sexta-feira, 29 de junho de 2018

Nova pesquisa de intenção de voto

Fonte: https://twitter.com/ojotacamelo

Para compreender Karl Marx por meio de suas obras – por Eduardo Mancuso

Para compreender Karl Marx por meio de suas obras
Nos duzentos anos do filósofo, vale ler diretamente seus livros — ao invés de conhecê-los por outros autores. Aqui, um roteiro sucinto e provocador

 “transformar o mundo”, disse Marx, “mudar a vida”, disse Rimbaud
– para nós essas duas palavras de ordem são apenas uma.
André Breton

Karl Marx nasce em 5 de maio de 1818, em Trier, na Renânia, filho de judeus alemães convertidos ao cristianismo. Seu pai era um liberal admirador do Iluminismo e a família Marx tinha como vizinho um alto funcionário do governo da Prússia, barão Ludwig Von Westphalen, culto aristocrata, pai de Jenny, futura esposa do jovem Marx.

Em 1841, após alguns anos na universidade – em Bonn e Berlim – onde conhece a obra filosófica de Hegel, Marx aprova sua tese de doutorado sobre os pensadores gregos Demócrito e Epicuro, mas o reacionário governo prussiano recusa uma cátedra ao jovem doutor. Ele assume então a direção do jornal A Gazeta Renana, mas sua linha editorial democrático radical leva o governo a fechá-lo. Em 1843, casa-se com Jenny e emigra para Paris, onde conhece Engels, mergulha na história da Revolução Francesa e do socialismo e na efervescência das sociedades e dos clubes operários.

Em 1844, Marx colabora na publicação dos Anais Franco-Alemães e redige os Manuscritos econômico-filosóficos, também conhecidos como Manuscritos de Paris. Nessa obra de juventude, Marx define o comunismo como a superação da “pré-história” humana, e faz uma lúcida previsão:

Para superar o pensamento da propriedade privada, basta o comunismo pensado. Para suprimir a propriedade privada efetiva, é necessária uma ação comunista efetiva. A história virá trazê-la, e aquele movimento que já conhecemos em pensamento como um movimento que se supera a si mesmo percorrerá na realidade um processo muito duro e muito extenso.

Em 1845, Marx e Friederich Engels já haviam estabelecido uma sólida amizade e uma parceria política e intelectual que duraria décadas, e que se inicia com a elaboração a quatro mãos de A sagrada família, cujo subtítulo era Crítica de uma crítica crítica (apresentação sarcástica das idéias metafísicas de alguns filósofos idealistas alemães), em que definem a essência da sua concepção humanista e materialista da história:

A história nada faz, ela “não possui nenhuma riqueza imensa”, “não trava nenhuma batalha”. É o homem, o homem vivo, real, que faz tudo isto, que possui e luta; a “história” não é uma pessoa à parte, que usa o homem para seus próprios fins particulares; a história nada é senão a atividade do homem que persegue seu objetivo…

Nesse mesmo ano, expulso da França, Marx vai para Bruxelas, Bélgica. Ele escreve, então, as geniais e concisas Teses sobre Feuerbach, breves anotações feitas pelo jovem de 27 anos em seu caderno, marcadas por um humanismo radical e revolucionário que inaugura a filosofia da práxis. Engels as chamou de “germe genial de uma nova concepção do mundo”. Com as Teses sobre Feuerbach, Marx lança as bases de “um novo materialismo”, profundamente dialético e distinto do materialismo vulgar existente até então. Na tese 2, Marx afirma a prática como critério de verdade:

A questão de saber se é preciso conceder ao pensamento humano uma verdade objetiva não é uma questão de teoria, porém uma questão prática. É na prática que o homem deve comprovar a verdade, isto é, a realidade efetiva e a força, o caráter terrestre de seu pensamento.

Na tese 3, a prática revolucionária aparece como síntese da mudança do mundo e da autotransformação:

A doutrina materialista da mudança das circunstâncias e da educação se esquece de que as circunstâncias são mudadas pelos homens e que o próprio educador deve ser educado. (…) A coincidência da mudança das circunstâncias e da atividade humana ou autotransformação só pode ser interpretada e racionalmente compreendida como prática revolucionária.

E conclui suas anotações com a célebre tese 11:

Os filósofos apenas interpretaram o mundo de forma diferente, o que importa é mudá-lo.

