terça-feira, 10 de novembro de 2020

Alemanha, 1945 - por Jota Camelo


 Fonte: https://twitter.com/ojotacamelo

Cornel West: Trump está empurrando o país para o fascismo genuíno (UMA ENTREVISTA COM CORNEL WEST)

Cornel West: Trump está empurrando o país para o fascismo genuíno (UMA ENTREVISTA COM CORNEL WEST)

O mais importante filósofo e militante socialista negro hoje nos EUA fala sobre as eleições presidenciais, o declínio de mais um império, a relação entre espiritualidade e materialismo e a necessidade de combater o capitalismo para preservar a humanidade.

Dr. Cornel West em Beverly Hills, Califórnia, 2016. (Frederick M. Brown / Getty Images)

Cornel West é uma das vozes mais eloquentes e provocadoras da esquerda norte-americana. Professor e pesquisador da Harvard Divinity School, começou sua vida política nas revoltas dos movimentos pelos Direitos Civis – passando de cristão radical para um socialista e aliado do Partido dos Panteras Negras.

Sua carreira vai muito além de sua trilha acadêmica como filósofo ou vida política na esquerda, esteve também envolvido com cultura, desde colaborações musicais com Prince e Talib Kweli até uma aparição na série Matrix. Ele também fez carreira nas rádios, apresentando distintos programas, atualmente apresenta o podcast The Tight Rope, com Tricia Rose.

Nesta recente conversa com Grace Blakeley para o podcast A World to Win, Cornel West discute a eleição presidencial dos EUA, o movimento Black Lives Matter – e a importância da espiritualidade para a política radical.

Você disse recentemente em uma entrevista que para enfrentar “o gângster neofascista na Casa Branca, precisamos fazer parte de uma coalizão antifascista”. Você acha que uma frente anti-Trump poderia ter sucesso? E você acredita que a presidência de Biden pode promover algo que se aproxime da mudança de que os EUA precisam agora?

Precisamos ser consistentes em nossa crítica ao império, ao capitalismo, ao patriarcado, à homofobia, à transfobia e à supremacia masculina e branca. E a maneira como fazemos isso é buscando manter nossa integridade intelectual e nossa coragem política: contando a verdade sobre Donald Trump, o neofascista, o gangster, sobre seus colaboradores e facilitadores. Ele está empurrando o país para o fascismo genuíno: total desrespeito às leis, domínio das forças armadas, domínio do grande capital de Wall Street e do Vale do Silício. Ele está esmagando trabalhadores, marginalizando mulheres, usando os mexicanos, muçulmanos, judeus, negros, pardos e indígenas como verdadeiros bodes expiatórios.

Agora, acredito que com Biden, o que teremos é alguém que pode impedir o movimento acelerado em direção ao fascismo norte-americano. Isso é muito importante – mas seu governo neoliberal ainda estará vinculado a Wall Street, vinculado ao grande capital, vinculado ao militarismo, vinculado ao Africom, a políticas profundamente reacionárias no Oriente Médio com Netanyahu e assim por diante. Não queremos mentir sobre Biden. Não queremos alimentar nenhuma ilusão simplesmente porque estamos diante de um Frankenstein feio e fascista como Trump. Então, estamos realmente entre a cruz e a espada, que é onde a esquerda normalmente esteve nos últimos 50 anos.

Uma pesquisa recente da CNN mostra que o apoio ao movimento Black Lives Matter caiu desde junho. A maioria, 55%, ainda apoia os protestos, mas isso diminuiu dos 67% de junho passado. Isso te preocupa? Você acredita que há alguma maneira de reverter isso, ou é apenas parte da estratégia de Trump?

