Para uma geopolítica do capitalismo
José Luís Fiori acaba de lançar “História, estratégia e
desenvolvimento”, uma coletânea de 71 artigos em que mostra a origem do
capitalismo e as razões deste sistema ter se desenvolvido.
A mais recente crise mundial pela qual o sistema capitalista
ainda está passando, vem sendo, cada vez mais, alvo de diversos estudos ao
redor do mundo. O cientista político José Luís Fiori acaba de lançar o seu. Na
verdade, 71 artigos em que analisa o desenvolvimento econômico de países que
ocuparam, ou ainda ocupam, posições de liderança política e econômica dentro de
suas regiões, entre eles Portugal, Inglaterra, Estados Unidos, China, Argentina
e Brasil.
Em História, estratégia e desenvolvimento: para uma geopolítica
do capitalismo, Fiori, que é coordenador do Programa de Pós-Graduação em
Economia Política Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), mostra a origem do capitalismo e faz uma longa análise da história
mundial por meio da ótica capitalista, expondo as estratégias e as razões por
este sistema ter se desenvolvido – desde a Europa do século 8 até a
globalização dos dias atuais.
Na entrevista a seguir, concedida durante o lançamento do
livro, Fiori – que nos anos 1980 coordenou uma pesquisa internacional
comparativa sobre transformações capitalistas e ajustes nacionais na Espanha,
Itália, Coreia, Japão e América Latina – faz um balanço da atual conjuntura
internacional.
Os países latino-americanos – ou a maioria deles – optaram
por um modelo mais intervencionista e considerado desenvolvimentista, com foco
maior no social. Exemplos como Venezuela, Bolívia e até recentemente o Brasil
podem servir de paradigma para um novo rumo, entre capitalismo e o dito
socialismo?
Depende do que você chame de “socialismo”. De fato, os
governos boliviano, equatoriano e venezuelano têm utilizado esta palavra para
se referir ou definir a nova estratégia de desenvolvimento que adotaram na
primeira década do século 21. Mas se formos mais “ortodoxos’ e fiéis às
definições clássicas, o que se pode dizer é que estes governos – e também o
governo brasileiro – estão revolucionando a trajetória tradicional e secular de
suas sociedades e estão mudando sua face e estrutura extraordinariamente
elitista e desigual. Assim mesmo, as economias destes países seguem sendo
capitalistas e, neste sentido, seus governos me parecem mais próximos do antigo
projeto social-democrata europeu, de construção de um Estado de bem-estar
social, do que do projeto cubano clássico de estatização da propriedade e
construção do socialismo.
Com a equipe econômica nomeada pela presidenta Dilma
Rousseff, o Brasil abandona as políticas anticíclicas e retoma o rumo da
ortodoxia. Qual a sua visão sobre esta guinada?
Significa um abandono dos aliados latino-americanos?
Já escrevi em vários momentos e reitero no meu livro que não acredito que
existam políticas econômicas estritamente de esquerda, nem mesmo considero que
o único caminho progressista seja o das políticas heterodoxas. Acho que a política
econômica sozinha não define nada, até porque todas elas são, em grandes
linhas, “pró-capitalistas”. Neste sentido, cada política econômica deve ser
analisada e julgada dentro do seu momento e contexto, e, sobretudo, em função
da sua consistência ou não com os objetivos estratégicos de médio e longo prazo
de cada governo. A mesma política econômica pode ter efeitos completamente
diferentes em distintas circunstâncias geopolíticas e geoeconômicas. Por isto
também acho que a avaliação da atual política econômica do governo brasileiro
terá que ser avaliada e criticada a cada momento em função dos objetivos de
longo prazo deste mesmo governo e dos seus antecessores imediatos.
A política comercial do Brasil sofre muitas críticas. Para
alguns economistas, o país não pode ser refém do Mercosul e de outros
emergentes. Teria de fazer acordos bilaterais com grandes economias, como a
europeia e a estadunidense, para expandir seu comércio e integrar-se às
“cadeias produtivas globais”. O senhor concorda com esta avaliação?
