Dizem que não vão deixá-la falar: perderam o medo. Nós, também. Agora que a luta de raças, de classes, de sexualidades e gêneros dissidentes está ficando boa — porque mais clara — vamos desistir? Estamos apenas começando
Minhas/meus
amigas/os, estamos tristes. Acordar e levantar tem se tornado um ato heroico.
Sabemos que nas horas que virão seremos tragados por notícias que nos dirão:
desista, vá embora, este país acabou. Não falo em semana, meses, anos.
Reduzo o tempo a dias porque tem sido assim. Um dia a exposição
Queermuseu é proibida, no outro uma peça que
coloca sabiamente Jesus reencarnado como uma travesti é censurada,
no outro um deputado canta que “tudo está no seu lugar” para festejar a
liberação do seu presidente mafioso de uma processo de impeachment e, no mesmo
dia, você, meu/minha amigo/a, talvez tenha tido sua conta na rede social
atacada por alguém que te deseja a morte.
Nós
sabemos, eles/elas perderam o medo. E nós também. A luta de raças, de classe,
de sexualidades e gêneros dissidentes virou manchete. Acabou aquela história de
democracia racial, homofobia cordial, relações sociais pautadas na imagem de
que aqui vivemos em paz. Acabou. Não tem mais como falar em uma Nova República.
A farsa do contrato social, sexual, racial e de gênero está rasgada!
Eles/elas
finalmente estão tendo que fazer política para disputar suas concepções de
gênero e sexualidade. Querem deixar “tudo no seu lugar”? Querem. Mas agora
estão tendo que argumentar que as mulheres nascem para morrer e os homens para
matar. Foi assim e sempre será. A família deve ser preservada!
Eles/elas
nunca tiveram que fazer nenhuma disputa. O mundo era deles/as. Eles/elas tinham
a verdade. E agora ficam em pânico com a vida de uma filósofa estadunidense
para o Brasil: Judith Butler.
Vocês entendem o desespero deles/delas? O problema não é a filósofa, somos nós:
feministas, trasviad@s, bichas, travestis, transexuais. Leiam o que os/as
neoTFPistas [TFP – Tradição, Família e Propriedade] escrevem: inventam
citações. Cometem todos os tipos de desonestidade intelectual. Elegeram como
aliados a mentira e a produção do medo.
O
debate agora não está mais exclusivamente na espera do Estado. Tornou-se
rizomático. Quem são os responsáveis por isso? Nós, em nossas salas de aula,
nos movimentos sociais, nas filas dos bancos, nas conversas no cotidiano, nas
artes, em nossas pesquisas, em nossos eventos acadêmicos/ativistas. A disputa
perdeu um centro. Jogamos pedras no rio e as ondas foram produzidas. Não, não
sou ingênua. Sabemos que o Estado tem poder de veto de uma exposição, de uma
peça de teatro. Sei também que estamos vivos/as e a censura eclodiu uma onda de
unidade, de luta singular entre nós. Não podemos falar de identidade de gênero
em sala de aula? Venham nos prender e terão que levar parte considerável de
nossas turmas.
Nosso
susto talvez seja resultado de algum tipo de credo na farsa da democracia
representativa. Como é possível que se acredite que em uma nação construída
tendo como fundamento a violência, pode se dar ao luxo de resolver seus dilemas
pela via civilizatória do voto? Isso é pior que história da carochinha! Foram
quase 400 anos de escravidão. Nada está resolvido. A ferida está aberta. Somos
filhos e filhas da violência.
Nós,
em nossas lutas minúsculas, quase invisíveis, não imaginávamos que estamos
enfiando com tanta profundidade o dedo na ferida. Identidade de gênero não tem
nada a ver com a biologia. Identidade (de qualquer ordem) vincula-se às
relações de poder. Não nascemos homens. Não nascemos mulheres.
Vão
continuar mentindo, afirmando que as meninas são naturalmente passivas,
emotivas, portanto, corpos matáveis e que os homens são naturalmente violentos.
Nada, portanto, se pode fazer para mudar esta natureza. Nada? Na verdade, se
pode fazer algo brilhante: rigor com a punição. Mais direito penal!
Conseguimos
entrar no coração do biopoder. O censo terá que ser repensado. A população não
se reduz mais a mulheres-vagina e homens-pênis. A “espécie” explodiu. Onde
estão os não-binários, ou seja, pessoas que não se identificam com a norma da
diferença sexual, não são homens, não são mulheres? Quantos são? Estamos
fazendo a disputa na esfera das mentalidades, na dimensão da cultura, nos
termos de Gramsci.
