A análise do passado e do presente é imprescindível, e tem como objetivo não apenas saber do futuro, mas sabê-lo para, conhecendo suas tendências, agir imediatamente para que o indesejável não venha. Por Manolo
Com muita frequência, entre um período histórico e outro dez anos podem decerto ser tempo suficiente para revelar as contradições de um século inteiro. Portanto, às vezes temos que compreender que nossos julgamentos, nossa interpretação e mesmo nossas esperanças podem ter sido completamente equivocadas – equivocadas, e só.
Marlon Brando, na pele do economic hitman inglês Willam Walker, no filme Queimada!, de Gillo Pontecorvo (1969)
Com o recente movimento dos acampamentos, muitos da assim chamada “geração Seattle” voltaram não apenas a manifestar-se publicamente em defesa das mobilizações, mas a sentir-se novamente em casa nas ruas junto com outros mais novos que constroem espaços de militância nas praças e espaços públicos de todo o mundo.
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“Mas”, perguntaria um leitor intrigado, “por que ser tão rancoroso lembrando dessas coisas logo no começo de um artigo sobre um movimento tão jovem, alegre e vibrante quanto o dos acampamentos e ocupações de praças e espaços públicos?”
Até o momento, os acampamentos são, para uma geração que começa agora a envolver-se em atividades coletivas, de um lado, e na luta anticapitalista, de outro, algo que para nós da “geração Seattle” representaram tanto o levante zapatista em 1994 quanto a manifestação contra a Rodada do Milênio da OMC em 1999: um ponto de viragem, um marco histórico, um chamado à ação – chamem-no como quiserem, mas para as jovens mentes ativistas de então aquilo nos marcou como ferro em brasa. Alguns tomam esta semelhança como conclusão a ser defendida como posição política séria, quando não é nada além do ponto de partida para a reflexão e intervenção sobre o presente. Pululam artigos sobre a maravilha dos debates, sobre o inusitado das ocupações de espaços públicos, sobre o charme de um ou outro participante, sobre a retomada da “cidadania” por parte dos que lá estão, sobre a existencialmente refrescante experiência da construção destes espaços políticos…
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A reflexão sobre aqueles dias tumultuosos de dez anos atrás, os rumos posteriores daqueles companheiros (e ex-companheiros) e a vivência destes dez anos de aparente marasmo impõem mudar o eixo dos debates sobre os acampamentos. (Digo “aparente” marasmo porque as lutas de lá para cá fragmentaram-se tanto que sequer se podia imaginar as ligações, reais ou virtuais, que seguiram existindo sob a aparência da calmaria e impulsionaram tantas lutas locais.) As razões dos manifestantes ou o elogio de sua iniciativa, aqui, saem de cena; entram algumas perguntas sobre o fazer-se das ocupações, tentando encontrar aí diferenças e pontos comuns com aquilo que vivemos há tanto e tão pouco tempo.
Os acampamentos pretendem-se permanentes, transitórios, ou não pautam esta questão? Para a “geração Seattle” a mesma questão talvez tenha sido pautada de outra maneira. Dada a forma de mobilização eminentemente transitória que escolheu (manifestações e assembleias paralelas, no tempo e às vezes no espaço, as cúpulas gestoriais mundiais), o que precisava ser permanente não era a presença nos territórios de luta, mas a mobilização em rede, para que pudéssemos deliberar, mesmo precariamente, sobre os próximos passos. Os debates sobre as formas de protesto que cada grupo pretendia empregar naqueles dias – marchas, ações contra alvos específicos (bancos, lojas, lanchonetes etc.) – tentavam garantir a segurança de cada grupo segundo a tática escolhida, mas, finalizadas as grandes manifestações, cada qual retornava a seu espaço de ação (coletivo, movimento social, rede, sindicato, partido, entidade estudantil, grupo de afinidade etc.) para retomar as atividades, embora com novo impulso e conhecendo incontáveis outros com quem buscar construir relações de solidariedade militante. Nos acampamentos de hoje, e até o momento, a permanência em determinado espaço físico, mesmo com curtos hiatos, é a forma adotada pelas mobilizações, o que impõe debater questões como a permanência e/ou revezamento de pessoas, alimentação, limpeza, resistência contra investidas policiais, proteção contra clima adverso etc.. Não estaria também gravitando sobre a cabeça dos acampantes, mesmo à sua revelia, a dificílima decisão sobre o tempo do protesto, e consequentemente de sua sustentação material e política? Ou o que se pretende, de fato, é fazer da praça pública uma ágora grega rediviva, conectada virtualmente com outras tantas enquanto for possível?
