Em época de eleição tornam-se frequentes mensagens e argumentos que enfatizam a culpa dos problemas do país nos cidadãos, que não sabem eleger. Gostaria de fazer algumas objeções a este tipo de retórica. Por Luiz Antonio Guerra
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É preciso ser franco: um voto, um único voto, não muda nada, principalmente se tivermos em mente que estamos tratando da democracia representativa tal como é a brasileira, com todas as suas falhas e contando com 130 milhões de eleitores [1]. O poder de mudança do voto a nível macro é irrisório, mesmo se um indivíduo convencer todo o seu círculo social a votar em um único candidato. É praticamente nulo o poder individual de influenciar através do voto em alguma decisão do governo, de determinar alguma política pública ou mesmo de impedir um governante corrupto de exercer seu cargo. É muito maior tal capacidade ao exercer um cargo público, participar de alguma organização social, recorrer a meios como lobby ou marketing.
O que quero deixar claro é a armadilha que se pode cair ao dar tanta ênfase ao método eleitoral, ao delegar tamanha importância a um dia apenas de outubro a cada quatro anos – e descansar os outros 1460 dias com a sensação de missão cumprida. O voto, entretanto, tem uma função fundamental: o poder simbólico de legitimar esta democracia representativa. Cada indivíduo que confirma seu voto na urna está confirmando seu credo no sistema político brasileiro, ainda que de maneira crítica e não conivente com as falhas sistêmicas e com os casos de corrupção. Mais do que eleger um candidato, cada cidadão que vota exprime sua vontade de que seja governado por tal candidato e que aceitará o vencedor de acordo com as regras do jogo, seja ele quem for.
Dar tanta importância aos votos do povo brasileiro, tratando esse como despreparado para o exercício da democracia, pode – repito – esconder uma grande armadilha. Afinal, quem é mais despreparado para o exercício democrático: o povo ou as elites políticas? Quem são os responsáveis pelas políticas ineficientes, mau gasto do dinheiro público, prostituição partidária, tráfico de influência, nepotismo, casos de corrupção sem fim? Quem é que a cada eleição investe pesado em marketing político?
Considerando o baixo poder de influência individual através do voto e somando ainda a conivência do judiciário, alguns setores da população recorrem a meios não formais de participação política: manifestações de rua, ocupação de terras e órgãos públicos, intervenções artísticas, boicote, greves e outros meios de ação direta. Entretanto, os mesmos críticos que acusam o povo de não estar preparado para exercer a democracia condenam tais tipos de participação política. Esses casos de manifestações radicais são sistematicamente estigmatizados pela mídia dominante e tratados de forma repressora pelo Estado. Ainda assim, podemos perceber o quão essenciais foram essas formas de participação política para as conquistas de assentamentos do MST ou para a retirada de políticos envolvidos em esquemas de corrupção, como fora recentemente o caso de Arruda e Paulo Otávio no Distrito Federal.
Um dos mais reconhecidos cientistas políticos do país, José Murilo de Carvalho [2], ao se deparar com tal problemática, tendo como principal preocupação a formação da cidadania no Brasil, questionava se culpar o povo eleitor e condenar métodos mais radicais de participação política não é consequência antes do tipo de povo ou de cidadão que se busca. Como a democracia é um sistema político importado de outros países economicamente mais desenvolvidos, idealiza-se tal forma de governo e cidadãos mais cultos e submissos às leis. Outra vez insisto que o comportamento do cidadão é um reflexo da própria democracia formal que temos. Em outras palavras, como respeitar leis com as quais não se concorda, frutos de uma política podre num país tão desigual?
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Ainda que não dê tamanha importância ao mecanismo eleitoral, não é meu intuito isentar a população de culpa. Tenho a plena convicção de que não há como construir uma sociedade sólida e saudável com níveis de educação tão baixos. Entretanto, outra vez voltamos o alvo às elites políticas, ou não é competência do Estado garantir educação de qualidade para todos os brasileiros? A quem interessa um povo tão desinteressado? Mais que um analfabetismo eleitoral, o problema político está na escassa participação de toda a população (sem excluir nenhuma classe social) no período extra-eleitoral. É preciso entender os processo sociais, reconhecer que a política é a administração da vida coletiva e, portanto, da própria vida e da vida dos outros. Entender que a política vai muito mais além do voto é assumir, verdadeiramente, o título de cidadão – e não apenas o título de eleitor.
Notas:
[1] http://tse.gov.br - Estatísticas
[2] CARVALHO, J. M. Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República que não foi. Companhia das Letras, São Paulo, 1989
Fonte:http://passapalavra.info/
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