Ainda que possamos ver em abstracto uma aspiração democrática, essa intenção está longe de se traduzir numa vontade política determinada e precisa. Por Miguel Serras Pereira
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Quanto ao primeiro ponto, remeto, embora não subscreva tudo o que Zygmunt Bauman aí afirma, para as reflexões que aquele propõe numa entrevista publicada por El País, e que assinalam com pertinência os limites que, ainda com excepções e linhas de fuga abrindo novas perspectivas, têm até ao momento circunscrito o alcance das acampadas. Com efeito, na peça que transcreve as posições de Bauman, podemos ler:
«Bauman, é evidente, classifica este movimento como “emotivo” e, na sua opinião, “se a emoção serve para destruir, ela é especialmente incapaz de construir o que quer que seja. Pessoas de quaisquer classes e condições reunem-se nas praças e gritam os mesmos slogans. Estão todos de acordo quanto ao que rejeitam, mas teríamos cem respostas diferentes se lhes perguntássemos o que pretendem.
A emoção é (e não podia deixar de ser) “líquida”. Ferve facilmente, mas também arrefece passado pouco tempo. “A emoção é instável e inadequada para dar forma a algo de coerente e duradouro”. De facto, a modernidade líquida na qual se inserem os indignados tem como característica a temporalidade, “as manifestações são episódicas e propensas à hibernação”. […]
O movimento vai crescendo, mas “fá-lo mediante a emoção, falta-lhe pensamento. Só com emoções e sem pensamento não se chega a lugar nenhum”. A agitação resultante da emoção colectiva reproduz o espectáculo de um carnaval que termina por si mesmo, sem consequências. “Durante o carnaval tudo é permitido, mas, acabado o carnaval, volta o sistema de normas anterior”».(Entrevista de Vicente Verdú, “El 15-M es emocional, le falta pensamiento”, El País, 17.10.2011)
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Com efeito, ainda que possamos ver em abstracto uma aspiração democrática constituinte ou instituinte naquilo que as referidas palavras de ordem, entre outras, exprimem, essa intenção está longe de se traduzir numa vontade política determinada e precisa, configurando propostas consistentes de vias e formas alternativas à cena política estabelecida e às relações de poder hierárquicas vigentes. E este é um problema — ou, por excelência, o problema fundamental — que a reflexão mais lúcida não pode por si só resolver.
Podemos e devemos dizer que, se “a democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo”, implicando que seja o conjunto dos cidadãos comuns, ou os tais (um pouco menos de) 99%, a dotar-se de meios e formas de organização que permitam a cada um deles participar de pleno direito nas decisões que governam a sua existência. Não se trata apenas da igualdade perante a lei, mas da igualdade no deliberar e decidir das leis ou na tomada de muitas outras disposições que, não sendo leis, vinculam colectivamente a existência de cada ser humano comum. É evidente que a exigência de uma igualdade semelhante não é satisfeita pela chamadas “democracias representativas” que nos governam e que assentam justamente na passividade programada e regular da maioria dos cidadãos e na divisão hierárquica do trabalho político decorrente do estabelecimento de uma distinção permanente e estrutural entre governantes e governados. É evidente que a mesma exigência de igualdade é excluída dessa sede de um poder governamental discricionário que é a organização económica do capitalismo actual. Com efeito, na enorme medida em que a economia é uma instância determinante ou um campo de relações de poder decisivo no governo das nossas vidas de homens e mulheres comuns, não há democratização possível, no sentido que tenho vindo a indicar, do exercício do poder, que não tenha desde o início de começar a transformar essa mesma economia. Esta democratização da economia tem vários níveis, sendo importante insistir nesse aspecto: implica, nomeadamente, a democratização dos rendimentos e do mercado; a democratização das relações de poder no interior das empresas ou organizações; a democratização da decisão dos objectivos gerais e planeamento da actividade económica, etc. Sem igualização das condições de participação na direcção da economia, tanto ao nível macro da economia política, como ao nível de cada empresa ou unidade produtiva, e sem igualização dos rendimentos e democratização efectiva do mercado, não é possível conceber a existência de cidadãos que se governem a si próprios, ou que só reconheçam a legitimidade de os governar a um poder político cuja organização os institua também como governantes.
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Quererá isto dizer que a luta pela democratização aqui em causa pressuponha a condenação ou, pelo menos, a inutilidade de qualquer forma de partido ou associação política militante, como alguns parecem julgar e outros temem mais do que o diabo, diz-se, a cruz? É com esta questão que gostaria de terminar por agora esta proposta de debate.
Quanto aos partidos, o que aqui fica dito tende a exigir não a proibição deles ou de outras formas de expressão organizadas por grupos de cidadãos interessados em dar a conhecer as suas opiniões e propostas aos demais, mas, sem dúvida, a transformação radical das formas de organização existentes ou a criação de novas formas de associação política que nos permitam operar a substituição do voto em partidos comandados por políticos profissionais pela eleição de delegados, com partido ou sem ele, que mandatemos - possamos regularmente revogar segundo procedimentos simples e claramente definidos - e sejam responsáveis perante os eleitores e não partidos representativos no exercício das tarefas comuns cujo desempenho o exija. Ou seja, a substituição do voto que esgota e exclui até à convocação de novas eleições gerais a participação governante pelo voto que reforça e traduz essa participação permanente, que é uma das condições da cidadania.
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Estas fotografias representam as manifestações de 15 de Outubro em Lisboa e no Porto. A primeira a contar de cima deve-se a Debora Baldelli e a última a Horta do Rosário. Não conhecemos os autores das outras duas. A fotografia do destaque é de José Ferreira.
Fonte: http://passapalavra.info/
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