segunda-feira, 30 de junho de 2014

Wikileaks revela plano para desregulamentação financeira mundial - Redação do Common Dreams


Wikileaks revela plano para desregulamentação financeira mundial 
Documento comercial escondido a sete chaves, se posto em prática, fará muitos países reféns das mesmas políticas econômicas desastrosas dos anos 1990

O Wikileaks publicou quinta-feira um documento comercial escondido a sete chaves, que se promulgado, daria ao mundo financeiro uma posição ainda mais dominante no controle da economia global, pois evitaria regulações e a prestação pública de contas.

Conhecido como TISA: Trade in Services Agreemente, o projeto representa as posições de negociação dos EUA e da União Européia e estabele as estratégias desregulatórias defendidas por alguns dos maiores bancos e firmas de investimento do mundo.

De acordo com o Wikileaks:
Apesar dos fracassos na regulação do sistema financeiro que se evidenciaram na Crise de 2007-2008 e os clamores por uma melhora de estruturas regulatórias relevantes, os proponentes do TISA pretendem desregular ainda mais o mercado financeiro global. O projeto Serviçoes Financeiros Anexos coloca regras que ajudariam a expansão de financeiras multi-nacionais - principalmente aquelas com sede em Nova Iorque, Londres, Paris e Frankfurt - na direção de outras nações com barreiras regulatórias. O projeto vazado também mostra que os EUA é particularmente a favor de aumentar o fluxo de dados transfronteiriços, o que permitiria uma troca de dados pessoais e financeiros muito maior.

As negociações do TISA já estão ocorrendo fora do Acordo Geral sobre Comércio de Serviços (GATS, em inglês) e do quadro da Organização Mundial do Comércio (WTO, em inglês). No entanto, o Acordo está sendo lapidado para ser compatível com o GATS, para que uma boa parte dos participantes sejam capazes de pressionar os membros do WTO a assinar o Acordo no futuro. Entre os 50 países ausentes nas negociações estão Brasil, Rússia, Índia e China. A natureza exclusivista do TISA enfraquecerá as posições destes países em futuras negociações de serviços.

Lori Wallach, diretor do Public Citizen’s Global Trade Watch, declarou que o acordo descrito no projeto, se aprovado pelos governos nacionais, seria um desastre para quaisquer esforços regulatórios que tentassem colocar em xeque o financismo global.

Em uma declaração em resposta ao TISA liberado pelo Wikileaks esta quinta, Wallach disse:

“Se o texto vazado for posto em prática, ele reverteria as melhorias feitas depois da crise financeira global que salvaguardavam os consumidores e a estabilidade financeira, assim como nos jogaria novamente dentro do modelo extremamente desregulado dos anos 1990 que nos levou à crise e aos bilhões em perdas para os consumidores e governos.

“Este é um texto que os grandes bancos e os especuladores financeiros adorariam que pudesse causar um dano real ao resto de nós. Isto inclui um trecho chamado literalmente de “standstill” (paralisação) que proibiria os países de melhorarem a regulação financeira e os deixaria presos àquelas políticas às quais eles estiveram reféns no passado”

Tradução de Roberto Brilhante
Fonte: http://www.cartamaior.com.br

Negri: um caminho para reanimar as lutas europeias...


Negri: um caminho para reanimar as lutas europeias...
Londres, 22/6: ao menos 50 mil exigem, diante do Parlamento, fim das políticas de “austeridade”. 
Para Negri, não faltarão, nos próximos meses, oportunidades para articular lutas sociais europeias

Em meio a novas mobilizações, filósofo sugere mirar Espanha e Grécia, combinar autonomia com presença institucional e articular “política do comum”
Em uma de suas primeiras declarações após as eleições para o Parlamento Europeu, François Hollande afimou que a Europa tornou-se “ilegível”. Certamente não deve ter sido difícil, para ele, “ler” o resultado de seu partido: a derrota dos socialistas franceses foi clamorosa, assim como a dos socialistas espanhóis. Mas enquanto na Espalha a continuidade e amadurecimento dos movimentos contra a “austeridade” abriram espaço político para forças tradicionais de esquerda (Esquerda Unida, em primeiro lugar) e para a novidade significativa do Podemos, na França, como se sabe, as coisas caminharam de modo distinto.

A vitoria da Frente Nacional francesa, é, no fundo, o espelho de uma dupla incapacidade. De um lado, a dos socialistas, para gerir de modo expansivo uma crise que se torna a cada dia mais profunda, ameaçando transformar a própria França no epicentro da crise europeia. De outro, a dos movimentos sociais e da esquerda (Frente de Esquerda, em particular), para aceitar até o fundo o terreno europeu como espaço decisivo da luta. A França demonstra, antes de tudo, uma coisa: hoje, na Europa, a dimensão nacional e “soberanista” (que toda a esquerda, inclusive parte sifnificativa dos socialistas havia defendido, lutando contra a Constituição Europeia, no referendo de 2005) é um terreno no qual apenas a direita – um pouco mais ou um pouco menos abertamente xenófoba e fascista – pode vencer.

Bem além das intenções de Hollande, em todo caso, uma certa “ilegibilidade” caracteriza hoje, de fato, a Europa. No calor da crise, já haviam se esgotado as formas pelas quais o o processo de integração europeu era “lido” e levado adiante, nas décadas anteriores. A formação progressiva de um corpo de Direito Europeu, capaz de substituir a integração política faltante, foi interrompida bruscamente pelos caminhos adotados para gerir a crise. O comando articulado em torno da autonomia do Banco Central Europeu desvinculou-se não apenas da “legitimidade” democrática mas também da máquina de produção de normas e de governança da União Europeia. Agora, o voto francês, em especial (e a dupla crise, econômica e política, da França) coloca em xeque o eixo franco-alemão, sobre o qual a integração europeia apoiava-se para construir suas próprias alquimias políticas e geografias. Imaginar que a Itália possa, deste ponto de vista, substituir a França, é francamente ridículo.

De modo geral, as eleições europeias, apesar da fragmentação dos resultados, expressam uma clara rejeição à “europa alemã” e à filosofia liberal da “austeridade”. Há tempo frisamos que as próprias elites europeias percebem os limites da gestão da crise realizada até agora: ela não define novos cenários de estabilização capitalista. Porém, esta exigência pressupõe uma consolidação do quadro político a nível continental, que não se produziu de maneira alguma. A “grande coalizão” que se prenuncia no Parlamento Europeu parte do enfraquecimento profundo dos partidos que a comporão, em particular devido aos resultados que obtiveram nos paíes do Sul do continente – os mais atingidos pela crise dos últimos anos.

