terça-feira, 17 de novembro de 2009

Rio de Janeiro 2016: “sonho” ou “pesadelo” olímpico?



Rio de Janeiro 2016: “sonho” ou “pesadelo” olímpico?

Quem é “a cidade”? A cidade também é a população de baixa renda, ou “sem renda”, ou “sem teto” que vem sendo alvo da “operação de limpeza” da nova Prefeitura que tem procurado alcançar o sonho da “cidade vitrine mundial”.
Por Marcelo Lopes de Souza, Tatiana Tramontani Ramos e Marianna Fernandes Moreira

Mal se anunciou a “vitória do Rio de Janeiro” na disputa para sediar os jogos olímpicos de 2016, e vários defensores da moralidade pública e do bem comum já começaram a se mobilizar para evitar que não se cometam “abusos” e “descalabros” – tais como o estouro do orçamento, no estilo daquilo que se verificou com os Jogos Panamericanos. Assim é que, passada a euforia inicial, repercutida e retroalimentada pela grande imprensa e ordenhada ao máximo pelas três instâncias de governo (municipal, estadual e federal), formou-se, no Ministério Público do Rio de Janeiro, uma “força-tarefa” para fiscalizar os gastos com as olimpíadas. Muito louvável essa iniciativa dos ilustres promotores (que, diga-se de passagem, não se furtaram a anunciar a nobre iniciativa diante das câmeras de várias emissoras de TV). Mas… não faltaria algo? (Nessa hora, um típico integrante da classe média franziria o cenho e, intrigado, indagaria: “ora, falta o quê?… Evitar a roubalheira não é, afinal, a preocupação básica?”)
Na verdade, mais que “faltar algo”, falta (considerar) alguém. E isso vai muito além de evitar o estouro no orçamento e o consequente não pagamento das contas públicas, ou a corrupção, o desperdício de dinheiro público, de esforço e afins.
Lendo as esparsas ressalvas à euforia do “Rio 2016” assinadas por articulistas da grande imprensa (quase sempre ressalvas “pela direita”, quase nunca “pela esquerda”), e tomando conhecimento de iniciativas como aquela acima referida, conduzidas por conscienciosos promotores públicos, tem-se a sensação de que tudo se resumiria a “gastar bem” os recursos, assegurando um “retorno” de longo prazo para a cidade. Mas, quem é “a cidade”?…
A cidade também é a população de baixa renda, ou “sem renda”, ou “sem teto” que vem sendo alvo da “operação de limpeza” da nova Prefeitura que tem procurado alcançar o sonho da “cidade vitrine mundial”. Objeto de diversão e apreciação para turistas do mundo todo e para as classes média e alta da própria. A chamada “revitalização do Centro e Zona Portuária” é um passo da nossa Prefeitura nessa direção.
Muitos desses projetos de revitalização já estavam definidos antes mesmo da escolha do Rio de Janeiro para sediar as Olimpíadas de 2016. A eleição só fez acelerar o cronograma.
As principais mudanças que fazem parte da pauta de “melhorias” exigidas, tanto pelo COI quanto pela própria opinião pública (nacional e, especialmente, internacional), estão relacionadas aos transportes públicos (eficiência, conforto, rapidez e abrangência) e à segurança (posto que o Rio de Janeiro é visto constantemente nos jornais do mundo todo como uma das cidades mais violentas do planeta), elementos que fazem parte do quotidiano da população do Rio e Grande Rio desde sempre.
Nas últimas semanas, dois eventos ocorridos na cidade trouxeram à tona, novamente, o debate sobre as Olimpíadas no Rio, depois que a poeira da festa já tinha se assentado. Cidadãos, governantes, turistas (e turistas em potencial), voltaram a se questionar e questionar o Estado acerca dos transportes públicos na cidade e da “eficiência dos aparelhos de segurança do Estado”. Esses eventos foram os quebra-quebras em algumas das estações da Companhia Ferroviária Supervia (sistema ferroviário que liga a Baixada Fluminense ao Centro do Rio, passando pelo subúrbio da cidade), na primeira semana de outubro deste ano, e a “guerra entre facções de traficantes de drogas” em algumas favelas da Zona Norte da cidade, na segunda quinzena do mesmo mês.

