracterizando a posição mais matizada de Fanon. Alguns leitores consideraram a violência revolucionária como expressão suprema da agência e da autodeterminação e, por extensão, o único vetor importante através do qual o compromisso revolucionário de Fanon pode ser avaliado. Ao fazê-lo, sustentam que qualquer ato de violência dos oprimidos contra os seus opressores é (moral ou politicamente) santificado. Para Shatz, Fanon tem uma relação mais complexa com a violência, que é parcialmente ofuscada pelo problema da tradução. Por exemplo, em algumas versões em inglês de Condenados, a frase “la violence désintoxique” aparece como “a violência é uma força de limpeza”, algo distante do sentido de “desintoxicar”. A implicação da frase em francês é que a condição colonial induz uma espécie de estupor, que a violência pode servir para desfazer, despertando os colonizados. Esses tipos de equívocos podem parecer menores, mas moldaram desproporcionalmente a forma como nos lembramos hoje de Fanon.

Duas semanas depois de 7 de outubro, Shatz escreveu um ensaio na London Review of Books refletindo sobre a violência em Israel e em Gaza. Grande parte do artigo refletia sobriamente sobre o sofrimento causado pela ocupação israelense e oferecia um prognóstico sombrio do derramamento de sangue que os habitantes de Gaza estavam na iminência de sofrer. Shatz também mirou alguns membros da esquerda “descolonial”, que “parecem quase fascinados pela violência do Hamas e caracterizam-na como uma forma de justiça anticolonial do tipo defendido por Fanon”.

O ensaio desencadeou um debate acirrado e produtivo sobre como os defensores da liberdade palestina deveriam envolver-se no uso da violência.

Assim como em The Rebel’s Clinic , Shatz procurou contrariar leituras simplistas de Fanon apresentando uma figura mais multidimensional. Como partidário da FLN, Fanon apoiou ativamente táticas violentas. Ao mesmo tempo, como psiquiatra, preocupava-se com as feridas psíquicas e sociais persistentes que a violência poderia causar. Fanon termina Condenados da Terra com estudos de caso de argelinos e franceses que sofreram de doenças mentais induzidas pela guerra. “A impressão esmagadora deixada pelos estudos de caso de Fanon. . . é que os efeitos desintoxicantes da violência são, na melhor das hipóteses, efêmeros”, escreve Shatz. A violência é semelhante à terapia de choque – e tal como a terapia de choque por si só não pode curar um paciente (e pode causar novos danos), a violência por si só não pode gerar uma sociedade justa. Contra a tendência de transformar Fanon num ícone de resistência violenta e nada mais, Shatz apresenta o retrato de um homem cuja posição evoluiu à medida que lutava com as questões mais urgentes na busca pela libertação.

Arvin Alaigh: Escritor, ativista e estudante de doutorado na Universidade de Cambridge.

Fonte: As muitas vidas de Frantz Fanon - Outras Palavras

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Motoqueiros do Apocalipse - por Renato Aroeira

 

Fonte: https://www.brasil247.com/charges/motoqueiros-do-apocalipse-iy2za3ju

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Noam Chomsky dá início as Jornadas Libertárias da CGT Valência – por ANA

Noam Chomsky dá início as Jornadas Libertárias da CGT Valência

A 22ª Jornadas Libertárias da CGT de Valência começou na segunda-feira, 21 de dezembro, com uma entrevista em videoconferência com o linguista, filósofo e ativista Noam Chomsky, transmitida nas redes sociais da organização anarcossindicalista.

Noam Chomsky, linguista, filósofo e ativista foi encarregado de iniciar a A 22ª Jornadas Libertárias da CGT de Valência com uma entrevista conduzida pela organização anarcossindicalista, na qual ele abordou vários aspectos da sociedade atual. O veterano pensador norte-americano mostrou que ainda brilha aos 92 anos de idade, continua dando aulas e realiza encontros regulares com outros linguistas de diferentes partes do mundo, como o próprio Chomsky explica na entrevista, ao mesmo tempo em que afirma que “nunca abandonou seu ativismo social desde os 10 ou 11 anos de idade”.

Este ano, as Jornadas Libertárias da CGT de Valência atingem 22 anos e visam refletir sobre o apoio mútuo como um pilar para a construção de uma nova sociedade. Questionado sobre este ponto, Noam Chomsky afirma que “Kropotkin estava certo” e dá como exemplo “a reação humana espontânea” que ocorreu em diferentes lugares durante a pandemia da COVID-19 com “pessoas ajudando umas às outras e trabalhando juntas para superar a situação”, apesar de “as estruturas destinadas a miná-la”. Chomsky também conta com os sindicatos como uma ferramenta para lidar com o “pequeno setor da população” que aumentou seus lucros, enquanto “a grande maioria estagnou ou diminuiu seus recursos”.

Noam Chomsky chama o que aconteceu neste verão na Europa com a pandemia de uma “catástrofe”. “Eles queriam aproveitar as praias espanholas ou esquiar nos Alpes”, explica o linguista, acrescentando que “a crise mais grave que estamos enfrentando é a ambiental, muito mais do que a pandêmica”, pois segundo o pensador americano “não há volta atrás, as calotas de gelo estão derretendo, não podemos consertá-las” e ele acredita que “ainda nos restam algumas décadas para tentar superá-la e, se não aproveitarmos a oportunidade, a espécie humana estará acabada”.

O final da entrevista é um chamado à ação por parte de Noam Chomsky: “é possível, está ao nosso alcance fazer um mundo melhor, mas temos que fazê-lo”.

Fonte: https://www.cgtpv.org/comunicats/noam-chomsky-da-el-pistoletazo-de-salida-a-las-jornadas-libertarias-de-cgt-valencia

Tradução > Liberto

agência de notícias anarquistas-ana

Casa abandonada—
a aranha faz sua teia
na porta de entrada

Regina Ragazzi

Fonte: [Espanha] Noam Chomsky dá início as Jornadas Libertárias da CGT Valência (noblogs.org)

terça-feira, 10 de novembro de 2020

Alemanha, 1945 - por Jota Camelo


 Fonte: https://twitter.com/ojotacamelo

Cornel West: Trump está empurrando o país para o fascismo genuíno (UMA ENTREVISTA COM CORNEL WEST)

Cornel West: Trump está empurrando o país para o fascismo genuíno (UMA ENTREVISTA COM CORNEL WEST)

O mais importante filósofo e militante socialista negro hoje nos EUA fala sobre as eleições presidenciais, o declínio de mais um império, a relação entre espiritualidade e materialismo e a necessidade de combater o capitalismo para preservar a humanidade.

Dr. Cornel West em Beverly Hills, Califórnia, 2016. (Frederick M. Brown / Getty Images)

Cornel West é uma das vozes mais eloquentes e provocadoras da esquerda norte-americana. Professor e pesquisador da Harvard Divinity School, começou sua vida política nas revoltas dos movimentos pelos Direitos Civis – passando de cristão radical para um socialista e aliado do Partido dos Panteras Negras.

Sua carreira vai muito além de sua trilha acadêmica como filósofo ou vida política na esquerda, esteve também envolvido com cultura, desde colaborações musicais com Prince e Talib Kweli até uma aparição na série Matrix. Ele também fez carreira nas rádios, apresentando distintos programas, atualmente apresenta o podcast The Tight Rope, com Tricia Rose.

Nesta recente conversa com Grace Blakeley para o podcast A World to Win, Cornel West discute a eleição presidencial dos EUA, o movimento Black Lives Matter – e a importância da espiritualidade para a política radical.

Você disse recentemente em uma entrevista que para enfrentar “o gângster neofascista na Casa Branca, precisamos fazer parte de uma coalizão antifascista”. Você acha que uma frente anti-Trump poderia ter sucesso? E você acredita que a presidência de Biden pode promover algo que se aproxime da mudança de que os EUA precisam agora?