A coalizão entre democratas-cristãos e social-democratas, que assumiu o governo alemão, simplesmente relança um modelo alemão já percebido, de modo difuso, como causa da crise – não como solução possível. E o crescimento do Partido Democrático na Itália, com seus efeitos na composição e correlação de forças internas ao Partido Socialista Europeu, tenderá a obscurecer a identidade “socialista”, tirando o espaço que seria necessário à dialética política necessária para uma “inovação” não apenas retórica. Mesmo que ela se produza apenas no plano de uma articulação distinta (e uma estabilização) do comando capitalista.

A atração do socialismo europeu para o campo de forças articulado pelos conservadores, a sua renúncia a se tornar intérprete político tanto das reivindicações da classe operária “tradicional” e dos “desclassados” pela crise quanto dos novos setores emergentes na composição do trabalho, é um dado que emerge com clareza da nova rodada eleitoral. Assim como adota atitude de mera gestão do que existe, quanto está no governo, a social-democracia parece incapaz de reinventar-se – mesmo quando na oposição. O crescimento da direita e das forças “eurocéticas” (além do não-comparecimento às urnas) está diretamente ligado a este eclipse da social-democracia. Ela já não parece candidata a reconstruir um tecido de mediações sociais e políticas, reclamado difusamente – repetimos – por uma parte consistente das elites capitalistas europeias.

Não excluímos a hipótese de que tais elites possam voltar-se à direita para construir as condições para uma saída da crise: não seria a primiera vez em sua história, e a continuidade do processo de integração europeia (sob perfil monetário, normativo, técnico ou de infra-estruturas) não é por si mesmo incompatível com atitudes identitárias ou “nazionalistas”. O certo é estariam reprimidas, sob égide de uma política de medo e de uma valorização do autoritarismo social, os espaços de liberdade e de luta pelo Comum, em toda a Europa. A resistência e a revolta que uma “solução” deste tipo encontraria certamente a tornam, no momento, pouco realista – mas ela permanece como possibilidade de fundo.

Ainda que o horizonte europeu seja, em certa medida, opaco e “ilegível”, é em seu interior que se definirão, nos próximos anos, os termos do confilto político e social nesta parte do mundo. A seu modo, sabem disso perfeitamente as próprias forças da direita “anti-europeia”: é outro dado que as eleições europeias fornecem. O capitalismo, consolidou, na crise dos últimos anos, sua natureza “extrativa” – em primeiro lugar, por meio de um aprofundamento dos processos de financerização. Ao mesmo tempo, e especialmente na Europa, até os observadores mainstream que celebram a volta da “estabilidade” nos mercados financeiros evidenciam o alargamento do abismo entre as dinâmicas de tais mercados e a violença que persiste nas consequências sociais da crise.

O desemprego que não baixa de dois dígitos em muitos países europeus; a ampliação e intensificação da precariedade; o disciplinamento de populações inteiras por meio da dívida; a represssão; o ataque às condições dos imigrandes; os retrocessos conservadores sobre temas cruciais como os direitos civis e a liberdade: é esta a herança da “austeridade” na Europa. Enquanto isso, no plano mundial a instabilidade e as turbulências provocadas pela cirse de hegemonia norte-americana continuam a se intensificar. As guerras nos confins da União Europeia (Ucrânia e Síria) são uma manifestação dramática do fenômeno. A crise profunda de todas as formas de governabilidadede (e de todas as tentativas de requalificação da democracia) ameaça, na Europa, traduzir-se em condições de violência generalizada, ou de guerra civil latente. Estes problemas, em todo caso, só poderão ser enfrentados na Europa, dentro do espaço continental. Certamente, não o serão nos espaços augustos dos Estados-Nações europeus!

Os limites da “austeridade” já o dissemos, tornaram-se evidentes na Europa. A reabertura de uma dinâmica salarial (o tema da elevação do salário mínimo foi assumido por parte da “Grande Coalizão” que governa a Alemanha e, na Itália, com o bônus fiscal do governo Renzi) demonstra o fenômeno. Há aqui uma oportunidade para as lutas e movimentos europeus: denunciar a mistificação desta abertura só é possível forçando seus limites, fazendo irromper na cena as novas figuras da cooperação produtiva, multiplicando as reivindicações que esgarçam os limites do “tralbalho” e agindo para que entrem em convergência, no interior de um grande movimento pela reapropriação da rizqueza social. O “sindicalismo social”, cuja discussão estimulamos no interior da rede Eruronomade, precisa ter este significado de reconstrução das bases materiais para uma política de expansão do Comum.

Um novo desenho da luta de classes começa a tomar forma. Projetá-la a nível europeu é o que pretendemos, quando falamos de um movimento constituinte capaz de romper as barreiras nacionais sem, por isso, perder o enraizamento no interior de conjunturas sociais e políticas específicas.

Não sabemos se este movimento constituinte encontrará, em nível europeu, as condições politicas para se consolidar – e, portanto, para produzir uma nova qualificação da democracia e introduzir elementos maduros de contrapoder em cada cenário de estabilização e “saída” da crise. O que vemos é que, nos países em que foi mais forte e contínuo o movimento de luta contra a “austeridade”, este movimento conseguiu incidir também nos planos eleitoral e institucional, introduzindo aí elementos significativos de contradição.

Embora em condições distintas, a afirmação do Podemos na Espanha e a vitória do Syriza na Grécia expressam precisamente a possibilidade de conjugar a consolidação de formas de auto-organização, de luta e de contrapoder em nível social, com um uso inovador dos dispositivos eleitorais e institucionais. Que fique claro: nem o Podemos, nem o Syriza são para nós “modelos”. Não excluímos, é claro, a hipótese de que, em um ou no outro caso, a oportunidade seja desperdiçada, com a volta à ideia – empobrecedora – de “representação dos movimentos”. Mas achamos oportuno sublinhar que a oportunidade se apresenta; e que foi construída por lutas e movimentos.

Trata-se, nos próximos meses, de trabalhar antes de tudo no interior destes movimentos e lutas, na perspectiva de que ganhem potência, multipliquem-se, assumam uma convergência maior no terreno europeu. Não faltarão ocasiões, no verão e outono [inverno e primavera brasileiros]. Construir uma linguagem e um imaginário comuns dos movimentos europeus significa conquistar os instrumentos necessários para determinar uma nova “legibilidade” da Europa; para discernir, na opacidade da transição em curso, a ocasião para uma política do comum.