Acho que temos que começar pela análise e compreensão
de como funcionam os mercados internacionais que mais se assemelham a uma
“guerra de movimentos” entre forças desiguais, do que a um “jogo de
troca-troca” entre unidades iguais e bem informadas. Uma guerra assimétrica
entre Estados e capitais, que atuam como “grandes predadores” na luta pelo
controle monopólico de posições de mercado, inovações tecnológicas e “lucros
extraordinários”. Por isto, acho que o problema do Brasil não é apenas o de
multiplicar acordos comerciais de todo e qualquer tipo, ou de se integrar a
qualquer preço em algumas “cadeias produtivas” cujo centro de comando e
inovação se encontre fora do país. O verdadeiro desafio é saber como
construí-las e/ou conquistá-las a partir de sua própria capacidade de expansão
e inovação. Para avançar neste campo, os empresários e os economistas
brasileiros, de dentro e fora do governo, teriam que deixar de lado por um
tempo os seus manuais e as suas fórmulas ideológicas, para aprender com a história
e a estratégia dos grandes ganhadores, os grandes Estados e capitais vitoriosos
que lideraram e lideram os mercados, a inovação tecnológica e a acumulação de
capital, em todo o mundo, desde o século 16. O México, por exemplo, calculou
que poderia integrar-se às grandes cadeias produtivas mundiais abrindo sua
economia e se integrando de forma radical com a economia estadunidense e
canadense. O Nafta já tem 20 anos, e até hoje o México não avançou quase nada
na sua participação ou integração nas cadeias produtivas globais e nem mesmo
naquelas capitaneadas pelas grandes empresas estadunidenses. Porque no balanço
final destes acordos de livre comércio entre economias assimétricas, os países
mais fracos só conseguem ganhos tecnológicos infinitesimais, e acabam sempre
ocupando a posição da presa dos grandes predadores.
Acho que não há nem nunca houve nenhum modelo ideal de
desenvolvimento. O que existem são algumas regularidades estreitamente
associadas ao momento e à localização do país dentro da luta internacional dos
Estados e das economias pelo poder e pela riqueza mundiais. Dependendo da
coesão interna de suas elites e da capacidade de mobilização de suas sociedades
em torno dos seus objetivos prioritários. Aliás, do meu ponto de vista, a
“escola cepalina” nunca teve um modelo ideal de desenvolvimento, nem nunca se
propôs definir regras de validade universal. O que ela sempre defendeu, e que
me parece que segue sendo válido, é a industrialização dos países
latino-americanos, como forma de expansão progressiva da sua capacidade
tecnológica e do controle soberano de suas próprias políticas econômicas.
A retomada das relações diplomáticas entre Cuba e os EUA
significa o que para o pensamento e a prática dos governos latino-americanos?
Acho que a reaproximação dos dois países foi uma
extraordinária vitória política da sociedade cubana, mas refletiu também a
necessidade dos EUA redefinirem sua política para a América Latina, em face do
extraordinário avanço da presença econômica da China. E mais imediatamente, foi
uma tentativa de resposta dos EUA ao projeto chinês de construção do Grande
Canal da Nicarágua, que anuncia uma concorrência direta com os estadunidenses
pelo controle comercial do Mar do Caribe. De qualquer maneira, esta
reaproximação também foi uma vitória dos demais países latino-americanos que
sempre se colocaram ao lado de Cuba e contra o bloqueio econômico dos EUA.
Neste sentido, esta vitória fortalece também o objetivo e o ideal de uma
comunidade latina mais autônoma e soberana com relação à tradicional hegemonia
hemisférica dos EUA.
O Banco dos Brics tem qual importância para este grupo tão
heterogêneo? Qual a importância geopolítica frente ao FMI, por exemplo?
Creio que a criação deste banco de desenvolvimento
junto com o fundo de compensações, acordados na VIº Reunião de Cúpula, em
Fortaleza, em julho de 2014, representou uma mudança qualitativa na trajetória
do grupo dos BRICS, porque é de fato a sua primeira materialização concreta. A
partir desta decisão, por mais longo que venha a ser o seu processo de montagem
e institucionalização, o BRICS deixou de ser apenas um grupo diplomático e
político informal e passou a ter um instrumento concreto de ação econômica e de
administração conjunta. Talvez tenha sido a decisão mais importante no campo
financeiro internacional das últimas décadas, e a primeira que escapa
inteiramente aos desígnios da finança pública e privada anglo-estadunidense,
mesmo sem confrontá-la.
