segunda-feira, 30 de março de 2015

Chomsky: o mundo que nossos netos herdarão?


Chomsky: o mundo que nossos netos herdarão?
Como EUA fortalecem, numa época já turbulenta, surgimento de grupos como ISIS. A estranha relação Washington-Telaviv. Nas mudanças climáticas, sinal de decadência do sistema 

Entrevista a David Barsamian, na Jacobin | Tradução Pedro Lucas Dulci

Entrevistado pelo jornalista David Barsamian, o professor Noam Chomsky, explica as raízes do Estado Islâmico (ISIS) e porque os EUA e seus aliados são responsáveis pelo grupo. Particularmente, argumenta, a invasão do Iraque em 2003 provocou um divisão sectária que desestabilizou a sociedade iraquiana. Solo fértil para os sauditas estimularem grupos radicais.

A entrevista também toca no massacre israelense na faixa de Gaza, destacando o papel vital de Israel no tabuleiro político norte-americano. Chosmky conta, por exemplo, como Telaviv foi usada por Washington para fornecer, ao exército a Guatemala, as armas que permitiram o massacre contra comunidades maias. Era a época do governo Ronald Reagan; o Congresso havia proibido tal assistência militar — Israel prontificou-se a ser solução. 

Por fim, Chomsky compartilha seus pensamentos sobre o crescente movimento pela justiça climática e porque acha que essa é a questão mais urgente hoje. 

O Oriente Médio está em chamas, da Líbia até o Iraque. Existem novos grupos jihadistas. O foco atual é o ISIS. O que dizer sobre ISIS e as suas origens?
Há uma interessante entrevista que só apareceu há alguns dias atrás, com Graham Fuller, um ex-agente da CIA, um dos principais fontes da inteligência e dos analistas mainstream sobre o Oriente Médio. O título é “Os Estados Unidos criaram o ISIS”. Aparentemente, seria mais uma das milhares de teorias da conspiração que rondam o Oriente Médio.

Mas trata-se de algo diferente — que vai direto ao coração do establishment norte-americano. Fuller apressa-se em frisar que sua hipótese não significa dizer que os EUA decidiram dar existência ao ISIS e, em seguida, o financiaram. Seu — e eu acho que é algo acurado — é que os EUA criaram o pano de fundo em que o ISIS cresceu e se desenvolveu. Em parte, apenas devido à abordagem devastadora padrão: esmagar aquilo de que você não gosta.

Em 2003, os EUA e a Grã-Bretanha invadiram o Iraque, um crime grave. A invasão foi devastadora. O Iraque já havia sido virtualmente destruído, em primeiro lugar pela década de guerra com o Irã — no qual, aliás, Bagdá foi apoiado por os Washington — e depois pela década de sanções econômicas e políticas.
Tais sanções foram descritas como “genocidas” pelos dois respeitados diplomatas internacionais que os administravam e, que, por esse motivo, renunciaram em protesto. Elas devastaram a sociedade civil, fortaleceram o ditador, obrigaram a população a confiar nele para a sobrevivência. Essa é provavelmente a razão pela qual ele não seguiu o caminho natural de todos os outros ditadores que foram derrubados.
Por fim, os EUA simplesmente decidiram atacar o país em 2003. O ataque é comparado por muitos iraquianos à invasão mongol de mil anos atrás. Muito destrutiva. Centenas de milhares de pessoas mortas, milhões de refugiados, milhões de outras pessoas desalojadas, destruição da riqueza arqueológica e da riqueza do país da época suméria.

Um dos efeitos da invasão foi instituir imediatamente divisões sectárias. Parte do “brilhantismo” da força de invasão e de seu diretor civil, Paul Bremer, foi separar os grupos — sunitas, xiitas e curdos — uns dos outros, e instigá-los uns conta os outros. Após alguns anos, houve um conflito sectário brutal, deflagrado pela invasão.

Você pode enxergar isso se olhar para Bagdá. Um mapa de Bagdá de, digamos, 2002, revela uma cidade mista: sunitas e xiitas vivem nos mesmos bairros e casam entre si. Na verdade, às vezes nem sabiam quem era sunita, e quem era xiita. É como saber se seus amigos estão em um ou outro grupo protestante. Existiam diferenças, mas não eram hostis.

Na verdade, durante alguns anos ambos os lados diziam: nunca haverá conflitos sunitas-xiitas; Estamos muito misturados na natureza de nossas vidas, nos locais onde vivemos, e assim por diante. Em 2006, houve uma guerra feroz. Esse conflito se espalhou para todo o Oriente Médio — hoje, cada vez mais dilacerado por conflitos entre sunitas e xiitas.

A dinâmica natural de um conflito como esse é que os elementos mais extremos comecem a assumir o controle. Eles tinham raízes. Estão no mais importante aliado dos EUA, a Arábia Saudita, com a qual Washington está seriamente envolvidos desde a fundação do Estado nacional. É uma espécie de ditadura da família. O motivo é sua uma enorme quantidade de petróleo.

Mesmo do domínio dos EUA, a Grã-Bretanha sempre preferiu o islamismo radical ao nacionalismo secular, no mundo árabe. E quando os EUA passaram a ser hegemônicos no Oriente Médio, adotaram a mesma posição. O islamismo radical tem seu centro na Arábia Saudita. É o estado islâmico mais extremista, mais radical no mundo. Faz o Irã parecer um país tolerante e moderno, em comparação — e os países seculares do Oriente Médio árabe ainda mais, é claro.

A Arábia Saudita não é apenas dirigida por uma versão extremista do Islã, os salafistas wahhabistas. É também um Estado missionário. Usa seus enormes recursos petrolíferos para promulgar suas doutrinas em toda a região. Estabelece escolas, mesquitas, clérigos, em todo o lugar, do Paquistão até o Norte de África.
Uma versão extremista do extremismo saudita foi assumida pelo ISIS. Este grupo cresceu ideologicamente, portanto, a partir da forma mais extremista do Islã — a versão da Arábia Saudita — e dos conflitos engendrados pela invasão norte-americana, que quebraram o Iraque e já se espalharam por toda a região. Isso é o que Fuller argumenta, em sua hipótese.

A Arábia Saudita não só fornece o núcleo ideológico que levou ao extremismo radical do ISIS (e de grupos semelhantes que estão surgindo em diversos países), mas também o financia e lhe oferece apoio ideológico. Não é o governo de Riad que o faz — mas sauditas e kwaitianos ricos. O ataque lançado à região pelos Estados Unidos e pela Grã-Bretanha é a fonte, onde tudo se origina. Isso é o que significa dizer os EUA criaram ISIS.

Pode ter bastante certeza de que, à medida que esses conflitos se desenvolvem, eles se tornarão mais extremistas. Os grupos mais brutais tenderão a assumir o controle. É o que acontece quando a violência se torna o meio de interação. É quase automático: em favelas ou nos assuntos internacionais. As dinâmicas são perfeitamente evidentes. É este o papel do ISIS vem. E se for destruído, surgirá talvez algo ainda mais extremo.

Os meios de comunicação são obedientes. No discurso de 10 de setembro de Obama, ele citou dois países como supostas histórias de sucesso na estratégia de contra-insurgência dos EUA: Somália e Iêmen
O caso da Somália é particularmente horrendo. O Iêmen já é suficiente ruim, mas a Somália é um país extremamente pobre. Não há tempo para contar toda a história. Mas uma das grandes conquistas, um dos grandes orgulhos da política de “contraterrorismo” da administração Bush foi que eles tinham conseguido fechar uma instituição de caridade, a Barakat, que estaria alimentando o terrorismo na Somália. Enorme comoção na imprensa. Foi para eles uma conquista real.