Em 1846, Marx e Engels concluem mais um trabalho conjunto, os dois volumes de A ideologia alemã. O manuscrito não foi publicado e ficou entregue “à crítica roedora dos ratos” segundo os próprios autores (sua primeira edição vem a público apenas no século XX). A ideologia alemã apresenta a definição clássica sobre a dominação ideológica:

As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com que a ela sejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as ideias daqueles aos quais faltam os meios de produção espiritual.

Em 1847, Marx publica A miséria da filosofia, uma crítica da doutrina contida na “filosofia da miséria” do pensador anarquista Proudhon. Segundo Engels, A miséria da filosofia também apresenta “os princípios fundamentais de suas novas concepções históricas e econômicas”; esboça também a teoria sobre o sujeito revolucionário:

De todos os instrumentos de produção, a maior força produtiva é a própria classe revolucionária. (…) A condição de emancipação da classe operária é a abolição de todas as classes (…). No transcurso de seu desenvolvimento, a classe operária substituirá a antiga sociedade civil por uma associação que exclua as classes e seu antagonismo; e não existirá já em poder político propriamente dito, pois o poder político é, precisamente, a expressão oficial do antagonismo de classe, dentro da sociedade civil. Enquanto isso, o antagonismo entre o proletariado e a burguesia é a luta de uma classe inteira contra outra classe, luta que, levada a sua mais alta expressão, implica numa revolução total.

Marx e Engels ingressam na Liga dos Comunistas (antiga Liga dos Justos, organização de trabalhadores alemães emigrados) e redigem o programa do movimento. O Manifesto do Partido Comunista fica pronto e é editado no início de 1848, pouco antes de explodirem as revoluções europeias, a Primavera dos Povos, que apesar da derrota abre um novo período da luta de classes em escala internacional. Um espectro ronda a Europa, o espectro do comunismo: assim inicia-se o mais famoso panfleto político de todos os tempos, que apresenta como pressuposto que a história de todas as sociedades até o presente é a história das lutas de classes, resume a dialética da modernidade com a metáfora tudo que é sólido desmancha no ar, e conclui com a palavra de ordem: Proletários de todos os países, uni-vos!

Antevisão genial da globalização capitalista, o Manifesto é mais atual hoje do que há 150 anos. Para o sociólogo Michael Lowy, a atualidade do Manifesto Comunista se origina de suas qualidades ao mesmo tempo críticas e emancipadoras, isto é, da unidade indissolúvel entre a análise do capitalismo e o chamado à sua destruição, entre o exame lúcido das contradições da sociedade burguesa e a utopia revolucionária de uma sociedade solidária e igualitária.

Ainda em 1848, Marx e Engels voltam para a Alemanha e se instalam em Colônia, onde lançam o jornal Nova Gazeta Renana, mas o processo revolucionário reflui e Marx faz o balanço político do movimento em As lutas de classes na França, no qual conclui que o fim do ciclo das revoluções burguesas abriria a época das revoluções proletárias. Em março de 1850, na Mensagem ao Comitê Central da Liga dos Comunistas, Marx utiliza pela primeira vez o conceito de “revolução permanente” como o processo que levaria “até a conquista do poder estatal pelo proletariado” e “não em um único país, mas em todos os países dominantes do mundo inteiro”.

A partir daí, Marx fixa residência em Londres, onde passa anos na completa miséria, a ponto de algumas vezes não poder ir ao Museu Britânico, onde realiza suas pesquisas, em razão de ser obrigado a penhorar seu casaco de inverno para poder comprar papel e continuar escrevendo. Em 1852, ele escreve outra obra-prima, O dezoito brumário de Luis Bonaparte, sobre o golpe de estado de Napoleão III na França. As suas primeiras linhas são célebres:

Hegel observa, em uma de suas obras, que todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes. E esqueceu-se de acrescentar: a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa. (…) Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado.

Entre 1857-58, Marx redige vários manuscritos que dão origem aos chamados Grundrisse (Esboços da Crítica da Economia Política), que só serão conhecidos um pouco antes da Segunda Guerra Mundial, publicados pelo Instituto Marx-Engels –Lenin de Moscou, sem maior divulgação. Devido à sua importância na evolução intelectual da obra teórica de Marx, os Grundrisse são considerados por alguns analistas como uma espécie de “elo perdido” entre o “jovem Marx” e a sua obra da maturidade.