Por Toni Negri e Sandro Mezzadra, EuroNomade | Tradução: Antonio Martins
Fonte: http://outraspalavras.net/

Ok se sunitas e xiitas estão matando uns aos outros mas ... NÃO TOQUE EM MEU ÓLEO! - por Latuff

Fonte: http://latuffcartoons.wordpress.com/

quinta-feira, 26 de junho de 2014

Para compreender Michael Foucault - Por Bruno Lorenzatto


Para compreender Michael Foucault
Michel Foucault fala ao megafone ao lado de Jean-Paul Sartre, em manifestação

Há trinta anos, morria filósofo-ativista que recusou papel de líder, mas estimulou a transgredir “verdades” fabricadas e eternizadas pelo poder

 “Mostrar às pessoas que elas são muito mais livres do que pensam, que elas tomam por verdadeiro, por evidentes, certos temas fabricados em um momento particular da história, e que essa pretensa evidência pode ser criticada e destruída.”
(Michel Foucault)

Há trinta anos, em junho de 1984, morria em Paris Michel Foucault. Um pensador do século XX que inventou certo modo radical de pensar, que atravessa este início de século: suas reflexões permanecem fundamentais para os movimentos de contestação política e social; para todos aqueles que desejam “saber como e até onde seria possível pensar de modo diferente”.

Foucault participou teórica e praticamente dos movimento sociais que poderíamos chamar de vanguarda de seu tempo, sobretudo durante as décadas de sessenta e setenta: a luta antimanicomial (sua experiência num hospital psiquiátrico foi uma das motivações que o levou a escrever História da Loucura); as revoltas nos presídios franceses (junto com Gilles Deleuze criou o GIP – Grupo de Informação sobre as Prisões, que buscava dar voz aos presos e às outras pessoas diretamente envolvidas no sistema prisional; com base nessa experiência escreveu Vigiar e Punir); o movimento gay (uma das motivações para sua História da Sexualidade).

O pensador francês também escreveu artigos para jornais e revistas no calor da hora sobre acontecimentos importantes, deu conferências e entrevistas em diversos países, inclusive no Brasil. Contrapunha seu papel de intelectual ao “intelectual universal”, isto é, uma espécie de líder que pensa pelas massas e as dirige para a “verdadeira” luta. O filósofo via a si mesmo como um “intelectual específico”, aquele que em domínios precisos contribui para determinadas lutas em curso no presente. Parafraseando Deleuze, Foucault foi o primeiro a ensinar a indignidade de falar pelos outros.

Ele dizia que suas pesquisas nasciam de problemas que o inquietavam na atualidade: evidências que poderiam ser destruídas se soubéssemos como foram produzidas historicamente; por isso fez da ontologia (o estudo do ser, um modo de reflexão geralmente desligado da realidade histórica, uma vez que busca princípios – as ideias, para Platão; o cogito, para Descartes; o sujeito transcendental, para Kant – que antecedem e, por assim dizer, fundam a história) uma reflexão em cujo cerne está o presente e, portanto, a investigação histórica.
Através de estudos transdisciplinares (e não entre disciplinas, pois trata-se de colocar em questão os limites entre elas), Foucault deu forma a uma crítica filosófica que recorre sobretudo à pesquisa histórica, para questionar as maneiras pelas quais certas verdades e seus efeitos práticos vieram a se formar e se estabelecer no presente.
 
Questionava assim os sistemas de exclusão criados pelo Ocidende quando do início da época moderna (na cronologia de Foucault, desde fins do século XVIII):

- o saber médico e psiquiátrico – a patologização e a medicalização como formas modernas de dominação sobre seres economica e socialmente inconvenientes, os loucos;

- o nascimento das ciências humanas e da filosofia moderna como saberes que atestam a invenção do conceito de homem, transformando o ser humano, ao mesmo tempo, em sujeito do conhecimento e objeto de saber: o grande dogma da modernidade filosófica;

- a prisão e outras instituições de confinamento (tais como a escola, a fábrica, o quartel) não como um avanço nos sentimentos morais e humanitários, mas como mudança de estratégia do poder, que visa o disciplinamento e a docilização dos corpos;

- a sexualidade como dispositivo histórico de objetivação (o indivíduo como objeto de saber e ponto de aplicação de disciplinas) e subjetivação (o modo segundo o qual o sujeito se reconhece enquanto tal) do corpo, através dos quais se implica uma verdade essencial do homem. Não deixa de ser notável o fato de o Ocidente ter inventado um ritual singular segundo o qual algumas pessoas alugam os ouvidos de outras (os psicanalistas) para falarem de seu sexo.

Às suas pesquisas, ele chamou ontologias do presente: um modo de reflexão, segundo Foucault iniciado por Kant, em que está em jogo o vínculo entre filosofia, história e atualidade. A tarefa de pensar o hoje como diferença na história. Mas se a questão para Kant era a de saber quais limites o conhecimento deve respeitar (os limites da razão), em Foucault a questão se converte no problema de saber quais limites podemos questionar e transgredir na atualidade, isto é, “dizer o que existe, fazendo-o aparecer como podendo não ser como ele é” (2008, p. 325).

Nesse sentido, o filósofo procurava dar visibilidade às partes ocultas que formam o presente e os fragmentos de narrativas que nos constituem lá mesmo onde não há mais identidade, onde o “eu” se encontra fracionado pela história plural que o engendrou. De modo que esse questionamento histórico-filosófico não nos conduz à reafirmação de nossas certezas, de nossas instituições e sistemas, mas ao afastamento crítico dessas instâncias e de si próprio como exercício ético e político. Como indica Deleuze (1992, p. 119): “a história, segundo Foucault, nos cerca e nos delimita; não diz o que somos, mas aquilo de que estamos em vias de diferir; não estabelece nossa identidade, mas a dissipa em proveito do outro que somos”.

A história (não a narrativa histórica ou a escrita da história, mas as condições de existência dos homens no decorrer do tempo, que lhes escapa à consciência), não é da ordem da necessidade; ela diz respeito à liberdade, à invenção; pertence à ordem mais da casualidade do que da causalidade; é feita mais de rupturas e violência do que de continuidades conciliadoras. Esse modo de conceber a história se opõe à imagem tranquila que a narrativa histórica tradicional criou: a história do homem como a manifestação de um progresso inevitável – o lento processo de realização de uma utopia –, que seria alcançado após o iluminismo pela aplicação dos métodos racionais. Como se a ciência, o pensamento e a vida estivessem continuamente mais próximos de verdades que aos poucos são reveladas como o destino final do homem.

Se os estudos de Foucault mostram que os seres humanos não dominam os acontecimentos que constituem o solo de suas experiências, eles atestam ao mesmo tempo que, no espaço limitado do presente, as pessoas dispõem da possibilidade de questionar o que muitas narrativas apresentam como necessário, assim como as formas de poder e dominação que se pretendem absolutas.
Os procedimentos de Foucault postulam, tal como Nietzsche descobrira no final do século XIX, que é possível fazer uma história de tudo aquilo que nos cerca e nos parece essencial e sem história – os sentimentos, a moral, a verdade etc. Essa descoberta indica que, mesmo esses elementos aparentemente universais ou imunes à passagem do tempo, se dão como contingências históricas, como coisas que foram criadas em um dado momento, em circunstâncias precisas.

