sábado, 7 de fevereiro de 2015

Para uma geopolítica do capitalismo – por Paulo Fior


Para uma geopolítica do capitalismo

José Luís Fiori acaba de lançar “História, estratégia e desenvolvimento”, uma coletânea de 71 artigos em que mostra a origem do capitalismo e as razões deste sistema ter se desenvolvido.
A mais recente crise mundial pela qual o sistema capitalista ainda está passando, vem sendo, cada vez mais, alvo de diversos estudos ao redor do mundo. O cientista político José Luís Fiori acaba de lançar o seu. Na verdade, 71 artigos em que analisa o desenvolvimento econômico de países que ocuparam, ou ainda ocupam, posições de liderança política e econômica dentro de suas regiões, entre eles Portugal, Inglaterra, Estados Unidos, China, Argentina e Brasil.

Em História, estratégia e desenvolvimento: para uma geopolítica do capitalismo, Fiori, que é coordenador do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mostra a origem do capitalismo e faz uma longa análise da história mundial por meio da ótica capitalista, expondo as estratégias e as razões por este sistema ter se desenvolvido – desde a Europa do século 8 até a globalização dos dias atuais.

Na entrevista a seguir, concedida durante o lançamento do livro, Fiori – que nos anos 1980 coordenou uma pesquisa internacional comparativa sobre transformações capitalistas e ajustes nacionais na Espanha, Itália, Coreia, Japão e América Latina – faz um balanço da atual conjuntura internacional.

Os países latino-americanos – ou a maioria deles – optaram por um modelo mais intervencionista e considerado desenvolvimentista, com foco maior no social. Exemplos como Venezuela, Bolívia e até recentemente o Brasil podem servir de paradigma para um novo rumo, entre capitalismo e o dito socialismo?
 Depende do que você chame de “socialismo”. De fato, os governos boliviano, equatoriano e venezuelano têm utilizado esta palavra para se referir ou definir a nova estratégia de desenvolvimento que adotaram na primeira década do século 21. Mas se formos mais “ortodoxos’ e fiéis às definições clássicas, o que se pode dizer é que estes governos – e também o governo brasileiro – estão revolucionando a trajetória tradicional e secular de suas sociedades e estão mudando sua face e estrutura extraordinariamente elitista e desigual. Assim mesmo, as economias destes países seguem sendo capitalistas e, neste sentido, seus governos me parecem mais próximos do antigo projeto social-democrata europeu, de construção de um Estado de bem-estar social, do que do projeto cubano clássico de estatização da propriedade e construção do socialismo.

Com a equipe econômica nomeada pela presidenta Dilma Rousseff, o Brasil abandona as políticas anticíclicas e retoma o rumo da ortodoxia. Qual a sua visão sobre esta guinada?
 Significa um abandono dos aliados latino-americanos? Já escrevi em vários momentos e reitero no meu livro que não acredito que existam políticas econômicas estritamente de esquerda, nem mesmo considero que o único caminho progressista seja o das políticas heterodoxas. Acho que a política econômica sozinha não define nada, até porque todas elas são, em grandes linhas, “pró-capitalistas”. Neste sentido, cada política econômica deve ser analisada e julgada dentro do seu momento e contexto, e, sobretudo, em função da sua consistência ou não com os objetivos estratégicos de médio e longo prazo de cada governo. A mesma política econômica pode ter efeitos completamente diferentes em distintas circunstâncias geopolíticas e geoeconômicas. Por isto também acho que a avaliação da atual política econômica do governo brasileiro terá que ser avaliada e criticada a cada momento em função dos objetivos de longo prazo deste mesmo governo e dos seus antecessores imediatos.