Acho que faz parte da estratégia de Trump. Houve um ataque indiscriminado ao movimento Black Lives Matter para caracterizá-lo como um movimento terrorista, como um movimento de ódio. Isso é um sinal de sucesso. Isso significa que você na verdade constitui uma ameaça substantiva ao status quo, não apenas para a polícia usar seu poder para assassinar pessoas, mas conectá-lo a uma crítica ao poder de Wall Street e aos crimes de Wall Street. Conectando-o a uma crítica ao poder do Pentágono e aos crimes do Pentágono. Nesse sentido, a intensidade do ataque é um sinal do grau em que você constitui uma ameaça ao status quo. E eu acho que é exatamente onde queremos estar. Nós apenas temos que combater essas mentiras com algumas verdades e criar algum tipo de movimento de compensação, instituições, periódicos, bem como indivíduos no local.

Gostaria de saber sua opinião sobre a pandemia. Há uma pesquisa realizada pela NPR mostrando que a pandemia está aumentando a distância de riqueza racial: 60% das famílias negras, 72% das famílias latinas e 55% das famílias nativas nos EUA enfrentaram sérios problemas financeiros desde o início da pandemia; contra 36% das famílias brancas. Sabemos que a crise do desemprego, a crise dos despejos e o peso atual da doença também estão sendo sentidos com mais força pelos negros e latino-americanos. Então, como as pessoas podem organizar a saída dessa crise profunda e generalizada?

É por isso que precisamos ter uma crítica do sistema e visões alternativas bem como maneiras de fortalecer nossa resiliência em face do sistema. Enquanto tivermos questões isoladas, enquanto permanecermos em nossas torres e em nossos respectivos espaços sem solidariedade, não temos chance alguma.

Portanto, é fácil fetichizar raça ou gênero como uma identidade e não conectar essa identidade a uma crítica do predatório sistema capitalista, o que nos permitiria reconhecer os graus de solidariedade que devemos ter com os trabalhadores e pobres. Não devemos isolar essas identidades para que percamos de vista a integridade e a consistência de nossa crítica ao capitalismo.

Você tem uma vida e uma carreira incrivelmente ampla como filósofo, ativista, intelectual, artista e figura moral nos EUA. Obviamente, você passou sua carreira como escritor na academia, estudando e ensinando filosofia e teologia. O que fez você querer estudar essas grandes ideias?

Venho de uma família ocidental muito amorosa. A maior honra que já tive foi ser o segundo filho de Irene e Clifton. Eu nunca serei o ser humano que meu pai foi; ele morreu há 26 anos. Minha mãe ainda está viva, com 88 anos de idade, com uma escola primária levando seu nome em sua homenagem. Ela e o meu pai deram muito amor e apoio. Isso me libertou, porque eu era quase um gângster na juventude. Eu batia nas pessoas o tempo todo. Fui expulso da escola por bater em um colega por se recusar a saudar a bandeira. Meu tio-avô foi linchado e eles o enrolaram na bandeira, então eu associei aquela bandeira a algo horrível e cruel.

Quando comecei a crescer intelectualmente fui influenciado pela igreja – sempre me vi como um cristão revolucionário, no legado de Martin Luther King e Fannie Lou Hamer –  e trabalhei em estreita colaboração com o Partido dos Panteras Negras. Ali eu já tinha uma crítica do capitalismo, do império, da homofobia e do patriarcado, porque era sobre isso que debatíamos na sede dos Panteras Negra.

Eu ensinava no Programa de Café da Manhã dos Panteras Negras. Eu ensinava na prisão Prisão de Norfolk, onde estava Malcolm X. Eu nunca estava nas festas porque era cristão e eles eram profundamente seculares. E isso foi bom. Eles tinham fortes críticas à igreja, reconheço várias delas. Mas eu tinha meu próprio entendimento de Deus e Jesus e da luta e revolução. Ficamos muito próximos, mas não consegui entrar.

No período em que frequentei a Universidade, fui exposto a uma magnífica onda de ideias. Eu me apaixonei por muitas dessas figuras intelectuais importantes. Fosse Karl Marx, William Morris, William Hazlitt, Virginia Woolf, Raymond Williams e mais tarde Edward Said. Todas essas pessoas significaram muito para mim.