Quanto a esse último episódio, ele nos faz lembrar que a questão da “segurança pública” continua sendo uma preocupação no que diz respeito apenas ao patrimônio e à propriedade privada no Rio de Janeiro e no Brasil. Participação política verdadeiramente democrática, garantia da habitação, trabalho, educação, não fazem parte das “políticas de segurança pública”. Segurança pública é repressão nas favelas e policiamento ostensivo nas principais vias da cidade. E, para 2016… mais R$ 100 milhões prometidos pelo Governo Federal para outros veículos blindados (“caveirões”), helicópteros e policiais nas ruas. Se mais esse episódio violento na história do Rio tivesse ocorrido vinte dias antes, provavelmente as Olimpíadas de 2016 não seriam no Rio…

Quanto ao quebra-quebra promovido pelos usuários dos trens da Supervia em algumas estações da rede na primeira semana de outubro, esse fez a notícia correr não como uma crítica ao transporte público na cidade (há anos deficiente e ineficiente), mas como uma crítica à população que promoveu “atos de vandalismo contra o patrimônio privado”. Como se a população pobre, moradora da Baixada Fluminense (periferia da cidade do Rio de Janeiro), não vivenciasse constantemente essa situação de defeitos, superlotação, desconforto, atrasos, acidentes e desrespeito de toda ordem por parte dos funcionários da empresa todos os dias de suas vidas.
Mas o detalhe é que isso não é importante para o Comitê Rio 2016. Esses trabalhadores que precisam dos trens para percorrer longas distâncias de suas casas até o trabalho, após horas de viagem e várias baldeações, não são convidados do Rio 2016. Na verdade, as “obras do Rio 2016” sequer são para eles…
ONDE se concentrarão os jogos e seus equipamentos, como vila olímpica, hotéis etc.? Na Barra da Tijuca, Zona Sul (Lagoa e Aterro), Centro (Sambódromo), Zona Portuária e Deodoro (nesse bairro, muito especificamente dois estádios, e ponto final). Quais bairros serão beneficiados com “novos e modernos sistemas de transporte de massa”? Os mencionados acima. Nada mais, nada menos.

Tudo isso ligado por metrô (bem caro e inacessível para a população de baixa renda) e corredor de ônibus expresso (do qual ainda não se sabe o preço). Quem herdará essas benfeitorias? Com toda certeza, não serão os pobres. Para estes, continua reservado um lugar no trem lotado, atrasado, danificado da Supervia, e algumas “correções disciplinares” preparadas pelo nosso Prefeito, como o “Choque de Ordem”.
Sob o nome fascistófilo de “Choque de Ordem”, uma campanha da administração municipal do Rio de Janeiro, com o apoio dos governos estadual e federal, está em curso desde que o prefeito Eduardo Paes assumiu, em janeiro deste ano. Entre as ações que visariam a garantir a tão sonhada “ordem” se contam a erradicação do comércio informal e, mais amplamente, a expulsão dos usos informais (isto é, legalmente irregulares ou ainda não “regularizados”) do Centro da cidade e de seu entorno, notadamente da Zona Portuária.

Eliminar a favela do Morro da Providência (a mais antiga do Rio, localizada na Zona Portuária), seria um objetivo desejável para a burguesia da “Cidade Maravilhosa” (e, mais importante ainda, seria poder remover todas as favelas, em especial as da Zona Sul); mas, como, diferentemente da malograda onda de remoções de favelas dos anos 60 e 70, não há, na atual conjuntura, nem recursos nem viabilidade política para isso, a abordagem torna-se mais pragmática: “pacificar” as favelas (que é a atual linguagem disciplinar oficial) e – aí sim –, no caso das ocupações de sem-teto, impedir novas e “regularizar” ou, sempre que possível, preferivelmente erradicar as existentes. Desde o início de sua gestão, Eduardo Paes já ordenou mais de 40 despejos em toda a cidade, entre eles a “Ocupação Casarão Azul”, que abrigava mais de 130 crianças. Acreditamos não ser necessário comentar que não há alternativas viáveis para essas famílias despejadas, uma vez que não há abrigos disponíveis para todos e o valor do subsídio disponibilizado pela Prefeitura, o chamado “aluguel social”, além de consistir na ínfima quantia de 250 reais, não é nada confiável, visto que além da demora para ser liberado, ele pode ser suspendido a qualquer momento. A ocupação mencionada acima teve apenas metade dos moradores cadastrados para recebimento do aluguel social; a outra metade, segundo a prefeitura, deveria ser cadastrada pelo Estado, o que nunca foi feito.