Em 1859, Marx publica Contribuição à Crítica da Economia Política, e no seu famoso prefácio resume as linhas gerais da sua concepção materialista da história:

Nas minhas pesquisas, cheguei à conclusão de que as relações jurídicas – assim como as formas de Estado – não podem ser compreendidas por si mesmas, nem pela dita evolução geral do espírito humano, inserindo-se, pelo contrário, nas condições materiais de existência… A conclusão geral a que cheguei e que, uma vez adquirida, serviu de fio condutor dos meus estudos, pode formular-se resumidamente assim: na produção social da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e a qual correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência. Em certo estágio de desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é a sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham movido até então. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se no seu entrave. Surge então uma época de revolução social.

Durante sua primeira década em Londres, o único rendimento de Marx era como colaborador do jornal Tribuna de Nova York, mas após esse período dificílimo, Engels garante a ele uma ajuda financeira regular, e um grande amigo, o militante comunista Wilhelm Wolf, deixa-lhe uma pequena herança. Marx dedica a ele o primeiro volume de O Capital (1867), que não consegue concluir em vida (Engels edita o volume II em 1885 e o volume III em 1894). Antes de publicar O Capital, Marx termina os três volumes intitulados Teorias da mais-valia, em que analisa criticamente o pensamento teórico sobre a economia política, particularmente o de Adam Smith e David Ricardo.

Em 1864, um congresso realizado em Londres funda a Associação Internacional dos Trabalhadores (Primeira Internacional) e Marx redige o seu Manifesto Inaugural, onde assinala que a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores. Durante o breve período de existência da Internacional, Marx se dedica a sua organização e assume a condição de principal dirigente do Conselho Geral. A derrota da Comuna de Paris, em 1871, quando o povo parisiense toma o poder na capital durante mais de dois meses e implanta um governo democrático revolucionário, mas é esmagado pelo exército francês em um banho de sangue, sela o destino da Internacional. Para Marx, a Comuna é a primeira “ditadura do proletariado” da história (baseada no armamento do povo e no voto direto e universal), e mostra que o governo dos trabalhadores precisa destruir o Estado burguês e erguer um Estado controlado democraticamente pelos produtores associados, destinado a desaparecer historicamente junto com a divisão da sociedade em classes sociais.

Marx presta homenagem à Comuna de Paris publicando A guerra civil em França, e propõe ao Congresso da Internacional de 1872, realizado na Holanda, a transferência da sede da organização para os Estados Unidos, em razão da repressão generalizada que se segue ao massacre da Comuna; porém, a Primeira Internacional deixa de funcionar em 1876.

A partir da década de 1870, declina a capacidade de trabalho de Marx, em face do agravamento do seu estado de saúde, mas, preocupado com o programa adotado pelos socialistas alemães, em 1875 escreve a Crítica ao Programa de Gotha:

Entre a sociedade capitalista e a sociedade comunista media o período da transformação revolucionária da primeira na segunda. A este período, corresponde também um período político de transição, cujo Estado não pode ser outro que a ditadura revolucionária do proletariado.

Em 1882, no prefácio da edição russa do Manifesto Comunista, Marx realiza uma previsão ao mesmo tempo heterodoxa (para os padrões do socialismo até então) e genial: que uma revolução na Rússia pode constituir-se no sinal para a revolução proletária no Ocidente, de modo que uma complemente a outra. Em 1883, após a morte de sua esposa e de sua filha mais velha, Marx falece e é enterrado no cemitério de Highgate.

Dois séculos depois do desaparecimento do “pensador socialista que maior influência exerceu sobre o pensamento filosófico e social e sobre a própria história da humanidade”, conforme ressalta verbete do Dicionário do Pensamento Marxista; após a social-democracia e o stalinismo terem sido remetidos para a “lata do lixo da história”; e em plena crise sistêmica do capitalismo globalizado, que já ameaça a continuidade da vida humana no planeta; podemos seguramente concordar com o marxista norte-americano Marshall Berman: “Marx está vivo. E vai bem de saúde”.

quinta-feira, 21 de junho de 2018

Welcome to America - por Latuff

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segunda-feira, 18 de junho de 2018

E vem aí mais uma ofensiva da bancada ruralista no Congresso contra os indígenas! - por Latuff

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O curioso caso do silêncio da esquerda sobre Julian Assange - por John Pilger e Dennis J Bernstein [*]

O curioso caso do silêncio da esquerda sobre Julian Assange
Numa comunicação recente entre Randy Credico (produtor de rádio e apoiante de Assange) e Adam Schiff (membro do Comité Judiciário da Câmara dos Representantes), o temor de Assange de prisão e extradição para os EUA foi confirmado pelo líder da histeria Russia-gate.