Alguns meses mais tarde, os fatos começaram a vazar. A caridade não tinha absolutamente nada a ver com o terrorismo na Somália. O episódio tinha a ver era com bancos, comércio, assistência, hospitais. Atingir a Barakat era uma espécie de tentativa de manter a Somália profundamente empobrecida e economicamente golpeada. Existem algumas linhas sobre isso. Você pode ler em livros sobre finanças internacionais.

Houve um momento em que os chamados tribunais islâmicos, que eram chamados de uma organização islâmica, tinham conseguido uma espécie de paz na Somália. Não era um belo regime, mas pelo menos era pacífico e as pessoas o aceitavam mais ou menos. Os EUA não iriam tolerar isso, então apoiaram uma invasão etíope para destruí-la e transformar o lugar em um tumulto horrível. Essa é a grande conquista.
O Iêmen é uma história de horror própria.

Vamos à disputa de Israel contra os palestinos. Há algum tempo, um jornalista norte-americano, David Greene, conversou com um repórter em Gaza e fez o seguinte comentário: “Ambos os lados sofreram enormes danos”. Pensei para mim mesmo, isso significaria que Haifa e Tel Aviv foram reduzidas a escombros, como Gaza foi? Você se lembra do comentário Jimmy Carter sobre o Vietnã?
Não só me lembro, como acho que fui a primeira pessoa a comentar sobre isso, e provavelmente sou até hoje praticamente a única pessoa a comentar sobre ele. Fizeram a Carter, o defensor dos direitos humanos, uma pergunta leve, numa entrevista coletiva em 1977: você acha que temos alguma responsabilidade de ajudar os vietnamitas depois da guerra? Ele respondeu que não tínhamos nenhuma dívida com eles – “a destruição foi mútua”.

Isso passou sem comentários. E foi melhor do que o seu sucessor. Alguns anos mais tarde, George Bush I, o “estadista”, estava comentando sobre as responsabilidades norte-americanas após a Guerra do Vietnã, e disse: há um problema moral que permanece. Os vietnamitas do norte não empregaram recursos suficientes para entregar a nós os ossos dos pilotos americanos. Estes pilotos inocentes, derrubados sobre Iowa pelo assassino vietnamita quando estavam pulverizando colheitas, ou algo assim… Mas Bush disse: somos um povo misericordioso, por isso vamos perdoá-los por isso e vamos permitir-lhes entrar em um mundo civilizado…

O que significava: vamos permitir que eles entrem nas relações comerciais e assim por diante, o que, naturalmente, nós barramos, se eles pararem o que estão fazendo e dedicarem recursos suficientes para superar este crime pós Guerra do Vietnã. Sem comentários.

Uma das coisas que as autoridades israelenses continuam trazendo à tona, e é repetido aqui na mídia corporativa, ad nauseam, é o estatuto do Hamas. Eles não aceitam a existência do Estado de Israel, querem tirá-lo do mapa. Você tem alguma informação sobre a carta e seus antecedentes.
A carta foi produzida por, aparentemente, um grupo de pessoas, talvez dois ou três, em 1988, numa altura em que Gaza estava sob forte ataque israelense. Você se lembra de ordens de Yitzhak Rabin. Foi um levante fundamentalmente não-violento, ao qual Israel reagiu de modo muito violentamo, matando líderes, torturando, quebrando ossos, de acordo com as ordens de Rabin, e assim por diante. E bem no meio de tudo isso, um número muito pequeno de pessoas saiu com o que chamaram de um estatuto do Hamas.
Ninguém prestou atenção a ele desde então. Era um documento terrível. Mas desde então, as únicas pessoas que chamaram a atenção para ele foram a inteligência israelense e a mídia norte-americana. Ninguém mais se preocupa com isso. Khaled Mashal, o líder político de Gaza anos atrás, disse: olha, é passado, “já era”. Não tem nenhum significado. Mas isso não importa. Porque é propaganda valiosa para Telaviv.

Há também o fato de que, mesmo não sendo chamados de “estatuto”, há princípios fundadores da coalizão de governo em Israel. Nesse caso, não se trata de um pequeno grupo de pessoas, que estão sob ataque, mas da coalizão governista, o Likud. O núcleo ideológico do Likud é o Herut, de Menachem Begin. Eles sim têm documentos fundadores. Seus documentos fundadores dizem que Jordânia de hoje faz parte da terra de Israel; Israel nunca renunciará ao seu direito à terra da Jordânia. O que está agora chamado Jordânia eles chamam as terras históricas de Israel. Eles nunca renunciaram a isso.

O Likud,  partido do governo, tem um programa eleitoral – foi enunciado em 1999 e nunca revogado, é o mesmo hoje. Diz explicitamente que nunca haverá um Estado palestino a oeste do Rio Jordão. Em outras palavras, “estamos empenhados, por princípio, na destruição da Palestina”. E não são apenas palavras. Os governantes de Israel agem dia a dia para implementá-las.

Há uma história interessante sobre a chamada Carta da Organização pela Libertação da Palestina, a OLP. Por volta de 1970, o ex-chefe da inteligência militar israelense, Yehoshafat Harkabi, publicou um artigo em uma das principais revistas de Israel em que trouxe à luz algo chamado de “Carta da OLP” ou algo semelhante. Ninguém nunca tinha ouvido falar dela, ninguém estava prestando atenção nela.

E a carta diz: nosso objetivo é a nossa terra, vamos assumi-la. Na verdade, não era diferentemente das alegações do Herut, exceto o lugar de origem. Isto se tornou instantaneamente uma questão enorme em toda a mídia. Foi chamada de “A aliança OLP”. “A aliança OLP” planeja destruir Israel. Ninguém sabia nada sobre isso, mas repentinamente tornou-se uma questão importante.

Eu conheci um ex-chefe da inteligência militar israelense, Harkabi, alguns anos mais tarde. Era um moderado, aliás, um cara interessante. Tornou-se bastante crítico da política israelense. Tivemos uma entrevista aqui no MIT. Eu lhe perguntei: “Por que você trouxe à tona o documento, no instante em que pensavam em revogá-lo?” Ele olhou para mim com o olhar vazio, que você aprende a reconhecer quando você está falando com fantasmas. Eles são treinados para fingir que não entendem o que você está falando, embora entendam perfeitamente.

Ele disse: “Oh, eu nunca ouvi isso”. É algo além do concebível. É impossível que o chefe da inteligência militar israelense não saiba o que sei por ter lido trechos de imprensa árabe em Beirute. É claro que ele sabia.

Existe todo tipo de motivos para acreditar que decidiu trazer à tona precisamente porque reconheceu — ou seja, a inteligência israelense reconheceu — que seria uma peça útil de propaganda e é melhor tentar garantir que os palestinos a mantenham. É lógico que se nós os atacamos, eles dirãop: nós não vamos revogar nosso estatuto sob pressão. É o que está acontecendo com o estatuto do Hamas.

Hoje é impossível documentar isso, por uma razão simples. Os documentos estavam todos nos escritórios da OLP em Beirute. E quando Israel invadiu Beirute, roubaram todos os arquivos. Presumo que devem tê-los em algum lugar, mas ninguém vai ter acesso a eles.

O que explica a unanimidade quase absoluta do Congresso dos EUA em apoio Israel? Mesmo Elizabeth Warren, o senadora democrata altamente elogiada de Massachusetts, votou a favor desta resolução sobre a auto-defesa.
Ela provavelmente não sabe nada sobre o Oriente Médio. Acho que isso é bastante óbvio. Tome as armas dos EUA pré-posicionadas em Israel para serem usadas em possíveis ações militares na região. Isso é um pequeno pedaço de uma aliança militar e de inteligência muito próxima, que remonta a décadas. Ela realmente decolou depois de 1967, embora já existisse embrionariamente.