Quais os desafios principais da América do Sul neste
momento?
Enfrentar os efeitos críticos imediatos e de médio
prazo da desaceleração econômica global, sem abrir mão da estratégia da maioria
dos seus países, de ataque à desigualdade social e promoção e mobilização
social ativa de sua população mais pobre e, ao mesmo tempo, sem abrir mão do
seu projeto comum de unificação política do continente e de expansão da sua
presença, da sua influência, do seu poder e de sua participação na riqueza
internacional.
O recente ataque ao jornal Charlie Hebdo reflete um mundo
cuja intolerância é uma característica? Como lidar com a absorção de crenças
diferentes?
De fato, depois do fim do guarda-chuva ideológico da Guerra
Fria e do rápido fracasso da utopia da globalização e do projeto imperial e
unipolar dos EUA aumentou em vários pontos do mundo a intensidade dos conflitos
e da intolerância, sobretudo religiosa e racial. E acho também que o
esvaziamento ideológico do projeto de unificação europeia junto com sua
progressiva desintegração vem contribuindo decisivamente para este aumento da
intolerância dentro da própria Europa e de sua antiga zona de dominação
colonial, na África e Oriente Médio, onde os europeus e a OTAN seguem atuando
como se fossem povos escolhidos por Deus para gerir o mundo. Você me pergunta
como lidar com estas diferenças e antagonismos crescentes entre crenças e
civilizações? Parece-me que segue válido o modelo helênico da convivência, do
diálogo, do respeito pelas diferenças, além de aceitar de uma vez por todas que
não existem mais apenas dois ou três países que sejam os responsáveis pela
produção dos valores e pela arbitragem e gestão da ética internacional. E acima
de tudo enterrar definitivamente a fantasia arrogante de que existam povos que
tenham sido escolhidos e nominados por Deus, e por isto possuam um mandato
divino para civilizar, converter ou mandar nos demais.
Como o senhor avalia a recente vitória eleitoral da esquerda
e do Syriza e a formação do novo governo liderado por Alexis Tsipras, na Grécia
?
É difícil de avaliar e prever as consequências desta vitória
no médio prazo. Mas sem dúvida é um acontecimento de extrema importância e um
momento decisivo na trajetória da crise e desintegração que está vivendo o projeto
de unificação europeia, liderado hoje com mão de ferro pela Alemanha. Como é
sabido, o Syriza não tem o objetivo de deixar a UE, apenas exige uma revisão
radical dos termos do acordo e das políticas de austeridade impostos à Grécia
em troca da ajuda financeira concedida pela Alemanha e pelo FMI, em 2010.
Políticas que destruíram nestes quatro anos a estrutura produtiva e a sociedade
grega. Mas atenção porque o significado desta vitória da esquerda grega vai
muito além da questão econômica e da pura renegociação da dívida e do acordo.
Ela de fato dá voz e força a um movimento subterrâneo que está atravessando
toda Europa neste momento, de insatisfação e de questionamento de um projeto de
unificação que perdeu vigor com o desaparecimento do seu grande inimigo
externo, a URSS, mas, sobretudo, deixou de ser um sonho coletivo, perdeu sua
dimensão utópica e se transformou apenas num projeto realista e incremental de
construção da supremacia europeia da Alemanha. Uma supremacia que traz
lembranças trágicas para toda a Europa – e para a Grécia muito em particular.
Neste sentido a vitória do Syriza é um grito de protesto dos desempregados da
Grécia e de toda a Europa e dos deserdados do Estado de bem-estar social, mas
também de todos os europeus que resistem a uma dominação alemã vazia de
qualquer conteúdo utópico ou societário. A pobreza ideológica da Sra. Merkel e
de sua retórica vazia e autoritária reflete apenas a pobreza a que se viu
condenado um projeto que foi concebido depois da II Guerra Mundial, pelos “aliados”,
para conter a Alemanha, e que acabou se transformando num instrumento de
dominação europeia da própria Alemanha.
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