Trata-se, assim, para Foucault, de pensar a história de determinadas problematizações: a história de como certas coisas se tornam problemas para o pensamento, dignas de serem pensadas por um ou outro domínio do saber e, através de formas de racionalização específicas, verdades são fabricadas. De maneira que suas pesquisas mostram que nossas evidências são frágeis e nossas verdades, recentes e provisórias.
Textos citados:
FOUCAULT, Michel. Estruturalismo e Pós-estruturalismo 1983. Ditos e Escritos II, Arqueologia das Ciências e História dos Sistemas de Pensamento, Trad. Elisa Monteiro, Rio de Janeiro: Forense, 2008.
DELEUZE Gilles. A vida como obra de arte, Conversações. Ed. 34, Rio de Janeiro, 1992.
Link para o filme “Foucault por ele mesmo”:https://www.youtube.com/watch?v=Xkn31sjh4To

Fonte: http://outraspalavras.net

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Criminalização do movimento indígena no Brasil – Charge @ciminacional - por Latuff

Fonte: http://latuffcartoons.wordpress.com/

Mídia: até The Economist fustiga domínio da Globo - Por Inês Castilho


Mídia: até The Economist fustiga domínio da Globo
Revista britânica aponta absurda concentração de audiência no Brasil e insinua: Dilma poderia adotar uma “Lei de Meios” semelhante à da Argentina

Uma amiga poeta do Rio de Janeiro expressou há alguns dias, em visita a São Paulo, quão espantoso é para ela, há anos sem tevê, ver todo mundo: o pobre, o rico e o remediado, analfabeto ou letrado, sentar-se diariamente diante do televisor para assistir ao jornal e/ou novela (e esticar o assunto em conversa com amigos). Não menos que 91 milhões de almas, 45% dos brasileiros, sintoniza na Globo todo dia, todo santo dia. Assustador, observou.

Até The Economist sabe, como mostra em reportagem (edição de 07.06), mas nós fingimos não perceber o poder que o Brasil confere às Organizações Globo. E olhe que a revista inglesa, conservadora, nem entrou nos detalhes sórdidos da sonegação fiscal do Grupo, nem na parte do leão de publicidade oficial que recebe do governo. Falou, isso sim, que muita gente no país começa a inquietar-se com tanto poder concentrado nas mãos de tão poucos. (A consciência vem em ondas, parece.)

“É o tipo de audiência que, nos Estados Unidos, pode ser alcançada apenas uma vez por ano, e somente pela rede que venceu a competição pelos direitos de transmissão do campeonato de futebol americano Super Bowl”, diz a revista em “Globo Domination”. Sua principal concorrente, a Record, não tem mais que 13% da audiência. Já a principal rede dos Estados Unidos, a CBS, alcança não mais que 12% nos picos, e as concorrentes, uma média de 8%. Isso parece mais democracia.
A concentração de poder, claro, vem junto com a concentração de dinheiro. A família Marinho é a mais bilionária entre os 65 bilionários brasileiros, aponta ranking da Forbes de 2014. Roberto Irineu Marinho, João Roberto Marinho e José Roberto Marinho, os três irmãos, juntos, têm fortuna estimada em US$ 28,9 bilhões. “É a maior companhia de mídia da América Latina, com receitas que alcançaram 14,6 bilhões de reais ($6.3 bilhões) em 2013, valor que cresceu impressionantemente na última década”.

E então, finalmente, chega ao ponto. Lembrando que na Argentina o poder do Grupo Clarín está sendo reduzido para no máximo 35% de audiência, como determinou a recente Lei de Meios, e o México tenta reduzir o peso da Televisa, a revista põe o dedo na ferida: “Mas o governo brasileiro é mais dócil com os donos da mídia.”

A matéria lembra ainda que há hoje no Brasil número maior de celulares que de habitantes, e a média de tempo dos brasileiros on line nas redes sociais, em abril, era de 12,5 horas semanais. E prevê: pela primeira vez um concorrente ameaça as Organizações, em publicidade e audiência. “Cada vez mais, a disputa pelo mercado publicitário será entre dois Gs: Globo e Google.”

The Economist já desenhou. Resta agora à presidente Dilma Roussef e seu secretário de comunicação, Thomas Traumann, encarar a realidade gritante. Especialmente depois das vaias transmitidas com fervor à vastíssima audiência da família Marinho e repercutida com sangue os olhos pela mídia corporativa, justo aqueles que, num jogo perverso, são sempre reverenciados pela publicidade governamental.

Fonte: http://outraspalavras.net/blog

terça-feira, 24 de junho de 2014

SOBRE O SILÊNCIO OU MANIFESTO PELA VOZ (Maria Clara Bubna)


SOBRE O SILÊNCIO OU MANIFESTO PELA VOZ
Por muitos dias, eu optei por permanecer calada. Talvez numa tentativa de parecer madura (como se o silêncio fosse reflexo de maturidade) ou evitando que mais feridas fossem abertas, eu escolhi, nesse último mês, por vivenciar o inferno em que fui colocada com declarações breves e abstratas e conversas pessoais cautelosas. Mas se tem uma coisa que eu descobri nesse mês é que a maior dor que poderiam me causar era o meu silenciamento, o meu apagamento por ser mulher, jovem, “elo fraco” de toda relação de poder. Eu decidi portanto recuperar minha voz. Esse texto é um apelo a não só o meu direito de resposta, mas o meu direito a existir e me manter de pé enquanto mulher.

Eu nunca vi necessidade de esconder meus posicionamentos. Seja sobre o meu feminismo ou minhas preferências políticas, sempre fui muito firme e verdadeira com o que acredito. Mantive sempre a consciência de que minha voz era importante e que, junto com muitas outras vozes, seriamos fortes. Exatamente por isso, nunca vi necessidade de me esconder. Decidi fazer Direito baseada nessa minha ideia de que a união de vozes e forças poderia mudar a quantidade brutal de situações hediondas que o sistema apresenta.

Dentro da Faculdade de Direito da UERJ, acabei encontrando um professor que possui postura claramente liberal. Ele também nunca fez questão de esconder suas preferências políticas, mesmo no exercício de sua função. Apesar de ser meu primeiro ano na faculdade, passei alguns muitos anos no colégio durante os ensinos fundamental e médio e tive professores militares, conservadores, cristãos ferrenhos. Embates aconteciam, mas nunca ninguém se sentiu ofendido ou depreciado pelas suas preferências ideológicas. O debate, quando feito de maneira saudável, pode sim ser enriquecedor. Para minha surpresa, isso não aconteceu no ambiente universitário.

