segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Leituras em época de quarentena – Provos Brasil

 





A nova fase do fascismo e uma sociedade sem futuro - Por Maurilio Botelho

A nova fase do fascismo e uma sociedade sem futuro

Em livro de 1993, Robert Kurz analisava: direita radical é filha legítima da democracia. Mas a que se fortalece agora é distinta da que houve no Entreguerras: reacionária e passadista, já é fenômeno da crise estrutural do capitalismo

Sobre o livro A democracia devora seus filhos¹, de Robert Kurz

Lançado em 1993 como um longo artigo, A democracia devora seus filhos [trad. Daniel Cunha] antecipa em muitos aspectos o debate atual sobre o radicalismo de direita e a “morte da democracia”. A persistência do debate é um sintoma importante. Se por todos os lados se afirma que as “instituições democráticas estão em funcionamento”, então por que o fascismo volta à pauta nos meios de comunicação, nas discussões intelectuais e nas manifestações de rua?

Uma resposta imediata é a que entende o fascismo como uma ideologia autoritária sempre à espreita, uma ameaça à sociedade que ganha fôlego toda vez que são acentuadas as tensões e fragilidades sociais. Os liberais tendem a avaliar o fascismo como um risco que se manifesta quando a vigilância democrática é afrouxada – as regrinhas de Umberto Eco para a identificação do comportamento fascista oferecem, assim, um protocolo para “soar o alarme”. O ponto fraco dessas interpretações é que elas fixam o fascismo como um impulso antissocial geral desprovido de conteúdo histórico, algo completamente externo às instituições e, muitas vezes, parte de uma instintiva natureza humana violenta.

Se a “democracia amadureceu”, perguntamos, seguindo Kurz, então como explicar que três décadas de “democratização” no Brasil tenham conduzido a extrema direita ao poder; que o Leste Europeu, depois de três décadas de “choque democrático”, agora se oriente para o radicalismo de direita? Talvez seja possível colocar tudo isso na conta do déficit democrático desses países. Mas, então, como explicar a ascensão da extrema direita nas instituições parlamentares francesas e inglesas, a proliferação dos grupos neonazistas na Alemanha e que a maior nação democrática do mundo tenha levado ao poder um filho da KKK que trata supremacistas brancos como “very fine people”?

Outra linha de interpretação abordou o fascismo não como algo exterior, mas parte integrante da sociedade capitalista. Para Adorno e Horkheimer, na Dialética do Esclarecimento, o fascismo é o outro lado da racionalidade moderna, como uma força inseparável de uma sociedade que maneja meios técnicos avançados, mas permanece inconsciente em relações às determinações básicas da “gigantesca maquinaria econômica que não dá folga a ninguém”. Esse mecanismo converte a dominação em uma adesão inconsciente de todos. A comparação entre o Terceiro Reich e a Hollywood não era mera estratégia polêmica, mas resultado da reflexão sobre a técnica transformada em autoconservação individual em uma sociedade massificada: sob a forma individualizada ou do “povo” (Volk), a tendência era uma identificação geral com as “potências monstruosas” inauguradas pela produção em série, que culminou na industrialização da morte nos campos de extermínio.

O que se ganhou em enquadramento social – nas palavras famosas de Horkheimer, “quem não quer falar de capitalismo também deve silenciar sobre o fascismo” – foi o que se perdeu em historicidade do fenômeno fascista. A abordagem da “Escola de Frankfurt” também interpretou o fascismo como uma ameaça sempre latente, ainda que identificasse os vínculos íntimos da massificação promovida pelo mercado e a produção cultural industrializada com o totalitarismo.

Essa indeterminação histórica é o ponto de partida de Robert Kurz para discutir a relação entre fascismo e capitalismo. Em sua análise, o fascismo histórico aparece como um processo de gestação da democracia. A oposição entre fascismo e democracia erra porque apreende momentos ou etapas distintas de um mesmo processo histórico, manejando categorias abstratas (democracia, ditadura, liberdade) sem a sua respectiva moldura temporal. O fascismo foi um fenômeno típico da modernização capitalista em países retardatários como a Itália e a Alemanha, muito diferente de nações onde as travas das sociedades agrárias já tinham sido superadas (França, Inglaterra) ou nunca existiram (EUA). Estes últimos estavam à frente no processo de construção da universalidade do mercado mundial por meios de instituições políticas que levavam progressivamente à forma livre e individual do cidadão e do consumidor; mas onde o desenvolvimento industrial avançava se batendo com as heranças estamentais foi preciso uma força violenta e destrutiva que libertasse as potências institucionais da democracia de mercado. Para Kurz, esse é o vínculo íntimo do fascismo com a democracia: a violência e terror do fascismo e do nacional-socialismo foram as dores do parto do nascimento da democracia em nações até então atrasadas no mercado mundial e que, no entanto, estavam já em concorrência direta com as potências capitalistas da industrialização clássica: “dessa perspectiva histórico-genética, o nacional-socialismo surge como momento específico do processo de construção da democracia moderna da economia de mercado, como um de seus estágios preparatórios e de desenvolvimento, e a crise de então (guerra mundial e crise econômica) como a maior de suas crises de desenvolvimento” (p. 45).

É claro que essa formula fere o ouvido sensível dos democratas ilustrados, que não podem admitir que sua forma ideal e mais avançada de convivência política tenha se desenvolvido por meio do fascismo histórico, que serviu como instrumento de imposição da “socialização pelo valor”, isto é, das formas da mercadoria, do dinheiro e do capital. Mas a formulação de Kurz tem ainda outro ângulo que a torna extremamente atual para explicar a ascensão da extrema-direita no seio das democracias ocidentais: o novo radicalismo de direita não tem mais a ver com o fascismo em sua manifestação histórica no Entreguerras, a não ser em termos simbólicos e ideológicos secundários; é um fenômeno não mais de ascensão, mas de dissolução da democracia de mercado. Como momento específico de um continuum que aplainou o terreno para o desenvolvimento da democracia em países de modernização retardatária, o fascismo e o nacional-socialismo não podem se repetir historicamente: “A máquina mortal nacional-socialista (…) era hipermoderna e orientada para o futuro” (p. 39). Por outro lado, a irrupção generalizada de gangues raivosas de direita, skinheads, milícias, supremacistas brancos e neonazis são fenômenos próprios da desagregação da economia capitalista a partir da década de 1970 e que atingiu em um primeiro momento os países da periferia ou da semi-periferia. A explosão do extremismo de direita no centro do capitalismo corresponde, assim, ao aprofundamento da crise estrutural do capitalismo. Esse argumento Kurz já havia indicado em O colapso da modernização (1991), onde apontava que o colapso do socialismo de Estado era apenas o início da crise geral do sistema capitalista. O tom polêmico permanece agora: “o nervo da consciência democrática é atingido” quando Kurz sustenta que o novo radicalismo de direita é filho legítimo da democracia de mercado, não uma excrescência. É por isso que “toda democracia produz como reação imanente ao fim do processo de modernização, com regularidade lógica, o novo radicalismo de direita em qualquer de suas variações” (p. 34).

