Michael
Temer e o Capitalismo de Desastre
Pode
haver mais que trapalhadas, no festival de erros bizarros que marca os
primeiros dias do golpe. Naomi Klein já ensinou: o caos é o melhor caminho para
levar sociedades a aceitar as “terapias de choque”
El
Ladrillo era o
nome do programa de governo apresentado pelos chamados Chicago Boys, discípulos
do monetarista Milton Friedman, no Chile de 1973, quando o cadáver de Salvador
Allende ainda estava quente. Sabiam que sob o regime ditatorial de Pinochet
teriam a oportunidade única de levar aos limites um projeto ultraliberal e
privatizante que jamais passaria pelo crivo das urnas. Na toada de seu guru,
viam na crise a grande oportunidade de pôr em prática seus ensinamentos. O
próprio Friedman sentenciou certa vez no famoso ensaio Inflation: causes and
consequences que “somente uma crise – real ou pressentida – produz mudança
verdadeira. Esta, eu acredito, é a nossa função primordial: desenvolver
alternativas às políticas existentes, mantê-las em evidência e acessíveis até
que o politicamente impossível se torne politicamente inevitável”.
Arautos
do projeto neoliberal preconizado pelo mestre da Escola de Chicago ainda hoje
se aglomeram como abutres tão logo sentem o cheiro de inabaláveis catástrofes
naturais e profundas crises políticas e econômicas. Foi assim em Nova Orleans
no ano de 2005, com a privatizante política escolar aplicada após as inundações
causadas pelo furacão Katrina, e no Sri Lanka em 2004 depois da calamidade
causada por um tsunami, ocasião em que pescadores e moradores de comunidades
ribeirinhas foram expulsos de suas casas para que o litoral pudesse ser loteado
para a construção de luxuosos resorts. A política de “terrenos limpos”,
expressão cunhada pelos próprios empreendedores de Nova Orleans, prossegue com
o mesmo e inabalável fim: aproveitar oportunidades excepcionais para promover
os interesses de corporações e, na esteira de traumas coletivos, implementar
uma engenharia econômica e radical praticamente impossível de ser aplicada em
condições normais de temperatura e pressão democráticas.
Mesmo em
situações onde plataformas eleitorais baseadas em políticas de livre-mercado
puderam ser levadas à frente pela via democrática, como é o caso da vitoriosa
campanha de Ronald Reagan nos EUA no início da década de 80, concessões tiveram
de ser feitas diante da exposição das fragilidades e contradições de suas
ideias à luz dos embates eleitorais e de fortes pressões populares. Reagan
viu-se, assim, obrigado a manter, contra a vontade de seu staff, um núcleo intangível
do Estado de bem-estar social, além da seguridade social e escolas públicas.
Esta situação levou Friedman, mentor filosófico e intelectual da política
econômica do então presidente – a obra Free to choice, escrita em
coautoria com sua esposa, tornou-se um dos principais amparos legitimadores da
política reaganiana – a qualificar essa situação como uma “ligação irracional a
um sistema socialista”. Algo semelhante aconteceu com a submissão do projeto
liberalizante ao escrutínio popular nas eleições presidenciais brasileiras de
2006, quando o candidato Geraldo Alckmin teve dois milhões de votos a menos que
no primeiro turno após seu adversário, o ex-presidente Lula, conseguir emplacar
a pecha de privatizador no atual governador de São Paulo.
Voltando
ao Chile, o mais curioso é que, mesmo em circunstâncias políticas
antidemocráticas onde não havia quaisquer obstáculos para o laboratório das
políticas de livre-mercado, o projeto neoliberal não conseguiu ser aplicado em
sua íntegra, uma vez que a Codelco, estatal chilena de mineração e cobre, uma
das principais atividades econômicas chilenas, passou longe das sucessivas
séries de desestatizações promovidas por Pinochet, permanecendo ainda hoje sob
o controle do Estado.