Eu estava na academia estudando com John Rawls, Hilary Putnam, Stanley Cavell, Martha Nussbaum, Martin Kilson e Preston Williams. Depois fui para Princeton estudar com Richard Rorty e Sheldon Wolin. Essas eram figuras imponentes que abriam a minha vida intelectual e destruíam muito do meu paroquialismo. Sempre fui uma espécie de negro livre, amante de Jesus, preocupado com os pobres e os trabalhadores. Mas isso me permitiu fazer parte de uma conversa mais ampla.

Com C. L. R. James, Du Bois, Nkrumah, Nandy, Ambedkar e a irmã Roy da Índia. Foi um bom momento pra mim. Eu gosto da vida intelectual, mas sempre tento usá-la como uma arma para capacitar e enobrecer as pessoas vulneráveis, não importa quem sejam.

Eu acredito que há muitos elementos heterogêneos de genocídio e patriarcado na Bíblia Hebraica que devemos manter distância. Mas existe essa noção de “chesed” (misericórdia). A forma mais elevada de ser humano é espalhar a benevolência e o amor inabalável ao órfão, à viúva, ao desassistido e ao oprimido. Eu sempre acreditei que se fosse para ser parte do que buscava Moisés, que na sua essência era a libertação, eu teria que ter uma crítica profunda não apenas do Faraó, mas do sistema que mantinha o Faraó no lugar.

É por isso que as pirâmides nunca me inspiraram profundamente, porque os trabalhadores e os pobres nunca poderiam ser enterrados lá dentro. Eles podiam construir as pirâmides, mas nunca poderiam ser enterrados dentro delas. Portanto, tenho uma crítica profunda aos Faraós, seja qual for a cor em que surjam, seja qual for o gênero. Mesmo quando eles têm edifícios tecnológicos magníficos, quando você realmente olha para o sistema, você diz: “Não. Estou com os pobres e os trabalhadores que construíram as pirâmides.” São eles que sempre destaquei, embora fossem esquecidos e invisíveis. É a isso que sou solidário.

Aprendi isso seriamente pela primeira vez nas escrituras hebraicas – ser solidário com os oprimidos. Como aconteceu com Jesus entrando na cidade e expulsando os cobradores de impostos. Quem são os cobradores no império norte-americano? Wall Street, Pentágono, Casa Branca, Congresso, Hollywood, todos eles ocupam o mesmo lugar. Harvard, Yale, Princeton, todos eles ocupam o mesmo lugar. Jesus expulsaria todos. E é por isso que ele foi colocado crucificado pelo império mais poderoso da época.

Dessa forma, há o que chamo de centelha profética nas escrituras hebraicas. De Jesus a Muhammad, com sua maneira profética própria, que leva, por exemplo, a um Malcolm X. Mesmo muitos dos meus irmãos e irmãs seculares, a quem amo muito, teriam que reconhecer que sua profunda solidariedade com os povos oprimidos e sua história, uma vez que derrubem os mitos, vem desse amor, cuidado, preocupação pelos vulneráveis que foi cultivado dentro dessas instituições religiosas, mesmo quando essas instituições religiosas tendem a violar. E foi isso que R. H. Tawney, que sempre foi um dos meus heróis na tradição britânica, disse em The Acquisitive Society, Equality and Religion and the Rise of Capitalism.

Isso ressoa em mim até hoje. Eu me considero um cristão e um socialista. Como um dos meus grandes heróis, Tony Benn. Parece óbvio para mim que você não consegue uma transformação social coletiva sem alguma forma de transformação espiritual – qualquer que seja a religião ou forma de espiritualidade.

Precisamos ser honestos sobre isso porque veja, uma das formas como o capitalismo se reproduz é a mercantilização de todos e de tudo – para criar aqueles homens vazios de que TS Eliot falava, para criar essas criaturas moralmente e espiritualmente vazias, cujo o senso de estar no mundo é ser excitado pelo bombardeio de mercadorias. Portanto, não há ativos para valores fora do mercado, como amor, justiça e solidariedade profunda, ou estar a serviço dos outros, assumir o risco de estar ao serviço dos outros, estar com, não além nem acima, mas ao lado.