Todos os variados grupos e expressões “neofascistas” não passam de sintomas da derrocada do mercado mundial que levou à produção tecnológica ao seu mais alto grau e agora expulsa gradativamente a força de trabalho, potencializando as tensões sociais, fazendo vazar ressentimentos étnicos e nacionais e levando à guerra civil difusa nas ruas. Não poderíamos esperar outra coisa de indivíduos que internalizaram as coerções da rentabilidade capitalista, sentem e ouvem por todos os lados os chamados à concorrência. O cidadão aferrado à defesa democrática das liberdades econômicas agora tem de conviver com seu irmão “neofascista” que quer se impor no mesmo campo da concorrência usando, para isso, de todas as armas possíveis, incluindo as armas de fogo. A diferença dessas hordas milicianas e mafiosas em relação ao fascismo histórico, segundo Kurz, é que elas não têm mais qualquer capacidade de formar um projeto social e político abrangente, dado que também a democracia de mercado cumpriu seu papel histórico e a individualização foi levada ao extremo. O novo radicalismo de direita não deixa de mostrar sua verdade histórica ao erguer bandeiras monarquistas, faixas com símbolos cruzados ou suásticas: sua inclinação é regressiva e atesta que vivemos em uma sociedade sem futuro.

[1] A democracia devora seus filhos. Robert Kurz. Rio de Janeiro: Editora Consequência, 2020, 172 pp.

Fonte: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/a-nova-fase-do-fascismo-e-uma-sociedade-sem-futuro/




 

Reino Unido: Barco financiado pelo artista plástico Banksy ajuda a resgatar imigrantes no Mediterrâneo – por A.N.A.

Reino Unido: Barco financiado pelo artista plástico Banksy ajuda a resgatar imigrantes no Mediterrâneo

O artista britânico Banksy financiou a compra de um barco de resgate para socorrer refugiados à deriva no Mar Mediterrâneo, informa o jornal britânico The Guardian.

A embarcação, batizada de Louise Michel, uma feminista e anarquista francesa do século XX, partiu em segredo no dia 18 de agosto do Porto de Burriana, na Espanha, com destino ao mar aberto. O navio, que é menor que os costumeiros navios de resgate porém mais rápido, ainda continua em mar aberto e já resgatou 89 pessoas, incluindo 14 mulheres e quatro crianças.

O barco agora busca um local para aportar e desembarcar os migrantes. Banksy financia todo o projeto com o lucro obtido com a venda e divulgação de obras de arte com a temática da migração. O artista é pintor de grafite, pintor de telas, ativista político e diretor de cinema.

A tripulação é composta por ativistas europeus que já foram responsáveis pelo resgate de mais de 100 pessoas a bordo de outros navios e se juntaram para essa nova missão.

A ativista libertária Pia Klemp, que já comandou diversas missões na região foi escolhida como capitã. Segundo o jornal britânico, Banksy decidiu financiar o projeto e entrou em contato com Klemp em 2019.

“Olá Pia, conheci você por conta das histórias nos jornais”, escreveu o artista em um e-mail enviado à ela. “Sou um artista do Reino Unido e fiz alguns trabalhos sobre imigração, obviamente não posso ficar com o dinheiro. Você pode usá-lo para comprar um barco ou alguma coisa do tipo? Por favor, me avise. Banksy.”

O barco, de bandeira alemã, pertencia às autoridades francesas. Para o resgate dos imigrantes foi pintado de branco com detalhes rosas, além de exibir uma obra de Banksy na lateral do casco. O desenho mostra uma menina de colete salva-vidas segurando uma boia em formato de coração.

Nos últimos 12 meses, pouco mais de cinco mil imigrantes foram resgatados no mar, principalmente por navios operados por ONGs, enquanto tentavam chegar à Europa.

Fonte: agências de notícias

Conteúdos relacionados:

https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2019/08/30/alemanha-pia-klemp-exarchia-te-amo/

https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2019/08/26/grecia-pia-klemp-eles-nunca-vao-tirar-minha-fe-e-minha-alegria-na-luta-pela-liberacao-social/

https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2019/08/21/europa-pia-klemp-se-recusa-a-ser-condecorada-com-honra-em-paris/

agência de notícias anarquistas-ana

pingos roxos
em meio às águas verdes
pétalas de ipê

Marcio Luiz Miotto (Pitu)

Fonte: https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2020/08/31/reino-unido-barco-financiado-pelo-artista-plastico-banksy-ajuda-a-resgatar-imigrantes-no-mediterraneo/

UM ANO SEM WALLERSTEIN ...

 




segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Chomsky: o mundo precisa da derrota de Trump

Chomsky: o mundo precisa da derrota de Trump

Ele explica: pandemia acelerou a História e projetou a luta de classes em escala global. Agora, todos os futuros são possíveis. Pouco importam as limitações de Joe Biden: o que vale é o espaço que se abrirá às novas lutas

No início de abril, a escritora indiana Arundhati Roy escreveu o que pode ser uma das reflexões mais provocadoras sobre a pandemia:

Historicamente, as pandemias forçaram os seres humanos a romper com o passado e imaginar seu mundo de novo. Esta não é diferente. É uma porta um mundo e o próximo.

Podemos escolher passar por ela arrastando as carcaças de nossos preconceitos e ódios, nossa avareza, nossos bancos de dados e ideias mortas, nosos rios mortos e os céus fumacentos que nos acompanham. Ou podemos atravessá-la leves, com pouca bagagem, prontos para imaginar outro mundo. E prontos para lutar por ele.