As
invasões do Iraque e Afeganistão e o desastre do 11 de setembro foram episódios
que serviram, da mesma forma, para que fosse feita a terraplenagem necessária
ao que Naomi Klein chama, no livro A Doutrina do Choque, de capitalismo
de desastre. Somente a Halliburton, por exemplo, lucrou 20 bilhões de dólares
com a guerra do Iraque. O mais interessante é que Dick Cheney, vice do
ex-presidente George W. Bush e entusiasta da belicosa política externa dos EUA,
já exercera a função de CEO da empresa, uma tradicional e benevolente
abastecedora dos fundos do Partido Republicano.
No lastro
da experiência chilena, graves rupturas democráticas também foram de bom
alvitre, para os que buscam abrir as porteiras para a triunfal entrada do
fundamentalismo de mercado. A introdução de reformas econômicas radicais na
Argentina na década de 1970 deu-se no contexto de uma ditadura militar que deu
cabo da vida de mais de trinta mil pessoas. Na China, em 1989, o massacre da
praça Tiananmen e a repressão subsequente possibilitaram o loteamento do país
sob o olhar assustado e impotente dos sindicatos. O ritmo crescente das
privatizações russas iniciadas em 1993 sob o governo de Yeltsin, por sua vez,
veio no contexto de uma aguda crise política em que membros da oposição foram
presos e tanques foram enviados para bombardear o parlamento.
No
entanto, as catástrofes naturais e as quebras beligerantes da normalidade
democrática não são os únicos fatores úteis a pavimentar a efetivação do
projeto global de livre-mercado, imposto por grandes conglomerados
transnacionais. Na América Latina e na África dos anos 1980, por exemplo, foi a
crise da dívida que forçou países a “privatizar ou morrer”, como bem afirmou
Davison Budhoo, executivo do FMI. O sacrossanto compromisso com a eliminação
gradual da esfera pública, a diminuição de gastos sociais e a autorização para
que corporações agissem conforme suas vontades fizeram surgir nos países que
abraçaram a cartilha do Consenso de Washington uma completa promiscuidade entre
o poder político e o econômico. Elites corporativas e agentes políticos se
mancomunam para abocanhar valiosos recursos antes situados sob o domínio
público, aprofundando ainda mais os laços de dependência pós-colonial entre o
mundo capitalista central e o periférico.
Assim
como os oportunistas empreendedores imobiliários no Sri Lanka e os lobistas da
educação privada em Nova Orleans, o vice-presidente Michel Temer vislumbrou no
quadro de profunda instabilidade institucional pela qual passa o Brasil a
oportunidade perfeita para tornar público seu programa de governo chamado
“Ponte para o futuro”, cujo manifesto propósito é privatizar “tudo o que for
possível”. Temer está perfeitamente ciente de que uma sincera plataforma
eleitoral contendo as diretrizes do seu programa diminuiria ainda mais seu 1%
de intenções de voto apontado por recente pesquisa do Datafolha.
A versão
do capitalismo idealizada por Milton Friedman e abraçada com fervor por Temer
possui, segundo Naomi Klein, o declarado e perigoso desejo de chegar a uma
pureza inatingível, arvorando-se no inconfessável desejo de começar do zero e
no ímpeto totalitário da criação total, razão pela qual os ideólogos do
livre-mercado possuem tamanho fetiche por crises e desastres. A “Ponte para o
futuro” apresentada por Temer, frontalmente contrária ao projeto vitorioso de sua
própria chapa nas eleições de 2014, dá uma dupla dimensão ao golpe, vez que,
além de estar em vias de chegar ao poder por caminhos ilegítimos, busca aplicar
um programa que dificilmente seria chancelado pelo voto – ainda que a
presidente Dilma sequer tenha colocado o programa vitorioso em prática,
iniciando seu segundo mandato nomeando de cara Joaquim Levy, um autêntico
chicago boy, para o Ministério da Fazenda. São as urnas, porém, o foro adequado
para decidir sobre as escolhas e a permanência do governo petista, de maneira
que a iniciativa de Temer em tornar o “politicamente impossível em
politicamente inevitável” não passa de mais uma reedição de uma tragédia
histórica sob o patético rompante de farsa.