Os militares e a inteligência dos EUA incluem Israel entre suas bases principais. Na verdade, uma das revelações mais interessantes do WikiLeaks foi a relação dos centros considerados estratégicos pelo Pentágono, ao redor do mundo — aqueles que serão defendidos a todo custo. Um deles é uma grande instalação militar, algumas quilômetros distante Haifa: as indústrias militares Rafael.

Muita tecnologia drone foi desenvolvida ali. Depois, a sede e a gestão da Rafael foram mudadas para Washington, onde está o dinheiro. Isso é indicativo do tipo de relacionamento que existe. E vai muito além. Os investidores norte-americanos estão num relação de amor com Israel. Warren Buffet acaba de comprar uma empresa israelense por alguns bilhão de dólares e anunciou que, fora os EUA, Israel é o melhor lugar para investir. As grandes empresas, como a Intel e outras, estão investindo pesadamente em Israel. É um cliente valioso: é estrategicamente localizado, complacente, faz o que os EUA querem, está disponível para a repressão e violência. Os EUA têm usado cada vez mais, como uma forma de contornar as restrições do Congresso e de alguns setores da população sobre violência.

Tome, por exemplo, o caso da Guatemala. O presidente Ronald Reagan, que foi extremamente brutal e violento, bem como um terrível racista, quis fornecer suporte direto para o ataque do Exército da Guatemala contra os índios maias — algo literalmente genocida. Houve uma resolução do Congresso que bloqueou a resolução. Então ele fez a ponte com seus clientes terroristas.

O principal deles foi Israel — também participaram Taiwan e alguns outros. Israel forneceu as armas para o Exército da Guatemala – até hoje eles usam armas israelenses – providenciando treinamento para executarem o ataque genocida. Esse é um dos seus serviços. Fizeram o mesmo na África do Sul.

Agora, crianças e muitos outros refugiados estão fugindo de três países: El Salvador, Honduras e Guatemala. Não da Nicarágua, tão pobre como Honduras. Existe uma diferença? Sim. A Nicarágua é o único país da região que tinha, na década de 1980, uma maneira de se defender contra as forças dos EUA – um exército. Nos outros países o exército eram as forças terroristas, apoiadas e armadas pelos EUA, ou por seu cliente israelense no pior dos casos. Então é isso que você tem.

Existe uma grande quantidade de relatórios otimista dizendo que o fluxo de crianças da América Central para os EUA diminuiu. Por quê? Porque nós pressionamos o governo mexicano e lhe dissemos para usar a força e impedir que as vítimas de nossa violência fujam para os EUA, tentando sobreviver. Agora, os mexicanos fazem isso por nós, por isso há menos pessoas vindo para a fronteira. É uma grande conquista humanitária de Obama…

Incidentalmente, Honduras está na liderança. Por que Honduras? Porque em 2009, houve um golpe militar no país. O presidente Zelaya, que estava começando a fazer alguns movimentos em relação a reformas extremamente necessárias, foi derrubado e expulso do país. Eu não vou passar os detalhes, mas os EUA, sob Obama, foram um dos poucos países que reconheceu o regime golpista e a eleição que ocorreu sob a sua égide. Honduras transformou-se em uma história de horror pior do que era antes, batendo recordes no número de homicídios e violência.

Parece ter surgido uma oportunidade para que a população curda do Iraque alcance algum tipo de soberania. Isso se cruza, na verdade, com os interesses israelenses no Iraque. Eles têm apoiado os curdos, ainda que de forma clandestina, mas é bem sabido que Israel tem pressionado para a fragmentação do Iraque.
Eles estão fazendo isso. E isso é um dos pontos em que há conflito entre a política israelense e a norte-americana. As áreas curdas têm litoral. O governo do Iraque bloqueou sua exportação de petróleo, seu único recurso, e, claro, opõe-se a construção do Estado curdo. Os EUA até agora tem apoiado esta atitude.

Clandestinamente, há um fluxo de petróleo em algum nível da área curda na Turquia. Essa também é uma relação muito complexa. Massoud Barzani, líder curdo iraquiano, visitou a Turquia cerca de um ano atrás e fez alguns comentários bastante impressionantes. Ele era bastante crítico da liderança dos curdos turcos e estava claramente tentando estabelecer melhores relações com a Turquia, que tem reprimido violentamente os curdos turcos.

A maioria dos curdos no mundo está na Turquia. Você pode entender o porquê, do ponto de vista deles. Essa é a única saída para o mundo exterior. Mas a Turquia tem uma atitude dúbia a respeito. Um Curdistão independente, ao norte do Iraque, bem próximo às áreas curdas da Turquia, ou nas áreas curdas da Síria, poderia encorajar os esforços para autonomia no sudeste da Turquia, que é fortemente curda. Os turcos têm lutado muito brutalmente contra isso desde que a Turquia moderna surgiu, na década de 1920.

O Curdistão conseguiu, de alguma forma, atrair petroleiros transportar petróleo a partir de seu território. Esses navios estão vagando em torno do Mediterrâneo. Nenhum país irá aceitá-los, a não ser, provavelmente, Israel. Nós não podemos ter certeza, mas parece que estão ficando com um pouco. Os petroleiros curdos estão buscando alguma forma de descarregar seu petróleo no Mediterrâneo oriental. Isso não está acontecendo em um volume que permita ao Curdistão funcionar, mesmo para pagar seus funcionários.

Na chamada capital curda, Erbil, há arranha-céus sendo erguidos, abunda alguma riqueza. Mas é um tipo de sistema muito frágil, que não pode sobreviver. O país está completamente cercado por regiões hostis.

Em nosso último livro, Power Systems, eu lhe pergunto, “Você tem netos. Que tipo de mundo eles herdarão?”
O mundo que estamos criando para nossos netos é ameaçador. Uma das maiores preocupações é a relacionada ao aquecimento global.

Isso não é brincadeira. Esta é a primeira vez na história da espécie humana que temos de tomar decisões que irão determinar se haverá uma sobrevivência decente para nossos netos. Isso nunca aconteceu antes. Já tomamos decisões que estão acabando com espécies de todo o mundo em um nível fenomenal.

O nível de destruição de espécies no mundo de hoje está acima do nível de 65 milhões de anos atrás, quando um enorme asteróide atingiu a Terra e teve efeitos ecológicos horripilantes. Ele encerrou a era dos dinossauros, que foram aniquilados. Ele deixou uma pequena abertura para os pequenos mamíferos, que começaram a se desenvolver, e, finalmente, nós. A mesma coisa está acontecendo agora — a diferença é que somos o asteroide. O que estamos fazendo com o meio ambiente já está criando condições como as de 65 milhões anos atrás. A imagem não é bonita.

Em setembro do ano passado, uma das principais agências de monitoramentos científico internacional apresentou os dados sobre as emissões de gases de efeito estufa para o ano mais recente em registro, 2013. Eles atingiram níveis recordes: subiram mais de 2% para além do ano anterior. Nos EUA subiram ainda mais alto, quase 3%. No mesmo mês, o Journal of the American Medical Association saiu com um estudo sobre o número de dias super quentes previstos para Nova York, durante as próximas décadas. Estes dias vão triplicar — e os efeitos serão muito piores no Sul do planeta. Coincide com o aumento previto previsto do nível do mar, que vai colocar uma grande parte de Boston debaixo da água. Sem falar no  litoral plano Bangladesh, onde centenas de milhões de pessoas vivem, mas que serão desalojas.