Ânimo!
Politizamos
a vida biológica. Esta obra nos pertence. Feministas, transfeministas, gays,
bichas, lésbicas, com todas as nossas diferenças (felizmente) somos um exército
à la Brancaleone, sem chefe, sem uma agenda centralizada, mas movidos/as por um
desejo: tornar a vida vivível com justiça social para todos, para lembrar aqui
um pensamento de Butler.
Nunca
tivemos paz. Paz? Pura retórica do poder para fazer sua guerra continuada
contra os/as considerados/as não-humanos.
Todos
os dias entramos em nossas salas de aula e vemos jovens gays, lésbicas, trans,
negros, negras. Eles/elas estão no Olimpo da elite deste país: a universidade
pública. Falar em Centro Acadêmico (CA), Diretório Central dos Estudantes (DCE)
e outras estruturas tradicionais do movimento estudantil é um escárnio com a
proliferação de coletivos que existem nas universidades. O que esta gente da
Escola Sem Partido vai fazer com estas/es jovens que, em pouco tempo, estarão
em nosso, no seu lugar?
A
guerra agora está declarada. Ou será que, em algum momento, se acreditou que a
guerra não existia? Faça esta pergunta para uma mulher negra da periferia e
provavelmente terá como resposta que a paz é um luxo.
Eles dizem
que não vão deixar Judith Butler falar. O que faremos? Vamos, mais
uma vez, potencializar este momento. Garantir a fala da Butler não é um culto
ao personalismo, ou um tipo de rendição ao pensamento de uma filósofa gringa.
Ela virá e vai embora. Serão alguns dias em solo brasileiro. Os que a atacam
não têm como foco ela, mas nós. Da mesma forma como temos atuado nos últimos
anos, independente do partido que estivesse no poder, das leis, vamos disputar
cada centímetro da rua e se tiver que arrancar paralelepípedos o faremos.
Um
psicólogo me disse: “Se aquele juiz soubesse o bem que nos fez ao assinar
aquela liminar jamais a teria assinado. Os profissionais da
psicologia agora precisam debater e se posicionar. Nunca tivemos um momento tão
rico em nossa história de debate sobre as homossexualidades e direitos humanos
que atualmente”.
Queremos
que os juízes saiam enlouquecidos proferindo liminares contra os direitos
humanos das pessoas LGBTTIQ+?
Não. Apenas gostaríamos de ressaltar que a liminar é mais um capítulo do que
estamos chamando de luta pela visibilização das existências periféricas.
Minhas/meus
amigas/os, não estamos fazendo uma revolução, nos moldes marxistas. Afinal,
quantas revoluções não foram feitas e os/as primeiros/as a irem para os campos
de trabalho forçado foram as bichas e os sapatões, terapêutica para curá-los/as
dos vícios pequenos burgueses. Não vamos mais esperar a grande revolução.
Estamos disputando tudo. O banheiro, o aborto, o direito ao corpo, o short, não
usar sutiã, o nome social para pessoas trans, a cirurgia de transgenitalização.
O corpo é nosso campo de batalha e entendemos que há um ligação indissociável
entre as marcas do corpo e o mercado. Onde estão as mulheres trans no mercado
de trabalho? Não estamos disputando um projeto estratégico para o futuro.
Queremos o presente e disputamos o passado, os sentidos conferidos pela
história oficial aos sentidos para as normalidade e as anormalidade.
Já
te mandaram embora do país? Você já pensou em arrumar as malas? E para onde
você vai? Qual é o paraíso da justiça social e equidade de gênero e sexualidade
que te acolheria? Cada um terá suas escolhas e poderá eleger um país com um
referente. Nós, sem nenhum tipo de nacionalismo, esta maldição do mundo
moderno, nós, sem orgulho de sermos brasileira/o, afirmamos: vamos continuar
aqui. Avançamos pouco, mas avançamos. Obrigamos os teólogos de gênero a saírem
do armário e vir ao mundo público disputar posições sobre masculinidades e
feminilidades e ao fazer este gesto político, nos dão razão: gênero não é um
assunto bíblico ou biológico, diz respeito a projetos políticos.
Agora
que a luta está ficando boa, porque está mais clara, vamos desistir? Estamos
apenas começando.
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