Há poucos dias me encontrei, por meio de uma combinação de rede social e telefone celular, com outro defensor destacado de um mundo novo. Noam Chomsky é liguista, filósofo, pesquisador da cognição, crítico social e uma espécie de padrinho intelectual da esquerda. Arundhati Roy expressou o sentimento de muitos quando escreveu, há anos: “É raro o dia em que não me vejo desejando – por uma razão ou outra – Chomsky Zindabad, longa vida a Chomsky!

Aos 91, Chomsky mostra poucos inais de renunciar a viver longamente. É tão incisivo, curioso e influente como sempre. Em mais de uma hora de conversa, falamos sobre tudo – das escolhas políticas criadas pela pandemia ao poder do Black Lives Matter, da plataforma supreendentemente progressista de Joe Biden a descobrir amor por um país que se critica incessantemente.

Conte um pouco sobre como você tem vivido esse momento pandêmico, que tem sido bastante difícil para todos na vida pessoal, mas que também é uma crise política — e, potencialmente, para muitas pessoas, um momento de abertura na forma como pensamos esses sistemas. 

Tem sido atarefado. Estou isolado, não saio e não recebo visitas. Mas estou constantemente ocupado com entrevistas, com pedidos muito além do que posso aceitar. Muito mais ocupado do que me lembro já ter estado.

Mas você está certo. A pandemia oferece a oportunidade de fazermos escolhas sobre que tipo de mundo vai surgir a partir dela. Escolhas muito distintas. Aqueles que criaram a crise e submeteram a população global a 40 anos de ataque neoliberal estão trabalhando muito, incansavelmente, para garantir que o que for surgir seja uma versão mais dura daquilo que criou este sistema. Maior vigilância, maior controle.

E há outras forças, que vão desde o que você vê nas ruas nos Estados Unidos ao movimento ambientalista e ao DiEM25 na Europa. Muitas outras forças populares estão tentando caminhar para um mundo muito diferente. É uma espécie de luta de classes em escala global.

Por causa dessas coisas graves que você descreve, há uma discussão dentro da esquerda norte-americana sobre se é importante, neste momento, parar de falar de temas usuais e apenas unir forças para livrar-nos de Trump. E, por outro lado,os que argumentam que este é exatamente o momento de levantar todos os outros tipos de questões e sermos duros com Biden. Como você enxerga esse debate?

Bem, há uma posição muito tradicional da esquerda, que, infelizmente, foi praticamente esquecida, mas é aquela que acho que devemos seguir. É a posição de que a verdadeira política está no ativismo constante. É bem diferente da posição do establishment, que diz que política significa foco (quase que exclusivamente) na extravagância quadrienal chamada eleição — e depois ir para casa, deixando que os “líderes” assumam o controle.

A posição de esquerda sempre foi: você age politicamente o tempo todo e, de vez em quando, ocorre algo chamado eleições. Isso vai afastá-lo da política real por cerca de 10 ou 15 minutos. E depois você volta a trabalhar.

Neste momento, a diferença entre os candidatos nos EUA é abissal. Nunca houve um contraste maior. Deveria ser óbvio para qualquer ser humano que não viva debaixo de uma rocha. Portanto, a posição tradicional de esquerda diz: “Separe esses 15 minutos, aperte o botão e volte ao trabalho político.”

Porém, a esquerda ativista não fez a escolha que você menciona na pergunta. Faz as duas ao mesmo tempo.

Veja as posições da campanha de Biden. Mais à esquerda do que qualquer outro candidato democrata do qual se tenha memória, em questões como a mudança climática. Já é muito melhor do que qualquer um que o precedeu. Não é porque Biden viveu uma transformação pessoal ou porque os democratas tiveram um grande insight — mas porque estão sendo pressionados por ativistas que surgiram do movimento Sanders e outros. O programa climático, um compromisso de US$ 2 trilhões para lidar com a ameaça extrema de catástrofe ambiental, foi escrito em grande parte pelo Movimento Sunrise e fortemente endossado pelos principais ativistas da mudança climática, aqueles que conseguiram colocar o New Deal Verde na agenda legislativa. Isso é política real.

É uma posição muito interessante vinda de você. Seu apoio a Biden é mais do que apenas relutância. Você realmente parece pensar que a plataforma é surpreendentemente boa, considerando quem ele é e onde estamos.

Isto não é apoio ao Biden. É apoio aos ativistas que trabalharam incessantemente, criando o pano de fundo dentro do partido em que ocorreram as mudanças, e que acompanharam Sanders para entrar de verdade na campanha e influenciá-la. Meu apoio é a eles. Apoio à política real.

A posição de esquerda é de raramente apoiar qualquer pessoa. Você vota contra o pior. Você mantém a pressão e o ativismo.

Dada essa mobilização popular da qual você fala, quero perguntar sobre uma liderança. Eu me questiono se você considera que uma figura como a deputada Alexandria Ocasio-Cortez pode se tornar presidente neste país.

Bom, se dez anos atrás você tivesse me perguntado se alguém como Bernie Sanders poderia ser a figura política mais popular do país, eu teria chamado você de louco. Mas, de fato, isso aconteceu em 2016 e Bernie continua criando um movimento significativo. Existem possibilidades reais. Acho que se você olhasse para os Estados Unidos na década de 1920 e perguntasse: “Será que algum dia vai haver um movimento de trabalhadores?” você também teria parecido louco. Como poderia haver? Ele tinha sido esmagado.

Mas isso mudou. A vida humana não é previsível. Depende de escolhas e vontade, que são imprevisíveis. Agora, por exemplo, estamos no processo de formação de uma Internacional Progressista. Baseada no movimento Sanders nos EUA e no movimento DiEM25 de Yanis Varoufakis na Europa, que é um movimento europeu transnacional que busca preservar e fortalecer o que faz sentido na União Européia e superar suas gravíssimas falhas.

Se você me perguntasse agora se há alguma perspectiva, seria muito difícil responder. Se você observar de forma objetiva, verá onde o poder está concentrado no mundo. A Internacional Progressista é composta pelas forças que mencionei, e ao lado há uma “internacional reacionária” sendo criada na Casa Branca com Trump à frente. Esses quase-ditadores como Bolsonaro — um clone de Trump — fazem parte disso. Os ditadores do Oriente Médio, famílias ditadoras dos estados do Golfo. O Egito de Sisi, a pior ditadura da história egípcia. Israel, que está se movendo tanto para a direita que você mal consegue ver, são parte disso. A Índia de Modi que, em seu esforço por destruir a democracia indiana, transformou-a em uma quase-ditadura hindu fundamentalista. Orban na Hungria.