Outro grande exemplo é o Dr. Martin Luther King, ele próprio um socialista democrático. São tantos. O primeiro foi Reinhold Niebuhr, que escreveu Moral Man and Immoral Society, era um socialista democrático. Nós vivemos uma onda de pessoas que desempenharam um papel tão importante na tentativa de manter vivo algum senso profundo de amor e justiça. Sem contar o amor pela beleza.

Porque venho de um povo, que depois de 244 anos da forma mais bárbara de escravidão moderna, onde não se podia aprender a ler ou escrever, nem adorar a Deus sem supervisão branca, onde a expectativa de vida era de 26 anos de idade, tinha como formas dominantes de espiritualidade o amor pelo belo. Você erguia sua voz, fugia à noite de mãos dadas. E você cantava essas belas canções, Swing Low, Sweet Chariot e Wade in the Water, God Go Trouble the Water.

Não era apenas o ilógico; foi artístico. Era uma forma de se agarrar a algo belo diante do terror e do trauma. O tipo de coisa que Rainer Maria Rilke nos lembra em seus poemas, como a beleza se torna fonte de resiliência diante do terror e do trauma sendo institucionalizada década após década após década, para que a música se torne fundamental em nossas vida. As artes em geral tornam-se fundamentais na vida. E assim a conexão entre o amor à verdade e o amor à beleza e o amor à justiça, e para mim, o amor a Deus, estão todos entrelaçados.

Você fala sobre a ideia de que inerente a qualquer conceito ou formação, existe a semente de seu oposto. Você vê isso, obviamente, em muitas religiões. Definitivamente no início do cristianismo. Mas também no socialismo e nas suas análises do capitalismo, que postulam que o capitalismo está cheio de contradições que acabarão por levar à sua própria destruição.

Karl Marx tornou-se um dos grandes profetas seculares do século XIX porque não tinha apenas uma preocupação com o sofrimento do povo, mas porque analisava em a Crítica da Economia Política de que as estruturas no local de trabalho criam relações assimétricas de poder, entre patrões e trabalhadores, de capital e trabalho; criando a fricção da luta de classes na tensão entre as classes.

Aqui, Marx está muito próximo do melhor dos românticos, ele quer que a individualidade se desenvolva e floresça. Pense em sua descrição maravilhosa em A Ideologia Alemã. Não suporta especialização, burocratização, domínio sobre os trabalhadores comuns. Ele acredita que suas vidas são tão valiosas quanto a vida de qualquer outra pessoa. É uma sensibilidade democrática radical que vai contra a corrente.

Marx e Engels estavam fugindo das classes dominantes que os perseguiam. Agora vivemos um momento de contradições: a catástrofe ecológica, as catástrofes econômicas. As contradições podem ser regionais, como na União Europeia. Ou estar vinculado a um estado-nação. Podem ser regiões dentro do mesmo estado-nação. Todas são formas de dominação do capital sobre o trabalho. E são atravessados ​​por várias formas de práticas patriarcais e de supremacia branca.

Em The Age of Empire, o irmão Eric Hobsbawm nos lembrou o que é o imperialismo. Os impérios norte-americano e soviético surgiram depois de 1945 com a descentralização e ao longo do tempo, a destruição completa do Império Britânico, o império em que o sol nunca se punha. Quem poderia imaginar que o império acabaria? Todos pensaram que continuaria indefinidamente. Os portugueses e os espanhóis também pensaram isso.

Bem, agora o império norte-americano está entrando em declínio. Precisamos ser capazes de acompanhar as maneiras pelas quais o capitalismo predatório passa de unidades imperiais e Estados-nação a esses regimes e organizações regionais, e também como ele se infiltra em cada canto de nossos corações, mentes e almas. Como ele cria a forma mercantilizada de ver o mundo com manipulação, dominação, colocando a economia na frente da vida comum. É quase Martin Buber, eu-ser versus eu-coisa. Aquele eu-indiciduo com o qual Marx estava preocupado nos manuscritos de 1844. Como você transcende essas formas de alienação no local de trabalho, alienação do dinheiro, alienação individual? São noções ricas e indispensáveis ​​para qualquer discurso sério sobre a emancipação das pessoas comuns em uma época em que a ganância só enlouquece em suas formas institucionais e estruturais.

