terça-feira, 7 de outubro de 2008

África do Sul: a libertação traída

África do Sul: a libertação traída
por John Pilger [*]
A ruptura política na África do Sul está a ser apresentada ao mundo exterior como a tragédia pessoal e a humilhação de um homem, Thabo Mbeki . Isto lembra a beatificação de Nelson Mandela no momento da morte do apartheid. Não se trata de reduzir o poder das personalidades, mas a importância das mesmas muitas vezes serve desviar a atenção das forças históricas que elas servem e administram. Frantz Fanon tinha isto em mente quando, em Os condenados da Terra, descreveu a "missão histórica" de grande parte da classe dominante pós colonial como "a de intermediário [cuja] missão nada tem a ver com a transformação da nação: ela consiste, prosaicamente, de ser a linha de transmissão entre a nação e um capitalismo, desenfreado embora camuflado".

A queda de Mbeki e o colapso da Wall Street são acontecimentos concorrentes e relacionados, assim como previsíveis. Remontemos a 1985 quando o mercado de acções de Johannesburg entrou em crash, o regime do apartheid incumpriu sua dívida crescente e os chefes do capital sul-africano ganharam medo. Em Setembro daquele ano um grupo conduzido por Gavin Relly, presidente da Anglo American Corporation, encontrou-se com Oliver Tambo , o presidente do ANC, e outros responsáveis da resistência, na Zâmbia. A sua mensagem urgente era ser possível uma "transição" do apartheid para uma democracia liberal governada por negros apenas se a "ordem" e a "estabilidade" fossem garantidas. Tratava-se de eufemismos para um estado de "mercado livre" em que a justiça social não seria prioritária.

Reuniões secretas entre o ANC e membros eminentes da elite afrikaner seguiram-se numa mansão, Mells Park House, na Inglaterra. As motivações primárias eram daqueles que haviam apoiado e lucrado com o apartheid – tais como o gigante mineiro britânico Consolidated Goldfields, o qual pagou a conta dos vinhos finos e do malt whisky deglutido junto à lareira da Mells Park House. Seu objectivo era que o regime de Pretória – para dividir o ANC entre os "moderados", na maior parte exilados, com quem podiam "negociar" (Tambo, Mbeki e Mandela) e a maioria que consistia naqueles que resistiam nas cidades, conhecidos como os UDF.

O assunto era urgente. Quando F.W. De Klerk chegou ao poder em 1989, o capital estava numa tal hemorragia que as reservas externas do país mal cobririam cinco semanas de importações. Ficheiros desclassificados que vi em Washington deixavam pouca dúvida de que De Klerk estava em vias de salvar o capitalismo na África do Sul. Ele não poderia conseguir isto sem um ANC acomodatício.

Nelson Mandela criticou isto. Tendo apoiado a promessa do ANC de assumir o comando das minas e outras indústrias monopolistas – "uma mudança ou modificação das nossas opiniões a este respeito é inconcebível" – Mandela falou com uma voz diferente nas sua primeiras viagens triunfais ao exterior. "O ANC", disse ele em Nova York, "reintroduzirá o mercado na África do Sul". O acordo, com efeito, era que brancos retivessem o controle económico em troca do governo da maioria negra: a "coroa do poder político" para a "jóia da economia sul africana", como disse Ali Mazrui . Quando, em 1997, contei a Mbeki que um homem de negócios negro descrevera-se como "o fiambre num sanduíche branco", ele riu em concordância, chamando a isto o "compromisso histórico", que outros consideraram traição. Contudo, De Klerk é que foi mais directamente ao ponto. Eu lhe disse que ele e os seus amigos brancos haviam obtido o que queriam e que para a maioria a pobreza não havia mudado. "Não será isto a continuação do apartheid por outros meios?", perguntei. A sorrir através de uma nuvem de fumo do cigarro, ele respondeu: "Você deve entender, já alcançámos um vasto consenso sobre muitas coisas".