Ao compararmos essas forças pode surgir uma ideia do tipo: “Nessas condições, não pode haver nem luta?”. Mas esse é o cálculo errado. Existem pessoas, e elas fazem a diferença.

Podemos revisitar o meu filósofo favorito, David Hume. Seu livro Of the First Principles of Government [“Dos Primeiros Princípios do Governo”], um tratado político do final do século 18, começa dizendo que devemos entender que o poder está nas mãos dos governados. Aqueles que são governados são os que têm o poder. Qualquer que seja o tipo de Estado, militarista ou mais democrático, como a Inglaterra estava se tornando. Os chefes governam apenas por consentimento. E se esse consentimento for retirado, eles perdem. Seu poder é muito frágil.

Devo dizer que os atuais mestres do universo, como eles modestamente se referem a si mesmos, entenderam isso muito bem. Todo mês de janeiro, em Davos, a estação de esqui da Suíça, os grandes e poderosos se reúnem para esquiar, se divertir e se parabenizar por serem maravilhosos. Os principais executivos-chefes, figuras da mídia e figuras do entretenimento, e assim por diante.

Mas este ano foi diferente. O tema era: Temos problemas. Os camponeses estão chegando com suas forquilhas. Nas palavras que eles preferem, estamos enfrentando “riscos de reputação”. Eles estão vindo atrás de nós. Nosso controle é frágil. Temos que passar uma mensagem diferente. Portanto, a mensagem em Davos foi: Sim, percebemos que cometemos erros durante todo esse período neoliberal. Vocês, a população em geral, sofreu. Nós entendemos isso. Estamos superando nossos erros. Agora vamos nos comprometer com vocês, as partes interessadas e as comunidades trabalhadoras. Estamos realmente comprometidos com o seu bem-estar. Estamos nos tornando profundamente humanitários. Lamentamos nossos erros. Vocês podes botar fé em nós. Nós assumiremos a responsabilidade e trabalharemos para seu benefício.

(…)

Como a esquerda trabalhar melhor em termos de comuicação? Tanto pela linguagem que usa qunto pelos apelos políticos que faz, para alcançar um grupo mais amplo de pessoas que não são engajadas? Com frequência, parece que os republicanos têm muito talento em fazer as pessoas votarem em coisas que não serão boas para elas, enquanto os democratas precisam se esforçar muito para tentar fazer as pessoas votarem em coisas que seriam muito, muito boas para elas.

Pois bem, o movimento de Sanders teve um sucesso notável. É algo que rompeu com mais de 100 anos de história política americana. Fazer com que um candidato chegasse próximo de ser escolhido para disputar a Casa Branca, sem nenhum apoio da mídia, nem de grandes doadores ou do setor corporativo. Nunca antes aconteceu nada parecido com isso. Poderia ir mais longe? Acho que sim.

Não pretendo fazer um grande alarido sobre o assunto, mas tenho sido um pouco crítico em relação a Sanders apresentar-se como um socialista. Ele não é socialista, em minha opinião. Ele é um democrata do New Deal. Um social-democrata moderado. Suas políticas não teriam surpreendido muito Eisenhower. Que suas posições sejam consideradas revolucionárias é um sinal da guinada para a direita, de ambos os partidos, durante o período neoliberal.

Qual é o sentido de se autodenominar socialista? Essa é uma palavra muito assustadora para os Estados Unidos. Os EUA são uma sociedade incomum. Em todos os outros países do mundo, um socialista é como um democrata. Alguém é socialista, tudo bem. Você pode ser comunista e ter espaço no sistema político. Os Estados Unidos são uma sociedade extrema, conduzida pelo mercado, com um conjunto de controles muito rígido. Portanto, palavras como socialista são assustadoras. É sinônimo de gulag. Comunista então, você nem pode falar.

Tudo bem, essas são realidades sobre os Estados Unidos. Devemos fazer algo a respeito. Mas você não vai mudar estes preconceitos no tempo de uma eleição, certo? Portanto, na minha opinião, essa é uma posição duvidosa.

(…)

Quando um democrata de centro, como Joe Biden, assume a plataforma de que você falou, mas começa a campanha dizendo que, com ele, nada mudaria muito para os plutocratas, você não acha que a proposição é falsa? Ou eles tem uma espécie de realismo cuidadoso?

Eu não estou muito interessado na personalidade dele. Não tenho nenhuma opinião sobre isso. Me interessa saber como as coisas são feitas. E a maneira como as coisas são feitas não ocorre porque Biden vai passar por uma conversão religiosa e, de repente, dizer: “Oh, realmente temos que trabalhar nas questões climáticas.” Isso não acontece. É provável que os democratas odeiem o programa, mas eles não têm escolha, porque sua base popular não está apenas exigindo isso, mas está trabalhando árdua e constantemente para forçá-los a fazê-lo. Isso é política. Não a personalidade dos líderes. Eu não sei o que passa na cabeça. E eu francamente não me importo.

Por causa da pandemia e das crises relacionadas a ela, as questões das quais você passou a vida falando estão, finalmente, em destaque no discurso público. Elas estão na política; elas estão no ativismo; elas são inevitáveis. Sei que provavelmente não é o tipo de pergunta de que você gosta, mas me pergunto como você pensa sobre seu legado — o que você acha que tentou fazer e em que ponto estamos?

Na verdade, eu não penso em um legado. Me interessam mais as pessoas que estão realizando coisas. A maior parte de seus nomes nunca será conhecida. Tenho certeza de que você não saberia me dizer, e eu não saberei mencionar a você os nomes dos garotos que entraram e se sentaram numa lanchonete de Greensboro [Referência a um episódio na luta antirracista dos EUA. Em julho de 1960, quatro jovens negros sentaram-se num balcão de lanchonete em quer sua presença não era permitida. Não foram atendidos e recusaram-se a sair. Sua atitude gerou uma série de protestos contra as leis discriminatórias, que terminariam revogadas poucoa anos depois (Nota da Tradução)]. São essas pessoas que levam as coisas adiante. Se existe um legado das pessoas que tentaram fazer o que estava ao seu alcance para estimular a transformação, é o legado deles. Não consigo lembrar o nome daqueles que mais respeito no mundo. Pessoas em campos de refugiados no Laos. Camponeses do sul da Colômbia, no esforço de evitar ataques paramilitares e se proteger de corporações que buscam destruir seu abastecimento de água com minas de ouro. Pessoas em áreas curdas na Turquia.

