sábado, 7 de fevereiro de 2015

EUA estudam mandar armas para governo ucraniano - por Latuff

Fonte: http://operamundi.uol.com.br/conteudo/opiniao/39400/charge+do+latuff+eua+estudam+mandar+armas+para+governo+ucraniano.shtml

Para uma geopolítica do capitalismo – por Paulo Fior


Para uma geopolítica do capitalismo

José Luís Fiori acaba de lançar “História, estratégia e desenvolvimento”, uma coletânea de 71 artigos em que mostra a origem do capitalismo e as razões deste sistema ter se desenvolvido.
A mais recente crise mundial pela qual o sistema capitalista ainda está passando, vem sendo, cada vez mais, alvo de diversos estudos ao redor do mundo. O cientista político José Luís Fiori acaba de lançar o seu. Na verdade, 71 artigos em que analisa o desenvolvimento econômico de países que ocuparam, ou ainda ocupam, posições de liderança política e econômica dentro de suas regiões, entre eles Portugal, Inglaterra, Estados Unidos, China, Argentina e Brasil.

Em História, estratégia e desenvolvimento: para uma geopolítica do capitalismo, Fiori, que é coordenador do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mostra a origem do capitalismo e faz uma longa análise da história mundial por meio da ótica capitalista, expondo as estratégias e as razões por este sistema ter se desenvolvido – desde a Europa do século 8 até a globalização dos dias atuais.

Na entrevista a seguir, concedida durante o lançamento do livro, Fiori – que nos anos 1980 coordenou uma pesquisa internacional comparativa sobre transformações capitalistas e ajustes nacionais na Espanha, Itália, Coreia, Japão e América Latina – faz um balanço da atual conjuntura internacional.

Os países latino-americanos – ou a maioria deles – optaram por um modelo mais intervencionista e considerado desenvolvimentista, com foco maior no social. Exemplos como Venezuela, Bolívia e até recentemente o Brasil podem servir de paradigma para um novo rumo, entre capitalismo e o dito socialismo?
 Depende do que você chame de “socialismo”. De fato, os governos boliviano, equatoriano e venezuelano têm utilizado esta palavra para se referir ou definir a nova estratégia de desenvolvimento que adotaram na primeira década do século 21. Mas se formos mais “ortodoxos’ e fiéis às definições clássicas, o que se pode dizer é que estes governos – e também o governo brasileiro – estão revolucionando a trajetória tradicional e secular de suas sociedades e estão mudando sua face e estrutura extraordinariamente elitista e desigual. Assim mesmo, as economias destes países seguem sendo capitalistas e, neste sentido, seus governos me parecem mais próximos do antigo projeto social-democrata europeu, de construção de um Estado de bem-estar social, do que do projeto cubano clássico de estatização da propriedade e construção do socialismo.

Com a equipe econômica nomeada pela presidenta Dilma Rousseff, o Brasil abandona as políticas anticíclicas e retoma o rumo da ortodoxia. Qual a sua visão sobre esta guinada?
 Significa um abandono dos aliados latino-americanos? Já escrevi em vários momentos e reitero no meu livro que não acredito que existam políticas econômicas estritamente de esquerda, nem mesmo considero que o único caminho progressista seja o das políticas heterodoxas. Acho que a política econômica sozinha não define nada, até porque todas elas são, em grandes linhas, “pró-capitalistas”. Neste sentido, cada política econômica deve ser analisada e julgada dentro do seu momento e contexto, e, sobretudo, em função da sua consistência ou não com os objetivos estratégicos de médio e longo prazo de cada governo. A mesma política econômica pode ter efeitos completamente diferentes em distintas circunstâncias geopolíticas e geoeconômicas. Por isto também acho que a avaliação da atual política econômica do governo brasileiro terá que ser avaliada e criticada a cada momento em função dos objetivos de longo prazo deste mesmo governo e dos seus antecessores imediatos.