Tudo isso é iminente. E neste exato momento a lógica das nossas instituições é conduzir o processo para frente. A Exxon Mobil, que é o maior produtor de energia, anunciou – e você realmente não pode criticá-los por isso, pois esta é a natureza do sistema capitalista, a sua lógica – que eles está direcionando todos os seus esforços para prospectar combustíveis fósseis, porque é rentável. Na verdade, isso é exatamente o que eles deveriam estar fazendo, no quadro institucional em que vivemos. Eles deveriam buscar lucros. E se isso elimina a possibilidade de uma vida digna para os netos, não é seu problema.

A Chevron, outra grande empresa de energia, tem um pequeno programa sustentável, principalmente por razões de relações públicas, mas estava indo razoavelmente bem, chegou a ser realmente rentável. Eles simplesmente encerraram os programas sustentáveis, porque os combustíveis fósseis são muito mais rentáveis.

Nos EUA, agora há perfuração em todo o lugar. Mas há um lugar onde foi um pouco limitado, terras federais. Lobbies de energia estão queixando-se amargamente de que Obama cortou o acesso a terras federais. O Departamento de Interior apresentou as estatísticas. É o oposto. A perfuração de petróleo em terras federais tem aumentado constantemente sob Obama. O que tem diminuído é de perfuração no mar.
Mas isso é uma reação ao desastre da British Petroleum no Golfo do México. Logo depois do desastre, a reação imediata foi a recuar. Mesmo as empresas de energia recuaram da perfuração em águas profundas. Os lobbies estão apresentando estes dados em conjundo — mas se você olhar para a perfuração em terra, ela só aumenta. Há muito poucas restrições. Essas tendências são muito perigosas, e você pode prever que tipo de mundo haverá para os seus netos.

Fonte: http://outraspalavras.net/destaques/chomsky-o-mundo-que-nossos-netos-herdarao/

Quem irá nos livrar do fascismo? - Por Izaías Almada.


Quem irá nos livrar do fascismo?
[Ilustração de André Almada, sobre fotografia de 15 de março de 2015 na Av. Paulista em SP]

O sambódromo em que foi transformada a Avenida Paulista no último dia 15 de março, na patética, mas não menos significativa marcha contra o governo, nos remete a algumas reflexões, algumas delas novas em matéria de política brasileira, pois a realidade muda a cada segundo, muito embora com algumas imagens que nos parecem velhas conhecidas.

Há um governo acuado, apesar de vencer legitimamente as últimas eleições presidenciais; uma mídia agressiva e tendenciosa contra a atual presidente e seu antecessor; uma justiça policialesca; um ar impregnado de partículas fascistas, ainda invisíveis para muitos, mas que podem se transformar em epidemia de intolerância e violência em maior escala.

E se assim for, quem nos livrará do fascismo? Jô Soares e suas meninas? O grande filósofo Pondé? Maitê Proença? As irmãs Marinho? Não confundir com os milionários irmãos brasileiros da revista Forbes… O inglês arrevesado de algumas faixas exibidas pelos ilustrados elitistas dominicais? Pode não parecer para muitos, mas a situação é séria. E temos que tratá-la com seriedade.

Em seu mais recente livro, “Militares e Militância: uma relação dialética conflituosa”, o professor e cientista político Paulo Ribeiro da Cunha conta à página 19 um fato curioso e ao mesmo tempo sintomático sobre as modernas Forças Armadas brasileiras, envolvendo respostas de comandantes militares e grupos de militares da reserva que se manifestaram contra um documento do Clube Militar intitulado “O Alerta a Nação” e escrito por um grupo de militares de direita egressos de 1964. Diz o texto:

“… logo em seguida à divulgação de “O Alerta à Nação”, houve contundentes manifestações democráticas e legalistas bem dissonantes desse posicionamento do Clube Militar. Uma delas, de certa forma “indireta”, foi propiciada pelo general Adhemar da Costa Machado, comandante militar do Sudeste, em palestra sobre “O papel e os desafios do Exército na atual conjuntura”, a convite do Instituto Plínio Correa de Oliveira, vinculado à ultraconservadora Tradição, Família e Propriedade (TFP). Em meio à tensões entre militares da reserva e o governo sobre a polêmica advinda da formação da Comissão da Verdade, a expectativa da vasta plateia era de escutar desse oficial da ativa que estaria em curso uma reação, ou mesmo articulações golpistas, pelas Forças Armadas”.

“O que se ouviu do oficial foi que os militares não voltariam ao governo nunca mais1, bem como uma ponderação sobre a vocação democrática do Exército brasileiro. Complementou o general ao final, com um argumento que já seria uma leitura corrente nas Forças Armadas para o desgosto do público ali presente, que os militares são um instrumento do Estado e a serviço de um governo eleito democraticamente.” [grifo do articulista]

O livro acima citado2, a quem recomendo aos leitores, traça o histórico da presença dos militares de esquerda em muitos dos embates políticos brasileiros e contribui, na minha modesta opinião, para desfazer de parte a parte o preconceito entre civis e militares e, particularmente, entre boa parte da esquerda brasileira e do próprio estamento militar.

Já ouvi em várias ocasiões, dentro ou fora de alguma militância política de esquerda, um discurso, sob certos aspectos tornado enfadonho e repetitivo, de que não se pode confiar nos militares. Nada mais distante de um pensamento que se queira dialético, em particular nas atuais circunstancias históricas e políticas do país.
Desde a última eleição presidencial, que reelegeu a presidente Dilma Rousseff, grupos conservadores e antinacionais tentam chamar as Forças Armadas a intervir no atual quadro político brasileiro através de uma ruptura institucional, o que – na verdade – é um incentivo irresponsável ao golpe de estado, atitude que nos remeteria à velha política de subserviência a interesses estrangeiros e de repressão aos movimentos e conquistas populares dos últimos anos. Nas manifestações do último dia 15 de março isso ficou muito bem caracterizado

O filme já foi visto em outras ocasiões, mas na nova versão que se pretende impor ao país diante do trabalho diário de uma mídia que não mede esforços para tumultuar o Brasil, os atores são outros. Com uma agravante: ao contrário do que pensam manifestantes de direita mais exaltados e seus incentivadores na internet, pedir “intervenção militar” em faixas onde aparecem até suásticas nazistas é – além de ignorância histórica – um grande desrespeito não só aos integrantes da FEB que lutaram bravamente contra o nazifascismo ao lado das forças aliadas em terras italianas, mas também um insulto às atuais FFAA constitucionalistas e democráticas, como se depreende da palestra do general Adhemar da Costa Machado acima citada.

Vivemos o início do século XXI e é outra a situação do país no cenário internacional, com seu território de dimensões continentais mais valorizado e cobiçado, subsolo rico em diversos produtos que integram a fabricação de sofisticados armamentos, notável agricultura exportadora. Somos cada vez mais ricos e independentes em energias, a petrolífera em particular; somos um dos cinco integrantes dos BRICS em alianças e projetos estratégicos com a China, a Rússia, a Índia e a África do Sul. Além de não sermos mais devedores de organismos financeiros internacionais. Nos últimos dez anos foram criados programas sociais elogiados e copiados internacionalmente.