Vou te dar um exemplo. O auge da repressão turca aos curdos foi muito cruel. Foi a pior fase da década de 1990. Foi fortemente apoiado por Clinton. E ele praticamente despejava armas durante a pior parte da repressão. Aconteceu de eu estar lá no final desse conflito. Eu dei uma palestra.

Era proibido falar curdo. Era crime. Você podia desaparecer e nunca mais ser visto. Fui cauteloso ao falar para não despertar muita ira do pessoal da segurança.

Ao final da minha palestra, quatro crianças vieram, segurando um grande livro, e me deram. Era um dicionário curdo-turco. Eles queriam dizer: “Vamos continuar lutando”. Não sei o que aconteceu com eles. Mas são essas pessoas em qualquer parte do mundo que você pode realmente respeitar. Elas é que são importantes, para qualquer legado que venha a surgir.

Noam Chomsky, entrevistado por Anand Giridharadas, no The.Ink | Tradução por Simone Paz

Fonte: https://outraspalavras.net/crise-civilizatoria/chomsky-o-mundo-precisa-da-derrota-de-trump/

PM mineira, de Romeu Zema (Novo), atira bombas contra acampados do MST que lutam há 50 horas contra despejo em MG. - por Latuff

 

Por que os zines se recusam a morrer – Samizdat & Xerography - Por Jason Rodgers

Por que os zines se recusam a morrer

Por que alguém continuaria lendo e publicando zines xerocados, já estando no século XXI há duas décadas? A tecnocracia não anunciou que essa variedade de publicações clandestinas foi substituída pela teia dos sonhos cibernética da hipermídia?

No entanto, as pessoas ainda cortam palavras e imagens e colam no papel. Eles ficam na frente das máquinas xerox para copiá-las e depois grampear as páginas.

Zines são publicações amadoras criadas por paixão, e não por dinheiro. Eles podem ser sobre a sua música underground local ou o cenário do comércio internacional de fitas. Ou zines pessoais, com foco na escrita de estilo diário / livro de memórias. Os misantropos publicam discursos politicamente incorretos. Anarquistas anti-políticos publicam polêmicas marginais. As arestas do feminismo sempre desempenharam um papel. Ou obsessões nerds, leitores e leitoras. Essas revistas são sempre auto-publicadas, principalmente com copiadoras, mas são utilizados todos os tipos de técnicas de impressão artesanal.

Os zines têm suas raízes nos fanzines de ficção científica da década de 1930. Hugo Gems-back, o editor fundador da primeira publicação de ficção científica, Amazing Stories, estava cansado de receber cartas ao editor com críticas minuciosas. Ele começou a publicar endereços de retorno, para que os fãs pudessem escrever um ao outro em vez de incomodá-lo. E eles o fizeram, dando à luz fanzines de ficção científica. Outra grande influência foram as pequenas revistas literárias. Estas tinham um tom mais acadêmico, mas haviam algumas mais selvagens no meio, como a Floating Bear, de Diane DiPrima e Amiri Baraka, e Fuck you: a Journal of the Arts, do membro da banda Fug Ed Sanders. Nos anos 60, jornais subterrâneos como o Fifth Estate, East Village Other e o Berkeley Barb, forneceram a estrutura informacional para a revolução da contracultura.

O período mais comum associado aos zines são os anos 80 e 90. Um dos principais jogadores da época era Mike Gunderloy. Em 1982, ele começou a publicar um zine de reviews chamado, Factsheet 5,com uma política de fazer um review de tudo o que lhe era enviado, incluindo títulos ofensivos e controversos.

Ele achou que seria interessante fazer com que pessoas de diferentes subculturas conversassem, conectar os anarquistas ao povo de ficção científica, os tipos literários de vanguarda aos punks. Ele esperava criar polinização cruzada, e conseguiu!

A Factsheet cresceu a ponto de Gunderloy deixar o emprego e trabalhar em tempo integral no review de zines. Ou, para ser mais preciso, 80 horas por semana. Foi isso que eventualmente o derrubou. Ele estava esgotado.

Em 1990, ele entregou o zine a Henry Luce, que publicou apenas uma edição, que foi odiada universalmente. A propriedade então mudou-se para R. Seth Friedman, que foi acusado por alguns de tentar capitalizar na “explosão de zines” dos anos 90.

Gunderloy acabou doando todos os seus milhares de zines para a Biblioteca do Estado de Nova York em Albany, Nova York. A coleção é bem no meu bairro, então passei alguns anos visitando-a todos os sábados. Ao mesmo tempo, venho publicando zines de reviews há anos.

Houve um ressurgimento de zines nos últimos anos, com uma visibilidade crescente em oficinas corporativas / faça-você-mesmo / mercados, como o Etsy.com, que se descreve como “um site de comércio eletrônico focado em itens artesanais ou antigos”. Esta é uma recuperação do faça-você-mesmx, contextualizando-o como apenas mais um show no capitalismo precário.

Na realidade, porém, não houve ressurgimento, porque os zines nunca foram embora. Muitos de nós continuamos a fazê-los ao longo dos anos. Muitas vezes, uma publicação convencional percebe o fenômeno e um repórter escreve sobre ele como se descobrissem algum canto oculto da editoração.

Publicar um zine no século 21 é tomar uma decisão consciente. Eles afirmam que há uma diferença qualitativa entre mídia impressa e digital. É uma revolta contra as mídias sociais que dominam nossa sociedade.

Há muitos fazedores de zines que continuam publicando desde os anos 80. O Irreverend Suzy Crowbar ainda publica a peculiar Popular Reality. Nasceu nos anos 80 de um ramo dos Yippies, The Shimo Underground, caracterizado por uma atitude anárquica, humor e muitas brigas. Atualmente, tem mais literatura experimental, arte psicodélica e piadas. Foi crucial no desenvolvimento da anarquia pós-esquerda, mas o anarquismo (com um ismo) sempre foi ideológico demais para o Crowbar. Ela recentemente decidiu se tornar mais misteriosa, então você terá que fazer algumas escavações para entrar em contato.