A política comercial do Brasil sofre muitas críticas. Para alguns economistas, o país não pode ser refém do Mercosul e de outros emergentes. Teria de fazer acordos bilaterais com grandes economias, como a europeia e a estadunidense, para expandir seu comércio e integrar-se às “cadeias produtivas globais”. O senhor concorda com esta avaliação?
 Acho que temos que começar pela análise e compreensão de como funcionam os mercados internacionais que mais se assemelham a uma “guerra de movimentos” entre forças desiguais, do que a um “jogo de troca-troca” entre unidades iguais e bem informadas. Uma guerra assimétrica entre Estados e capitais, que atuam como “grandes predadores” na luta pelo controle monopólico de posições de mercado, inovações tecnológicas e “lucros extraordinários”. Por isto, acho que o problema do Brasil não é apenas o de multiplicar acordos comerciais de todo e qualquer tipo, ou de se integrar a qualquer preço em algumas “cadeias produtivas” cujo centro de comando e inovação se encontre fora do país. O verdadeiro desafio é saber como construí-las e/ou conquistá-las a partir de sua própria capacidade de expansão e inovação. Para avançar neste campo, os empresários e os economistas brasileiros, de dentro e fora do governo, teriam que deixar de lado por um tempo os seus manuais e as suas fórmulas ideológicas, para aprender com a história e a estratégia dos grandes ganhadores, os grandes Estados e capitais vitoriosos que lideraram e lideram os mercados, a inovação tecnológica e a acumulação de capital, em todo o mundo, desde o século 16. O México, por exemplo, calculou que poderia integrar-se às grandes cadeias produtivas mundiais abrindo sua economia e se integrando de forma radical com a economia estadunidense e canadense. O Nafta já tem 20 anos, e até hoje o México não avançou quase nada na sua participação ou integração nas cadeias produtivas globais e nem mesmo naquelas capitaneadas pelas grandes empresas estadunidenses. Porque no balanço final destes acordos de livre comércio entre economias assimétricas, os países mais fracos só conseguem ganhos tecnológicos infinitesimais, e acabam sempre ocupando a posição da presa dos grandes predadores.

Há um modelo de desenvolvimento ideal para o Brasil, a exemplo da influência da escola cepalina em passado recente?
 Acho que não há nem nunca houve nenhum modelo ideal de desenvolvimento. O que existem são algumas regularidades estreitamente associadas ao momento e à localização do país dentro da luta internacional dos Estados e das economias pelo poder e pela riqueza mundiais. Dependendo da coesão interna de suas elites e da capacidade de mobilização de suas sociedades em torno dos seus objetivos prioritários. Aliás, do meu ponto de vista, a “escola cepalina” nunca teve um modelo ideal de desenvolvimento, nem nunca se propôs definir regras de validade universal. O que ela sempre defendeu, e que me parece que segue sendo válido, é a industrialização dos países latino-americanos, como forma de expansão progressiva da sua capacidade tecnológica e do controle soberano de suas próprias políticas econômicas.

A retomada das relações diplomáticas entre Cuba e os EUA significa o que para o pensamento e a prática dos governos latino-americanos?
 Acho que a reaproximação dos dois países foi uma extraordinária vitória política da sociedade cubana, mas refletiu também a necessidade dos EUA redefinirem sua política para a América Latina, em face do extraordinário avanço da presença econômica da China. E mais imediatamente, foi uma tentativa de resposta dos EUA ao projeto chinês de construção do Grande Canal da Nicarágua, que anuncia uma concorrência direta com os estadunidenses pelo controle comercial do Mar do Caribe. De qualquer maneira, esta reaproximação também foi uma vitória dos demais países latino-americanos que sempre se colocaram ao lado de Cuba e contra o bloqueio econômico dos EUA. Neste sentido, esta vitória fortalece também o objetivo e o ideal de uma comunidade latina mais autônoma e soberana com relação à tradicional hegemonia hemisférica dos EUA.

O Banco dos Brics tem qual importância para este grupo tão heterogêneo? Qual a importância geopolítica frente ao FMI, por exemplo?
 Creio que a criação deste banco de desenvolvimento junto com o fundo de compensações, acordados na VIº Reunião de Cúpula, em Fortaleza, em julho de 2014, representou uma mudança qualitativa na trajetória do grupo dos BRICS, porque é de fato a sua primeira materialização concreta. A partir desta decisão, por mais longo que venha a ser o seu processo de montagem e institucionalização, o BRICS deixou de ser apenas um grupo diplomático e político informal e passou a ter um instrumento concreto de ação econômica e de administração conjunta. Talvez tenha sido a decisão mais importante no campo financeiro internacional das últimas décadas, e a primeira que escapa inteiramente aos desígnios da finança pública e privada anglo-estadunidense, mesmo sem confrontá-la.

Quais os desafios principais da América do Sul neste momento?
 Enfrentar os efeitos críticos imediatos e de médio prazo da desaceleração econômica global, sem abrir mão da estratégia da maioria dos seus países, de ataque à desigualdade social e promoção e mobilização social ativa de sua população mais pobre e, ao mesmo tempo, sem abrir mão do seu projeto comum de unificação política do continente e de expansão da sua presença, da sua influência, do seu poder e de sua participação na riqueza internacional.