Precisamos ser consistentes em nossa crítica ao império, ao capitalismo, ao patriarcado, à homofobia, à transfobia e à supremacia masculina e branca. E a maneira como fazemos isso é buscando manter nossa integridade intelectual e nossa coragem política: contando a verdade sobre Donald Trump, o neofascista, o gangster, sobre seus colaboradores e facilitadores. Ele está empurrando o país para o fascismo genuíno: total desrespeito às leis, domínio das forças armadas, domínio do grande capital de Wall Street e do Vale do Silício. Ele está esmagando trabalhadores, marginalizando mulheres, usando os mexicanos, muçulmanos, judeus, negros, pardos e indígenas como verdadeiros bodes expiatórios.

Agora, acredito que com Biden, o que teremos é alguém que pode impedir o movimento acelerado em direção ao fascismo norte-americano. Isso é muito importante – mas seu governo neoliberal ainda estará vinculado a Wall Street, vinculado ao grande capital, vinculado ao militarismo, vinculado ao Africom, a políticas profundamente reacionárias no Oriente Médio com Netanyahu e assim por diante. Não queremos mentir sobre Biden. Não queremos alimentar nenhuma ilusão simplesmente porque estamos diante de um Frankenstein feio e fascista como Trump. Então, estamos realmente entre a cruz e a espada, que é onde a esquerda normalmente esteve nos últimos 50 anos.

Uma pesquisa recente da CNN mostra que o apoio ao movimento Black Lives Matter caiu desde junho. A maioria, 55%, ainda apoia os protestos, mas isso diminuiu dos 67% de junho passado. Isso te preocupa? Você acredita que há alguma maneira de reverter isso, ou é apenas parte da estratégia de Trump?

Acho que faz parte da estratégia de Trump. Houve um ataque indiscriminado ao movimento Black Lives Matter para caracterizá-lo como um movimento terrorista, como um movimento de ódio. Isso é um sinal de sucesso. Isso significa que você na verdade constitui uma ameaça substantiva ao status quo, não apenas para a polícia usar seu poder para assassinar pessoas, mas conectá-lo a uma crítica ao poder de Wall Street e aos crimes de Wall Street. Conectando-o a uma crítica ao poder do Pentágono e aos crimes do Pentágono. Nesse sentido, a intensidade do ataque é um sinal do grau em que você constitui uma ameaça ao status quo. E eu acho que é exatamente onde queremos estar. Nós apenas temos que combater essas mentiras com algumas verdades e criar algum tipo de movimento de compensação, instituições, periódicos, bem como indivíduos no local.

Gostaria de saber sua opinião sobre a pandemia. Há uma pesquisa realizada pela NPR mostrando que a pandemia está aumentando a distância de riqueza racial: 60% das famílias negras, 72% das famílias latinas e 55% das famílias nativas nos EUA enfrentaram sérios problemas financeiros desde o início da pandemia; contra 36% das famílias brancas. Sabemos que a crise do desemprego, a crise dos despejos e o peso atual da doença também estão sendo sentidos com mais força pelos negros e latino-americanos. Então, como as pessoas podem organizar a saída dessa crise profunda e generalizada?

É por isso que precisamos ter uma crítica do sistema e visões alternativas bem como maneiras de fortalecer nossa resiliência em face do sistema. Enquanto tivermos questões isoladas, enquanto permanecermos em nossas torres e em nossos respectivos espaços sem solidariedade, não temos chance alguma.

Portanto, é fácil fetichizar raça ou gênero como uma identidade e não conectar essa identidade a uma crítica do predatório sistema capitalista, o que nos permitiria reconhecer os graus de solidariedade que devemos ter com os trabalhadores e pobres. Não devemos isolar essas identidades para que percamos de vista a integridade e a consistência de nossa crítica ao capitalismo.

Você tem uma vida e uma carreira incrivelmente ampla como filósofo, ativista, intelectual, artista e figura moral nos EUA. Obviamente, você passou sua carreira como escritor na academia, estudando e ensinando filosofia e teologia. O que fez você querer estudar essas grandes ideias?

Venho de uma família ocidental muito amorosa. A maior honra que já tive foi ser o segundo filho de Irene e Clifton. Eu nunca serei o ser humano que meu pai foi; ele morreu há 26 anos. Minha mãe ainda está viva, com 88 anos de idade, com uma escola primária levando seu nome em sua homenagem. Ela e o meu pai deram muito amor e apoio. Isso me libertou, porque eu era quase um gângster na juventude. Eu batia nas pessoas o tempo todo. Fui expulso da escola por bater em um colega por se recusar a saudar a bandeira. Meu tio-avô foi linchado e eles o enrolaram na bandeira, então eu associei aquela bandeira a algo horrível e cruel.

Quando comecei a crescer intelectualmente fui influenciado pela igreja – sempre me vi como um cristão revolucionário, no legado de Martin Luther King e Fannie Lou Hamer –  e trabalhei em estreita colaboração com o Partido dos Panteras Negras. Ali eu já tinha uma crítica do capitalismo, do império, da homofobia e do patriarcado, porque era sobre isso que debatíamos na sede dos Panteras Negra.

Eu ensinava no Programa de Café da Manhã dos Panteras Negras. Eu ensinava na prisão Prisão de Norfolk, onde estava Malcolm X. Eu nunca estava nas festas porque era cristão e eles eram profundamente seculares. E isso foi bom. Eles tinham fortes críticas à igreja, reconheço várias delas. Mas eu tinha meu próprio entendimento de Deus e Jesus e da luta e revolução. Ficamos muito próximos, mas não consegui entrar.

No período em que frequentei a Universidade, fui exposto a uma magnífica onda de ideias. Eu me apaixonei por muitas dessas figuras intelectuais importantes. Fosse Karl Marx, William Morris, William Hazlitt, Virginia Woolf, Raymond Williams e mais tarde Edward Said. Todas essas pessoas significaram muito para mim.

Eu estava na academia estudando com John Rawls, Hilary Putnam, Stanley Cavell, Martha Nussbaum, Martin Kilson e Preston Williams. Depois fui para Princeton estudar com Richard Rorty e Sheldon Wolin. Essas eram figuras imponentes que abriam a minha vida intelectual e destruíam muito do meu paroquialismo. Sempre fui uma espécie de negro livre, amante de Jesus, preocupado com os pobres e os trabalhadores. Mas isso me permitiu fazer parte de uma conversa mais ampla.

Com C. L. R. James, Du Bois, Nkrumah, Nandy, Ambedkar e a irmã Roy da Índia. Foi um bom momento pra mim. Eu gosto da vida intelectual, mas sempre tento usá-la como uma arma para capacitar e enobrecer as pessoas vulneráveis, não importa quem sejam.

Eu acredito que há muitos elementos heterogêneos de genocídio e patriarcado na Bíblia Hebraica que devemos manter distância. Mas existe essa noção de “chesed” (misericórdia). A forma mais elevada de ser humano é espalhar a benevolência e o amor inabalável ao órfão, à viúva, ao desassistido e ao oprimido. Eu sempre acreditei que se fosse para ser parte do que buscava Moisés, que na sua essência era a libertação, eu teria que ter uma crítica profunda não apenas do Faraó, mas do sistema que mantinha o Faraó no lugar.

É por isso que as pirâmides nunca me inspiraram profundamente, porque os trabalhadores e os pobres nunca poderiam ser enterrados lá dentro. Eles podiam construir as pirâmides, mas nunca poderiam ser enterrados dentro delas. Portanto, tenho uma crítica profunda aos Faraós, seja qual for a cor em que surjam, seja qual for o gênero. Mesmo quando eles têm edifícios tecnológicos magníficos, quando você realmente olha para o sistema, você diz: “Não. Estou com os pobres e os trabalhadores que construíram as pirâmides.” São eles que sempre destaquei, embora fossem esquecidos e invisíveis. É a isso que sou solidário.

Aprendi isso seriamente pela primeira vez nas escrituras hebraicas – ser solidário com os oprimidos. Como aconteceu com Jesus entrando na cidade e expulsando os cobradores de impostos. Quem são os cobradores no império norte-americano? Wall Street, Pentágono, Casa Branca, Congresso, Hollywood, todos eles ocupam o mesmo lugar. Harvard, Yale, Princeton, todos eles ocupam o mesmo lugar. Jesus expulsaria todos. E é por isso que ele foi colocado crucificado pelo império mais poderoso da época.