Você mencionou o império norte-americano. Quero saber o que você acha que são as implicações do papel imperialista dos EUA no sistema capitalista para a estrutura da sociedade.

Bem, o reverendo Martin Luther King costumava dizer: “Quando você joga bombas no Vietnã, elas também caem nos guetos da América”. Elas também caem sobre os brancos pobres nos Apalaches. Elas caem nos bairros de nossos irmãos e irmãs de língua espanhola. Elas caem nas reservas de nossos preciosos irmãos e irmãs indígenas. Há uma conexão direta entre o militarismo no exterior e a falta de recursos para empregos, moradia, saúde, educação e com a militarização do contexto doméstico.

É com isso que estamos lidando agora com esses policiais. A polícia sempre foi uma grande ameaça contra os povos vulneráveis, especialmente os negros, mas a militarização em massa ocorreu sob o regime neoliberal, onde os departamentos de polícia começaram a se parecer cada vez mais com unidades militares em Bagdá. Você comete uma contravenção e obtém uma resposta militarista.

Pense em Breonna Taylor: no meio da noite, eles entram batendo na porta dela como se ela fosse mafiosa e tivesse cometido um crime, como se na verdade tivesse matado alguém. Eles começam procurando por um pacote de drogas e acabam matando-a sem motivo. Há uma conexão direta entre a política externa, que é uma dinâmica imperialista e a política interna, que é liderada por multinacionais.

O resultado, é claro, é uma classe trabalhadora altamente empobrecida. O ponto culminante é o bombardeio espiritual que afeta os trabalhadores e seus filhos porque eles aderem a valores que não são do mercado, como intimidade e vulnerabilidade. Você deve estar sempre duro e disposto a assumir uma postura como se estivesse pronto para lutar a cada segundo, pois, o objetivo é a sobrevivência do mais inteligente.

É quase pior do que o darwinismo social, no qual a sobrevivência do mais apto é teorizada nas palavras de Herbert Spencer, porque a sobrevivência do mais esperto é na verdade a amplificação de Trasímaco na República de Platão. Tudo se resolve com a ideia de que “poder é certo”. Essa “ganância é boa para você”. Tudo é “dominação e manipulação”. Isso tem a ver com a tristeza do nosso mundo. É parte da escuridão congelante que Max Weber viu em seus escritos. Ele olhou para fora, não viu apenas desencanto. Ele descreveu uma escuridão gelada que se expandiu com a combinação de mercantilização, burocratização, objetificação e dominação, que juntas criam esta gaiola de ferro para os homens.

Perguntei a Noam Chomsky outro dia – tivemos um diálogo maravilhoso na Progressive International – “O que nos faz pensar que nós, como humanos, temos a capacidade de evitar a autodestruição? O que nos faz pensar que as pessoas comuns têm a capacidade de determinar seu próprio destino, em uma visão democrática radical?” Essas são perguntas especulativas, mas são nossos esqueletos no armário. A conclusão foi: “Bem, nós realmente não sabemos.” Veja os precedentes históricos. É uma história de crime, loucura e ganância, mas também é uma história de resistência a tudo isso. Precisamente porque podemos fazer essas perguntas, nos tornamos mais fortes, nos tornamos mais dedicados, nos tornamos mais preparados para garantir que nós, como espécie, possamos evitar a autodestruição.