O recente ataque ao jornal Charlie Hebdo reflete um mundo cuja intolerância é uma característica? Como lidar com a absorção de crenças diferentes?
De fato, depois do fim do guarda-chuva ideológico da Guerra Fria e do rápido fracasso da utopia da globalização e do projeto imperial e unipolar dos EUA aumentou em vários pontos do mundo a intensidade dos conflitos e da intolerância, sobretudo religiosa e racial. E acho também que o esvaziamento ideológico do projeto de unificação europeia junto com sua progressiva desintegração vem contribuindo decisivamente para este aumento da intolerância dentro da própria Europa e de sua antiga zona de dominação colonial, na África e Oriente Médio, onde os europeus e a OTAN seguem atuando como se fossem povos escolhidos por Deus para gerir o mundo. Você me pergunta como lidar com estas diferenças e antagonismos crescentes entre crenças e civilizações? Parece-me que segue válido o modelo helênico da convivência, do diálogo, do respeito pelas diferenças, além de aceitar de uma vez por todas que não existem mais apenas dois ou três países que sejam os responsáveis pela produção dos valores e pela arbitragem e gestão da ética internacional. E acima de tudo enterrar definitivamente a fantasia arrogante de que existam povos que tenham sido escolhidos e nominados por Deus, e por isto possuam um mandato divino para civilizar, converter ou mandar nos demais.

Como o senhor avalia a recente vitória eleitoral da esquerda e do Syriza e a formação do novo governo liderado por Alexis Tsipras, na Grécia ?
É difícil de avaliar e prever as consequências desta vitória no médio prazo. Mas sem dúvida é um acontecimento de extrema importância e um momento decisivo na trajetória da crise e desintegração que está vivendo o projeto de unificação europeia, liderado hoje com mão de ferro pela Alemanha. Como é sabido, o Syriza não tem o objetivo de deixar a UE, apenas exige uma revisão radical dos termos do acordo e das políticas de austeridade impostos à Grécia em troca da ajuda financeira concedida pela Alemanha e pelo FMI, em 2010. Políticas que destruíram nestes quatro anos a estrutura produtiva e a sociedade grega. Mas atenção porque o significado desta vitória da esquerda grega vai muito além da questão econômica e da pura renegociação da dívida e do acordo. Ela de fato dá voz e força a um movimento subterrâneo que está atravessando toda Europa neste momento, de insatisfação e de questionamento de um projeto de unificação que perdeu vigor com o desaparecimento do seu grande inimigo externo, a URSS, mas, sobretudo, deixou de ser um sonho coletivo, perdeu sua dimensão utópica e se transformou apenas num projeto realista e incremental de construção da supremacia europeia da Alemanha. Uma supremacia que traz lembranças trágicas para toda a Europa – e para a Grécia muito em particular. Neste sentido a vitória do Syriza é um grito de protesto dos desempregados da Grécia e de toda a Europa e dos deserdados do Estado de bem-estar social, mas também de todos os europeus que resistem a uma dominação alemã vazia de qualquer conteúdo utópico ou societário. A pobreza ideológica da Sra. Merkel e de sua retórica vazia e autoritária reflete apenas a pobreza a que se viu condenado um projeto que foi concebido depois da II Guerra Mundial, pelos “aliados”, para conter a Alemanha, e que acabou se transformando num instrumento de dominação europeia da própria Alemanha.

Bauman: “Talvez estajemos em plena revolução”... No ContiOutra


Bauman: “Talvez estajemos em plena revolução”... 
Conhecido por seus estudos sobre “modernidade líquida”, sociólogo polonês afirma: interregno que vivemos é transitório; sociedade já procura novos arranjos 

O sociólogo polônes Zygmunt Bauman, em entrevista à MGMagazine traduzida para o português e publicada pelo site Fronteiras do Pensamento, fala, aos 89 anos, sobre o mundo atual e como entende os efeitos da modernidade sobre as pessoas. “As consequências são a austeridade, o aumento do desemprego e, sobretudo, a devastação emocional e mental de muitos jovens que entram agora no mercado de trabalho e sentem que não são bem-vindos, que não podem adicionar nada ao bem-estar da sociedade, porque são uma carga”, diz.

O senhor imaginou que poderia se tornar uma estrela midiática em nível global?
Certamente não. Mas não sou uma estrela. Quando eu morrer, o que provavelmente acontecerá logo, com certeza morrerei como uma pessoa insatisfeita, que não alcançou seu objetivo.