Dessa forma, há o que chamo de centelha profética nas escrituras hebraicas. De Jesus a Muhammad, com sua maneira profética própria, que leva, por exemplo, a um Malcolm X. Mesmo muitos dos meus irmãos e irmãs seculares, a quem amo muito, teriam que reconhecer que sua profunda solidariedade com os povos oprimidos e sua história, uma vez que derrubem os mitos, vem desse amor, cuidado, preocupação pelos vulneráveis que foi cultivado dentro dessas instituições religiosas, mesmo quando essas instituições religiosas tendem a violar. E foi isso que R. H. Tawney, que sempre foi um dos meus heróis na tradição britânica, disse em The Acquisitive Society, Equality and Religion and the Rise of Capitalism.

Isso ressoa em mim até hoje. Eu me considero um cristão e um socialista. Como um dos meus grandes heróis, Tony Benn. Parece óbvio para mim que você não consegue uma transformação social coletiva sem alguma forma de transformação espiritual – qualquer que seja a religião ou forma de espiritualidade.

Precisamos ser honestos sobre isso porque veja, uma das formas como o capitalismo se reproduz é a mercantilização de todos e de tudo – para criar aqueles homens vazios de que TS Eliot falava, para criar essas criaturas moralmente e espiritualmente vazias, cujo o senso de estar no mundo é ser excitado pelo bombardeio de mercadorias. Portanto, não há ativos para valores fora do mercado, como amor, justiça e solidariedade profunda, ou estar a serviço dos outros, assumir o risco de estar ao serviço dos outros, estar com, não além nem acima, mas ao lado.

Outro grande exemplo é o Dr. Martin Luther King, ele próprio um socialista democrático. São tantos. O primeiro foi Reinhold Niebuhr, que escreveu Moral Man and Immoral Society, era um socialista democrático. Nós vivemos uma onda de pessoas que desempenharam um papel tão importante na tentativa de manter vivo algum senso profundo de amor e justiça. Sem contar o amor pela beleza.

Porque venho de um povo, que depois de 244 anos da forma mais bárbara de escravidão moderna, onde não se podia aprender a ler ou escrever, nem adorar a Deus sem supervisão branca, onde a expectativa de vida era de 26 anos de idade, tinha como formas dominantes de espiritualidade o amor pelo belo. Você erguia sua voz, fugia à noite de mãos dadas. E você cantava essas belas canções, Swing Low, Sweet Chariot e Wade in the Water, God Go Trouble the Water.

Não era apenas o ilógico; foi artístico. Era uma forma de se agarrar a algo belo diante do terror e do trauma. O tipo de coisa que Rainer Maria Rilke nos lembra em seus poemas, como a beleza se torna fonte de resiliência diante do terror e do trauma sendo institucionalizada década após década após década, para que a música se torne fundamental em nossas vida. As artes em geral tornam-se fundamentais na vida. E assim a conexão entre o amor à verdade e o amor à beleza e o amor à justiça, e para mim, o amor a Deus, estão todos entrelaçados.

Você fala sobre a ideia de que inerente a qualquer conceito ou formação, existe a semente de seu oposto. Você vê isso, obviamente, em muitas religiões. Definitivamente no início do cristianismo. Mas também no socialismo e nas suas análises do capitalismo, que postulam que o capitalismo está cheio de contradições que acabarão por levar à sua própria destruição.

Karl Marx tornou-se um dos grandes profetas seculares do século XIX porque não tinha apenas uma preocupação com o sofrimento do povo, mas porque analisava em a Crítica da Economia Política de que as estruturas no local de trabalho criam relações assimétricas de poder, entre patrões e trabalhadores, de capital e trabalho; criando a fricção da luta de classes na tensão entre as classes.

Aqui, Marx está muito próximo do melhor dos românticos, ele quer que a individualidade se desenvolva e floresça. Pense em sua descrição maravilhosa em A Ideologia Alemã. Não suporta especialização, burocratização, domínio sobre os trabalhadores comuns. Ele acredita que suas vidas são tão valiosas quanto a vida de qualquer outra pessoa. É uma sensibilidade democrática radical que vai contra a corrente.

Marx e Engels estavam fugindo das classes dominantes que os perseguiam. Agora vivemos um momento de contradições: a catástrofe ecológica, as catástrofes econômicas. As contradições podem ser regionais, como na União Europeia. Ou estar vinculado a um estado-nação. Podem ser regiões dentro do mesmo estado-nação. Todas são formas de dominação do capital sobre o trabalho. E são atravessados ​​por várias formas de práticas patriarcais e de supremacia branca.

Em The Age of Empire, o irmão Eric Hobsbawm nos lembrou o que é o imperialismo. Os impérios norte-americano e soviético surgiram depois de 1945 com a descentralização e ao longo do tempo, a destruição completa do Império Britânico, o império em que o sol nunca se punha. Quem poderia imaginar que o império acabaria? Todos pensaram que continuaria indefinidamente. Os portugueses e os espanhóis também pensaram isso.

Bem, agora o império norte-americano está entrando em declínio. Precisamos ser capazes de acompanhar as maneiras pelas quais o capitalismo predatório passa de unidades imperiais e Estados-nação a esses regimes e organizações regionais, e também como ele se infiltra em cada canto de nossos corações, mentes e almas. Como ele cria a forma mercantilizada de ver o mundo com manipulação, dominação, colocando a economia na frente da vida comum. É quase Martin Buber, eu-ser versus eu-coisa. Aquele eu-indiciduo com o qual Marx estava preocupado nos manuscritos de 1844. Como você transcende essas formas de alienação no local de trabalho, alienação do dinheiro, alienação individual? São noções ricas e indispensáveis ​​para qualquer discurso sério sobre a emancipação das pessoas comuns em uma época em que a ganância só enlouquece em suas formas institucionais e estruturais.

Você mencionou o império norte-americano. Quero saber o que você acha que são as implicações do papel imperialista dos EUA no sistema capitalista para a estrutura da sociedade.

Bem, o reverendo Martin Luther King costumava dizer: “Quando você joga bombas no Vietnã, elas também caem nos guetos da América”. Elas também caem sobre os brancos pobres nos Apalaches. Elas caem nos bairros de nossos irmãos e irmãs de língua espanhola. Elas caem nas reservas de nossos preciosos irmãos e irmãs indígenas. Há uma conexão direta entre o militarismo no exterior e a falta de recursos para empregos, moradia, saúde, educação e com a militarização do contexto doméstico.

É com isso que estamos lidando agora com esses policiais. A polícia sempre foi uma grande ameaça contra os povos vulneráveis, especialmente os negros, mas a militarização em massa ocorreu sob o regime neoliberal, onde os departamentos de polícia começaram a se parecer cada vez mais com unidades militares em Bagdá. Você comete uma contravenção e obtém uma resposta militarista.

Pense em Breonna Taylor: no meio da noite, eles entram batendo na porta dela como se ela fosse mafiosa e tivesse cometido um crime, como se na verdade tivesse matado alguém. Eles começam procurando por um pacote de drogas e acabam matando-a sem motivo. Há uma conexão direta entre a política externa, que é uma dinâmica imperialista e a política interna, que é liderada por multinacionais.

O resultado, é claro, é uma classe trabalhadora altamente empobrecida. O ponto culminante é o bombardeio espiritual que afeta os trabalhadores e seus filhos porque eles aderem a valores que não são do mercado, como intimidade e vulnerabilidade. Você deve estar sempre duro e disposto a assumir uma postura como se estivesse pronto para lutar a cada segundo, pois, o objetivo é a sobrevivência do mais inteligente.