A queda de Thabo Mbeki não é senão a queda de um sistema económico fracassado que enriqueceu os poucos e rejeitou os pobres. Os "neoliberais" do ANC por vezes pareciam envergonhados de que a África do Sul, sob muitos aspectos, fosse um país do terceiro mundo. "Procuramos estabelecer", disse Trevor Manuel , "um ambiente no qual floresçam vencedores". Jactando-se de um défice tão baixo que havia caído ao nível de economias europeias, ele e seus amigos "moderados" distanciaram-se da economia pública que a maioria dos sul africanos queria e necessitava desesperadamente. Eles aspiraram o ar quente do discurso corporativo. Ouviram o Banco Mundial e o FMI, e logo estavam a ser convidados para a mesa principal do Fórum Económico de Davos e para reuniões do G-8, onde as "proezas macroeconómicas" eram louvadas como um modelo. Em 2001, George Soros colocou isto um tanto mais directamente. "A África do Sul", disse ele, "agora está nas mãos do capital internacional".

Serviços públicos caíram atrás das privatizações, e a baixa inflação predominou sobre os baixos salários e o alto desemprego, conhecido como "flexibilidade laboral". Segundo o ANC, a riqueza gerada por uma nova classe negra de negócios "gotejaria" para baixo. Aconteceu o oposto. Conhecidos sardonicamentes como os wabenzi porque os seus veículos preferidos são Mercedes Benz cor de prata, os capitalistas negros demonstraram que podiam ser tão brutais quanto os seus antigos mestres brancos nas relações laborais, no compadrio e na busca do lucro. Centenas de milhares de empregos foram perdidos em fusões e "reestruturações" e pessoas comuns repelidas para a "economia informal". Entre 1995 e 2000, a maioria dos sul africanos caiu ainda mais profundamente na pobreza. Quando o fosso entre brancos ricos e negros recém enriquecidos começou a fechar, o abismo entre a "classe média" negra e a maioria aprofundou-se mais do que nunca.

Em 1996, o gabinete do Programa de Reconstrução e Desenvolvimento (RDP) foi tranquilamente encerrado, marcando o fim dos "compromisso solene" do ANC e da "promessa inquebrantável" de colocar a maioria em primeiro lugar. Dois anos depois, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento descreveu o substitutivo, GEAR, basicamente como "não diferente" da estratégia económica do regime do apartheid na década de 1980.

Isto parecia surrealista. Seria a África do Sul um país de tecnocratas treinados em Harvard a abrir os espumantes diante das mais recentes classificações de crédito da Duff & Phelps em Nova York? Ou era um país de homens, mulheres e crianças profundamente empobrecidos sem água limpa e saneamento básico, cujos recursos infinitos estavam a ser reprimidos e desperdiçados, mais uma vez? As perguntas constituíam um embaraço quando o governo do NAC endossou o acordo do regime do apartheid para aderir ao General Agreement on Tariffs and Trade (GATT), o qual efectivamente submeteu a sua independência económica, reembolsou os US$25 mil milhões de dívida externa herdada da era do apartheid. Incrivelmente, Manuel permitiu mesmo que as maiores companhias da África do Sul transferissem suas finanças para fora e se estabelecessem em Londres.

Thabo Mbeki certamente acelerou a sua morte política com suas estranhas censuras sobre o HIV/Sida, sua famosa indiferença e isolamento e os negócios corruptos que pareciam nunca dele se afastar. Foi a premeditada catástrofe económica e social do ANC que ele viu incorrectamente. Para mais provas, vejam-se os Estados Unidos de hoje e os fumos ruinosos do modelo "neoliberal" tão acarinhado pelos líderes do ANC. E cuidado com aqueles sucessores de Mbeki agora a afirmar que, ao contrário dele, eles têm os interesses do povo no coração enquanto continuam as mesmas políticas desagregadoras. A África do Sul merece melhor.

02/Outubro/2008
Primeira publicação no Mail & Guardian, de Johannesburg. O original encontra-se em http://www.johnpilger.com/page.asp?partid=505 Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
06/Out/08

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