Por quê?
Porque tratei de transmitir certas ideias durante toda a minha vida, que tem sido muito longa. E quando olho pra trás, existe toda uma montanha cinza de esperanças e expectativas que morreram ao nascer ou faleceram muito jovens. Não tenho nada para me gabar. Tento juntar palavras para dizer às pessoas quais são os problemas, de onde eles vêm, onde se escondem, como encontrar ajuda para resolvê-los se for possível. Mas são palavras. E não nego que são poderosas, porque a nossa realidade, o que nós pensamos que é o mundo, esta sala, nossa vida, nossas lembranças, são palavras. Mas, apesar de ter vivido tantos anos, não consegui resolver o problema de transformar as palavras em carne. Hoje, existe uma enorme quantidade de pessoas que querem a transformação, que têm ideias de como tornar o mundo melhor não somente para eles, mas também para os outros, mais hospitaleiro. Mas na sociedade contemporânea, na qual somos mais livres do que nunca, ao mesmo tempo somos também mais impotentes do que em qualquer outro momento da história. Todos sentimos a desagradável experiência de ser incapazes de mudar qualquer coisa. Somos um conjunto de indivíduos com boas intenções, mas entre as intenções e os projetos e a realidade tem muita distância. Todos sofremos agora mais do que em qualquer outro momento pela falta total de agentes, de instituições coletivas capazes de atuar efetivamente.

O que mudou?
Quando eu era jovem, todos os meus contemporâneos, de esquerda, direita ou centro, coincidiam em um ponto: se chegamos ao governo ou fazemos uma revolução, sabemos o que fazer e como fazer através do poder do Estado. Agora, ninguém acredita que o governo pode fazer algo. Os governos são vistos como instituições que nunca cumprem suas promessas. É um grave problema. Porque significa que, embora saibamos como criar uma sociedade mais humana – e no momento abandonamos a esperança de poder projetá-la–, a grande pergunta, para a qual não tenho resposta, é quem vai transformá-la em realidade.

Viver em um mundo líquido, o que isso significa exatamente?
Modernidade significa modernização obsessiva, viciante, compulsiva. Modernização significa não aceitar as coisas como elas são, e sim transformá-las em algo que consideramos que é melhor. Modernizamos tudo. Você pega as suas regulações, seus objetos, e trata de modernizá-los. Não duram muito tempo. Isso é o mundo líquido. Nada tem uma forma definida que dure muito tempo. Deve-se dizer que fundir o que é sólido, transformá-lo em líquido e moldá-lo de novo era uma preocupação da modernidade desde o princípio, mas o objetivo era outro. Arbitrariamente, mas acredito que de forma útil, situo o início da modernidade no ano de 1.775 no terremoto de Lisboa, seguido de um incêndio que destruiu o que restava e em seguida um tsunami que levou consigo tudo para o mar.

Por que nesse terremoto?
Foi uma catástrofe, não só material, mas também intelectual. As pessoas pensavam, até então, que Deus tinha criado tudo, que tinha criado a natureza e disposto leis. Mas, de repente, veem que a natureza é cega, indiferente, hostil com os humanos. Não se pode confiar nela. O mundo tem que estar sob direção humana. Substituir o que existe pelo que se pode projetar. Assim, Rousseau, Voltaire ou Holbach viram que o antigo regime não funcionava e decidiram que tinham de fundi-lo e refazê-lo de novo no molde da racionalidade. A diferença em relação ao mundo de hoje é que não o faziam porque não gostavam do que era sólido, e sim, pelo contrário, porque acreditavam que o regime que existia não era suficientemente sólido. Queriam construir algo resistente para sempre que substituísse o oxidado. Era a época da modernidade sólida. A época das grandes fábricas empregando milhares de trabalhadores em enormes edifícios de tijolos, fortalezas que iam durar tanto quanto as catedrais góticas. No entanto, a história decidiu um caminho muito diferente.

Tornou-se líquida?
Sim. Hoje a maior preocupação da nossa vida social e individual é como prevenir que as coisas sejam fixas, que sejam tão sólidas que não possam mudar o futuro. Não acreditamos que existam soluções definitivas, e não é só isso: não gostamos delas. Por exemplo: a crise que muitos homens têm ao fazer 40 anos. Ficam paralisados pelo medo de que as coisas já não sejam como antes. E o que mais lhes dá medo é ter uma identidade aferrada a eles. Uma imagem que não se pode tirar. Estamos acostumados com um tempo veloz, certos de que as coisas não vão durar muito, de que vão aparecer novas oportunidades que vão desvalorizar as existentes. E isso acontece em todos os aspectos da vida. Há duas semanas, as pessoas faziam filas durante a noite pelo iPhone 5 e agora mesmo estão fazendo pelo 6. Posso garantir que em dois anos aparecerá o 7 e milhões de iPhones 6 serão jogados no lixo. E isso dos objetos materiais funciona da mesma forma com as relações pessoais e com a própria relação que temos conosco mesmos, como nos avaliamos, que imagem temos de nossa pessoa, que ambição permitimos que nos guie. Tudo muda de um momento a outro, somos conscientes de que somos transformáveis e, portanto, temos medo de fixar qualquer coisa para sempre. Provavelmente, seu governo, como o do Reino Unido, convoca seus cidadãos a serem flexíveis.