Ouvindo Bernardo Santoro se referir aos médicos cubanos como “escravos cubanos”, a Marx como “velho barbudo do mal”; explicar o conceito de demanda dizendo que ele era um “exímio ordenhador pois produzia muito leitinho” (sic) e que o “nazismo era um movimento de esquerda”, decidi por me afastar das aulas e tentar acompanhar o conteúdo por livros, gravações, grupos de estudo… Já ciente do meu posicionamento político e percebendo minha ausência, o professor chegou a indagar algumas vezes, durante suas aulas: “onde está a aluna marxista?”

No dia 15 de maio deste ano, Bernardo postou em sua página do Facebook, de maneira pública, um post sobre o feminismo. Usando o argumento de que se tratava de uma “brincadeira”, o docente escarneceu da luta feminista e das mulheres de maneira grosseira e agressiva. A publicação alcançou muitas visualizações, inclusive de grupos e coletivos feministas que a consideraram particularmente grave, em se tratando de um professor, como foi o caso do Coletivo de Mulheres da UFRJ, universidade em que Bernardo também leciona. 

A partir do episódio, o Coletivo de Mulheres da UFRJ escreveu uma nota de repúdio à publicação do professor, publicada no dia 27 de maio na página do próprio Coletivo, chegando rapidamente ao seu conhecimento.

Foi o estopim. Fazendo suposições, o professor começou a me acusar pela redação da nota de repúdio e a justificou como fruto de sua “relação conflituosa” comigo, se mostrando incapaz de perceber quão problemático é escarnecer, de maneira pública, de um movimento de luta como o feminismo.

Fui então ameaçada de processo. Primeiro com indiretas por comentários, onde meu nome não era citado. Alguns dias se passaram com uma tensão se formando, tanto no meio virtual quanto nos corredores da minha faculdade. Já se tornava difícil andar sem ser questionada sobre o assunto.
Veio então, dias depois, uma mensagem privada do próprio Bernardo. A mensagem me surpreendeu por não só contar com o aviso sobre o “processo criminal por difamação” que o professor abriria contra mim, mas por um pedido do mesmo para que nos encontrássemos na secretaria da faculdade para que eu me desligasse da minha turma, pois o professor não tinha interesse em continuar dando aula para alguém que processaria.

Nesse ponto, meu emocional já não era dos melhores. Já não conseguia me concentrar nas aulas, chorava com uma certa frequência quando pensava em ir pra faculdade e essa mensagem do professor serviu para me desestabilizar mais ainda. Procurei o Centro Acadêmico da minha faculdade com muitas dúvidas sobre como agir. Foi decidido então levar o assunto até o Conselho Departamental que aconteceria dali alguns dias.

No Conselho, mesmo com os repetidos informes de que não se tratava de um tribunal de exceção, Bernardo agiu como se fosse um julgamento. Preparou uma verdadeira defesa que foi lida de maneira teatral por mais de quarenta minutos. Conversas e posts privados meus foram expostos numa tentativa de deslegitimar minha postura. Publicações minhas sobre a militância feminista e textos sobre minhas preferências políticas foram lidos pelo professor, manipulando o conteúdo e me expondo de maneira covarde e cruel. Dizendo-se perseguido por mim, uma aluna do primeiro período, Bernardo esqueceu-se que dentro do vínculo aluno/professor há uma clara relação de poder onde o aluno é obviamente o elo mais fraco. 

Eu, enquanto aluna, mulher, jovem, não possuo instrumentos para perseguir um professor.
O Conselho, por fim, decidiu pela abertura de uma sindicância para apurar a postura antipedagógica de Bernardo. Não aceitando a abertura da sindicância, o professor, durante o próprio Conselho, comunicou que iria se exonerar e deixou a sala.

Foi repetido incansavelmente que a questão para a abertura da sindicância não era ideológica, mas sim sobre a postura dele como docente. Bernardo, ao que parece, não entendeu.

No dia seguinte, saiu uma reportagem no jornal O Globo sobre a questão. O professor declara que eu sempre fui uma “influência negativa para a turma”. Alguns dias depois, a cereja do bolo: seu amigo pessoal, Rodrigo Constantino, publicou, em seu blog na Revista Veja, uma reportagem onde eu era completamente difamada e exposta sem nenhum aviso prévio sobre a citação do meu nome. A reportagem por si só já era deprimente, mas o que ela gerou foi ainda mais violento.

Comecei a receber mensagens ameaçadoras que passavam desde xingamentos como “vadia caluniadora” até ameaças de “estupro corretivo”. Meu e-mail pessoal foi hackeado e meu perfil do facebook suspenso.

A situação atual parece estável, mas só parece. Ontem, no meu novo perfil do facebook, recebi mais uma mensagem de um homem desconhecido dizendo que eu deveria ser estuprada. Não, eu não deveria. Nem eu nem nenhuma outra mulher do planeta deveria ser estuprada, seja lá qual for o contexto. Nada nesse mundo justifica um estupro ou serve de motivação para tal.

Decidi quebrar o silêncio, romper com essa postura conformista e empoderar minha voz. É preciso que as pessoas tenham noção da tensão social que vivemos onde as relações de opressão estão cada vez mais escancaradas e violentas.

Em todo esse desenrolar, eu me vi em muitos momentos me odiando. Me odiando por ser mulher, me odiando por um dia ter dado valor à minha voz. Me vi procurando esconderijos, me arrependendo de ter entrado na faculdade de Direito, de ter acreditado na minha força. Me detestei, senti asco de mim. Mas eu não sou assim. Eu sou mulher. Já nasci sentindo sobre mim o peso da opressão, do machismo, do medo frequente de ser violada e violentada. Eu sou forte, está na minha essência ter força. E é com essa força que eu escrevo esse texto.

Estejamos fortes e unidos. A situação não tende a ficar mais mansa ou fácil. Nós precisamos estar juntos. É essa união que vai criar rede de amor e uma barreira contra essas investidas violentas dos fascistas que nos cercam. Foi essa rede de amor e apoio que me manteve sã durante esse mês e é essa rede que vai nos manter vivos quando o sistema ruir. Porque esse sistema está, definitivamente, fadado ao fracasso.

Abrace e empodere sua voz.

Maria Clara Bubna
Rio de Janeiro, junho de 2014.

Acorda Brasil, acorda meu povo, continuam manipulando...


segunda-feira, 23 de junho de 2014

Noam Chomsky e sua esperança dissidente - Entrevista a Chris Hedge


Noam Chomsky e sua esperança dissidente
Ele vislumbra brechas na fábrica de consensos do capitalismo e aposta: movimentos como Occupy, economia solidária e rejeição ao consumismo podem abalar sistema

Noam Chomsky, a quem entrevistei 5ª-feira passada em sua sala no Massachusetts Institute of Technology (MIT), influenciou intelectuais nos EUA e em todo o mundo, por número incalculável de vias. A explicação que construiu para o Império, a propaganda de massa, a hipocrisia e o servilismo dos liberais e os fracassos dos acadêmicos, além do que ensinou sobre os modos pelos quais a linguagem é usada como máscara pelo poder, para nos impedir de ver a realidade, fazem dele o mais importante intelectual nos EUA. A força de seu pensamento, combinada a uma independência feroz, aterroriza o estado-empresa – motivo pelo qual a imprensa-empresa e grande parte da academia-empresa tratam-no como pária. Chomsky é o Sócrates do nosso tempo.