A política comercial do Brasil sofre muitas críticas. Para alguns economistas, o país não pode ser refém do Mercosul e de outros emergentes. Teria de fazer acordos bilaterais com grandes economias, como a europeia e a estadunidense, para expandir seu comércio e integrar-se às “cadeias produtivas globais”. O senhor concorda com esta avaliação?
 Acho que temos que começar pela análise e compreensão de como funcionam os mercados internacionais que mais se assemelham a uma “guerra de movimentos” entre forças desiguais, do que a um “jogo de troca-troca” entre unidades iguais e bem informadas. Uma guerra assimétrica entre Estados e capitais, que atuam como “grandes predadores” na luta pelo controle monopólico de posições de mercado, inovações tecnológicas e “lucros extraordinários”. Por isto, acho que o problema do Brasil não é apenas o de multiplicar acordos comerciais de todo e qualquer tipo, ou de se integrar a qualquer preço em algumas “cadeias produtivas” cujo centro de comando e inovação se encontre fora do país. O verdadeiro desafio é saber como construí-las e/ou conquistá-las a partir de sua própria capacidade de expansão e inovação. Para avançar neste campo, os empresários e os economistas brasileiros, de dentro e fora do governo, teriam que deixar de lado por um tempo os seus manuais e as suas fórmulas ideológicas, para aprender com a história e a estratégia dos grandes ganhadores, os grandes Estados e capitais vitoriosos que lideraram e lideram os mercados, a inovação tecnológica e a acumulação de capital, em todo o mundo, desde o século 16. O México, por exemplo, calculou que poderia integrar-se às grandes cadeias produtivas mundiais abrindo sua economia e se integrando de forma radical com a economia estadunidense e canadense. O Nafta já tem 20 anos, e até hoje o México não avançou quase nada na sua participação ou integração nas cadeias produtivas globais e nem mesmo naquelas capitaneadas pelas grandes empresas estadunidenses. Porque no balanço final destes acordos de livre comércio entre economias assimétricas, os países mais fracos só conseguem ganhos tecnológicos infinitesimais, e acabam sempre ocupando a posição da presa dos grandes predadores.

Há um modelo de desenvolvimento ideal para o Brasil, a exemplo da influência da escola cepalina em passado recente?
 Acho que não há nem nunca houve nenhum modelo ideal de desenvolvimento. O que existem são algumas regularidades estreitamente associadas ao momento e à localização do país dentro da luta internacional dos Estados e das economias pelo poder e pela riqueza mundiais. Dependendo da coesão interna de suas elites e da capacidade de mobilização de suas sociedades em torno dos seus objetivos prioritários. Aliás, do meu ponto de vista, a “escola cepalina” nunca teve um modelo ideal de desenvolvimento, nem nunca se propôs definir regras de validade universal. O que ela sempre defendeu, e que me parece que segue sendo válido, é a industrialização dos países latino-americanos, como forma de expansão progressiva da sua capacidade tecnológica e do controle soberano de suas próprias políticas econômicas.

A retomada das relações diplomáticas entre Cuba e os EUA significa o que para o pensamento e a prática dos governos latino-americanos?
 Acho que a reaproximação dos dois países foi uma extraordinária vitória política da sociedade cubana, mas refletiu também a necessidade dos EUA redefinirem sua política para a América Latina, em face do extraordinário avanço da presença econômica da China. E mais imediatamente, foi uma tentativa de resposta dos EUA ao projeto chinês de construção do Grande Canal da Nicarágua, que anuncia uma concorrência direta com os estadunidenses pelo controle comercial do Mar do Caribe. De qualquer maneira, esta reaproximação também foi uma vitória dos demais países latino-americanos que sempre se colocaram ao lado de Cuba e contra o bloqueio econômico dos EUA. Neste sentido, esta vitória fortalece também o objetivo e o ideal de uma comunidade latina mais autônoma e soberana com relação à tradicional hegemonia hemisférica dos EUA.

O Banco dos Brics tem qual importância para este grupo tão heterogêneo? Qual a importância geopolítica frente ao FMI, por exemplo?
 Creio que a criação deste banco de desenvolvimento junto com o fundo de compensações, acordados na VIº Reunião de Cúpula, em Fortaleza, em julho de 2014, representou uma mudança qualitativa na trajetória do grupo dos BRICS, porque é de fato a sua primeira materialização concreta. A partir desta decisão, por mais longo que venha a ser o seu processo de montagem e institucionalização, o BRICS deixou de ser apenas um grupo diplomático e político informal e passou a ter um instrumento concreto de ação econômica e de administração conjunta. Talvez tenha sido a decisão mais importante no campo financeiro internacional das últimas décadas, e a primeira que escapa inteiramente aos desígnios da finança pública e privada anglo-estadunidense, mesmo sem confrontá-la.