Sim, convoca.
O que significa ser flexível? Significa que você não está comprometido com nada para sempre, mas sim pronto para mudar a sintonia, a mente, em qualquer momento no qual seja requisitado. Isso cria uma situação líquida. Como um líquido em um copo, no qual o mais leve empurrão muda a forma da água. E isso está em todos os lugares.

Quais o senhor acredita que são os efeitos desta nova situação nas pessoas?
Há alguns anos, os jovens iam trabalhar para a Ford ou a Fiat como aprendizes e podiam acabar ficando ali pelos próximos 40 anos se não se embebedavam ou morriam antes. Hoje, os jovens que não perderam a ambição depois de ter amargas experiências de trabalho sonham em ir ao Vale do Silício. É a meca das ambições de todo homem jovem, a ponta da lança da inovação, do progresso. Você sabe qual é a média de um trabalhador de uma empresa do Vale do Silício? Oito meses. O sociólogo Richard Sennet calculou, há uns anos, que o trabalhador médio mudaria de empresa onze vezes durante a sua vida. Hoje, essa quantidade é inclusive maior. As gerações que emergem das universidades em grandes quantidades estão ainda buscando emprego. E se encontram, não tem nada a ver com suas habilidades e expectativas. Estão empregados em trabalhos precários, temporários, sem segurança, sem carreira. Então, a principal maneira pela qual nos conectamos com o mundo, que é a nossa profissão, nosso trabalho, é fluida, líquida. Estamos conectados apenas pela água. E não se pode estar conectado por isso, ocorrem inundações, fugas…

Por isso você diz que passamos do proletariado ao precariado?
Há não muito tempo o precariado era a condição de vagabundos, sem-teto, mendigos. Agora, marca a natureza da vida de pessoas que há 50 anos estavam bem instaladas. Pessoas de classe média. Com exceção do 1% que está acima de tudo, ninguém pode se sentir seguro hoje. Todos podem perder as conquistas alcançadas durante sua vida sem aviso prévio. Não faz tantos anos, seis, o crédito e os bancos entraram em colapso e as pessoas começaram a ser despejadas de suas casas e seus trabalhos. Antes disso, os otimistas falavam de orgia de consumo, as pessoas pensavam que podiam gastar dinheiro que não tinham porque as coisas seriam cada vez melhores, assim como seus rendimentos, mas tudo isso desabou. As consequências são hoje os cortes, a austeridade, o alto nível de desemprego e, sobretudo, a devastação emocional e mental de muitos jovens que entram agora no mercado de trabalho e sentem que não são bem-vindos, que não podem acrescentar nada ao bem-estar da sociedade, que são um peso.

Aumenta o que o senhor chama de vidas desperdiçadas.
Cada vez há mais. Mas é que, além disso, as pessoas que têm emprego experimentam a forte sensação de que existem altas possibilidades de que também virem resíduos. E, mesmo conhecendo a ameaça, são incapazes de preveni-la. É uma combinação de ignorância e impotência. Não sabem o que vai acontecer, mas nem mesmo sabendo seriam capazes de preveni-lo. Ser o resto, um resíduo, é uma condição ainda de uma minoria. No entanto, impacta não somente os empobrecidos, mas também setores cada vez maiores das classes médias, que são a base de nossas sociedades democráticas modernas. Estão atribuladas.
Zygmunt Bauman fotografado por Carlos González Armesto 

As classes médias vão desaparecer?
Estamos em um interregno. A palavra foi usada pela primeira vez na história da Roma Antiga. O primeiro rei lendário foi Rômulo, que reinou por 38 anos. Essa era a expectativa de vida das pessoas, então, quando ele morreu, pouca gente lembrava do mundo sem ele. As pessoas estavam confusas. O que fazer? Rômulo lhes dizia o que fazer. E se houvesse outro, ninguém sabia o que ele lhes pediria. Gramsci atualizou a ideia de interregno para definir uma situação na qual as antigas formas de fazer as coisas já não funcionam, mas as formas de resolver os problemas de uma nova maneira efetiva ainda não existem ou não as conhecemos. E nós estamos assim. Os governos vivem presos entre duas pressões impossíveis de reconciliar: a do eleitorado e a dos mercados. Eles têm medo de que, se não agem como as bolsas e o capital móvel querem, as bolsas quebrarão e o dinheiro irá a outro país. Não se trata apenas de que possa haver corrupção e estupidez entre os nossos políticos, mas sim que essas situações os deixam impotentes. E, por isso, as pessoas buscam desesperadamente novas formas de fazer política.