É quase pior do que o darwinismo social, no qual a sobrevivência do mais apto é teorizada nas palavras de Herbert Spencer, porque a sobrevivência do mais esperto é na verdade a amplificação de Trasímaco na República de Platão. Tudo se resolve com a ideia de que “poder é certo”. Essa “ganância é boa para você”. Tudo é “dominação e manipulação”. Isso tem a ver com a tristeza do nosso mundo. É parte da escuridão congelante que Max Weber viu em seus escritos. Ele olhou para fora, não viu apenas desencanto. Ele descreveu uma escuridão gelada que se expandiu com a combinação de mercantilização, burocratização, objetificação e dominação, que juntas criam esta gaiola de ferro para os homens.

Perguntei a Noam Chomsky outro dia – tivemos um diálogo maravilhoso na Progressive International – “O que nos faz pensar que nós, como humanos, temos a capacidade de evitar a autodestruição? O que nos faz pensar que as pessoas comuns têm a capacidade de determinar seu próprio destino, em uma visão democrática radical?” Essas são perguntas especulativas, mas são nossos esqueletos no armário. A conclusão foi: “Bem, nós realmente não sabemos.” Veja os precedentes históricos. É uma história de crime, loucura e ganância, mas também é uma história de resistência a tudo isso. Precisamente porque podemos fazer essas perguntas, nos tornamos mais fortes, nos tornamos mais dedicados, nos tornamos mais preparados para garantir que nós, como espécie, possamos evitar a autodestruição.

Como seres humanos, podemos nos governar no local de trabalho. Não precisamos de mestres. Podemos ter conselhos de trabalhadores. Uma deliberação democrática. Podemos ter culturas democráticas nas quais aprendemos uns com os outros como se tivéssemos jazz e hip hop de um lado, flamenco e rebetiko do outro; ou as canções folclóricas que moveram William Wordsworth em seus primeiros anos radicais e Robert Burns na Escócia. Ainda nem chegamos ao irlandês. Mas precisamos ter aquele tipo de encontro humano profundo que não homogeneíze nossas especificidades, mas use nossas diferenças como uma forma de aprofundar a comunhão e a comunidade, ao invés de aprofundar a dominação e a subordinação.

Nos é oferecida uma ideia de democracia representativa que está sempre ao lado do capitalismo. Você tem democracia no reino da política, mas você deve ter mercados livres no reino da economia: são coisas separadas e nunca se encontrarão?

E aí você vê a hipocrisia. Porque os liberais vêm e dizem: “Estamos muito preocupados com a concentração de poder na esfera política. Tivemos monarcas, reis e rainhas. Devemos ter direitos e liberdades. Devemos ter igualdade perante a lei”.

Bem, e quanto à concentração de poder na economia? Com os oligarcas, os monopólios, os oligopólios? Eles são igualmente ditatoriais. Então, sim, estamos com os liberais no sentido de que nos certificamos de que não temos reis e rainhas e um poder incontrolável na arena política. Mas ficamos com entidades semelhantes a reis na economia global, nacional e regional.

Portanto, podemos dizer aos liberais: “Oh, você não fala sério sobre a liberdade. Você quer liberdade para poucos. Achei que você realmente acreditava na universalidade dessa liberdade. Você quer liberdade apenas para uma classe”. Também seria verdade em termos de gênero e raça. Marx e os outros que fizeram essa crítica são vozes indispensáveis.

Você acha que a democracia pode ser uma arma contra o capitalismo? Você acha que aprofundando da democracia, quer estejamos falando sobre partidos políticos ou nossas instituições sociais e econômicas, nossos locais de trabalho, nossas comunidades, podemos realmente começar a erodir o poder sobre nossas vidas desses monopólios, oligopólios, banqueiros, políticos e a classe dominante?

Venho de um povo negro cujo hino é “Levante sua voz”. Vamos levantar nossas vozes. E se pudéssemos levantar as vozes do que Sly Stone chama de “pessoas do dia-a-dia” pesarem em todos os processos de tomada de decisão e instituições que orientam e regulam suas vidas, essas vozes não escolheriam a pobreza. Eles não escolheriam escolas decrépitas. Eles não escolheriam a falta de cuidados de saúde. Eles não escolheriam casas infestadas de ratos.

A democracia vinda de baixo leva a sério essas vozes enquanto elas lutam contra a miséria e o sofrimento social, e permite que moldem seus destinos de tal forma que seus filhos possam frequentar escolas de qualidade como os filhos da classe dominante. Que suas mães e pais tenham cuidados de saúde como as elites do poder. A democracia vinda de baixo é uma ameaça a qualquer poder hierárquico, tanto na esfera política quanto na econômica.

É aí que o jogo fica sério, entra em cena a grande acusação de Eugene O’Neill contra a civilização capitalista norte-americana, na maior comédia já escrita nos EUA, The Iceman Cometh. Ele era um anarquista como meu querido irmão Noam Chomsky. Mas ele argumentou, como Dostoiévski, que a maioria dos seres humanos teria preferido a ganância à liberdade, que também teria escolhido a opção de se juntar aos gananciosos no poder, em vez de correr o risco de simpatizar com os pobres, porque parece muito difícil. É mais fácil pensar que de alguma forma você pode se tornar o próximo Bill Gates ou Rockefeller.

Esse foi o projeto norte-americano, sua forma de individualismo. Mas ele e Dostoiévski, é claro, criticam a espécie humana. Eles acreditam, de fato, que nós, seres humanos, preferiríamos escolher a autoridade em vez da liberdade. Que preferimos seguir o Pied Piper em vez de organizar e gerenciar nossos locais de trabalho pessoalmente. Parte do projeto democrático radical é mostrar que estão errados. Mas não há dúvida de que é uma batalha difícil.

Tradução: Aline Klein

SOBRE OS AUTORES

Cornel West é filósofo na Harvard Divinity School e ativista político. Seus trabalhos incluem Race Matters e Democracy Matters, e aatualmente é o co-apresentador do podcast The Tight Rope.

Grace Blakeley pesquisadora do Instituto de Pesquisa de Políticas Públicas (IPPR).

Fonte: https://jacobin.com.br/2020/11/cornel-west-trump-esta-empurrando-o-pais-para-o-fascismo-genuino/

Relembrar David Graeber, Pesquisador, Desordeiro e Amigo - por Eric Laursen (A.N.A.)

Relembrar David Graeber, Pesquisador, Desordeiro e Amigo 

Possivelmente, a última coisa que David Graeber escreveu para publicação foi uma introdução de sua coautoria, com seu amigo de longa data e camarada intelectual Andrej Grubacic, para a Mutual Aid (“Ajuda Mútua”), o clássico trabalho sobre a história da cooperação humana (e animal) pelo anarquista russo do século 19 Peter Kropotkin. Discutindo o impacto do livro de Kropotkin, que desafiou a moralidade do “cada um por si” que o capitalismo adotou por meio de uma leitura errada da teoria da evolução de Darwin, David e Andrej disseram o seguinte: “Tais intervenções… revelam aspectos da realidade que eram consideravelmente invisíveis, mas uma vez revelados, parecem tão óbvios que eles nunca mais poderão ser ignorados.”

Qualquer um que o conheceu imediatamente reconhece isto como puro David, traçando sua busca ao longo da vida para descobrir padrões e tendências no comportamento humano que nossos governantes — as autoridades, o Estado, a religião organizada, capitalistas e o resto — se esforçam tanto para esconder. Descobrindo estes padrões, como Kropotkin fez em seu livro, não é apenas divertido e esclarecedor — que atraiu o lado travesso de David — mas um salva-vidas, nos oferecendo caminhos alternativos em um mundo marcado pelo medo, exploração, pobreza, guerra, assassinato em massa e a destruição de qualquer cultura fora do mercado.

Em nossas duas décadas de amizade e colaboração ocasional, eu nunca vi David mais feliz do que quando ele começava uma frase, “Bem, a parte engraçada é que…” sempre seguida por uma observação paradoxal sobre alguma instituição, pessoa famosa ou aspecto da história e desenvolvimento humano. Ele tornou o aprendizado e o entendimento genuinamente estimulantes, mas também foi intensamente sério sobre isso, pois para ele, assim como para os maiores pensadores, tudo — o mundo, a vida humana — dependia disso.