Oito milhões e quinhentos mil quilômetros quadrados de solo fértil, tendo a Amazônia e o pré sal como riquezas incalculáveis, água potável em abundância, o Brasil precisa defender cada vez mais suas fronteiras terrestres e marítimas. São missões, entre outras, que precisam de FFAA modernas e bem preparadas, que se recuperaram nos últimos anos após os desastrosos anos dos senhores Sarney, Collor e, sobretudo, Fernando Henrique Cardoso que, com seu pendor subserviente e entreguista sucateou essas mesmas FFAA, ao que chamou hipocritamente de “profissionalização”.

Repito: ao contrário daquilo que imaginam alguns espíritos conservadores e preconceituosos, para dizer o menos, e que procuram materializar suas ações estendendo faixas em manifestações de rua “convocando” os militares para rasgarem a Constituição, essa atitude representa não só uma violência contra a democracia, mas – sobretudo – um enorme desrespeito às atuais Forças Armadas que têm missões mais nobres e importantes para realizar.

E que estão definidas em nossa Constituição no Capítulo II, Título V, Da Defesa do Estado e das Instituições Democráticas, DAS FORÇAS ARMADAS: 

Art. 142: As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.3

E defender a Constituição significa defender os seus princípios fundamentais que são a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o pluralismo político [grifo do articulista].

Os militares de 2014 não são os militares de 1964 vistas as coisas em seus aspectos negativos ou positivos. Eram, em sua maioria, adolescentes ou pouco mais que isso, pois cinquenta anos se passaram, meio século. A Internet era impensável, para ficarmos num exemplo comezinho, mas significativo. A guerra fria influenciava mentes e corações.

O também cientista social e escritor José Murilo de Carvalho, estudioso das Forças Armadas brasileiras, no capítulo de conclusão de sua obra Forças Armadas e Política no Brasil4 escreve o seguinte sobre o papel que deve ser atribuídos a elas (pág. 197):

“… Devem ser preparadas para a guerra externa? Contra quem? Contra vizinhos? Contra o Império? Devem tornar-se forças auxiliares das Nações Unidas na tarefa de policiamento do mundo? Devem dedicar-se a tarefas policiais de combate ao narcotráfico nas fronteiras e nas rotas internas? Devem preparar-se para substituir as polícias nacionais em eventuais explosões de violência nas grandes cidades? Ou devem dedicar-se a tarefas sociais, como combate à pobreza, ao analfabetismo, às desigualdades?”

O diálogo entre a sociedade civil e suas FFAA deve se dar em nível de frontalidade e respeito, de reciprocidade democrática e na busca de soluções que beneficiem o país como um todo e que procure o fortalecimento das instituições brasileiras e não através de incitações ao ódio, a intolerância, a quebra da legalidade democrática e ao desrespeito entre concidadãos.

NOTAS
1. Matéria Caserna longe da crise com o governo. O Estado de São Paulo,17 de março de 2012;
2. Ribeiro da Cunha, Paulo – Militares e Militância, uma relação dialeticamente conflituosa, UNESP, 2013;
3. Constituição da República Federativa do Brasil.
4. Carvalho, José Murilo, Forças Armadas e Política no Brasil. Jorge Zahar Editor, 2005, Rio de Janeiro
***
Izaías Almada, mineiro de Belo Horizonte, escritor, dramaturgo e roteirista.

Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/2015/03/26/quem-ira-nos-livrar-do-fascismo/

quinta-feira, 19 de março de 2015

Vitor Teixeira: Patologias políticas

Fonte: http://www.viomundo.com.br/humor/122157.html

'A mudança climática foi causada por nosso sistema capitalista'... Naomi Klein


'A mudança climática foi causada por nosso sistema capitalista'

Para alguns, é difícil reconhecer que não temos tudo sob controle, e a Terra nos diz hoje: olhe, você não é mais do que um convidado na minha casa. 
Podemos deter o aquecimento global? Só se mudarmos de modo radical nosso sistema capitalista, defende a ensaísta Naomi Klein. Em uma entrevista para o jornal alemão DER SPIEGEL, realizada por Klaus Brinkbäumer, ela explica por que chegou o momento de abandonar os pequenos passos a favor de um enfoque radicalmente novo, tal como detalha em seu livro “Isso muda tudo: capitalismo vs clima”.

DER SPIEGEL: Naomi, por que não conseguimos deter a mudança climática?
Klein: Má sorte. Mau momento. Muitas coincidências lamentáveis.

SPIEGEL: A catástrofe errada no momento errado?
Klein: O pior momento possível. A conexão entre gases de efeito estufa e aquecimento global vem sendo uma questão política central para a humanidade desde 1988. Foi precisamente a época que caiu o Muro de Berlim e Francis Fukuyama nos certificou do “fim da história”, a vitória do capitalismo ocidental. Canadá e EUA firmaram o primeiro acordo de livre comércio, que serviu como protótipo para o resto do mundo.

SPIEGEL: A senhora diz que começou uma nova era de consumo e energia precisamente no momento em que a sustentabilidade e a contenção teriam sido mais adequadas?
Klein: Exato. E foi precisamente nesse momento quando nos disseram que já não havia nada parecido com a responsabilidade social e com a ação coletiva, que deveríamos deixar tudo por conta do mercado. Privatizamos nossas rodovias e a rede energética, a OMC e o FMI se comprometeram com um capitalismo desregulado. Desgraçadamente, isso conduziu a uma exploração das emissões.

SPIEGEL: A senhora é ativista e tem culpado o capitalismo por todo tipo de coisas ao longo dos anos. Agora também o culpa pela mudança climática?

Klein: Não há motivo para sermos irônicos. Os números contam qual é a história inteira. Durante os anos 90, as emissões se elevaram 1% ao ano. Desde o ano 2000, foram subindo uma média de 2,4%. Exportou-se globalmente o sonho americano e rapidamente se expandiram bens de consumo que acreditávamos ser essenciais para satisfazer nossas necessidades. Começamos a nos ver exclusivamente como consumidores. Quando o comprar como forma de vida é exportado a todos os cantos do globo, isso exige energia. Muita energia.

SPIEGEL: Voltamos à nossa primeira pergunta: por que nós não pudemos deter essa mudança?
Klein: Temos descartado sistematicamente as ferramentas. Hoje se faz piada de regulações de todo tipo. Os governos já não aplicam regras severas que ponham limites nas empresas petroleiras e demais companhias. Essa crise nos veio no pior momento possível. Já não temos tempo. Estamos em um momento de agora ou nunca. Se não atuarmos como espécie, nosso futuro estará em perigo. Temos que reduzir as emissões de modo radical.

SPIEGEL: Voltemos a outra pergunta: A senhora não estaria se apropriando indevidamente da mudança climática para utilizá-la em sua crítica ao capitalismo?
Klein: Não. O sistema econômico que criamos também criou a mudança climática. Eu não o inventei. O sistema não serve, a desigualdade econômica é demasiadamente grande e a falta de contenção por parte das empresas energéticas é desastrosa.

SPIEGEL: Seu filho Toma tem dois anos e meio. Em qual classe do mundo viverá quando sair da escola, em 2030?
Klein: Isso é o que se está dizendo agora mesmo. Vejo sinais de que poderia haver um mundo radicalmente diferente do que temos hoje, e de que a mudança poderia ser bastante positiva ou extremamente negativa. Já é certo que, ao menos em parte, será um mundo pior. Vamos experimentar a mudança climática e muito mais desastres naturais, isso é certo. Mas temos tempo ainda para impedir um aquecimento verdadeiramente catastrófico. Temos tempo ainda de mudar nosso sistema econômico para que não se torne mais brutal e impiedoso ao enfrentar a mudança climática.

SPIEGEL: O que se pode fazer para melhorar a situação?