Existem algumas publicações que são zines de rede. Eles se concentram nas reviews de zine para colocar os zineiros em contato. A PJM publica o Node Pajamo. Publico um dos outros principais zines de revisão: Asymmetrical Anti-Media. Ele analisa zines, música e arte de correspondência, mas inclui apenas publicações com endereços postais na esperança de incentivar as pessoas a enviarem seus zines uns aos outros como comércio.

O comércio é um aspecto crucial da comunidade de zines, que infelizmente parece ser menos comum agora que os editores enviam cópias de seus zines a outros zines que lhes interessam, na esperança de receber uma troca. Eu gosto de imaginar que as negociações de zine são uma atividade contra-econômica que ajuda a recuperar a economia de presentes.

Existem vários projetos de zines que tentam preservar e reviver heresias históricas esquecidas e proibidas. Até recentemente, havia o Enemy Combatant, que publicava formas extremistas de anarquia com foco em material egoísta, mas também incluindo material ilegalista, anti-civil, marginal, lunático, queer e oculto. Forçou uma revisão histórica da tradição anarquista, mostrando que sempre houve muito mais estranheza do que muitos anarquistas se sentiriam confortáveis. Infelizmente, eles recentemente deixaram de publicar.

Existem vários outros zines dedicados a desenterrar a história marginal e radical. A Monocle Lash Anti-Press foca na literatura experimental obscura, avant-garde, post-neo-absurdista e utópica do século 19 ao presente.

No Quarter, publicado por David Tighe, começou como uma exploração de anarquistas e piratas ilegalistas do início do século XX. Agora, ele passou para uma história radical mais geral, com especial interesse pela margem.

A Untorelli Press produz zines maravilhosos com foco na anarquia individualista (da variedade insurrecional e ilegalista) e no niilismo queer.

Alguém pode se perguntar por que as pessoas que querem abolir a história gostariam de preservar textos históricos. Há uma diferença entre o que um tipo anti-civil sonha e Winston Smith, em 1984, lançando registros dissidentes no buraco da memória. A Internet apaga a memória, por isso é vantajoso para os iconoclastas tentar preservar a cultura subterrânea.

Em seu zine “Como sabemos?” Olchar Lindsann, do mOnode-Lash Anti-Press, escreve: “Nenhum arquivista que eu conheça espera que a mídia digitalizada dure mais do que outra geração. Isso oferece às comunidades radicais uma oportunidade única: quando a Internet cair, um evento de importância ainda maior que a destruição da Biblioteca de Alexandria, grande parte da cultura oficial será eliminada da existência. A partir de agora, as histórias serão escritas com base no que foi preservado na impressão.”

Outra vantagem importante é que a leitura da impressão, em oposição à tela, permite uma retenção e capacidade muito maiores de processar o material que está sendo lido. Em seu livro de 2010, The Shallows: O que a Internet está fazendo com nossos cérebros (em tradução livre), Nicholas Carr fornece um argumento convincente de que a Internet incentiva uma forma de leitura que pode ser caracterizada como hiper-skimming. Desestimula a leitura profunda. Isso, por sua vez, dificulta o processamento do material que está sendo lido na memória de longo prazo, o que é necessário para processar as informações.

Se queremos nos comunicar com as pessoas de maneira significativa, é crucial usar formas capazes de fazê-lo. Isso é particularmente verdadeiro se estivermos interessados em envolver as pessoas de uma maneira que as encoraje a pensar em ideias por si mesmas, em vez de imitar slogans ideológicos.

Os radicais costumam falar em alcançar o que os esquerdistas autoritários chamam de massas. Que maneira terrível de pensar em comunicação, transformando-a em uma medida quantitativa voltada para quem eles percebem como uma gota homogênea.

Em vez de visar às massas, um objetivo melhor é alcançar pessoas dentro de um estreito limite ideológico. A Internet incentiva a comunicação baseada em bolhas de filtro, uma espécie de câmara de eco. Os zines, por outro lado, não têm dificuldade em se conectar com os outros. É tão simples quanto deixar um zine em algum lugar. Pode ser um lugar onde nossos espíritos afins se reúnem, como uma loja de discos. Eu deixei milhares de zines em lugares aleatórios ou estratégicos ao longo dos anos.

Os zines continuam a existir e são ainda mais dedicados à criação, com menos ilusões de sucesso comercial. Eles têm a capacidade de ressoar ao longo do tempo, sendo importantes anos ou mesmo décadas a partir da data em que foram publicados. Duvido que um tweet compartilhe esse poder.

>> Jason Rodgers publica uma infinidade de zines e folhetos. O Asymmetrical Anti-Media é um zine de reviews que aparece regularmente. Outros comunicados recentes incluem “Afinidade e conspiração passional” e “Linhas de comando, linhas de controle”. Eles estão disponíveis por correio: PO Box 10894, Albany, NY 12201, EUA.

Fonte: Fifth Estate # 406, Primavera de 2020

Tradução > abobrinha

agência de notícias anarquistas-ana

um pássaro canta
na corda de estender roupa —
posso esperar

Rosa Clement

Fonte: https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2020/08/17/eua-por-que-os-zines-se-recusam-a-morrer-samizdat-xerography/

quinta-feira, 13 de agosto de 2020

Leon Trotsky e a arte revolucionária - Por Michael Lowy

Leon Trotsky e a arte revolucionária

Pelo 80º aniversário de sua morte

Há oitenta anos, em agosto de 1940, Leon Davidovich Trotsky foi assassinado no México por Ramon Mercader, um fanático agente da GPU stalinista. Este trágico acontecimento é amplamente conhecido hoje, muito além das fileiras dos partidários de Trotsky, graças, entre outras coisas, ao romance O Homem que Amava Cães, do escritor cubano Leonardo Padura...

Revolucionário de outubro de 1917, fundador do Exército Vermelho, adversário inflexível do stalinismo, fundador da Quarta Internacional, Leon Davidovich Bronstein trouxe contribuições essenciais ao pensamento e à estratégia marxista: a teoria da revolução permanente, o programa de transição, análise de desenvolvimento desigual e combinado – entre outros. Sua História da Revolução Russa (1930) se tornou uma referência essencial: apareceu entre os livros de Che Guevara nas montanhas bolivianas. Muitos de seus escritos ainda podem ser lidos no século XXI, enquanto os de Stalin e Zhdanov estão esquecidos nas prateleiras mais empoeiradas das bibliotecas. Podemos criticar algumas de suas decisões (Kronstadt!) e contestar o autoritarismo de certos escritos dos anos 1920-21 (como Terrorismo e Comunismo, 1920); mas não podemos negar seu papel como um dos maiores revolucionários do século XX.