Credico recebeu a seguinte resposta de Schiff após a reunião com a equipe do congressista, na qual Credico tentava ligar Assange a Schiff: "Nosso comité estaria desejoso de entrevistar Assange quando ele estiver sob a custódia dos EUA e não antes".

Dennis Bernstein conversou com John Pilger, um amigo próximo e apoiante de Assange em 29 de Maio. A entrevista começou com a declaração de Bernstein apresentada por Pilger no Fórum Esquerda no último fim-de-semana em Nova York num painel dedicado a Assange intitulado: "Russia-gate e WikiLeaks".

Declaração de Pilger

"Há um silêncio entre muitos que se consideram esquerda. O silêncio é Julian Assange. Quando todas as falsas acusações caíram por terra, quando todas as falsificações sujas se mostraram ser trabalho de inimigos políticos, Julian levanta-se vingado como um dos que revelaram um sistema que ameaça a humanidade. O vídeo Dano Colateral, os registos de guerra do Afeganistão e do Iraque, as revelações do Cablegate, as revelações da Venezuela, as revelações dos email de Podesta ... este são apenas algumas das tempestades de verdade bruta que explodiram através das capitais das potências opressoras. A falsificação do Russia-gate, a conivência de uma media corrupta e a vergonha de um sistema legal que persegue os que contam a verdade e não foi capaz de conter a verdade bruta das revelações da WikiLeaks. Eles não venceram, ainda não, e eles não destruíram o homem. Só o silêncio das pessoas boas permitirá que vençam. Julian Assange nunca esteve tão isolado. Ele precisa do vosso apoio e da vossa voz. Agora mais do que nunca é tempo de exigir justiça e o direito de livre expressão para Julian. Obrigado.

Dennis Bernstein: Continuamos a nossa discussão do caso de Julian Assange, agora na embaixada equatoriana na Grã-Bretanha. John Pilger, é bom conversar consigo outra vez. Mas é uma tragédia profunda, John, o modo como eles estão a tratar Julian Assange, este jornalista e editor prolífero de quem muitos outros jornalistas dependeram no passado. Ele foi deixado totalmente no frio para defender-se por si próprio.

John Pilger: Nunca vi algo assim. Há uma espécie de silêncio misterioso em torno do caso de Julian Assange. Julian foi inocentado de todos os modos possíveis e ainda está isolado como poucas pessoas estão nestes dias. Ele está desligado das próprias ferramentas da sua actuação, não lhe são permitidos visitantes. Estive em Londres recentemente e não pude vê-lo, embora falasse com pessoas que o tinham visto. Rafael Correa, o antigo presidente do Equador, disse recentemente que encarava o que estão agora a fazer a Julian como tortura. Foi o governo Correa que deu refúgio político a Julian, o qual foi agora traído pelo seu sucessor, o governo liderado por Lenin Moreno, o qual está outra vez absorvido pelos Estados Unidos conforme a tradição, com Julian como pião e vítima.

Deveria ser um "Herói constitucional"
Mas realmente isto deve-se basicamente ao governo britânico. Embora ele ainda esteja numa embaixada estrangeira e realmente tenha a nacionalidade equatoriana, o seu direito de passagem para fora da embaixada deveria ser garantido pelo governo britânico. O Grupo de Trabalho sobre Detenções Arbitrárias das Nações Unidas (
Working Group on Arbitrary Detention ) deixou isso claro. A Grã-Bretanha tomou parte numa investigação, a qual determinou que Julian era um refugiado político e que uma grande perversão da justiça lhe fora imposta. É muito bom que esteja a fazer isto, Dennis, porque mesmo nos media não convencionais há este silêncio acerca de Assange. As ruas do lado de fora da embaixada estão virtualmente vazias, mas deveriam estar cheias de pessoas a dizerem estamos consigo. Os princípios envolvidos neste caso são claríssimos. O número um é o da justiça. As injustiças feitas a este homem são legião, tanto em termos do falso processo sueco como agora no facto de que ele deve permanecer na embaixada e não pode deixá-la sem ser preso, extraditado para os Estados Unidos e acabar num buraco infernal. Mas é também acerca da liberdade de expressão, acerca do nosso direito a saber, o qual está cristalizado na Constituição dos Estados Unidos. Se a Constituição fosse adoptada literalmente, Julian seria realmente um herói constitucional. Ao invés disso, entendo a acusação que eles estão a tentar cozinhar como uma acusação de espionagem! É demasiado ridículo. Esta é a situação tal como a vejo, Dennis. Não é uma situação feliz, mas sim uma situação a que o povo deveria acorrer rapidamente.

