segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O dedo de Tolstói - por Carla Tichetti Dal Pacci e Silva

O dedo de Tolstói A esmagadora maioria dos escritores nasce derivada de um ou dois fatos marcantes, que lhes forjam a inescapável necessidade de partilhá-los. O mais é consequência da experiência diária e da própria liturgia do ato de escrever; de resto, motivações acessórias ao ofício. Liev Nikolaievitch Tolstói não foge a essa regra. Analisando sua bibliografia, constatamos que, a priori, sua obra se encontra cindida em três eventos marcantes: seu ingresso no Exército Czarista, participando inclusive dos combates encarniçados da batalha de Sebastopol, o testemunho do suicídio da princesa Anna Stepánovna, na estação da estrada de ferro de Iásnaia Poliana e sua conversão aos evangelhos na forma de um cristianismo puro e anti-clerical.

Dissecando sua robusta produção literária, podemos identificar esse movimento pendular, oscilando de um fato a outro e, com o passar dos anos, adquirindo um caráter messiânico, panfletário e libertário. Talvez a exceção fique com “O que é Arte”, um libelo metapoético onde ele desanca a intelligentzia da época, Nietzche à frente; e “A Felicidade Conjugal”, uma novela retratando os conflitos conjugais, que deixaria as feministas de hoje de cílios em pé. Mas isso é uma outra história. Como consequência direta de sua vida na caserna, Tolstói escreve os “Sebastopolskii Rasskazi” (Contos de Sebastopol), retratando os horrores no front de Sebastopol. “Guerra e Paz”, a despeito do enorme sucesso, pode ser catalogado como um rico e minucioso tratado sobre os humores de um país em pleno campo de batalha (a invasão Napoleônica de 1812). Como relembrança da cena fatal do suicídio de uma mulher adúltera, surgiu “Anna Kariênina”, com a voz narrativa afirmando-se na voz de um Deus justo e vingador: a mim compete a vingança e a retribuição. Derivando do período de pregação e exortação religiosa, temos “Ressureição”, ‘A Morte de Ivan Ilitch” e “Padre Sérgio”, uma tróica contundente a gritar ao homem sua falibilidade e sua podridão.

Tolstói odeia o homem. Abomina-o em sua medíocre presunção de dono da vida e da morte. Abomina a nobreza russa, da qual ele faz parte. Abomina a servidão dos mujiques aos grandes senhores rurais, embora ele mesmo seja dono de muitas almas. Nesse cenário paradoxal, não espanta sua trajetória errática. Liev Tolstói não se enquadra em nenhum rótulo ou escola literária. Faz sua própria trajetória, suas escolhas literárias, ao mesmo tempo em que se mantém fiel a elas também na vida pessoal. Pelo conjunto de sua obra, podemos afirmar que o cerne de sua poética pode ser definido como francamente anti-aristotélico, uma vez que ele prioriza o Bem ao Belo, o Conteúdo à Forma, em que pese o apuro de suas construções textuais.

Em “A Morte de Ivan Ilitch”, Tolstói radicaliza o que começara em “Anna Kariênina”. Se no célebre romance sobre uma mulher adúltera, ele poupa a personagem-título até à cena trágica na estação, porém advertindo: a vingança é de Deus e ele vai retaliar; na novela ele se traveste de um Deus punidor e reparte castigos em profusão. Às mulheres da Corte, oferece uma Prascóvia Fiodórovna irascível, interesseira e mesquinha, e uma Lisanka Ivánovna coquete e fútil, indiferente ao sofrimento do pai. Aos juízes, às voltas com suas carreiras inúteis e enredados com a trágica e cruel certeza de serem deuses de barro em uma sociedade conservadora e caricata, mostra o poderoso Ivan Ilitch agonizante, cagado e fétido, dependendo da caridade do camareiro Guerássim. Impossível não se penalizar com Ivan Ilitch, na cena em que ele, moribundo, mas um juiz, inveja silenciosamente Guerássim em sua jovialidade exuberante e saudável de camareiro.

Num recorte cru, Tolstói compõe um painel por onde desfilam os tipos humanos de uma Petersburgo afetada pela necessidade de ostentação. E vai despindo-os um a um. Os colegas do tribunal são mostrados especulando quem será promovido com a morte de Ivan Ilitch; Prascóvia e Lisanka não conseguem esconder que a doença de Ivan lhes atrapalha o bom andamento doméstico e a vida social; os médicos, todos eles, se escondem num palavrório técnico e se engalfinham em polêmicas infindáveis, onde o que menos importa é a saúde do doente. Nos instantes finais, Ivan Ilitch se despe do manto de mentiras que fora sua vida e num diálogo áspero com Deus, pergunta: por que eu? Todos podem morrer, e todos irão morrer, mas a minha morte é terrível demais! Por que eu? Um juiz não pode morrer assim, num cenário tão vil! Aí descobre que essa redoma o envenenou como envenena todo mundo. Apenas Vassili Ivánovitch o entendia em sua agonia, talvez porque, criança, ainda não fora protegido pela teia de mentiras e máscaras que enredavam a todos.

Ao final, o leitor pode se perguntar: o que Tolstói propõe com “A Morte de Ivan Ilitch”? O que ele teoriza para conciliar o paradoxo da dualidade vida/morte? Nada. Com a lanterna narrativa nas mãos de Ivan Ilitch, ele passeia pela agonia do juiz moribundo, se despe de todos os mitos, arquétipos e toda a baboseira retórica tão ao gosto do cânone e nos mostra o processo de descida de um ser de carne e osso. A dor como que nos liberta e dinamita a couraça de imbecilidade protetora que nos é imposta desde a adolescência e declara: está tudo errado. E o que é o certo então, questiona o leitor? Qual o caminho a seguir? Algum paraíso nos espera? Tolstói não mostra nenhuma verdade e nenhum caminho. Ao concluirmos a leitura, a imagem que nos impressiona a retina é o dedo incômodo de Ivan Ilitch Golovin a nos apontar: amanhã será a sua vez! Inquietante e perturbador. Aterrorizante até. Mas, do contrário, não seria Tolstói.

Fonte: www.revistabula.com

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