León Trotsky também foi um homem de grande cultura. Seu pequeno livro Literatura e Revolução (1924) é um exemplo marcante de seu interesse pela poesia, literatura e arte. Mas há um episódio que ilustra melhor do que qualquer outro essa dimensão do personagem: a elaboração, com André Breton, de um manifesto sobre a arte revolucionária. Este é um raro documento de inspiração “marxista libertária”. Nesta breve homenagem ao aniversário da sua morte, recordemos este episódio fascinante.

Durante o verão de 1938, Breton e Trotsky se encontraram no México, aos pés dos vulcões Popocatepetl e Ixtacciuatl. Este histórico encontro foi preparado por Pierre Naville, ex-surrealista, dirigente do movimento trotskista na França. Apesar de uma violenta controvérsia com Breton em 1930, Naville escrevera a Trotsky em 1938, recomendando Breton como um homem valente que não hesitou, ao contrário de tantos outros intelectuais, em condenar publicamente a infâmia dos Processos de Moscou. Trotsky tinha, portanto, concordado em receber Breton e este, com sua companheira Jacqueline Lamba, embarcaram para o México. Trotsky vivia na época na Casa Azul, que pertencia a Diego Rivera e Frida Kahlo, dois artistas que compartilharam suas ideias e que o receberam com calorosa hospitalidade (infelizmente, eles se desentenderiam poucos meses depois). Foi também nesta enorme casa localizada no distrito de Coyoacán que Breton e seu companheiro foram hospedados durante a estada.

Foi um encontro surpreendente, entre personalidades aparentemente situadas nos antípodas: uma, herdeira revolucionária do Iluminismo, a outra, instalada na cauda do cometa romântico; um, fundador do Exército Vermelho, o outro, iniciador da Aventura Surrealista. A relação entre eles era bastante desigual: Breton tinha enorme admiração pelo revolucionário de outubro, enquanto Trotsky, embora respeitasse a coragem e a lucidez do poeta – um dos raros intelectuais franceses de esquerda a se opor ao stalinismo – tinha algumas dificuldades para entender o surrealismo… Ele pedira ao seu secretário, Van Heijenoort, que lhe fornecesse os principais documentos do movimento e os livros de Breton, mas esse universo intelectual era estranho a ele. Seus gostos literários o levaram mais aos grandes clássicos realistas do século 19 do que às experiências poéticas incomuns dos surrealistas.

No início o encontro foi muito caloroso: segundo Jaqueline Lamba – companheira de Breton, que o acompanhou ao México, entrevistada por Arturo Schwarz: “Todos ficamos muito emocionados, até Lev Davidovich. Sentimo-nos imediatamente bem-vindos de braços abertos. L.D. ficou muito feliz em ver o André. Ficou muito interessado”. No entanto, essa primeira conversa quase deu errado… Segundo o testemunho de Van Heijenoort: “O velho rapidamente começou a discutir a palavra surrealismo, para defender o realismo contra o surrealismo. Ele entendeu por realismo o significado preciso que Zola deu a esta palavra. Ele começou a falar sobre Zola. Breton a princípio ficou um tanto surpreso. No entanto, ele ouviu com atenção e soube encontrar as palavras para destacar certos traços poéticos na obra de Zola.” (Entrevista de Van Heijenoort com Arturo Schwarz). Outros assuntos polêmicos surgiram, notadamente sobre o tema do “hasard objectif”, caro aos surrealistas. Foi um mal-entendido curioso: enquanto para Breton era uma fonte de inspiração poética, Trotsky a via como um questionamento do materialismo…

E, no entanto, a corrente passou, o russo e o francês encontraram uma linguagem comum: internacionalismo, revolução, liberdade. Jacqueline Lamba fala com razão de uma afinidade eletiva entre os dois. As conversas ocorreram em francês, que Lev Davidovich falava fluentemente. Eles viajarão juntos pelo México, visitando os lugares mágicos das civilizações pré-hispânicas e praticando, imersos nos rios, a pesca à mão. Nós os vemos conversando amigavelmente em uma foto famosa, sentados próximos uns dos outros em um matagal, descalços, após uma dessas pescarias.

Deste encontro, da fricção dessas duas pedras vulcânicas, surgiu uma fagulha que ainda brilha: o Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente. De acordo com Van Heijenoort, Breton apresentou uma primeira versão e Trotsky recortou esse texto colando sua própria contribuição (em russo). É um texto comunista libertário, antifascista e alérgico ao stalinismo, que proclama a vocação revolucionária da arte e sua necessária independência em relação aos Estados e aos aparatos políticos. Ele pedia a criação de uma Federação Internacional de Arte Revolucionária Independente (FIARI).

A ideia do documento partiu de Leon Trotsky, que foi imediatamente aceita por André Breton. Foi um dos poucos, senão o único documento a quatro mãos, escrito pelo fundador do Exército Vermelho. Produto de longas conversas, discussões, trocas e, sem dúvida, alguns desentendimentos, foi assinado por André Breton e Diego Rivera, o grande pintor mural mexicano, na época fervoroso defensor de Trotsky (eles se desentenderão logo depois). Essa pequena mentira inofensiva se devia à crença do velho bolchevique de que um Manifesto sobre a arte deveria ser assinado apenas por artistas. O texto teve forte tom libertário, notadamente na fórmula, proposta por Trotsky, proclamando que, em uma sociedade revolucionária, o regime dos artistas deveria ser anarquista, ou seja, baseado na liberdade ilimitada. Em outra passagem famosa do documento, é proclamada “toda licença na arte”. Breton propôs acrescentar “exceto contra a revolução proletária”, mas Trotsky propôs eliminar este acréscimo! Conhecemos a simpatia de André Breton pelo anarquismo, mas curiosamente, neste Manifesto, é Trotsky quem escreveu as passagens mais “libertárias”.

O Manifesto afirma o destino revolucionário da arte autêntica, isto é, aquela que “opõe os poderes do mundo interior” contra “a realidade presente e insuportável”. Foi Breton ou Trotsky quem formulou essa ideia, sem dúvida extraída do repertório freudiano? Pouco importa, já que os dois revolucionários, o poeta e o lutador, conseguiram chegar a um acordo no mesmo texto.