DB: Os seu irmãos jornalísticos parecem-se com os seus perseguidores. Eles querem apoiar aberrações como o congressista Adam Schiff do Russia-gate e como Mike Pompeo, os quais gostariam de ver Assange na prisão para sempre ou mesmo executado. Como é que responde a jornalistas que actuam como perseguidores, alguns dos quais utilizaram o seu material para escrever notícias? Este é um tempo terrível para o jornalismo.

JP: Você está absolutamente certo. É um tempo terrível para o jornalismo. Nunca vi uma coisa assim na minha carreira. Dito isto, não é novo. Sempre houve um chamado media mainstream o qual realmente representa o grande poder nos media. Isto sempre existiu, particularmente nos Estados Unidos. O Prémio Pulitzer deste ano foi concedido a The New York Times e The Washington Post por caça a feiticeiras em torno do Russia-gate! Eles foram louvados pela "profundidade das suas investigações". As suas investigações não mostraram nem um fragmento de prova real a sugerir qualquer intervenção russa séria na eleição de 2016.

Tal como Webb
O caso Julian Assange recorda-me o caso Gary Webb. Bob Parry foi um dos poucos apoiantes de Gary Webb nos media. A série "Aliança negra" de Webb continha evidência de que o tráfico de cocaína estava em curso com a conivência da CIA. Posteriormente Webb foi perseguido por colegas jornalistas e, incapaz de encontrar trabalho, acabou por cometer suicídio. O Inspector-Geral da CIA justificou-o posteriormente. Agora, Julian Assange está muito distante de atentar contra a sua própria vida. A sua resiliência é notável. Mas ele ainda é um ser humano e tem sido massacrado.

Provavelmente o que é mais duro para ele é a absoluta hipocrisia das organizações noticiosas – como The New York Times, o qual publicou "Registos de guerra" e "Cablegate" da WikiLeaks, The Washington Post e The Guardian, os quais tomaram uma vingança deliciosa a atormentar Julian. Mas a sua cobertura de Snowden deixou-o em Hong Kong. Foi a WikiLeaks que conseguiu tirar Snowden de Hong Kong e pô-lo em segurança.

Profissionalmente, considero isto uma das coisas mais repugnantes e imorais que já vi na minha carreira. A perseguição a este homem por enormes organizações de media que extraíram grandes benefícios da WikiLeaks. Um dos grandes atormentadores de Assange, Luke Harding de The Guardian, ganhou muito dinheiro com uma versão Hollywood de um livro que ele e David Lee escreveram e no qual basicamente atacam a sua fonte. Suponho que seja preciso ser psiquiatra para entender tudo isto. O meu entendimento é que muitos destes jornalistas estão envergonhados. Eles percebem que WikiLeaks fez o que eles deveriam ter feito há muito tempo e que é dizer-nos como os governos mentem.

DB: Uma coisa que me perturba muito é o modo como a imprensa corporativa ocidental especula acerca do envolvimento russo na eleição estado-unidense de 2016, que foi um golpe (hack) através de Julian Assange. Qualquer investigador sério desejaria saber quem seria motivado para isso. E ainda a possibilidade de que possa ser a dúzia ou mais de pessoas irritadas que foram trabalhar para a máquina da Clinton e aprenderam dali de dentro que o DNC [Comité Nacional Democrático] fazia tudo para se livrar de Bernie Sanders... isto não faz parte da narrativa!

Oitocentas mil revelações sobre a Rússia
JP: O que aconteceu a Sanders e o modo como ele foi esmagado pela organização da Clinton, toda a gente sabe que isto é a notícia. E agora temos o DNC a processar a WikiLeaks! Há uma espécie de elemento farsesco nisto. Quero dizer, nada disto veio dos russos. Que a WikiLeaks de algum modo estivesse na cama com os russos é ridículo. A WikiLeaks publicou cerca de 800 mil grandes revelações acerca da Rússia, algumas delas extremamente críticas do governo russo. Se você for um governo e fizer algo inconveniente ou estiver a mentir ao seu povo e a WikiLeaks obtiver os documentos para mostrá-lo, eles publicarão não importa quem seja você, seja dos Estados Unidos ou da Rússia.