Qual a relação dos acampamentos com aqueles que já ocupavam o território onde se constroem? Para a “geração Seattle”, a questão era, de certa forma, simples. Salvo se já se tratasse de ativistas residentes na própria cidade onde se dariam os protestos – e foram centenas pelo mundo inteiro – ao definirmos uma zona de protestos e ao ocupá-la com ações diversas, das mais “militantes” às mais “bem-humoradas”, sabíamos que as relações com as pessoas que lá estavam seriam transitórias, existentes apenas enquanto se desse a reunião de cúpula que pretendíamos inviabilizar. Em alguns casos, as manifestações ocorriam em trajetos já tradicionalmente marcados por ações políticas diversas, o que terminava diluindo a potência do protesto; noutros lugares, pouco experimentados, vivemos situações inusitadas. No caso dos acampamentos, entretanto, é impossível pensar na construção de um espaço político sem perguntar-se algo neste nível e lançar esta pergunta tanto a fatos aparentemente incontroversos – como as razões para a escolha do local – quanto ao cotidiano do acampamento. Lá já estavam não apenas os vizinhos formais – lojas, restaurantes, lanchonetes, prédios comerciais ou residenciais, oficinas, fotocopiadoras, igrejas, museus, terminais ou pontos de ônibus etc. – mas sobretudo aqueles para quem a rua é espaço de sobrevivência e existência: catadores de material reciclável, artistas de rua, ambulantes, camelôs e especialmente aqueles que sequer existem oficialmente, a julgar pela forma como são tratados pelos Censos: os moradores de rua. Pelo que tenho visto em relatos, há interessantes relações estabelecendo-se, mas irão elas além do compartilhar um prato de comida, do convite à participação ou da solidariedade a casos emergenciais? De que forma, por exemplo, as defesas jurídicas à permanência nos espaços públicos pode estender-se aos moradores de rua, ou aos camelôs que em todas as cidades são perseguidos como a própria peste, ou aos tantos outros que são obrigados a submeter-se a toques de recolher oficiais ou oficiosos mundo afora?
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Como os acampados têm lidado com as diversas tentativas de cooptação de sua luta? A “geração Seattle” tentou conscientemente abandonar qualquer tutela sobre movimentos sociais e qualquer iniciativa que lhes impusesse uma pauta externa, mas foi rasgada internamente por questões semelhantes àquelas que tanto criticou – em especial se considerarmos sua forma preferida de organização, os grupos de afinidade, calcados explicitamente na extrema proximidade política e pessoal entre seus integrantes. Eles serviram muito bem como defesa contra o aparelhamento externo típico das organizações calcadas sobre o leninismo, mas ao mesmo tempo instauraram novas formas de conflito entre si próprios e outros grupos de afinidade presentes num espaço de decisão. Da mesma forma, grupos diferentes podiam articular-se previamente quanto a determinada pauta e comparecer às assembleias para agir como bloco; em se tratando de grupos diferentes (embora unidos por um propósito oculto comum), seria impossível a um participante desavisado percebê-los como tal. Graças a este artifício, o que antes era uma deliberação prévia por parte de certos grupos para orientar a assembleia em tal ou qual rumo poderia passar tranquilamente como uma deliberação democrática, surgida no calor da hora e tecida em longos debates tendentes ao consenso. Nisto, os grupos de afinidade diferiram pouco do mal senil do leninismo de que tanto quiseram se livrar. Hoje, já se tentou de tudo para dobrar os acampamentos a vontades externas, desde as recorrentes discussões sobre bandeiras de partidos até o mais simples domínio pessoal, como se dá em cidades onde os acampantes são poucos, mas os riscos em espaços “autônomos” seguem os mesmos: tem sido possível aos acampantes identificar os grupos e os blocos que se formam? Ou seria esta desconfiança causa de verdadeira paranoia num lugar onde tão poucos se conhecem previamente e há tantos desejos em jogo? E quanto às tentativas de cooptação vindas “de fora”, como os acampantes têm lidado com elas? Como lidar com as tentativas de cooptação vindas da imprensa que tenta impor, de fora, uma pauta aos acampantes, sob pena de anátema? Como lidar com as ofertas aparentemente “desinteressadas” de recursos e infraestrutura vindas do terceiro setor, cuja rejeição decerto fomentará acusações de “sectarismo” e “inabilidade de diálogo”? Como lidar com grupos empresariais ligados à economia da criatividade que tentam capitalizar para si a mobilização tão dificilmente construída?
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Há outras perguntas, muitas, tantas quantos são os possíveis problemas. Algumas sequer são esboçadas nos acampamentos, outras são suas angústias mais dilacerantes. Não as apresento para fazer qualquer tipo de interrogatório ou acusação; são tentativas de ver o que temos de semelhante, nós da “geração Seattle” e estes que ocupam as ruas, para assim nos apoiarmos melhor, onde quer que estejamos. Digo isto por princípio político. Para quem se lança à luta anticapitalista, não importa com que corrente ideológica simpatize ou a qual tradição de lutas se integre; a análise do passado e do presente é imprescindível, e tem como objetivo não apenas saber do futuro, mas sabê-lo para, conhecendo suas tendências, agir imediatamente para que o indesejável não venha. Estas tentativas de antecipar o indesejável, para serem eficazes, precisam evitar as generalidades e lançar-se, sem temores ou expectativas, nos problemas e aparentes questiúnculas que atravessaram as lutas passadas, formadoras do presente, pois estes problemas e questões “menores”, tal como o diabo, moram nos detalhes. Mesmo estas precauções podem mostrar-se infelizmente inúteis, e o esforço de uma geração inteira de militantes pode terminar mais uma vez indo pelo ralo das derrotas. Por isto mesmo, analisá-las é tão importante quanto divulgar as vitórias.
Fonte: http://passapalavra.info/
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