Como seres humanos, podemos nos governar no local de trabalho. Não precisamos de mestres. Podemos ter conselhos de trabalhadores. Uma deliberação democrática. Podemos ter culturas democráticas nas quais aprendemos uns com os outros como se tivéssemos jazz e hip hop de um lado, flamenco e rebetiko do outro; ou as canções folclóricas que moveram William Wordsworth em seus primeiros anos radicais e Robert Burns na Escócia. Ainda nem chegamos ao irlandês. Mas precisamos ter aquele tipo de encontro humano profundo que não homogeneíze nossas especificidades, mas use nossas diferenças como uma forma de aprofundar a comunhão e a comunidade, ao invés de aprofundar a dominação e a subordinação.

Nos é oferecida uma ideia de democracia representativa que está sempre ao lado do capitalismo. Você tem democracia no reino da política, mas você deve ter mercados livres no reino da economia: são coisas separadas e nunca se encontrarão?

E aí você vê a hipocrisia. Porque os liberais vêm e dizem: “Estamos muito preocupados com a concentração de poder na esfera política. Tivemos monarcas, reis e rainhas. Devemos ter direitos e liberdades. Devemos ter igualdade perante a lei”.

Bem, e quanto à concentração de poder na economia? Com os oligarcas, os monopólios, os oligopólios? Eles são igualmente ditatoriais. Então, sim, estamos com os liberais no sentido de que nos certificamos de que não temos reis e rainhas e um poder incontrolável na arena política. Mas ficamos com entidades semelhantes a reis na economia global, nacional e regional.

Portanto, podemos dizer aos liberais: “Oh, você não fala sério sobre a liberdade. Você quer liberdade para poucos. Achei que você realmente acreditava na universalidade dessa liberdade. Você quer liberdade apenas para uma classe”. Também seria verdade em termos de gênero e raça. Marx e os outros que fizeram essa crítica são vozes indispensáveis.

Você acha que a democracia pode ser uma arma contra o capitalismo? Você acha que aprofundando da democracia, quer estejamos falando sobre partidos políticos ou nossas instituições sociais e econômicas, nossos locais de trabalho, nossas comunidades, podemos realmente começar a erodir o poder sobre nossas vidas desses monopólios, oligopólios, banqueiros, políticos e a classe dominante?

Venho de um povo negro cujo hino é “Levante sua voz”. Vamos levantar nossas vozes. E se pudéssemos levantar as vozes do que Sly Stone chama de “pessoas do dia-a-dia” pesarem em todos os processos de tomada de decisão e instituições que orientam e regulam suas vidas, essas vozes não escolheriam a pobreza. Eles não escolheriam escolas decrépitas. Eles não escolheriam a falta de cuidados de saúde. Eles não escolheriam casas infestadas de ratos.

A democracia vinda de baixo leva a sério essas vozes enquanto elas lutam contra a miséria e o sofrimento social, e permite que moldem seus destinos de tal forma que seus filhos possam frequentar escolas de qualidade como os filhos da classe dominante. Que suas mães e pais tenham cuidados de saúde como as elites do poder. A democracia vinda de baixo é uma ameaça a qualquer poder hierárquico, tanto na esfera política quanto na econômica.

É aí que o jogo fica sério, entra em cena a grande acusação de Eugene O’Neill contra a civilização capitalista norte-americana, na maior comédia já escrita nos EUA, The Iceman Cometh. Ele era um anarquista como meu querido irmão Noam Chomsky. Mas ele argumentou, como Dostoiévski, que a maioria dos seres humanos teria preferido a ganância à liberdade, que também teria escolhido a opção de se juntar aos gananciosos no poder, em vez de correr o risco de simpatizar com os pobres, porque parece muito difícil. É mais fácil pensar que de alguma forma você pode se tornar o próximo Bill Gates ou Rockefeller.

Esse foi o projeto norte-americano, sua forma de individualismo. Mas ele e Dostoiévski, é claro, criticam a espécie humana. Eles acreditam, de fato, que nós, seres humanos, preferiríamos escolher a autoridade em vez da liberdade. Que preferimos seguir o Pied Piper em vez de organizar e gerenciar nossos locais de trabalho pessoalmente. Parte do projeto democrático radical é mostrar que estão errados. Mas não há dúvida de que é uma batalha difícil.