David e eu nos tornamos amigos no início dos anos 2000 como membros do New York City Direct Action Network (“Rede de Ação Direta de Nova York”), que reunia anarquistas e ativistas anarco tolerantes, inicialmente em torno dos protestos em massa que seguiram o fechamento da reunião de 1999 da Organização Mundial do Comércio em Seattle: o mesmo cenário que deu origem ao The Indypendent. Assim como eu, ele foi ativo politicamente e um anarquista durante anos, mas a sua estreia literária só veio em 2004 com a publicação de um “livrinho” (como ele o chamou), Fragments of an Anarchist Anthropology (“Fragmentos de uma Antropologia Anarquista” em tradução livre). Ainda é o meu favorito dos seus escritos, ele identificou uma tendência anarquista na antropologia que retoma alguns de seus primeiros praticantes e apresentou uma série de projetos para o movimento anarquista que são tão interessantes de se considerar hoje, incluindo:

• uma teoria do Estado,
• uma teoria das entidades políticas que não são os Estados,
• uma nova teoria do capitalismo,
• uma ecologia de organizações voluntárias,
• uma teoria da felicidade política,
• uma análise da privatização do desejo, e
• uma ou muitas teorias da alienação.

O livro foi uma espécie de manifesto, e o denominador comum em todos os itens acima era o mesmo que seria ao longo da vida de David como estudioso e ativista: nos fazer ver nosso mundo e nós mesmos de maneira diferente, como promissores, como ilimitado. Alguns desses projetos que ele mesmo abordou antes de sua morte, outros são um desafio e uma inspiração para o resto de nós do movimento.

Indiscutivelmente, o melhor momento de David como um ativista e autor foi a fortuita publicação de Debt: The First 5,000 Years (“Dívida: os primeiros 5.000 anos” em tradução livre) assim como a raiva pública sobre o desastre econômico de 2008 estava se aglutinando no Occupy Wall Street e na onda de democracia direta e autônoma em torno dele. Como um dos primeiros organizadores do OWS (Occupy Wall Street), David sempre será associado ao slogan, “Nós somos os 99%!” (embora ele não reivindicasse o crédito exclusivo por isso). Sua verdadeira conquista foi nos fazer ver a dívida pelo que ela realmente é: um sistema de dominação que privilegia aqueles que são considerados como tendo um “bom crédito” e prejudica aqueles que se considera que não possuem. Muitas pessoas tinham algum entendimento disse após a quebra de 2008, mas David — em seu livro e através do seu trabalho com a OWS — ajudou a cristalizar essa ideia e fazer disso um foco para a organização.

David sempre estava nos bombardeando com ideias e perspectivas novas, do Rolling Jubilee Fund que compra e apaga dívidas com a praga dos “bullshit jobs” (trabalhos absurdos), com as “alegrias secretas da burocracia” para seu maravilhoso ensaio sobre “The People as Nurse-maids to the King” (“O povo como babá do rei” em tradução livre) (leia e descubra). Muitos de nós nos lembramos de quando, a polícia, em Washington, cercou centenas de ativistas, incluindo David, e ele virou o jogo ao pedir dezenas de pizzas para serem entregues às massas ali presas. (Como Emma Goldman, David veio para a revolução para dançar.) Nunca houve um problema ou situação, na opinião de David, que não pudesse ser ajustado para significar algo diferente do que nos disseram que significava, e provavelmente seria algo libertador. Podia ser na forma de palavra escrita ou ação direta, mas de qualquer forma, sempre trazia a marca de sua mente única.

David faleceu aos 59 anos, a tragédia é que haveria muito mais. Nós ainda podemos esperar ansiosos pelo seu último livro, The Dawn of Everything: A New History of Humanity (“O Amanhecer de Tudo: Uma Nova História da Humanidade”), que foi escrito com David Wengrow e ataca muitas suposições falsas que reforçam a desigualdade como uma parte inevitável do desenvolvimento humano, que será lançado no próximo ano. Mas ele não estará por perto para dar a forma lúdica de pensamento que ele sempre trouxe para nossa teoria e prática enquanto ativistas. Pessoalmente, eu irei me lembrar de muitas vezes que trocamos ideias, frustrações e planos quando nós dois morávamos em Nova York — frequentemente na frente de um laptop no chão do apartamento dele no complexo Penn South patrocinado pelo sindicato (David era um nova iorquino orgulhoso, orgulhoso de suas raízes de classe trabalhadora) ou em um pequeno restaurante na West 32nd Street onde David poderia satisfazer seu desejo implacável por comida coreana. Lamento nunca mais fazer isso.

O que ainda temos são os livros – seus “filhos”, como ele os chamava — e a oportunidade que eles nos dão de estudar o seu método, absorver sua fé na auto-organização e na ajuda mútua, e tentar aplicar nós mesmos. E assim eu condenso isso:

Observação. Paradoxo. Análise. Comunicação. Ação. E ocasionalmente, tudo ao mesmo tempo.

Fonte: https://indypendent.org/2020/09/remembering-david-graeber-scholar-troublemaker-friend/?fbclid=IwAR06tzcZ0Aj4OVmLN-abWl1zaz3oBcF1HkDFXjRfjw_cZmW1RWCs9dQKvKc

Tradução > Brulego

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agência de notícias anarquistas-ana

Nuvens inquietas
sobre o lago
zen.

Yeda Prates Bernis

Fonte: https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2020/10/22/eua-relembrar-david-graeber-pesquisador-desordeiro-e-amigo/

Trump o lixo da história - por Latuff


 Fonte: https://twitter.com/LatuffCartoons

quinta-feira, 15 de outubro de 2020

O legado militante de Malcolm X - Por Carlito Rovira

O legado militante de Malcolm X

Em 19 de maio de 1925, uma figura revolucionária admirável e decidida nasceu em Omaha, Nebraska. Essa figura, que alcançaria destaque na luta de libertação das massas afroamericanas, ficaria na história como Malcolm X.

Malcolm era um dos oito irmãos, filhos de Louise Norton e Earl Little. Earl era um ministro batista franco e seguidor do líder nacionalista negro Marcus Garvey. Seu personagem desafiador chamou a atenção de racistas brancos como Ku Klux Klan e a Legião Negra. Esses bandidos frequentemente assediavam a família de Malcolm e, uma noite, sua casa foi incendiada.

A década de 1920 foi uma década que os historiadores burgueses descrevem como os “loucos anos 20”. Esta é uma glorificação falsa e vã, considerando que este período de prosperidade capitalista significou algo totalmente diferente para os afroamericanos – que foram vítimas de linchamentos generalizados de turbas brancas e outras formas de terror racista.

Em 1929, a família de Malcolm mudou-se para Lansing, Michigan, em busca de uma vida melhor e segura. Mas a família não conseguiu escapar da violência racista. Earl Little foi assassinado, seu corpo mutilado e encontrado sob um bonde. Malcolm X sempre afirmou que seu pai foi vítima de um assassinato racista.

Este trágico evento teve um grande impacto na família de Malcolm. Incapaz de lidar com as consequências emocionais da morte do marido e as dificuldades financeiras envolvidas em criar os filhos sozinha, Louise Norton sofreu um colapso nervoso e foi internada em uma instituição para doentes mentais. O estado assumiu a custódia de todas as crianças e as colocou em ambientes separados de adoção.

Malcolm era uma criança estudiosa com ambições de se tornar advogado. Um dia, quando Malcolm expressou suas aspirações a um professor, foi-lhe dito que nunca se tornaria advogado porque era negro. Essa experiência com o racismo desiludiu Malcolm e o desencorajou de continuar os estudos.

Quando Malcolm era adolescente, ele foi para a cidade de Nova York. Ele trabalhou como garçom por um período no famoso Small’s Paradise Club no Harlem. Mas ele logo se tornou um intermediário para drogas, prostituição e outros tipos de atividades ilegais.

Em 1946, ele e seu amigo mais próximo Malcolm “Shorty” Jarvis se mudaram para Boston. Ambos foram presos e condenados por roubo logo depois. Malcolm foi condenado a 10 anos de prisão.