Como os indignados?
É um bom exemplo. Se o governo não cumpre, vamos à praça pública. Mas é uma boa tentativa que não traz muito resultado. Estamos tentando. Tentando criar alternativas praticáveis para atender às necessidades coletivas. O interregno por definição é transitório. Eu acredito que não viverei para ver o novo arranjo, mas sua vida estará repleta de buscas por essas alternativas. Porque este período de suspensão, no qual muitas coisas vão mal e temos poucas ideias para resolvê-las, não é eternamente concebível.

Será que já não estamos líquidos demais?
As mudanças vêm e vão. Muita gente está hoje convencida de que já existem alternativas, mas que são invisíveis porque ainda estão muito dispersas. Jeremy Rifkin fala da utilidade pública colaborativa. Benjamin Barber publicou o livro Se os prefeitos governassem o mundo, no qual diz que os estados estão acabados, que foram uma boa ferramenta para a separação, a independência e a autonomia, mas que em nossos tempos de interdependência devem ser substituídos. Que as instituições locais são capazes de enfrentar os problemas muito melhor, têm a dimensão adequada para ver e experimentar sua coletividade como uma totalidade. Podem levar adiante lutas muito mais efetivas para melhorar as escolas, a saúde, o emprego, a paisagem. Pede um tipo de Parlamento mundial de prefeitos das grandes cidades. Um Parlamento onde as pessoas falem e compartilhem experiências que são altamente parecidas. E as mudanças podem já estar aqui. Minha tese, quando eu estudava, foi sobre os movimentos operários na Grã Bretanha. Pesquisei nos arquivos do século XIX e nos jornais. Para minha surpresa, descobri que até 1875 não se mencionava que estava acontecendo uma revolução industrial, havia apenas informações dispersas. Que alguém tinha construído uma fábrica, que o teto de uma fábrica desabou… Para nós, é óbvio que estavam no coração de uma revolução, para eles, não. É possível que, quando você for entrevistar alguém dentro de 20 anos, essa pessoa lhe diga: “Quando você entrevistou o Bauman em Leeds, vocês estavam no meio de uma revolução e o senhor perguntava a ele sobre mudanças”.

Netanyahu e sua esposa Sara se divertem... - por Latuff

Fonte: https://latuffcartoons.wordpress.com/

Alain Badiou: A farsa do Charlie Hebdo


Alain Badiou: A farsa do Charlie Hebdo
 [Alain Badiou: contra os crimes terroristas, é preciso reativar a ideia comunista e não o totem da República francesa]

Para Alain Badiou, o respaldo do atentado ao semanário francês adquiriu ares de um teatro farsesco. Em artigo intitulado “O vermelho e o tricolor” [Le rouge et le tricolore], publicado no Le monde no final de janeiro de 2015, o filósofo francês situa o episódio no seio de um mundo completamente tomado pelo capitalismo global e “predatório”. Na batalha de identidades e contra-identidades nacionais, religiosas, ideológicas encenadas neste contexto, a França recorre ao “totem” de sua République démocratique et laïque – auto-imagem fundada, lembra Badiou, nos massacres da Comuna de Paris de 1871. São nos vasos comunicantes entre o falatório pós-atentado da liberdade de expressão e a política de militarização da vida social francesa que Badiou identifica a atual figura desse perverso “pacto republicano”, do qual não poupa nem o humor do que chama dos “ex-esquerdistas” do Charlie Hebdo. O atentado de janeiro, por outro lado, aparece decifrado como um crime essencialmente fascista – ao que Badiou insiste: contra o antisemitismo e a lógica identitária não é o tricolor francês que se deve erguer, e sim a bandeira vermelha. A tradução é de Danilo Chaves Nakamura, para o Blog da Boitempo. Confira:
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Hoje o mundo está totalmente tomado pela figura do capitalismo global, submisso ao governo da oligarquia internacional e subjugado à abstração financeira como única figura reconhecidamente universal.

Neste contexto desesperador montou-se uma espécie de peça histórica farsesca. Sobre a trama geral do “Ocidente”, pátria civilizada do capitalismo dominante, contra o “Islamismo”, símbolo do terrorismo sanguinário. Aparentemente teríamos, de um lado, os grupos de assassinos e indivíduos fortemente armados, acenando para garantir o perdão de Deus; e do outro, em nome dos direitos humanos e da democracia, selvagens expedições militares internacionais que destroem Estados inteiros (Iugoslávia, Iraque, Líbia, Afeganistão, Sudão, Congo, Mali…), que fazem milhares de vítimas, que chegam para negociar com os bandidos mais corruptos em busca de poços, minas, recursos alimentares e enclaves onde as grandes empresas possam prosperar.