Klein: Temos hoje que tomar algumas decisões sobre quais valores são importantes para nós e como queremos viver de verdade. E, é claro, existe uma diferença no fato de a temperatura aumentar 2 graus ou aumentar 4 ou 5, ou mais. Ainda não é possível aos seres humanos tomar as decisões corretas.

SPIEGEL: Passaram-se 26 anos desde a fundação do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC – Intergovernmental Panel on Climate Change) em 1988. Sabemos no mínimo, desde então, que as emissões de CO2 causadas pela queima de petróleo e carbono são responsáveis pela mudança climática. Mas pouco se fez para enfrentar o problema. Já não fracassamos?
Klein: Eu vejo a situação de forma diferente, dado o enorme preço que teremos a pagar. Enquanto temos a mínima oportunidade de êxito ou de minimizar o dano, temos que continuar lutando.

SPIEGEL: Há vários anos, a comunidade internacional estabeleceu um objetivo para limitar o aquecimento global a dois graus centígrados. A senhora ainda o considera alcançável?
Klein: Bom, ainda é uma possibilidade física. Teríamos que reduzir imediatamente as emissões globais para 6% ao ano. Os países mais ricos teriam que ter um peso maior, o que significa que os EUA e a Europa teriam que cortar emissões entre 8% e 10% ao ano. Imediatamente. Não é impossível, só que é profundamente politicamente irreal no nosso atual sistema.

SPIEGEL: A senhora está dizendo que nossas sociedades não são capazes de fazê-lo?
Klein: Sim. Precisamos de uma mudança espetacular, tanto na política como na ideologia, porque existe uma diferença fundamental entre o que os cientistas nos dizem que temos que fazer e nossa atual realidade política. Não podemos mudar a realidade física, de modo que temos que mudar a realidade política.

SPIEGEL: Uma sociedade que se centra no crescimento poderia combater de verdade e com êxito a mudança climática?
Klein: Não. Um modelo econômico baseado em um crescimento indiscriminado leva inevitavelmente a um maior consumo e a maiores emissões de CO2. Pode e deve haver crescimento no futuro em muitos setores da economia: tecnologias verdes, transporte público, todas as profissões que proporcionam cuidados, nas artes e, é claro, em educação. Agora mesmo, o núcleo do nosso produto interno bruto compreende apenas o consumo, as importações e exportações. Aqui é preciso haver cortes. Qualquer outra coisa seria se enganar.

SPIEGEL: O Fundo Monetário Internacional afirma o contrário. Diz que o crescimento econômico e a proteção ao clima não se excluem mutualmente.
Klein: Eles não analisam os mesmos números que eu. O primeiro problema é que em todas essas conferências sobre o clima, todo mundo age como se fôssemos chegar ao nosso objetivo por meio de um compromisso próprio de obrigações voluntariamente aceitas. Ninguém diz às empresas de petróleo que precisarão ceder. O segundo problema é que essas empresas vão lutar como feras para proteger o que não querem perder.

SPIEGEL: A senhora quer eliminar o livre mercado com a finalidade de salvar o clima?

Klein: Não falo de eliminar mercados, mas nos faz falta muito mais estratégia, direcionamento e planejamento, além de um equilíbrio muito diferente. O sistema em que vivemos está abertamente obcecado com o crescimento, considerando bom todo crescimento. Mas existem formas de crescimento que, claramente, não são boas. Para mim, está claro que minha posição entra em conflito direto com o neoliberalismo. É verdade que, na Alemanha, embora tenham acelerado a mudança em direção às energias renováveis, o consumo de carbono está, na realidade, aumentando?

SPIEGEL: Isso era certo entre 2009 e 2013.

Klein: Para mim, isso é expressão de sua recusa em tomar decisões sobre o que precisa ser feito. A Alemanha tampouco vai cumprir seu objetivo de emissões nos próximos anos.

SPIEGEL: A presidência de Obama é o pior que poderia acontecer para o clima?
Klein: De certo modo. Não porque Obama seja pior do que um republicano, o que não é, mas porque esses oito anos foram a maior oportunidade desperdiçada de nossas vidas. Havia os fatores justos para uma convergência realmente histórica: consciência, coação, ânimo, sua maioria política, o fracasso dos três grandes fabricantes de carros norte-americanos e até a possibilidade de encarar de uma vez a mudança climática e o falido mundo financeiro. Mas quando chegou ao cargo, não teve o valor de fazê-lo. Não venceremos esta batalha a menos que estejamos dispostos a discutir por que Obama considerou que o fato de ter controle sobre bancos e empresas de carros era mais uma carga do que uma oportunidade. Era prisioneiro do sistema. Não quis mudá-lo.

SPIEGEL: Os EUA e a China chegaram finalmente a um acordo inicial sobre o clima em 2014.
Klein: Acordo que, é claro, é algo bom. Mas tudo o que pode ser penoso no acordo não entrará em vigor até que Obama conclua seu mandato. Contudo, o que mudou é que Obama disse: “Nossos cidadãos estão se manifestando, não podemos ignorar isso”. Os movimentos de massas são importantes, têm repercussões. Mas para empurrar nossos líderes até onde eles têm que chegar, os movimentos têm que se fazer ainda mais fortes.

SPIEGEL: Qual deveria ser sua meta?
Klein: Nos últimos 20 anos, a extrema direita, a absoluta liberdade das empresas de petróleo e a liberdade do 1% dos super-ricos da sociedade se transformaram em norma política. Temos que deslocar de novo o centro político norte-americano da borda direitista a seu lugar natural, o verdadeiro centro.

SPIEGEL: Naomi, isso não tem sentido porque é uma ilusão. A senhora pensa em abraçar o mundo. Se a senhora quer eliminar o capitalismo antes de empreender um plano para salvar o clima, saiba que isso não vai acontecer.
Klein: Veja, se o senhor quiser se deprimir, existem muitas razões para isso. Mas continuará se enganando, porque o fato é que se centrar em mudanças graduais supostamente atingíveis, como o comércio de emissões e a troca de lâmpadas, fracassou miseravelmente. Em parte, isso se deve ao fato de que, na maioria dos países, o movimento ambiental continuou elitista, tecnocrático e supostamente neutro no campo político durante duas décadas e meia. Já vemos hoje quais são os resultados: nos levaram ao caminho equivocado. As emissões estão aumentando e aqui está a mudança climática. Em segundo lugar, nos EUA, todas as transformações importantes legal e socialmente nos últimos 150 anos foram resultado de movimentos sociais massivos, conforme se posicionaram a favor das mulheres, contra a escravidão ou em prol dos direitos civis. Precisamos de novo dessa fortaleza, e bem rápido, porque a causa da mudança climática é o próprio sistema político e econômico. Seu enfoque é muito tecnocrático e limitado.

SPIEGEL: Se a senhora tenta solucionar um problema específico dando a volta em toda a ordem social, não o resolverá. Isso é uma fantasia utópica.
Klein: Se a ordem social for a raiz do problema, não. Visto por outra perspectiva, nadamos literalmente em exemplos de pequenas soluções: tecnologias verdes, leis locais, tratados bilaterais e impostos ao CO2. Por que não temos tudo isso em escala global?

SPIEGEL: A senhora está dizendo que todos esses pequenos passos – tecnologias verdes e impostos ao CO2, além de um comportamento ecológico individual – não têm sentido?
Klein: Não. Todos deveríamos fazer o possível, é claro. Mas não podemos nos enganar achando que isso é suficiente. O que digo é que esses pequenos passos continuarão sendo muito pequenos se não se transformarem em um movimento de massas. Precisamos de uma transformação econômica e política, que se baseie em comunidades mais fortes, empregos sustentáveis, maior regulação e um distanciamento dessa obsessão pelo crescimento. Essas são as boas notícias. Temos de verdade a oportunidade de resolver muitos problemas de imediato.