A Nação do Islã

Foi na prisão onde Malcolm começou a se tornar político. Ele conheceu a Nação do Islã, liderada por Elijah Muhammad. Malcolm foi atraído pela organização muçulmana porque ela abordou a situação do racismo e pediu o direito dos afroamericanos de ter seu próprio estado.

Malcolm se converteu ao Islã. Após sua libertação da prisão em 1952, ele se tornou um membro dedicado da Nação do Islã (NOI). Foi nesse ponto que ele optou por repudiar o sobrenome Little e, em vez disso, usar “X”. Ele considerou o uso de nomes europeus parte do legado da escravidão. Os negros receberam os nomes de seus senhores de escravos para estabelecer a propriedade.

Elijah Muhammad ficou muito impressionado com o talento oratório e o carisma de Malcolm X. Malcolm provou ser um trunfo importante para a organização muçulmana e se tornou um ministro graduado. A habilidade de Malcolm de chamar a atenção de muitos com sua persona magnífica convenceu a liderança a confiar a ele a tarefa de estabelecer mesquitas da NOI em outras cidades dos Estados Unidos.

Muitos viram sua personalidade cativante e o poder de suas imagens como superando a capacidade de persuasão de Elijah Muhammad. As pessoas foram atraídas para as manifestações precisamente para ouvir Malcolm X falar. Seus talentos contribuíram para o surpreendente aumento de membros da Nação do Islã de 500 em 1952 para 30.000 em 1963, de acordo com a curadoria do espólio de Malcolm X.

‘Nenhum homem deveria ter tanto poder’

Em um famoso incidente em 1957, antes de Malcolm X deixar a Nação do Islã, um membro da NOI foi espancado pela polícia no Harlem e não recebeu atendimento médico. Malcolm X demonstrou o poder de uma campanha popular disciplinada ao levar membros da NOI para a delegacia. Eles ficaram em formação em frente à delegacia.

Malcolm insistiu que o prisioneiro Black tinha direito a cuidados médicos. Temendo uma possível rebelião por parte do número crescente de residentes da comunidade encorajados pela liderança de Malcolm X, a chefia da polícia concordou em obter atendimento médico para o detido. Milhares de residentes do Harlem seguiram a ambulância da delegacia para o Hospital do Harlem.

A polícia então ordenou que a formação muçulmana se dispersasse. Malcolm com muita calma, mas com firmeza, explicou ao comandante da polícia responsável que a multidão em posição de sentido não reconhecia sua autoridade e não iria ouvir suas ordens.

Nesse ponto, depois de garantir que o homem espancado estava sendo tratado, Malcolm fez um sinal com a mão. Com disciplina militar, os muçulmanos deram meia-volta e marcharam para longe. O comandante da polícia foi ouvido dizendo aos seus subordinados: “nenhum homem deve ter tanto poder”.

Em 1963, após o assassinato do presidente John Kennedy, Elijah Muhammad instruiu seus seguidores a se absterem de fazer declarações públicas. Ele estava preocupado que qualquer declaração inflamada pudesse ser usada pelo governo racista dos EUA para reprimir a NOI. Mas Malcolm não resistiu a demonstrar sua disposição para com os governantes.

Sua avaliação contundente – “as galinhas voltaram para o poleiro” – era um sentimento generalizado nas comunidades mais oprimidas, que haviam sido excluídas das conquistas dos Estados Unidos capitalistas brancos. Kennedy foi morto pelos mesmos métodos violentos que a estrutura de poder perpetra sobre os conquistados e oprimidos.

Mas foi um choque para amplas camadas da população branca, desacostumada a uma avaliação tão calma e crítica da sociedade americana. A declaração foi usada por uma mídia histérica para preparar uma campanha de medo contra Malcolm e a Nação.

Política divergente

A declaração enfureceu a liderança da NOI. Elijah Muhammad proibiu Malcolm X de falar publicamente por 90 dias.

Junto com essas questões organizacionais, as diferenças políticas entre Malcolm X e Elijah Muhammad tornaram-se mais difíceis de reconciliar.

O programa de Elijah Muhammad foi baseado na noção conservadora de conciliação com o status quo. Ele procurou ganhar legitimidade – mas não com base na participação e liderança para o surgimento rebelde dos anos 1960. Ele procurou promover um conceito de capitalismo negro, onde a comunidade afroamericana usaria a riqueza gerada para enriquecer uma elite negra que poderia, em última instância, competir com o capitalismo racista dos EUA em seus próprios termos – mas não competiria com ele até que a elite fosse poderosa o suficiente.

Malcolm X, por outro lado, foi atraído pela militância do movimento pelos direitos civis. Sua abordagem foi caracterizada por nenhum compromisso com os opressores. Sua compreensão das profundezas do racismo nos Estados Unidos o levou a concluir que o sistema atual era inerentemente hostil aos interesses do povo afroamericano. A luta era necessária para enfrentar o desafio. Em todas as questões relacionadas com a situação das massas negras, ele nunca hesitou em ser crítico ao avaliar a crueldade da estrutura de poder existente.

Em março de 1964, após muitas batalhas internas amargas, Malcolm X rompeu seu relacionamento com a Nação do Islã. Ele fundou a Mesquita Muçulmana, Inc. No mesmo ano, Malcolm viajou em peregrinação a Meca, na Arábia Saudita. Entrar em contato com muçulmanos de diferentes raças, inclusive brancos, foi uma experiência que mudou qualitativamente sua visão em relação às relações raciais e à luta de libertação nos Estados Unidos. Pela primeira vez, Malcolm viu um potencial para uma luta revolucionária com base em uma frente única neste país. Após seu retorno, ele mudou novamente seu nome, para El-Hajj Malik el-Shabazz.

Divisão de inflamação do governo

Malcolm X se tornou o alvo de uma série de tentativas de assassinato, incluindo o bombardeio de 14 de fevereiro de 1965 em sua casa onde vivia com sua família, Betty Shabazz e suas quatro filhas. Quando Malcolm revelou publicamente o motivo de sua saída da NOI, o relacionamento com seus ex-colegas tornou-se perigosamente antagônico.

A tremenda liderança e capacidade de Malcolm de projetar esperança para as massas negras oprimidas estavam, sem dúvida, sob vigilância cuidadosa pela polícia e agências de inteligência federais. Esse escrutínio teria estado a todo vapor depois que ele se encontrou com o líder revolucionário cubano Fidel Castro em 19 de setembro de 1960, no Hotel Theresa, no Harlem.

Malcolm suspeitou que o FBI e a polícia o mantiveram sob vigilância muito próxima, uma suspeita que se provou correta anos depois. Ele também suspeitou que o governo estava inflamando as diferenças entre a NOI e sua organização. Malcolm estava convencido de que estava sendo criado um cenário que levaria a um atentado contra sua vida.

Em 21 de fevereiro de 1965, no Audubon Ballroom de Nova York, três homens armados abordaram Malcolm enquanto ele falava no palco. Os assassinos dispararam repetidamente suas armas à queima-roupa, tirando a vida do amado e respeitado líder afroamericano.

Um exemplo de militância

Não há como dizer como as políticas e táticas de Malcolm teriam se desenvolvido se ele não tivesse sido assassinado. Mas uma coisa é certa: Malcolm X foi um revolucionário. Em toda a extensão de seu desenvolvimento político, ele demonstrou uma qualidade de ódio feroz contra o status quo do racismo e da opressão. Foi esse traço que o tornou um líder militante e exemplar.

Seu impacto foi sentido muito depois de sua morte. Mais notável, a linha política do Partido dos Panteras Negras foi fortemente influenciada pelo nacionalismo negro desafiador e revolucionário de Malcolm, bem como pelo marxismo-leninismo.

A luta que se seguiu dentro da Nação do Islã entre Malcolm X e seus seguidores, por um lado, e Elijah Muhammad e elementos conservadores mais burgueses, por outro, foi essencialmente uma luta entre forças que buscavam uma direção revolucionária e aqueles que desejavam acabar com a opressão imitando os opressores. Esse fenômeno sempre existiu nos movimentos de setores socialmente oprimidos.