Tradução: Aline Klein

SOBRE OS AUTORES

Cornel West é filósofo na Harvard Divinity School e ativista político. Seus trabalhos incluem Race Matters e Democracy Matters, e aatualmente é o co-apresentador do podcast The Tight Rope.

Grace Blakeley pesquisadora do Instituto de Pesquisa de Políticas Públicas (IPPR).

Fonte: https://jacobin.com.br/2020/11/cornel-west-trump-esta-empurrando-o-pais-para-o-fascismo-genuino/

Relembrar David Graeber, Pesquisador, Desordeiro e Amigo - por Eric Laursen (A.N.A.)

Relembrar David Graeber, Pesquisador, Desordeiro e Amigo 

Possivelmente, a última coisa que David Graeber escreveu para publicação foi uma introdução de sua coautoria, com seu amigo de longa data e camarada intelectual Andrej Grubacic, para a Mutual Aid (“Ajuda Mútua”), o clássico trabalho sobre a história da cooperação humana (e animal) pelo anarquista russo do século 19 Peter Kropotkin. Discutindo o impacto do livro de Kropotkin, que desafiou a moralidade do “cada um por si” que o capitalismo adotou por meio de uma leitura errada da teoria da evolução de Darwin, David e Andrej disseram o seguinte: “Tais intervenções… revelam aspectos da realidade que eram consideravelmente invisíveis, mas uma vez revelados, parecem tão óbvios que eles nunca mais poderão ser ignorados.”

Qualquer um que o conheceu imediatamente reconhece isto como puro David, traçando sua busca ao longo da vida para descobrir padrões e tendências no comportamento humano que nossos governantes — as autoridades, o Estado, a religião organizada, capitalistas e o resto — se esforçam tanto para esconder. Descobrindo estes padrões, como Kropotkin fez em seu livro, não é apenas divertido e esclarecedor — que atraiu o lado travesso de David — mas um salva-vidas, nos oferecendo caminhos alternativos em um mundo marcado pelo medo, exploração, pobreza, guerra, assassinato em massa e a destruição de qualquer cultura fora do mercado.

Em nossas duas décadas de amizade e colaboração ocasional, eu nunca vi David mais feliz do que quando ele começava uma frase, “Bem, a parte engraçada é que…” sempre seguida por uma observação paradoxal sobre alguma instituição, pessoa famosa ou aspecto da história e desenvolvimento humano. Ele tornou o aprendizado e o entendimento genuinamente estimulantes, mas também foi intensamente sério sobre isso, pois para ele, assim como para os maiores pensadores, tudo — o mundo, a vida humana — dependia disso.

David e eu nos tornamos amigos no início dos anos 2000 como membros do New York City Direct Action Network (“Rede de Ação Direta de Nova York”), que reunia anarquistas e ativistas anarco tolerantes, inicialmente em torno dos protestos em massa que seguiram o fechamento da reunião de 1999 da Organização Mundial do Comércio em Seattle: o mesmo cenário que deu origem ao The Indypendent. Assim como eu, ele foi ativo politicamente e um anarquista durante anos, mas a sua estreia literária só veio em 2004 com a publicação de um “livrinho” (como ele o chamou), Fragments of an Anarchist Anthropology (“Fragmentos de uma Antropologia Anarquista” em tradução livre). Ainda é o meu favorito dos seus escritos, ele identificou uma tendência anarquista na antropologia que retoma alguns de seus primeiros praticantes e apresentou uma série de projetos para o movimento anarquista que são tão interessantes de se considerar hoje, incluindo:

• uma teoria do Estado,
• uma teoria das entidades políticas que não são os Estados,
• uma nova teoria do capitalismo,
• uma ecologia de organizações voluntárias,
• uma teoria da felicidade política,
• uma análise da privatização do desejo, e
• uma ou muitas teorias da alienação.