Esta é uma farsa que transforma as guerras e as atividades criminosas na principal contradição do mundo contemporâneo, a que alcança a essência da questão. Mas hoje, soldados e policiais da “guerra ao terror”, bandos armados que reivindicam um islã mortal e todos os Estados, sem exceção, pertencem ao mesmo mundo, o mundo do capitalismo predatório.

Várias identidades falsas, cada uma se considerando superior a outra, fixam ferozmente sua dominação local em pedaços deste mundo unificado. Elas dividem o mesmo mundo real, onde os interesses dos agentes são os mesmos em toda parte: a versão liberal do Ocidente, a versão autoritária e nacionalista da China ou da Rússia de Putin, a versão teocrática dos Emirados, a versão fascista dos grupos armados… As populações de todas as partes defendem, por unanimidade, a versão que sustenta o poder local.

Isto é tão certo que o verdadeiro universalismo – aquele que reconhece o destino da humanidade na própria humanidade e, portanto, a nova e decisiva encarnação histórico-político da ideia comunista – não será um poder em escala mundial sem anular a dominação dos Estados pelas oligarquias proprietárias e seus agentes, a abstração financeira e, finalmente, as identidades e contra-identidades que assolam as mentes e necessitam morrer.

A identidade francesa: a “República”
Nesta guerra de identidades, a França tenta se distinguir com a invenção de seu totem: a “república democrática e laica” ou o “pacto republicano”. Este totem valoriza a ordem estabelecida pelo parlamento francês – pelo menos, desde a sua fundação, a saber, o massacre em 1871 de 20.000 trabalhadores nas ruas de Paris, por Adolphe Thiers, Jules Ferry, Jules Favre e outras vedetes da esquerda “republicana”.

Este “pacto republicano” ao qual aderiram muitos ex-esquerdistas, até o Charlie Hebdo, sempre suspeitou da trama de coisas assustadoras nos subúrbios, nas fábricas da periferia e nos bares escuros do subúrbio. Com inúmeros pretextos, uma República sempre povoada de prisões, de perigosos jovens mal educados que lá vivem. Na República, ocorreu também a multiplicação de massacres e de novas formas de escravidão exigidos para a manutenção da ordem no império colonial. É este império sangrento que encontrou seu estatuto de fundação nas declarações do mesmo Jules Ferry – indubitavelmente, um ativista do pacto republicano – que exaltava a “missão civilizadora” da França.

Agora, veja você, os inúmeros jovens que povoam nossos subúrbios, além de atividades suspeitas e flagrante falta de educação (estranhamente, ao que parece, a famosa “escola republicana” não tem sido capaz de fazer nada e assumir que a culpa é sua e não dos alunos), são filhos de proletários de origem africana ou vieram por conta própria da África para sobreviver e, consequentemente, na maioria das vezes, são muçulmanos. Em suma, de uma só vez, proletários e colonizados. Duas razões para desconfiar e tomar sérias medidas repressivas.

Suponhamos que você é um jovem negro ou um jovem com aspectos árabes, ou ainda, uma jovem mulher que decidiu, no sentido da livre revolta, já que é proibido, cobrir a cabeça. Bem, assim você terá sete ou oito vezes mais chances de ser parado na rua por nossa polícia democrática e, muitas vezes ser retido em uma delegacia, o que indica que se você tiver a cara de um “francês”, simplesmente, não deve ter a cara de um proletário nem de um ex-colonizado. Nem de um muçulmano.

Charlie Hebdo, em certo sentido, protestava com esses meios e costumes policiais no estilo “divertido” de piadas com conotação sexual. Nada muito novo. Lembrem-se das obscenidades de Voltaire sobre Joana d’Arc: a donzela de Orleans é um poema digno de Charlie Hebdo. Por si só, este poema sujo dirigido contra uma heroína sublimemente cristã, autoriza a dizer que as verdades e as luzes do pensamento crítico não são ilustradas por esse Voltaire medíocre.

Ele ilumina a sabedoria de Robespierre quando ele condena todos os que fazem da violência antirreligiosa o coração da Revolução e obtendo somente a deserção popular e a guerra civil. Ele nos convida a considerar que o que divide a opinião democrática francesa é, conscientemente ou não, o lado constantemente progressista e realmente democrático de Rousseau, ou então, o lado das negociatas, dos ricos e especuladores céticos e sensuais, que como o gênio do mal alojado neste Voltaire também é capaz, por sua vez, de autênticos combates.

O crime de tipo fascista
E os três jovens franceses que a polícia rapidamente matou? Eu diria que eles cometeram o que deve ser chamado de crime de tipo fascista. Eu chamo de crime de tipo fascista um crime que tem três características.
Em primeiro lugar, ele é orientado, não de maneira cega, por suas motivações ideológicas, de caráter fascista, que são estritamente identitárias: nacional, racial, comunitária, consuetudinária, religiosa… Nestas circunstancias, os assassinatos são antissemitas. Muitas vezes, o crime fascista visa publicitários, jornalistas, intelectuais e escritores tais como os assassinos representantes do lado oposto. Nas circunstancias, o Charlie Hebdo. 