O movimento dos sem-teto do Centro e da Zona Portuária do Rio de Janeiro é extremamente criativo. Sua particularidade mais marcante consiste em buscar a aplicação de princípios autogestionários na organização dos mais diferentes aspectos das ocupações (prédios públicos “abandonados”), desde o momento do planejamento da ocupação até a gestão das tarefas quotidianas, após a consolidação da presença dos ocupantes. Em contraste com o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que surgiu a partir do MST e atua sobretudo em São Paulo, em várias das ocupações do Rio não há uma estrutura hierárquica e vertical: as decisões não passam por “coordenações”, sendo, isso sim, tomadas pelos “coletivos” (o que não impede a formação de comissões, para dar conta de missões específicas). E esse movimento dos sem-teto tem se constituído em uma pedrinha no sapato da Prefeitura. Apesar de ainda incipiente, ele tem promovido manifestações, protestos, articulações (como o “Fórum Contra o Choque de Ordem”, puxado sobretudo pelos sem-teto e os jovens universitários que lhes dão apoio) e, pela sua própria presença, desafiado os desígnios da Prefeitura em matéria de “revitalização” do Centro e arredores. (Coisa curiosa: “revitalização” é um termo que, em seu uso costumeiro, é profundamente ideológico, por dar a entender que o que havia, antes da intervenção “revitalizadora”, estava “morto”, “sem vida” – quando, na verdade, o que há, na área central do Rio e em espaços similares em muitas cidades pelo mundo afora, são bairros residenciais populares, não raro densos de vida e cultura. Aliás: não seriam justamente os sem-teto que, ao ocupar e dar uma função social a um imóvel ocioso, estariam promovendo uma revitalização, desta feita sem aspas?…)
Segundo uma publicação do Instituto Pereira Passos de março de 2003, residem atualmente na chamada Região Central, aproximadamente, 270 mil pessoas. Cerca de 73% desses moradores têm sua renda entre um e três salários mínimos, ou seja, fazem parte a denominada “baixa renda”. A chamada “revitalização” é, na realidade, uma gentrificação, pois o que interessa não é o Centro ser habitado, mas por quem o centro é habitado. O Centro tem vida, mas o que interessa são “vidas” com poder de compra, que façam parte da demanda solvável. Mais de 60% da população residente afirma que pretende ficar no local; isso se a Prefeitura permitir…

Contudo, o movimento é frágil e vulnerável. A própria forma como a esmagadora maioria dos ativistas sem-teto aufere sua renda – como trabalhadores informais, mais especificamente vendedores ambulantes – dificulta (embora, evidentemente, não venha impedindo), pela dispersão espacial e pelo desencontro de horários, a consolidação de organizações. (Sintomaticamente, os sem-teto, cuja condição de trabalhadores pobres e informais é parte essencial de sua identidade, se constituem, na prática, como sujeito coletivo e movimento social, basicamente a partir do local de moradia, e não da esfera da produção.) E, como se não fosse suficiente lutar contra a estigmatização e criminalização do movimento, lutar por trabalho, por educação e saúde, ainda precisam lidar com o próprio risco de despejo, ao qual automaticamente se soma o risco de sofrer com a brutalidade policial.
Com tudo isso e por tudo isso, o movimento dos sem-teto vem encontrando dificuldades para se expandir; e, em meio ao clima conservador que há muito tempo tomou conta do Rio de Janeiro, tem sido especialmente difícil sensibilizar a opinião pública. É notável como, mesmo assim, o movimento tenha crescido, apesar de alguns reveses. Entre esses reveses está a própria dissolução do “Fórum Contra o Choque de Ordem”, devido às dificuldades para mobilizar a população de maneira eficaz.
E agora, com as olimpíadas, o que se pode esperar? A euforia inicial com a “vitória” do Rio de Janeiro vai, certamente, passar. Porém, não menos certamente, parece que a tendência é que a ela se siga uma espécie de “rolo compressor ideológico”, acionado pelo Estado e apoiado pela grande imprensa. Tal “rolo compressor ideológico” ameaça potencializar incrivelmente o “Choque de ordem”.
Se a “população” do Rio, na sua maior parte, ganhará alguma coisa com as olimpíadas, para além da propalada “injeção de auto-estima”, já é algo bem duvidoso. O que parece pouco duvidoso, no entanto, é que os movimentos sociais correm o risco de serem asfixiados e ainda mais perseguidos e criminalizados do que já vêm sendo.
O “Choque de Ordem” é hiperautoritário. Vende para a “população”, mormente para a classe média, a ideia de que é possível e necessário “limpar” a cidade, a começar por sua área central. “Limpar”, no estilo de uma “limpeza étnica” (note-se que, não distante do elemento classista, é fácil perceber também os componentes racistas do imaginário das elites cariocas e brasileiras), significando purgar a paisagem dos ambulantes, das moradias informais etc. – não por se eliminarem as causas estruturais que geram a pobreza, a segregação e a informalidade, mas sim por se buscar expelir os pobres e a informalidade para longe, como uma espécie de reedição da Reforma Passos (1902-1906).
Percebe-se, assim, como o “sonho olímpico” é uma construção ideológica que, para os movimentos sociais e grande parte dos pobres do Rio de Janeiro, tende a assumir as características de um “pesadelo” – para muito além de temas como lisura e eficiência dos gastos públicos.

Fonte: www.passapalavra.inf

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