SPIEGEL: Não parece contar com a razão coletiva de políticos e empresários.
Klein: É porque o sistema não pode pensar. O sistema recompensa o lucro a curto prazo, o que quer dizer benefícios rápidos. Veja o Michael Bloomberg, por exemplo...

SPIEGEL: … empresário e ex-prefeito da cidade de Nova York...
Klein: … que entende a gravidade da crise do clima como político. Como empresário, prefere investir em um fundo especializado em ativos de petróleo e gás. Se uma pessoa como Bloomberg não pode resistir à tentação, pode-se assumir que, nesse caso, não é tão grande a capacidade de autoconservação do sistema.

SPIEGEL: Um capítulo especialmente inquietante de seu livro é o de Richard Branson, presidente do grupo Virgin.
Klein: Sim, não o havia esperado.

SPIEGEL: Branson tratou de se apresentar como um homem que quer salvar o clima. Tudo começou em um encontro com Al Gore.
Klein: E em 2006 se comprometeu, em um ato na Clinton Global Initiative, que investiria 3 bilhões de dólares em pesquisa de tecnologias verdes. Naquela época, eu pensava que seria uma quantia realmente fantástica. O que não me ocorreu pensar é “que cara cínico você é”.

SPIEGEL: Mas Branson não estava fazendo nada senão blefar e só investiu uma parte desse dinheiro.
Klein: Pode ser que tenha sido sincero naquele momento, mas sim, investiu uma parte.

SPIEGEL: Desde 2006, Branson acrescentou 160 novos aviões a suas inúmeras linhas aéreas e já incrementou suas emissões em 40%.
Klein: Sim.

SPIEGEL: O que se pode aprender com essa história?
Klein: Que precisamos julgar o simbolismo e os gestos feitos pelas estrelas de Hollywood e pelos super-ricos. Não podemos confundir isso com um plano cientificamente sério para reduzir emissões.

SPIEGEL: Na América do Norte e na Austrália, gasta-se muito dinheiro tentando negar a mudança climática. Por quê?
Klein: É diferente da europa. Trata-se de uma indignação semelhante à de quem se opõe ao aborto e ao controle de armas. Não se trata apenas de que estejam protegendo um modo de vida que não querem mudar. É que entenderam que a mudança climática ridiculariza o núcleo de seu sistema de crença contrário ao governo e em prol da liberdade de mercado. De modo que precisam negá-lo para proteger sua própria identidade. Por isso, existe essa diferença de intensidade: os liberais querem atuar um pouco na proteção do clima. Mas, ao mesmo tempo, esses liberais têm uma série de questões à parte que figuram de modo mais destacado em sua agenda. Mas temos que entender que quem nega com mais veemência a mudança climática entre os conservadores fará tudo o que estiver a seu alcance para impedir que se atue.

SPIEGEL: Com estudos pseudocientíficos e desinformação?
Klein: Com tudo isso, é claro.

SPIEGEL: Isso explica por que relaciona todas essas questões – questões de meio ambiente, igualdade, saúde pública e trabalho –, que são tão populares entre a esquerda? Por razões puramente estratégicas?
Klein: Essas questões estão relacionadas e, ainda assim, nos faz falta relacioná-las no debate. Só há um modo de vencer em uma batalha contra um pequeno grupo de pessoas que te enfrentam porque têm muito a perder: é preciso iniciar um movimento massivo que abarque toda aquela gente que têm muito a ganhar. A quem nega só se pode derrotar se você se mostrar igualmente apaixonado, mas também quando está em maior número. Porque a verdade é que eles são realmente muito poucos.

SPIEGEL: Por que a senhora não acredita que a tecnologia verde tenha potencial para nos salvar?
Klein: Produziu-se um progresso tremendo no armazenamento de energias renováveis, por exemplo, e na eficiência solar. Mas e na mudança climática? Eu, em todo caso, não tenho muita fé para dizer: “Como inventaremos alguma coisa em um dado momento, deixemos de lado todos os demais esforços”. Isso seria uma insensatez.

SPIEGEL: Pessoas como Bill Gates veem as coisas de modo diferente.
Klein: E eu acho ingênuo o seu fetichismo tecnológico. Em anos recentes, temos sido testemunhas de certos fracassos verdadeiramente ressonantes, nos quais algumas das pessoas mais preparadas meteram os pés pelas mãos em escala grandiosa, seja nos derivativos que desencadearam a crise ou na catástrofe de petróleo na costa de Nova Orleans. Em sua grande maioria, as pessoas, nós, destroçamos as coisas e não sabemos como arrumá-las. E, agora mesmo, o que estamos destroçando é o nosso planeta.

SPIEGEL: Ouvindo a senhora, pode-se ter a impressão da crise do clima é uma questão de gênero.
Klein: Por que diz isso?

SPIEGEL: Bill Gates disse que temos que avançar e idealizar novas invenções para assumir o controle do problema e, em última instância, dessa nossa Terra tão complicada. Por outro lado, a senhora disse: pare, não, temos que nos adaptar a esse planeta e nos tornar mais leves. As companhias de petróleo norte-americanas são comandadas por homens. E a senhora, uma mulher crítica, é descrita como uma histérica. Não é um absurdo pensar isso, sim?
Klein: Não. A industrialização, em seu conjunto, estava mancomunada com o poder, e vendo se seria o homem ou a natureza que dominaria a Terra. Para alguns homens, é difícil reconhecer que não temos tudo sob controle; que temos acumulado todo esse CO2 ao longo dos séculos e que a Terra nos diz hoje: olhe, você não é mais do que um convidado na minha casa.

SPIEGEL: Convidado da Mãe Terra?
Klein: Isso soa demasiadamente brega. Mas o senhor tem razão. A indústria do petróleo é um mundo dominado por homens, algo muito semelhante do que ocorre no topo do mercado financeiro. É uma coisa de machos. A ideia norte-americana e australiana de “descobrir” um país infinito e do qual possam extrair inacabáveis recursos contém um relato de dominação, que representa tradicionalmente a natureza como uma mulher frágil e torpe. E a ideia de estar em relação de interdependência com o resto do mundo natural é considerada uma debilidade. Por isso, é duplamente difícil aos machos alfa reconhecer que se enganaram.

SPIEGEL: Há em seu livro uma questão da qual parece querer se desviar. Embora a senhora fale mal das empresas, nunca disse que seus leitores, que são clientes dessas empresas, também são culpados. Tampouco disse qualquer coisa respeito do preço que cada um de seus leitores terá de pagar pela proteção do clima.
Klein: Ah, eu acho que a maioria das pessoas ficaria feliz em pagar por isso. Sabem que a proteção do clima exige um comportamento razoável: dirigir menos, voar menos e consumir menos. Ficariam encantados em utilizar energias renováveis se lhes fossem oferecidas.

SPIEGEL: Mas a ideia não é grande o bastante, não é?
KLEIN: (risos) Exato. O movimento verde passou décadas instruindo as pessoas para utilizar seu lixo como adubo, para reciclar e andar de bicicleta. Mas veja o que aconteceu com o clima durante essas décadas.

SPIEGEL: Seu estilo de vida é benéfico para o clima?
Klein: Não o bastante. Ando de bicicleta, utilizo o transporte público, trato de dar palestras por Skype, compartilho um carro híbrido e cortei meus voos a um décimo do que eram antes de começar esse projeto. Meu pecado está em tomar táxis e, desde que o livro saiu, em voar muito. Mas tampouco acredito que apenas as pessoas perfeitamente verdes, que vivem sem emitir CO2 as únicas que devam falar sobre essa questão. Se fosse assim, ninguém poderia dizer uma palavra, em absoluto.