Vivemos um momento sombrio e desolado na história humana. E Chomsky começa por essa realidade. Citou o falecido Ernst Mayr, importante biólogo evolucionista do século 20, que disse que provavelmente nós jamais encontraremos extraterrestres inteligentes, porque formas superiores de vida se autoextinguem em tempo relativamente curto.

“Mayr dizia que o valor adaptacional do que se chama ‘inteligência superior’ é muito baixo” – disse Chomsky. – “Baratas e bactérias são muito mais adaptáveis que os humanos. É melhor ser inteligente que estúpido, mas podemos ser um equívoco biológico, usando os 100 mil anos que Mayr nos dá como expectativa de vida como espécie, para destruir-nos nós mesmos e destruir também muitas outras formas de vida no planeta.”

A mudança climática “pode acabar conosco, e em futuro não muito distante” – diz Chomsky. – “É a primeira vez na história humana em que temos a capacidade para destruir as condições mínimas para sobrevivência decente. Já está acontecendo. Há espécies que estão sendo destruídas. Estima-se que vivemos destruição equivalente à de há 65 milhões de anos, quando um asteroide colidiu com a Terra, extinguiu os dinossauros e grande número de outras espécies. A destruição, hoje, é de nível equivalente àquele. De diferente, que o asteroide somos nós. Se alguém nos está vendo do espaço, deve estar atônito. Há setores da população global tentando impedir a catástrofe global. Outros setores tentam apressá-la.

Veja bem quem são uns e outros: os que tentam impedir a catástrofe total são os que nós chamamos de primitivos, atrasados, populações indígenas – as Nações Originais no Canadá, os aborígenes australianos, pessoas que ainda vivem em tribos na Índia. E quem acelera a destruição? Os mais privilegiados, os chamados ‘avançados’, os letrados, as pessoas cultas e educadas do mundo.”

Se Mayr acertou, estamos no fim de uma tendência, acelerada pela Revolução Industrial, que nos jogará para o outro lado de uma montanha, ambientalmente e economicamente. Esse evento, aos olhos de Chomsky, nos oferece uma oportunidade e, ao mesmo tempo, traz um perigo. Já várias vezes Chomsky repetiu, como alerta, que, se temos de nos adaptar e sobreviver, é preciso derrubar o poder da elite-empresa-corporação, mediante movimentos de massa; e devolver o poder a coletivos autônomos que são focados em manter as comunidades, em vez de explorar comunidades. Apelar às instituições e mecanismos estabelecidos de poder não vai dar certo.

“Podem-se extrair muitas boas lições, do período inicial da Revolução Industrial” – disse ele. – “A Revolução Industrial decolou aqui perto, no leste de Massachusetts, em meados do século 19. Foi o período quando fazendeiros independentes estavam sendo conduzidos para dentro do sistema industrial. Homens e mulheres – as mulheres deixaram as fazendas para ser “operárias de fábrica” – lastimaram amargamente a mudança. Foi também período de imprensa muito livre, a mais livre que os EUA jamais conheceram, em toda sua história. Havia quantidade enorme de jornais e lê-los hoje é experiência fascinante. O povo que foi arrastado para o sistema industrial via aquilo tudo como um ataque à sua dignidade pessoal, aos seus direitos de seres humanos. Eram seres humanos livres, forçados para dentro do que chamavam ‘trabalho assalariado’, e que, aos olhos deles, não era muito diferente da escravidão. De fato, essa era a impressão dominante entre o povo, a tal ponto, que havia um slogan do Partido Republicano: ‘A única diferença entre trabalhar por salário e ser escravo é que o salário acaba.’”

Chomsky diz que essa deriva, que forçou os trabalhadores agrários para longe da terra e para dentro das fábricas nos centros urbanos, foi acompanhada por uma destruição cultural. Os trabalhadores, diz ele, haviam sido parte da “mais alta cultura da época”.

“Lembro-me disso, lá nos anos 1930s, com minha própria família” – diz ele. – “Aquilo nos foi tirado. Estávamos sendo forçados a nos tornar, de certo modo, escravos. Diziam que você trabalhava como artesão e vendia um produto que você produzia, então, como assalariado, o que você passou a fazer foi vender você mesmo. E isso soava como ofensa profunda. Eles condenavam o que chamavam de ‘novo espírito da época’, ganhar dinheiro e esquecer-se completamente de si mesmo. É velho e, ao mesmo tempo, soa hoje muito familiar aos nossos ouvidos.”

É essa consciência radical, que deitou raízes em meados do século 19 entre fazendeiros e muitos operários de fábrica, que Chomsky diz que temos de recuperar para conseguirmos avançar como sociedade e como civilização. No final do século 19, fazendeiros, sobretudo no meio-oeste, livraram-se dos banqueiros e dos mercados de capitais, e constituíram seus próprios bancos e cooperativas. Entenderam o perigo de virar vítimas de um processo vicioso de endividamento, comandado pela classe capitalista. Os fazendeiros radicais fizeram alianças com os ‘Knights of Labor’ [Cavaleiros do Trabalho],[1]que entendiam que os que trabalhavam nos moinhos deviam ser também proprietários dos moinhos.

“À altura dos anos 1890s, operários estavam tomando cidades e governando-as, no leste e no oeste da Pennsylvania. É o caso de Homestead” – Chomsky lembrou. – “Mas foram esmagados à força. Demorou um pouco. O golpe final foi o ‘Medo Vermelho’ de Woodrow Wilson [orig. Woodrow Wilson’s Red Scare][2].”

“A ideia, hoje, ainda deve ser a dos Knights of Labor,” ele disse. “Os que trabalham nos moinhos devem ser também donos dos moinhos. Há muito trabalho em andamento. Haverá mais. Os preços da energia estão caindo nos EUA, por causa da exploração maciça de combustíveis fósseis, que destruirá nossos netos. Mas, sob a moralidade capitalista, o cálculo é: os lucros de amanhã são mais importantes que a existência ou não dos seus netos. Estamos conseguindo preços mais baixos de energia. Eles [os empresários] estão entusiasmadíssimos, porque podem oferecer preços inferiores aos que a Europa oferece, porque nossa energia é mais barata. E assim, os EUA conseguimos fazer fracassar os esforços que a Europa tem procurado fazer, para desenvolver energia sustentável…”

Chomsky espera que os que trabalham na indústria de serviços e na manufatura possam começar a organizar-se para começar a tomar o controle de seus próprios locais de trabalho. Observa que no ‘Cinturão da Ferrugem’ [orig. Rust Belt],[3] inclusive em estados como Ohio, há crescimento no número de empresas que pertencem aos trabalhadores.