O livro foi uma espécie de manifesto, e o denominador comum em todos os itens acima era o mesmo que seria ao longo da vida de David como estudioso e ativista: nos fazer ver nosso mundo e nós mesmos de maneira diferente, como promissores, como ilimitado. Alguns desses projetos que ele mesmo abordou antes de sua morte, outros são um desafio e uma inspiração para o resto de nós do movimento.

Indiscutivelmente, o melhor momento de David como um ativista e autor foi a fortuita publicação de Debt: The First 5,000 Years (“Dívida: os primeiros 5.000 anos” em tradução livre) assim como a raiva pública sobre o desastre econômico de 2008 estava se aglutinando no Occupy Wall Street e na onda de democracia direta e autônoma em torno dele. Como um dos primeiros organizadores do OWS (Occupy Wall Street), David sempre será associado ao slogan, “Nós somos os 99%!” (embora ele não reivindicasse o crédito exclusivo por isso). Sua verdadeira conquista foi nos fazer ver a dívida pelo que ela realmente é: um sistema de dominação que privilegia aqueles que são considerados como tendo um “bom crédito” e prejudica aqueles que se considera que não possuem. Muitas pessoas tinham algum entendimento disse após a quebra de 2008, mas David — em seu livro e através do seu trabalho com a OWS — ajudou a cristalizar essa ideia e fazer disso um foco para a organização.

David sempre estava nos bombardeando com ideias e perspectivas novas, do Rolling Jubilee Fund que compra e apaga dívidas com a praga dos “bullshit jobs” (trabalhos absurdos), com as “alegrias secretas da burocracia” para seu maravilhoso ensaio sobre “The People as Nurse-maids to the King” (“O povo como babá do rei” em tradução livre) (leia e descubra). Muitos de nós nos lembramos de quando, a polícia, em Washington, cercou centenas de ativistas, incluindo David, e ele virou o jogo ao pedir dezenas de pizzas para serem entregues às massas ali presas. (Como Emma Goldman, David veio para a revolução para dançar.) Nunca houve um problema ou situação, na opinião de David, que não pudesse ser ajustado para significar algo diferente do que nos disseram que significava, e provavelmente seria algo libertador. Podia ser na forma de palavra escrita ou ação direta, mas de qualquer forma, sempre trazia a marca de sua mente única.

David faleceu aos 59 anos, a tragédia é que haveria muito mais. Nós ainda podemos esperar ansiosos pelo seu último livro, The Dawn of Everything: A New History of Humanity (“O Amanhecer de Tudo: Uma Nova História da Humanidade”), que foi escrito com David Wengrow e ataca muitas suposições falsas que reforçam a desigualdade como uma parte inevitável do desenvolvimento humano, que será lançado no próximo ano. Mas ele não estará por perto para dar a forma lúdica de pensamento que ele sempre trouxe para nossa teoria e prática enquanto ativistas. Pessoalmente, eu irei me lembrar de muitas vezes que trocamos ideias, frustrações e planos quando nós dois morávamos em Nova York — frequentemente na frente de um laptop no chão do apartamento dele no complexo Penn South patrocinado pelo sindicato (David era um nova iorquino orgulhoso, orgulhoso de suas raízes de classe trabalhadora) ou em um pequeno restaurante na West 32nd Street onde David poderia satisfazer seu desejo implacável por comida coreana. Lamento nunca mais fazer isso.

O que ainda temos são os livros – seus “filhos”, como ele os chamava — e a oportunidade que eles nos dão de estudar o seu método, absorver sua fé na auto-organização e na ajuda mútua, e tentar aplicar nós mesmos. E assim eu condenso isso:

Observação. Paradoxo. Análise. Comunicação. Ação. E ocasionalmente, tudo ao mesmo tempo.

Fonte: https://indypendent.org/2020/09/remembering-david-graeber-scholar-troublemaker-friend/?fbclid=IwAR06tzcZ0Aj4OVmLN-abWl1zaz3oBcF1HkDFXjRfjw_cZmW1RWCs9dQKvKc

Tradução > Brulego

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