Quais os desafios principais da América do Sul neste momento?
 Enfrentar os efeitos críticos imediatos e de médio prazo da desaceleração econômica global, sem abrir mão da estratégia da maioria dos seus países, de ataque à desigualdade social e promoção e mobilização social ativa de sua população mais pobre e, ao mesmo tempo, sem abrir mão do seu projeto comum de unificação política do continente e de expansão da sua presença, da sua influência, do seu poder e de sua participação na riqueza internacional.

O recente ataque ao jornal Charlie Hebdo reflete um mundo cuja intolerância é uma característica? Como lidar com a absorção de crenças diferentes?
De fato, depois do fim do guarda-chuva ideológico da Guerra Fria e do rápido fracasso da utopia da globalização e do projeto imperial e unipolar dos EUA aumentou em vários pontos do mundo a intensidade dos conflitos e da intolerância, sobretudo religiosa e racial. E acho também que o esvaziamento ideológico do projeto de unificação europeia junto com sua progressiva desintegração vem contribuindo decisivamente para este aumento da intolerância dentro da própria Europa e de sua antiga zona de dominação colonial, na África e Oriente Médio, onde os europeus e a OTAN seguem atuando como se fossem povos escolhidos por Deus para gerir o mundo. Você me pergunta como lidar com estas diferenças e antagonismos crescentes entre crenças e civilizações? Parece-me que segue válido o modelo helênico da convivência, do diálogo, do respeito pelas diferenças, além de aceitar de uma vez por todas que não existem mais apenas dois ou três países que sejam os responsáveis pela produção dos valores e pela arbitragem e gestão da ética internacional. E acima de tudo enterrar definitivamente a fantasia arrogante de que existam povos que tenham sido escolhidos e nominados por Deus, e por isto possuam um mandato divino para civilizar, converter ou mandar nos demais.

Como o senhor avalia a recente vitória eleitoral da esquerda e do Syriza e a formação do novo governo liderado por Alexis Tsipras, na Grécia ?
É difícil de avaliar e prever as consequências desta vitória no médio prazo. Mas sem dúvida é um acontecimento de extrema importância e um momento decisivo na trajetória da crise e desintegração que está vivendo o projeto de unificação europeia, liderado hoje com mão de ferro pela Alemanha. Como é sabido, o Syriza não tem o objetivo de deixar a UE, apenas exige uma revisão radical dos termos do acordo e das políticas de austeridade impostos à Grécia em troca da ajuda financeira concedida pela Alemanha e pelo FMI, em 2010. Políticas que destruíram nestes quatro anos a estrutura produtiva e a sociedade grega. Mas atenção porque o significado desta vitória da esquerda grega vai muito além da questão econômica e da pura renegociação da dívida e do acordo. Ela de fato dá voz e força a um movimento subterrâneo que está atravessando toda Europa neste momento, de insatisfação e de questionamento de um projeto de unificação que perdeu vigor com o desaparecimento do seu grande inimigo externo, a URSS, mas, sobretudo, deixou de ser um sonho coletivo, perdeu sua dimensão utópica e se transformou apenas num projeto realista e incremental de construção da supremacia europeia da Alemanha. Uma supremacia que traz lembranças trágicas para toda a Europa – e para a Grécia muito em particular. Neste sentido a vitória do Syriza é um grito de protesto dos desempregados da Grécia e de toda a Europa e dos deserdados do Estado de bem-estar social, mas também de todos os europeus que resistem a uma dominação alemã vazia de qualquer conteúdo utópico ou societário. A pobreza ideológica da Sra. Merkel e de sua retórica vazia e autoritária reflete apenas a pobreza a que se viu condenado um projeto que foi concebido depois da II Guerra Mundial, pelos “aliados”, para conter a Alemanha, e que acabou se transformando num instrumento de dominação europeia da própria Alemanha.

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