O crescimento de poderosos movimentos populares no início do século 20 mostrou que a classe empresarial já não conseguia manter os trabalhadores subjugados por ação exclusiva da violência. Os interesses empresariais tiveram de construir sistemas de propaganda de massa, para controlar opiniões e atitudes.

O crescimento da indústria de “relações públicas”, iniciada pelo presidente Wilson, que criou o Comitê de Informação Pública [“Creel Committee”][4], para instilar sentimentos pró-guerra na população, inaugurou uma era não só de guerra permanente, mas também de propaganda permanente. O consumo foi instilado também, com compulsão incontrolável. O culto do indivíduo e do individualismo tornou-se regra. E opiniões e atitudes passaram a ser talhadas e modeladas pelos centros de poder, como o são hoje.

“Uma nação pacífica foi transformada em nação de odiadores, fanáticos por guerras” – diz Chomsky. – “Essa experiência levou a elite no poder a descobrir que, mediante propaganda efetiva, poderiam, como Walter Lippmann escreveu, usar “uma nova arte na democracia, e fabricar o consenso.”

A democracia foi destripada. Os cidadãos tornaram-se “público”, “audiência”, telespectadores, não participantes no poder. Os poucos intelectuais, entre os quais Randolph Bourne, que mantiveram a independência e recusaram-se a servir à elite no poder foram expulsos para fora do sistema, como Chomsky.

“Muitos dos intelectuais dos dois lados estavam apaixonadamente dedicados à causa nacional” – disse Chomsky, falando a 1ª Guerra Mundial. “Houve só uns raros dissidentes. Bertrand Russell foi preso. Karl Liebknecht e Rosa Luxemburg foram mortos. Randolph Bourne foi marginalizado. Eugene Debs, preso. Todos esses se atreveram a questionar a magnificência da guerra.”

Aquela histeria pró-guerra jamais cessou, movida sem alteração, do medo de um bárbaro germânico, para o medo de comunistas e, daí, para o medos de jihadistas e terroristas islamistas.

“As pessoas vivem aterrorizadas demais, porque foram convencidas de que nós temos de nos defender nós mesmos” – diz Chomsky. – “Não é inteiramente falso. O sistema militar gera forças perigosas para nós, que nos ameaçam. Veja, por exemplo, a campanha terrorista dos drones de Obama – a maior campanha terrorista de toda a história. Esse programa gera novos terroristas e terroristas potenciais muito mais depressa do que destrói suspeitos. É o que se vê agora no Iraque. Volte lá, aos julgamentos de Nuremberg. A agressão entre Estados foi definida como o supremo crime internacional. Foi considerado diferente de outros crimes de guerra, porque a agressão entre estados reúne, como crime, todos os demais danos que outros crimes subsequentes causarão.

A invasão que EUA e Grã-Bretanha cometeram contra o Iraque é como um manual de crime de agressão entre Estados. Pelos padrões de Nuremberg, os governantes dos EUA e da Grã Bretanha teriam, todos, de ser condenados à morte e enforcados. E um dos crimes que cometeram foi incendiar o conflito sunita versus xiitas.”

Esse conflito, que agora novamente inflama a região, é “um crime cometido pelos EUA, se acreditamos que sejam válidas as sentenças que Nuremberg proclamou contra os nazistas. Robert Jackson, promotor-chefe no tribunal de Nuremberg, em sua fala aos jurados, disse que aqueles acusados haviam bebido de um cálice envenenado. E que se algum de nós algum dia bebêssemos daquele mesmo cálice teríamos de ser tratados do mesmo modo, ou tudo não passaria de grande farsa.”

As escolas e universidades da elite inculcam hoje em seus alunos a visão de mundo endossada pela elite no poder. Treinam alunos para serem reverentes ante a autoridade. Para Chomsky, a educação, na maior parte das grandes escolas, inclusive em Harvard, a poucos quarteirões de distância do MIT, não passa de “um sistema de profunda doutrinação”.

“Há um entendimento de que há certas coisas que não se dizem nem se pensam” – diz Chomsky. – “É assim, entre as classes educadas. E é por isso que eles todos apoiam fortemente o poder do Estado e a violência do Estado, apenas com uma ou outra pequena ‘restrição’. Obama é visto como crítico contra a invasão do Iraque. Por quê? Só porque disse que seria erro estratégico. É argumento que o põe no mesmo nível moral de um general nazista que entendesse que o segundo front era erro estratégico. Isso, para os norte-americanos, é ‘ser crítico’.”

E Chomsky não subestima o ressurgimento de movimentos populares.

“Nos anos 1920s, o movimento trabalhista estava praticamente destruído” – disse. – “Havia sido um movimento trabalhista forte, muito militante. Nos anos 1930s ele mudou, e mudou por causa do ativismo popular. Houve circunstâncias [a Grande Depressão] que levaram à oportunidade de fazer alguma coisa. Vivemos constantemente com isso. Considere os últimos 30 anos. Para a maioria da população, foram tempos de estagnação, ou pior que isso. Não é a Depressão profunda, mas é uma depressão semipermanente para a maior parte da população. Há muita lenha lá fora, esperando para ser queimada.”

Chomsky entende que a propaganda empregada para fabricar consensos, mesmo na era das mídias digitais, está perdendo efetividade, com a realidade cada vez menos parecida com o “retrato’ dela inventado pelos órgãos da mídia empresarial de massas. Embora a propaganda feita pelo Estado norte-americano ainda consiga “empurrar a população para o terror e o medo e para a histeria de guerra, como se viu nos EUA antes da invasão do Iraque”, ela já começa a fracassar na tarefa de manter fé não questionada nos sistemas de poder. Chomsky credita ao movimento Occupy, que ele descreve como uma tática, ter “disparado uma fagulha iluminadora” a qual, mais importante, atravessou toda a sociedade, apesar da atomização”.

“Há todos os tipos de esforços e projetos para separar as pessoas umas das outras” – diz ele. “A unidade social ideal [no mundo dos propagandistas do Estado-empresa] é você e sua tela de televisão. As ações de Occupy puseram abaixo isso, para grande parte da população. As pessoas reconheceram que poder nos juntar e fazer coisas por nós mesmos. Podemos ter uma cozinha comum. Podemos ter um palanque para discussões públicas. Podemos formar nossas próprias ideias. Podemos fazer alguma coisa. E esse é ataque importante contra o núcleo dos meios pelos quais o público é controlado.

