Será que só podemos falar das manifestações quando estas são sensatas? Não seria tão imperioso relatar estas coisas, assim como denunciar a burocratização interna dos movimentos ou a assimilação das lutas pelo capitalismo? Por Passa Palavra
Na sexta-feira, 30 de setembro, fui a uma manifestação contra a privatização do Elevador Lacerda, planos inclinados e estações de ônibus em frente à Prefeitura de Salvador.
Pelo que me disseram, mais de 3 mil pessoas colocaram “curtir” neste chamado de mobilização autônoma pelo Facebook, no qual não haveria bandeiras de partidos ou sindicatos.
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Sem panfletos, competiam com o artista palhaço Gugu-Dadá, que estava cantando para o público de 6 crianças (que já haviam largado os apitos) a música: “tá morto, morto, morto… morreeeeuu”.
Bom, agora iria começar, pensei… os manifestantes já somavam umas quatro dezenas…
Então, após uma breve conversa com o palhaço Gugu-Dada, este “cedeu” um de seus instrumentos de trabalho e, por R$ 40,00, os manifestantes que não tinham panfletos já possuíam um megafone.
Neste, as primeiras frases remetiam às revoltas no Egito e na Líbia, e como precisamos fazer o mesmo em Salvador, mobilizar e conscientizar o povo.
As falas alternaram entre a necessidade da cidade mais negra fora de África ter uma prefeita mulher e negra, passando por evocações do poder popular e como a soberania emana do povo, ao fato do prefeito estar querendo limitar o direito de propriedade ao propor uma lei na qual os donos de som automotivo não original teriam que pagar uma taxa à prefeitura pela poluição sonora.
O primeiro (e único) momento de (pré) tensão ocorreu quando os quarenta militantes resolveram sentar-se na escadaria que dá acesso à Prefeitura. Neste momento um contingente da Polícia Militar aproximou-se para aparentemente impedir tal ação. Um militante sugeriu que o cordão fosse feito acima da escadaria, e o Sargento Aurélio que “só queria que fosse aqui ó” (nos primeiros degraus) acatou. Vitória dos militantes!
O megafone continuava a vociferar: “Você que trabalha, como todo mundo aqui, vem participar do protesto” (neste momento, olhei para trás e havia na praça uma pessoa que catava latinha olhando impávida e, ao fundo, o palhaço Gugu-Dadá).
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Às 18h30 fui embora…
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Fui embora, mas os fatos e significados da manifestação não saíram tão facilmente de mim.
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Uma amiga perguntava-se em voz alta:
“Será uma tendência dos novos militantes acharem ser realmente possível creditar o “curtir” do Facebook a confirmação de presença nos atos? Será possível transpor para o mundo real, sobretudo quando falamos em organicidade de ação política, a mesma instantaneidade do mundo virtual?
Também aqui em Santos-SP existe a dificuldade em realizar ações; os novos militantes cibernéticos, os jovens militantes universitários e os libertários de plantão apresentam demasiada desconfiança em relação a processos organizativos mais racionais e objetivos, sob o pretexto de serem autônomos (é fácil ser autônomo num simples clicar de tecla…).
Parece que dizer-se autônomo significa ser contra organização, planejamento de ações e ‘ser contra partidos e bandeiras’. Também em Santos muitos nutrem certo fascínio pelas redes sociais; todavia, as ações foram levadas adiante efetivamente por uma meia dúzia de pessoas, menos por aqueles que disseram ‘curtir’ no Facebook.”
Não se trata, aqui, de voltar ao debate sobre o papel do partido em Lênin, a necessidade de uma organização centralizada democraticamente que faça o papel de reunir, e guiar, as revoltas, tampouco discutir qual o significado de autonomia e libertário, ou o que vem a ser espontaneidade para Rosa.
Mas quando se multiplicam os eventos militantes no Facebook e Twitter e não há a devida correspondência na vida real, não estaria ocorrendo um esvaziamento das causas e uma reificação das ferramentas empregues?
As analogias apressadas e ingênuas das rebeliões no norte da África e no Oriente Médio calam-se completamente sobre a necessidade de organização real e o grau de envolvimento dos militantes com a causa da luta.
Em artigo sobre o esvaziamento das mobilizações convocadas via redes sociais virtuais em Camarões, Dibussi Tande nos mostrava como havia ali a confusão fatal entre essas ferramentas (como Facebook e Twitter) e a sua estratégia ou o seu objetivo (a reforma política e a mudança de instituições no país).
Malcom Gladwel, por sua vez, procurou demonstrar que, para certo grau de ativismo que envolva riscos e o sair da zona de conforto de frente à tela do computador há a necessidade de vínculos sociais fortes e de organização e não os frágeis laços que ligam os militantes virtuais. Essas ferramentas em rede teriam grande potencial para formas de ativismo de baixo risco, como fazer barulho e protestar por algo que torne a ordem social existente mais eficaz; mas, na perspectiva de mudanças sistêmicas, demonstrariam grandes dificuldades, pois faltaria aí a organização prévia, o trabalho de base, mapeamentos, planos, treinamentos, reuniões políticas, núcleo de ativistas, divisão de tarefas, pensamento estratégico. As idealizações do ativismo on line tendem a não levar em conta estas expressões materiais e concretas do ativismo off line.
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Recentemente tive a oportunidade de lecionar uma disciplina sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade para alunos da Engenharia da Computação. No trabalho final pedido, e que deveria versar livremente sobre os impactos, latentes e manifestos, das novas tecnologias nas sociedades contemporâneas, foi sintomático o fato de quase metade dos alunos escreverem sobre os potenciais revolucionários e libertadores das novas tecnologias (citando a Líbia, a Tunísia e o Egito) – e poucos falarem sobre as formas de vigilância, manipulação e contra-insurgência propiciadas pelos meios virtuais – e a outra quase metade dissertar sobre a solidão sentida no cotidiano, a despeito de terem centenas de amigos em redes sociais e de jogos.
Como observou o jornalista bielorrusso Evgeny Morozov: “Associar as tecnologias da comunicação em rede a uma nova oportunidade para os oprimidos de todo o mundo é um argumento infantil e incorreto, pois não leva em consideração que os próprios dirigentes que são os alvos destas revoltas usam a Internet para fins políticos muitíssimo sofisticados. Usam-na precisamente para controlar, perseguir, prender e reprimir. Pode acontecer que durante um infinitésimo momento o povo tome o poder no Twitter. Mas é um momento efémero. Participar nas redes sociais não é resistir, não é organizar, não é libertar-se; é o contrário, é entregar-se ao sistema de maneira orwelliana. A Rede é um panóptico digital. E nós não somos os vigilantes, somos os vigiados”.
Sem desconsiderar as potencialidades concretas de comunicação em rede, rápida e em massa propiciadas pelas ferramentas sociais na internet, da mesma forma em que se confundem amigos reais e virtuais, não se estaria confundindo militância virtual com a real?
Notas
[1] Você não pode ser neutro num trem em movimento - Uma história pessoal dos nossos tempos. Howard Zinn. Editora L-Dopa, Curitiba.
[2] A montanha é algo mais do que uma imensa estepe verde. Omar Cabezas. Editora Expressão Popular, São Paulo.
Fonte: http://passapalavra.info/
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