SPIEGEL: Naomi, obrigado por esta entrevista.
Naomi Klein escreveu, entre outros livros, “A doutrina do choque” e “Sem logo”.
Tradução de Daniella Cambaúva
Fonte: http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Meio-Ambiente/-A-mudanca-climatica-foi-causada-por-nosso-sistema-capitalista-/3/33068

A construção em abismo da história – por Edson Teles


A construção em abismo da história

[Carlos Alberto Augusto, ex-agente do Dops, posa para fotos em manifestação de 15.03.2015]
[Em depoimento à TV Trip, o delegado apelidado de “Carlinhos Metralha” afirmou que conheceu pessoalmente “muitos dos delinquentes que estão aí hoje… não metralhei porque não tive essa oportunidade. Se tivesse, o faria com o maior prazer.”

Cinco décadas após o Golpe Militar de 1964, duas de ditadura e três de democracia, o país vive a publicização dos trabalhos de apuração do período ditatorial. São os relatórios das comissões da verdade em suas várias instâncias. No último dia 12 de março foi lançado o Relatório da Comissão da Verdade Rubens Paiva, do Estado de São Paulo. Em pouco mais de dois anos de trabalhos, especialmente focados nos casos de mortos e desaparecidos, a Comissão teve como método principal de reconstituição da história a audição das pessoas que viveram o período.

No material publicado constam narrativas de sobreviventes, testemunhas, militantes, ex-presos políticos, familiares de vítimas, pessoas que eram crianças e adolescentes na época. Centenas de documentos, publicação aberta de livros e a biografia dos mortos e desaparecidos na ditadura estão entre os principais conteúdos do Relatório. O primeiro capítulo se dedica a elencar recomendações para as instituições do Estado de Direito, seja para as políticas de memória, seja para cobrar a ausência de atos de justiça, com a reinterpretação da Lei de Anistia e a punição dos torturadores.

Uma característica forte deste documento é a relação feita entre a repressão e a violência do período ditatorial e a repetição de certa estrutura autoritária na democracia. Os mecanismos de repressão policial, de acobertamento destas ações por parte de outras instituições e a presença de um discurso legitimador da violência do Estado são identificados como estruturas que permanecem em democracia, tendo como alvo principal a população pobre da periferia. No ato de lançamento do Relatório estavam lado a lado familiares das vítimas da ditadura e familiares das vítimas do estado democrático. À Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos juntou-se o movimento Mães de Maio para denunciar a presença de um projeto político autoritário presente e forte no país.

Apesar do tom de vitória, afinal são estes os anos em que apuramos minimamente o que foi a ditadura militar, percebe-se naquilo que não foi dito a ausência do alívio e da conclusão da elaboração de um luto.

Constata-se que o Estado brasileiro não abriu seus arquivos e que as informações das Forças Armadas continuam sonegadas no debate público. Navegando pelas biografias das vítimas fatais da ditadura percebe-se que há versões diferentes para um mesmo indivíduo, ou mesmo dúvidas sobre as circunstâncias de suas mortes. No caso dos desaparecidos políticos, muito continua ainda em aberto em função da ausência de seus corpos, de suas histórias… Os poucos que foram resgatados das valas clandestinas nas quais a ditadura os lançou tiveram esta sorte única e exclusivamente por conta do esforço e da ação individual dos seus familiares. O Estado até agora não localizou ou identificou um único desaparecido. Em 2015, não temos um único torturador condenado em juízo penal. Poucos são os processos. A história contada hoje é aquela sem vida, sem presença no fluxo de nossas existências. Correm o sério risco de ficarem empoeiradas nos museus e nas teses acadêmicas.

Os trabalhos das comissões da verdade, as várias instaladas no país desde 2012, configuram-se como construções em abismo. É como se todo o esforço de apuração tivesse chegado à constatação do vazio da experimentação deste passado recente. Abismo porque quanto mais se lança em direção à chamada verdade, mais se confirma que nada será desvelado. A memória que se constrói é a do irrealizável acesso às informações determinantes dos acontecimentos. É aquela que a “correlação de forças permitiu”. A avaliação que se extrai é a de que certo projeto político autoritário permanece atuante e segue ainda mais fortalecido. Aos familiares de vítimas da ditadura a construção em abismo vem a corroborar a sensação de que vivem a impossibilidade do luto e de que sua luta terminará apenas com a própria morte de suas existências.

Quanto mais se deslocam no tempo, menos potência temos para fazer daqueles eventos uma experiência. O abismo seria a cena do anjo de Paul Klee, como observou Walter Benjamin, que sofre o sopro do progresso impedindo a compreensão das ruínas da história.

Este vazio da experiência torna-se ainda mais concreto nas manifestações alienadas e conservadores dos últimos dias. Assistir à encenação do discurso de polarização da luta política é, de certo modo, a vitória dos golpes contra a democracia. Não há golpismo a caminho, nós já fomos atingidos. Quando a história se apresenta fria, sintetizada pelos pactos políticos, sem a pulsação das ruas é porque a potência da ação política de criar novos caminhos foi golpeada. Assistir jovens serem espancados e presos pela polícia em manifestações contra aumento da tarifa do transporte, neste contexto de ocultação da experiência vivida pela geração desaparecida na ditadura, é o sinal de que não há o que comemorar. Estes relatórios servem como ferramentas para a repetição de velhos questionamentos, para os quais mesmo que não se tenha respostas, precisam ser feitos e refeitos:

Onde está André Grabois?*
Onde está Amarildo?
Onde estão?

Neste abismo entre o passado e o futuro é sempre bom lembrar de Hannah Arendt, para quem os “tempos sombrios” podem ser a abertura para processos criativos.

* André Grabois é meu tio, desaparecido na Guerrilha do Araguaia, provavelmente no final do ano de 1973. Conferir a parte conhecida de sua história no portal desaparecidospoliticos.org.br.
***
Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). 

Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/2015/03/18/a-construcao-em-abismo-da-historia/

Perfil dos manifestantes que participaram dos atos anti-Dilma nas cidades de São Paulo e Porto Alegre...

Fonte: http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/03/o-perfil-do-manifestante-que-foi-as-ruas-em-sao-paulo-e-porto-alegre.html

terça-feira, 17 de março de 2015

domingo, 15 de março de 2015

Catharsis!



Ser livre no império de empresários e autoridades.
Ser lúcido entre ondas de ar e sedativos.
Acreditar em si próprio sob a tirania da realidade consensual.
Ser sensível vivendo ao alcance de oficinas com condições desumanas, estádios e matadouros.
Com o cheiro de sangue no ar.
Sonhar com beleza, com as estrelas arrancadas do céu.
Os anjos engaiolados e os heróis demonizados.
Cantar com a garganta cheia de algodão da inibição.
Escrever sobre graça com as mãos calejadas e faces ensanguentadas:
Ousar gritar, e até chorar, orgulhosamente, ante os olhos zombadores dos juízes, do carrasco e da multidão.
Mentir, enganar, roubar e trair o quanto for necessário.
Ser honesto.
Dizer a verdade.
Não ter medo: mover-se e seguir esse movimento.
Até mesmo na morte, viver para se incendiar nos escombros.
Dar tudo:
Beijar sua apreensão, vergonha ou comedimento,
Fazer amor na cidade do ódio.
E sim, estar vivo.
Vivo na terra dos mortos.
Catharsis!