O documento guarda, em seus princípios fundamentais, uma atualidade surpreendente, mas não sofre menos de certas limitações, talvez devido à conjuntura histórica de sua redação. Por exemplo, os autores denunciam, com grande acuidade, as restrições à liberdade dos artistas, impostas pelos Estados, em particular (mas não apenas) pelos Estados totalitários. Mas, curiosamente, perde uma discussão, e uma crítica, dos obstáculos que resultam do mercado capitalista e do fetichismo da mercadoria… O documento cita uma passagem do jovem Marx, afirmando que o escritor “não deve em caso algum viver e escrever só para ganhar dinheiro”; no entanto, em seu comentário sobre essa passagem, em vez de analisar o papel do dinheiro na corrupção da arte, os dois autores se limitam a denunciar as “restrições” e “disciplinas” que se tenta impor aos artistas em nome da “razão de Estado”. É ainda mais surpreendente que não se possa duvidar do anti-capitalismo visceral dos dois: não teria Breton qualificado Salvador Dali, que se tornou um mercenário, como um “Avida Dollars”?[ i] Encontramos a mesma lacuna no prospecto da revisão da FIARI (Clé), que clama pelo combate ao fascismo, ao stalinismo e … à religião: o capitalismo está ausente.

O Manifesto concluiu, como vimos, com um apelo à criação de um amplo movimento, uma espécie de Internacional dos Artistas, a Federação Internacional para uma Arte Revolucionária Independente (FIARI), incluindo todos aqueles que se reconhecem no espírito geral de documento. Em tal movimento, escrevem Breton e Trotsky, “os marxistas podem andar aqui de mãos dadas com os anarquistas (…) desde que ambos rompam implacavelmente com o espírito policial reacionário, seja representado por Joseph Stalin ou por seu vassalo Garcia Oliver”. Esse apelo à unidade entre marxistas e anarquistas é um dos aspectos mais interessantes do documento e um dos mais atuais, um século depois.

Entre parênteses: a denúncia de Stalin, qualificada pelo Manifesto como “o mais pérfido e perigoso inimigo” do comunismo, era essencial, mas seria preciso tratar o anarquista espanhol García Oliver, companheiro de Durruti, o dirigente histórico da CNT-FAI, o herói da resistência antifascista vitoriosa em Barcelona em 1936, de seu “vassalo”? É certo que foi ministro (renunciou em 1937) do primeiro governo da Frente Popular (Largo Caballero); e seu papel em maio de 1937, durante a luta em Barcelona entre stalinistas e anarquistas (apoiados pelo POUM), negociando uma trégua entre os dois campos, era muito questionável. Mas isso não o torna um capanga do Bonaparte soviético…

A FIARI foi fundada logo após a publicação do Manifesto; conseguiu reunir não apenas os partidários de Trotsky e os amigos de Breton, mas também anarquistas e escritores ou artistas independentes. A Federação tinha uma publicação, a revista Clé, editada por Maurice Nadeau, na época um jovem militante trotskista com grande interesse pelo surrealismo (tornou-se autor, em 1946, da primeira Histoire du Surréalisme). O gestor foi Léo Malet e o Comité Nacional era composto por: Yves Allégret, André Breton, Michel Collinet, Jean Giono, Maurice Heine, Pierre Mabille, Marcel Martinet, André Masson, Henry Poulaille, Gérard Rosenthal, Maurice Wullens. Entre os participantes encontramos: Yves Allégret, Gaston Bachelard, André Breton, Jean Giono, Maurice Heine, Georges Henein, Michel Leiris, Pierre Mabille, Roger Martin du Gard, André Masson, Albert Paraz, Henri Pastoureau, Benjamin Péret, Herbert Read, Diego Rivera, Léon Trotsky… Esses nomes dão uma ideia da capacidade da FIARI de associar personalidades políticas, culturais e artísticas bastante diversas.

A revista Clé só teve 2 edições: o nº 1 apareceu em janeiro de 1939 e o nº 2 em fevereiro de 1939. O editorial do nº 1 intitulava-se “Pas de patrie!”, e denunciava a repressão e internamento de imigrantes estrangeiros pelo governo Daladier: uma questão muito atual em 2018! A FIARI foi uma bela experiência “marxista libertária”, mas de curta duração: em setembro de 1939, o início da Segunda Guerra Mundial pôs fim, de fato, à Federação.

Post-scriptum: em 1965, nosso amigo Michel Lequenne, na época um dos dirigentes do PCI, o Partido Comunista Internacionalista, seção francesa da Quarta Internacional, propôs ao Grupo Surrealista uma refundação da FIARI. Parece que a ideia não desagradou André Breton, mas acabou por ser rejeitada por uma declaração coletiva, datada de 19 de abril de 1966 e assinada por Philippe Audoin, Vincent Bounoure, André Breton, Gérard Legrand, José Pierre, Jean Schuster – pelo Movimento Surrealista.

Nota bibliográfica: o livro de Arturo Schwarz, André Breton, Trotsky et anarchie (Paris, 18/10/1974) contém não apenas o texto do Manifesto FIARI, mas também todos os escritos de Breton sobre Trotsky, bem como uma introdução histórica substancial de 100 páginas pelo autor, que foi capaz de entrevistar o próprio Breton, Jacqueline Lamba, Van Heijenoort e Pierre Naville. Um dos documentos mais comoventes desta coleção é o discurso feito por Breton no funeral em Paris em 1962 para Natalia Sedova Trotsky. Depois de prestar homenagem a esta mulher cujos olhos viveram “as batalhas mais dramáticas entre a sombra e a luz”, concluiu com esta esperança obstinada: chegará o dia em que não só se fará justiça a Trotsky, mas também “às ideias pelas quais deu sua vida “.

Michael Löwy é diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche Scientifique.

Tradução de Artur Scavone publicada originalmente em 'A Terra é Redonda'

[ i] NT – Na comunidade artística Dalí recebeu esse apelido por sua suposta ganância. Foi chamado de “Avida Dollars”, um trocadilho com seu nome.

Fonte: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Memoria/Leon-Trotsky-e-a-arte-revolucionaria/51/48409

Ponto sem volta - por Jota Camelo

 Fonte: https://twitter.com/ojotacamelo