Malcolm morreu quando tinha 39 anos. Embora tenha vivido uma vida curta, ele teve um impacto poderoso sobre os movimentos afro-americanos e outros movimentos revolucionários nos Estados Unidos.

Em particular, comunistas de todas as nacionalidades e outros que se esforçam para construir uma luta revolucionária unificada aprenderam com seu poderoso exemplo de desafio contra a dura realidade do racismo e da alienação. Eles aprenderam a necessidade de construir uma unidade baseada no respeito pelo potencial revolucionário das massas afroamericanas.

Liberaration News, traduzido por Vinicius Souza

Fonte: https://lavrapalavra.com/2020/10/12/o-legado-militante-de-malcolm-x/

Dia do professor e da professora, por @LatuffCartoons

Fonte: https://twitter.com/LatuffCartoons

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Ex-Pantera Negra, Jalil Muntaqim será solto após 49 anos de prisão nos EUA - OPERA MUNDI

Ex-Pantera Negra, Jalil Muntaqim será solto após 49 anos de prisão nos EUA

Ativista foi preso em 1971, aos 19 anos, acusado de matar policiais; diversas evidências apontam sua inocência

O ex-membro dos Panteras Negras Jalil Muntaqim, que está preso há 49 anos nos Estados Unidos, será solto até o dia 20 de outubro.

Foi o que determinou o Conselho de Condicionais do Estado de Nova York na última quarta-feira (23/09) após uma das muitas audiências que o ativista tem comparecido desde 1998, ano em que pôde começar a pedir liberdade condicional.

Segundo o jornal The Guardian, a justificativa dada pelas autoridades foi a de que Muntaqim expressou "remorso" pelo crimes cometidos e de que seu sentimento "era genuíno".

O ex-Pantera Negra, hoje com 68 anos de idade, foi preso em 1971, aos 19 anos, acusado de matar dois policiais durante um tiroteio no bairro do Harlem, em Nova York.

Apesar de diversas evidências surgidas ao longo dos anos apontarem sua inocência, Mustaqin ficou preso quase meio século e vinha tendo, até essa semana, todos os seus pedidos de liberdade condicional negados. 

À época da condenação, a principal testemunha, um outro membro dos Pantera Negras chamado Ruben Scott, chegou a reconhecer que incriminou Mustaqin e outros envolvidos na morte dos policiais após sessões de tortura, o que não impediu que seu depoimento fosse validado e o pedido de um novo julgamento pela defesa negado.

Além disso, um relatório balístico do FBI chegou a constatar que a arma em posse do ativista no momento de sua prisão não correspondia aos projéteis encontrados nos corpos dos policiais mortos. O parecer federal foi substituído pelo da polícia de Nova York, que oferecia uma conclusão oposta.

Albert “Nuh” Washington e Herman Bell foram outros dois militantes condenados no mesmo processo. Em 2000, Washington morreu de câncer na prisão. Bell, por sua vez, conseguiu sua liberdade condicional em 2018, aos 70 anos de idade.

Revolucionário

Nascido em Oakland, Califórnia, filho de negros admiradores do pacifismo de Martin Luther King, Mustaqin, que fora batizado como Anthony Bottom, mas adotou outro nome após conversão para o islamismo, decidiu ingressar no Partido dos Panteras Negras aos 17 anos de idade.

A organização revolucionária socialista, fundada no final dos anos 1960, era então uma das principais referências da nova geração de lutadores pelos direitos da população negra e trabalhadora dos EUA.

"Perdi qualquer esperança que os negros pudessem lutar sem apelar à autodefesa, sem responder à violência policial e dos grupos racistas. Ainda não tinha 17 anos, mas decidi me inscrever nos Panteras Negras, para desgosto de minha mãe", contou o ativista a Opera Mundi no ano de 2016.

Após sua filiação, aceitou participar do braço armado dos Panteras, mais tarde chamado de Exército Negro de Libertação (BLA, na sigla em inglês).

Durante a prisão, o ativista se formou em Psicologia e Sociologia, além de ter escrito romances e poemas. Mesmo encarcerado, Mustaqin não deixou a luta social e se tornou uma das principais figuras pela libertação dos presos políticos nos EUA.

Fonte: https://operamundi.uol.com.br/direitos-humanos/66871/ex-pantera-negra-jalil-muntaqim-sera-solto-apos-49-anos-de-prisao-nos-eua

Brecht, Walter Benjamin e o “novo ruim” - por Artur de Vargas Giorgi

Brecht, Walter Benjamin e o “novo ruim”.

Avanço do virtual, agora mais intenso, reforça a naturalização da vida: a ilusão de que o que ocorre é necessário e inevitável. Mas arte e técnica podem mostrar as entranhas da condição social e o mundo como construção precária e transformável

1. No ano de 1938, Walter Benjamin visita pela terceira vez o amigo Bertolt Brecht, que então vivia exilado em Svendborg, Dinamarca, um dos muitos lugares por onde o dramaturgo alemão passaria ao longo dos seus quinze anos de desterro, transitando entre a hospitalidade e a hostilidade.

Benjamin em breve seria, como sabemos, o autor das teses “Sobre o conceito de história”, últimos e incontornáveis escritos antes da sua opção pelo suicídio, em 1940, como forma de escapar da violência da Gestapo hitlerista. Não obstante, naquele ano de 1938, mais precisamente em 25 de agosto, o que o filósofo anota em seu diário íntimo é algo muito conciso, em certo sentido, algo mínimo.

Nessas páginas, onde Benjamin registra os debates, os confrontos, as partidas de xadrez que, ao longo dos dias, mantém com Brecht, encontramos lapidada, com efeito, em pouquíssimas palavras, “uma máxima brechtiana”; máxima que propõe o seguinte: “não partir do antigo bom, mas do novo ruim” (em Ensaios sobre Brecht).

Em tamanha concisão, hoje nada seria mais preciso e urgente. É como se fôssemos tomados por um eco do passado dirigido às emergências do nosso presente. Quer dizer, somos interpelados por uma exigência cifrada há mais de 80 anos, sob a ameaça do nazifascismo, exigência que permanece neste nosso presente destemperado e pungente, ameaçado pelas formas contemporâneas do autoritarismo.

2. O novo ruim: eis de onde devemos partir, para que não seja normalizada, sem mais, a catástrofe do “novo normal”. Esta seria a posição crítica a ser adotada nestes tempos que, imagino, teriam colocado Benjamin diante de impasses inauditos a respeito da amplitude assumida pela reprodutibilidade técnica; tempos que, nesse sentido, ainda, parecem pedir o reforço não só de nossas capacidades de compreensão das técnicas, mas, sobretudo, de um gesto caro a seu amigo e parceiro de xadrez: um gesto que muitas vezes é chamado de distanciamento, ou estranhamento.

Sabemos que Benjamin não recuava perante as mais avançadas tecnologias do seu tempo. Além de postular que um posicionamento político e estético antifascista deveria ser alcançado não com o rechaço, mas sim, justamente, por meio das técnicas modernas de reprodução (principalmente o cinema), Benjamin foi, ele mesmo, entre o final dos anos 1920 e o início da década de 1930, um speaker em rádios alemãs, falando a crianças e jovens sobre assuntos nada distantes dos seus ensaios mais exigentes.

Brecht não destoava dessa posição em seu pensamento crítico sobre o teatro. Palavras de Benjamin: “As formas do teatro épico correspondem às novas formas técnicas, o cinema e o rádio. Ele está situado no ponto mais alto da técnica”.

Com efeito, o dramaturgo propunha que a superação da identidade emocional entre o público e as ações encenadas, ou ainda, que a interrupção das prescrições miméticas e catárticas do teatro clássico “naturalista” deveria ser alcançada não fora ou para além do teatro, mas pela mobilização radical dos seus próprios recursos e artifícios. Assim, o teatro deveria interpelar o público ao expor o mundo humano como uma construção contingente, portanto passível de transformação, ao mesmo tempo em que deveria se expor, ele mesmo, como construto, como técnica de exposição.