Em seguida, ele é de uma violência extrema, assumido, espetacularmente, dado que ele procura impor a ideia de uma determinação fria e absoluta que, no entanto, inclui de forma suicida a probabilidade de matar o assassino. Este aspecto de “viva la muerte!” de aparente niilismo, está em ação.

Em terceiro lugar, o crime visa, por sua grandiosidade, pelo seu efeito de surpresa, pelo seu lado fora da norma, criar um efeito de terror e estimular, por conseguinte, do lado do Estado e da opinião, reações descontroladas, completamente fechada em uma vingativa contra-identidade, as quais, aos olhos dos criminosos e dos seus patrões, justificarão após o fato, por simetria, o atentado sangrento. E foi isso o que aconteceu. Neste sentido, o crime fascista obteve uma espécie de vitória.

O Estado e a opinião
De fato, desde o inicio, o Estado estava envolvido na utilização desproporcional e extremamente perigosa de crime fascista, porque ele está inscrito no registro das identidades da Guerra Mundial. O “fanático muçulmano” se opõe descaradamente ao bom democrata francês.

A confusão estava no auge quando vimos o chamado do Estado, claramente autoritário, para a manifestação. Caso Manuel Valls não tivesse a intenção de capturar os fugitivos e não tivesse convocado as pessoas, uma vez que elas têm demonstrado uma obediência identitária sob a bandeira francesa, elas se esconderiam em suas casas ou vestiriam o uniforme de reservista sob o som da corneta na Síria.

Assim, no momento mais baixo de popularidade, nossos líderes têm tido a capacidade, através de três fascistas pervertidos que não poderiam imaginar tal triunfo, de aparecer diante de milhares de pessoas, também aterrorizadas pelos “muçulmanos” e alimentadas por vitaminas de democracia, o pacto republicano e a grandiosa soberba da França.

A liberdade de expressão, vamos falar sobre ela! Era praticamente impossível durante todos os primeiros dias deste caso, expressar o que estava acontecendo por outro ponto de vista que não aquele que consiste em se encantar por nossa liberdade, nossa República, em amaldiçoar a corrupção de nossa identidade por jovens muçulmanos proletários e suas filhas horrivelmente cobertas com véu, e em se preparar corajosamente para a guerra contra o terror. Ouvimos o seguinte grito dessa admirável liberdade de expressão: “Somos todos policiais”.

Na realidade é natural que o pensamento único e a submissão ao medo sejam regras em nosso país. A liberdade em geral, incluindo a de pensamento, de expressão, de ação, da própria vida, consiste, hoje em dia, em tornar-se unanimemente auxiliar da polícia para o rastreamento de dezenas de agrupamentos fascistas, para delação universal de suspeitos barbudos ou cobertos com véu, e criar uma exceção permanente nos escuros conjuntos habitacionais, herdeiros dos subúrbios onde já mataram os communards? Por outro lado, a tarefa central da emancipação, da liberdade pública, consiste em agir conjuntamente com a maioria desses jovens proletários dos subúrbios, a maioria das jovens, cobertas com véu ou não, pois isto não importa. Nos quadros de uma nova política, que não se refere a nenhuma identidade (“os proletários não tem pátria”) prepara-se uma figura igualitária de uma humanidade que finalmente se apropria do seu próprio destino? Uma política que considera de forma racional que nossos verdadeiros mestres impiedosos, os ricos governantes do nosso destino, devem ser finalmente demitidos?

Houve na França, há muito tempo, dois tipos de manifestações: as sob a bandeira vermelha e as sob a bandeira tricolor. Acredite em mim: no que concerne a reduzir a nada os pequenos grupos fascistas identitários e assassinos – aqueles que apelam para formas sectárias do Islã, a identidade nacional francesa ou a superioridade Ocidental –, não são as tricolores, controladas e utilizadas pelos poderosos, que são eficientes. Estas bandeiras são outras, as vermelhas, e que precisam voltar.

* Publicado em francês no Le monde de 27 de janeiro de 2015. A tradução é de Danilo Chaves Nakamura, para o Blog da Boitempo.
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Alain Badiou é tido como um dos principais filósofos franceses da atualidade. Nascido em 1937 na cidade marroquina de Rabat, lecionou filosofia entre 1969 e 1999 na Universidade de Paris-VIII e, atualmente, é professor emérito da École Normale Supérieure de Paris...

Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/2015/02/04/o-vermelho-e-o-tricolor-alain-badiou-sobre-o-charlie-hebdo/