Você não é só um indivíduo tentando maximizar o consumo. Você descobre que há outros interesses na vida, outras coisas com as quais se preocupar. Se essas atitudes e associações puderem ser sustentadas e mover-se em novas direções, será muito importante.

*Chris Hedges, repórter laureado com um Prêmio Pulitzer, mantém coluna regular em Truthdig às 2as-feiras. Hedges é autor de 12 livros, entre os quais o best-seller (New York Times) “Days of Destruction, Days of Revolt (2012)”, do qual é coautor, com o cartunista Joe Sacco. O livro mais recente de Hedges é “Empire of Illusion: The End of Literacy and the Triumph of Spectacle” [Império da Ilusão: fim da alfabetização e triunfo do espetáculo].
[1] Sobre o que foram, ver http://en.wikipedia.org/wiki/Knights_of_Labor [NTs].
[2] Para saber o que foi, ver http://firstredscare.edublogs.org/ [NTs].
Entrevista a Chris Hedge*, no Thruthdig | Tradução Vila Vudu

Fonte: http://outraspalavras.net/

Zizek: 2 anos de prisão de Assange: Como o Wikileaks abriu nossos olhos para a ilusão da liberdade - Por Slavoj Žižek


Zizek: 2 anos de prisão de Assange: Como o Wikileaks abriu nossos olhos para a ilusão da liberdade
Nós nos lembramos dos aniversários de eventos importantes de nossa época: 11 de setembro (não apenas o ataque às Torres Gêmeas em 2001, mas o golpe contra Salvador Allende, no Chile, em 1973), o Dia D etc. Talvez outra data deva ser adicionada a esta lista: 19 de junho.

A maioria de nós gostaria de dar um passeio durante o dia para tomar uma lufada de ar fresco. Deve haver uma boa razão para aqueles que não podem fazê-lo – talvez eles tenham um trabalho que os impede (mineiros, mergulhadores), ou uma estranha doença que faz com que a exposição à luz solar seja um perigo mortal. Mesmo prisioneiros têm a sua hora diária de caminhada ao ar fresco.

Faz dois anos desde que Julian Assange foi privado deste direito: ele está confinado permanentemente ao apartamento que abriga a embaixada equatoriana em Londres. Se sair, seria preso imediatamente. O que Assange fez para merecer isso? De certa forma, pode-se entender as autoridades: Assange e seus colegas denunciantes [whistleblowers] são frequentemente acusados de serem traidores, mas são algo muito pior (aos olhos das autoridades).

Assange se autodesignou um “espião do povo”. “Espionagem para o povo” não é uma traição simples (o que significa que ele ele atuaria como um agente duplo, vendendo nossos segredos para o inimigo); é algo muito mais radical. Ela mina o próprio princípio da espionagem, o princípio de sigilo, uma vez que seu objetivo é fazer com que os segredos se tornem públicos. Pessoas que ajudam o WikiLeaks não são mais denunciantes anônimos que denunciam as práticas ilegais de empresas privadas (bancos e empresas de tabaco e petróleo) para as autoridades públicas; eles denunciam ao público em geral essas próprias autoridades públicas.

Nós realmente não soubemos de nada através do WikiLeaks que não suspeitássemos — mas uma coisa é suspeitar de modo geral e outra ter dados concretos. É um pouco como saber que um parceiro sexual está nos traindo. Pode-se aceitar o conhecimento abstrato disso, mas a dor surge quando se conhecem os detalhes picantes, quando se tem fotos do que eles estavam fazendo.
Quando confrontado com tais fatos, cada cidadão decente dos EUA não deveria se sentir profundamente envergonhado? Até agora, a atitude do cidadão médio foi um desmentido hipócrita: preferimos ignorar o trabalho sujo feito por agências secretas. A partir de agora, não podemos fingir que não sabemos.

Não é o suficiente ver o WikiLeaks como um fenômeno anti-americano. Estados como China e Rússia são muito mais opressivos do que os EUA. Basta imaginar o que teria acontecido com alguém como Chelsea Manning em um tribunal chinês. Com toda a probabilidade, não haveria julgamento público; ela iria simplesmente desaparecer.

Os EUA não tratam os prisioneiros da mesma maneira brutal – por causa de sua prioridade tecnológica, eles simplesmente não precisam da abordagem abertamente brutal (e estão mais do que prontos a aplicá-la quando necessário). Mas é por isso que os EUA são uma ameaça ainda mais perigosa para a nossa liberdade do que a China: as medidas de controle não são percebidas como tal, enquanto a brutalidade chinesa é exibida abertamente.

Em um país como a China, as limitações da liberdade são claras para todos, sem ilusões. Nos Estados Unidos, no entanto, as liberdades formais são garantidas, de modo que a maioria das pessoas vive sem nem sequer estar conscientes do quanto são controladas por mecanismos estatais.

Em maio de 2002, foi noticiado que cientistas da Universidade de Nova York tinham anexado um chip de computador capaz de transmitir sinais elementares diretamente no cérebro de um rato – o que permite aos cientistas controlar os movimentos do rato por meio de um mecanismo parecido com um controle remoto de um carro de brinquedo. Pela primeira vez, o livre-arbítrio de um animal vivo foi tomado por uma máquina externa.

Talvez aí resida a diferença entre os cidadãos chineses e nós, cidadãos livres em países liberais ocidentais: os ratos humanos chineses são pelo menos conscientes de que são controlados, enquanto nós somos os ratos estúpidos passeando em torno do conhecimento de como nossos movimentos são monitorados.

O WikiLeaks está perseguindo um sonho impossível? Definitivamente não, e a prova é que o mundo já mudou desde suas revelações.

Não ficamos apenas cientes de muita coisa das atividades ilegais dos EUA e de outras grandes potências. O WikiLeaks tem conseguido muito mais: milhões de pessoas comuns se tornaram conscientes da sociedade em que vivem. Algo que até agora nós tolerávamos silenciosamente tornou-se problemático.

É por isso que Assange foi acusado de causar tanto mal. No entanto, não há violência no que o WikiLeaks está fazendo. Nós todos já vimos a cena clássica dos desenhos animados: o personagem chega a um precipício, mas continua correndo, ignorando o fato de que não há chão sob seus pés; ele começa a cair apenas quando olha para baixo e percebe o abismo. O WikiLeaks está lembrando aqueles que estão no poder de que devem olhar para baixo.

A reação de muitas pessoas que sofreram lavagem cerebral da mídia sobre as revelações do WikiLeaks pode ser resumido nos versos memoráveis da música final do filme de Altman “Nashville”: “Você pode dizer que eu não sou livre, mas isso não me preocupa”. O WikiLeaks faz com que nos preocupemos. E, infelizmente, muitas pessoas não gostam disso.

* Publicado em inglês no The Guardian. A tradução é do DCM.
Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/