3. O título de um poema de Brecht sintetiza bem essa operação – “O mostrar tem que ser mostrado” – e seus versos dão contorno ao programa do teatro épico:

[…]
Eis o exercício: antes de mostrarem como
Alguém comete traição, ou é tomado pelo ciúme
Ou conclui um negócio, lancem um olhar
À plateia, como se quisessem dizer:
Agora prestem atenção, agora ele trai, e o faz deste modo.
Assim ele fica quando o ciúme o toma, assim ele age
Quando faz negócio. Desta maneira
O seu mostrar conservará a atitude de mostrar
De pôr a nu o já disposto, de concluir
De sempre prosseguir. […]

Assim como Benjamin, Brecht sabia que na modernidade o problema da arte confina com o problema da política porque, para ambas, a exposição mediada pelas técnicas é decisiva. Obras de arte, artistas, públicos e políticos – todos compartilham, desde então, os mesmos espaços de exposição; todos se medem, cada vez mais, com as técnicas de reprodução, isto é, com as mediações que montam e desmontam, que modulam, compõem e recompõem o mundo que eles compartilham e disputam.

E se, a priori, o teatro pareceria escapar a esse destino, pelo fato de se valer de atores que confrontam o público diretamente e de cenas – por assim dizer – sempre originárias, desempenhadas sem edição, o que o teatro épico de Brecht propõe se aproxima, sim, da transformação causada pelo cinema na exposição de atores e políticos, igualmente. Pois vale para o teatro épico o que Benjamin escreveu a respeito da técnica cinematográfica: “Seu objetivo é tornar ‘mostráveis’, sob certas condições sociais, determinadas ações de modo que todos possam controlá-las e compreendê-las”.

Ao romper com o ilusionismo da cena, com seu andamento supostamente natural, Brecht faz intervir o teatral, vale dizer, o caráter artificial, não só do teatro, mas também das condições sociais, dessa nossa “realidade”, que tantas vezes é vista como necessária e inegociável. E com isso seu teatro afirma que, na arte como na política – nos modos da representação e nos meios da representatividade –, se o objetivo é a transformação da vida em comum, é preciso, então, não apenas mostrar; na mesma medida é necessário mostrar que se mostra, mostrar-se. Expor as formas de exposição: o que está em jogo com esse gesto é, não a reprodução do que já é vivido, mas a produção de formas de vida ainda possíveis.

4. As fundamentais medidas de preservação da vida – de toda vida – deveriam ser, estas sim, absolutamente inegociáveis. Mas, para muito além dessa conduta de fato ética, o chamado “novo normal”, entre outros aspectos muito problemáticos, apresenta-se, notadamente, como normalização da vida virtual. E se tampouco em nossos dias as respostas devem ser buscadas na recusa das técnicas mais avançadas, essa normalização definitivamente é algo que deveria ser submetido a uma crítica severa e constante.

Respostas políticas e estéticas afirmativas de uma vida comunitária somente serão possíveis com a exposição e o exame da realidade produzida pelas técnicas. Nesse sentido, é preciso mostrar que, em geral, a atual naturalização da virtualidade parece não reforçar a compreensão da contingência do mundo humano, ou seja, da possibilidade de transformá-lo. Ao contrário, parece cristalizar uma suposta certeza, sem dúvida arrogante: a certeza de que tudo que se dá é necessário, obrigatório, inevitável. Trata-se de uma lógica conservadora que, não raro, é perversamente associada ao discurso do progresso, do avanço, da evolução etc.

Afinal, conhecemos bem o elogio dos fluxos desimpedidos; o elogio da comunidade global sem hierarquias; da revolução dos conteúdos, dos afetos e das identidades; o elogio das novas formas de intimidade; do acesso e da autonomia usuária a qualquer hora e da entrega em casa just in time. Conhecemos, em suma, essa forma de apropriação que capitaliza a energia transformadora do mundo e limita nossas ações à escolha entre produtos e serviços (zoom, meet, facebook, instagram…), evitando assim as questões mais urgentes, que na verdade são as mais básicas.

O mundo virtual não reforça formas de exclusão? Que tipo de trabalho o sustenta? Quem gerencia as informações das plataformas e redes sociais? O que fazem com esses dados? A vida nos espaços públicos se intensifica? As demandas coletivas se reforçam? Essa estranha intimidade distanciada e exposta produz novos sujeitos? Em que medida essas formas de subjetivação nos interessam? É um problema a exposição da intimidade de muitos gerar lucro para pouquíssimos? E, para além da exposição, a virtualidade de fato intervém nas partilhas do mundo? Ela favorece, efetivamente, a produção de novas condições sociais, de realidades alternativas mais igualitárias?

As respostas devem ser matizadas: às vezes sim, às vezes não, em outras vezes, parcialmente. Seja como for, são perguntas como essas que, a meu ver, devem orientar, por exemplo, o debate sobre o uso na educação – e sobretudo na educação pública – de plataformas privadas ligadas ao mercado do chamado big data, assim como devem orientar a discussão sobre o fato de, hoje, cada usuário online ser “automaticamente” um produtor e, ao mesmo tempo, um consumidor de conteúdos.

Esse trabalho imaterial, segundo Peter Pál Pelbart, é uma das definições do mundo virtual. E responder criticamente a ele não é uma tarefa simples, já que através desses fluxos virtuais formatamos nossos gostos, condutas, sonhos, opiniões – nossos afetos. Como escreveu o autor em A vertigem por um fio, produzimos e consumimos “cada vez mais maneiras de ver e de sentir, de pensar e de perceber, de morar e de vestir, ou seja, formas de vida”. Daí a complexidade da situação.

5. Apesar das diferenças sobre os modos do posicionamento político-partidário (bem sinalizadas em Quando as imagens tomam posição, de Georges Didi-Huberman), Benjamin e Brecht demarcaram em torno das técnicas de reprodução e exposição o ponto da crise, da crítica e da criação.

No teatro épico, o público deixa de ser um espectador: ele é chamado a atuar, pois deve avaliar e tomar decisões sobre o que é mostrado. O homem e a sociedade são confrontados pela investigação que os afasta do conhecido, do que seria “natural”. Nada mais próximo de Benjamin, que afirmava que através do cinema a realidade podia ser vista como uma segunda natureza: produzida como uma flor azul no jardim da técnica.

Claro, somos desde o início criaturas prometeicas, ou seja, fomos e somos algo como deuses, mas com próteses, como sugeriu Freud em O mal-estar na civilização. Por isso, diante desse nosso mal-estar, diante do novo ruim, talvez a estratégia seja reforçar a exposição da nossa natureza de segunda ordem: nossa natureza técnica.

O mundo virtual não deixa de ser um imenso palco, uma cena montada, produtora de inúmeros efeitos reais. Não podemos naturalizar essa condição. Se não conseguirmos expor os artifícios que criamos e que também nos criam, não conseguiremos criticá-los, compreendê-los e controlá-los.

Benjamin escreveu que, no teatro de Brecht, o palco ainda ocupa uma posição elevada. Mas com uma diferença fundamental: em sua elevação, o palco já não tem nada de sublime, mágico ou extático. O que nele se desempenha é o estranhamento do mundo que até agora construímos. Quem sabe desse estranhamento resulte uma tomada de posição que coincida com a interrupção dos acontecimentos e com a sua leitura a contrapelo. Afinal, esse mundo estranho é o mundo ordinário, o nosso mundo humano de todos os dias. Um mundo de próteses e técnicas, artes e artifícios que é, sim, contingente. Modificar esse mundo profundamente é o papel dos atores de hoje.

ARTUR DE VARGAS GIORGI : É doutor em Literatura pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e professor de Teoria Literária da mesma instituição.

Fonte: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/brecht-walter-benjamin-e-o-novo-ruim/

O fim da corrupção - por Latuff


 Fonte: https://www.brasildefato.com.br/artes/2020/10/09/o-fim-da-corrupcao