DB: Randy Credico, devido ao seu trabalho e à sua decisão de dedicar uma série de artigos à perseguição de Julian Assange recentemente encontrou-se ele próprio sob ataque. Ele foi a um churrasco para a imprensa na Casa Branca e, depois de ter uma linda discussão com o congressista Schiff, ele gritou: "E sobre Julian Assange?" A sala estava cheia de reporters mas Randy foi atacado e arrastado para fora. Era como se toda a gente ali ficasse embaraçada ao reconhecer que um dos seus irmãos estava a ser brutalizado.

JP: Randy gritou algumas verdades. Isto é muito semelhante ao que aconteceu a Ray McGovern. Ray é um antigo membro da CIA mas um homem com princípios. Posso sugerir que agora ele é um renegado.

DB: Era histérico observar estes quatro guardas armados que se mantiveram a gritar "Pare de resistir, pare de resistir!" enquanto lhe batiam de modo infernal!

JP: Penso que a imagem de Ray a ser arrastado foi particularmente tocante. Estes quatro pesos-pesados, obviamente jovens mal treinados a tratarem Ray com grosseria, o qual tem 78 anos. Para mim houve algo extremamente emblemático quanto a isso. Ele enfrentou até ao desafio o facto de que a CIA estava prestes a entregar a sua liderança a uma pessoa que fora encarregada das torturas. É tanto chocante como surreal, o que naturalmente o caso Julian Assange também é. Mas o jornalismo real deveria ser capaz de penetrar o chocante e o surreal e contar a verdade. Há demasiado conluio agora, com todos estes desenvolvimentos sombrios e ameaçadores. É quase como se a palavra "jornalismo" estivesse a tornar-se deteriorada.

DB: Há certamente um bocado de conluio quanto a Israel. Assim, a palavra "conluio" é bastante apropriada.

JP: Esse é o conluio final. Mas é conluio através do silêncio. Nunca houve um conluio como este entre os EUA e Israel. Isto sugere uma outra palavra e esta é "imunidade". Há uma imunidade moral, uma imunidade cultural, uma imunidade geopolítica, uma imunidade legal e certamente uma imunidade dos media. Vemos o tiroteio sobre mais de 60 pessoas no dia da inauguração da nova embaixada dos EUA em Jerusalém. Israel tem algumas das mais perversas munições experimentais do mundo e eles dispararam-nas sobre o povo estava a protestar contra a ocupação da sua pátria e tentava recordar o povo da Nakba e o direito de retorno. Nos media isto foi descrito como "choques". Embora aquilo se tornasse tão mau que The New York Times numa edição posterior mudou a manchete da sua primeira página para dizer que Israel estava realmente a matar pessoas. Um momento raro, na verdade, em que a imunidade, o conluio, foi interrompido. Toda a conversa sobre o Irão e armas nucleares sem qualquer referência à maior potência nuclear no Médio Oriente.

DB: O que você diria acerca das contribuições feitas por Julian Assange nesta era de censura e covardia no jornalismo? Onde é que isto entra no quadro?

JP: Penso que representa algo de modo fundamental para a informação. Se remontar à época em que a WikiLeaks começou, quando Julian estava assente no seu quarto de hotel em Paris começando a montar tudo, uma das primeiras coisas que ele escreveu foi que há uma moralidade na transparência, que temos o direito de conhecer o que aqueles que pretendem controlar as nossas vidas estão a fazer em segredo. O direito a conhecer o que os governos estão a fazer em nosso nome – em nosso favor ou no nosso prejuízo – é o nosso direito moral. Julian sentia isso muito apaixonadamente. Houve momentos em que ele podia ter-se comprometido ligeiramente a fim de possivelmente ajudar na sua situação. Houve vezes em que lhe disse: "Por que você simplesmente suspende aquilo por um momento e concorda com isso?". Naturalmente, eu sabia antecipadamente o que seria a sua resposta e esta era "não". A enorme quantidade de informação que veio da WikiLeaks, particularmente nos últimos anos, representou um extraordinário serviço público. Eu estava a ler outro dia na WikiLeaks um telegrama de 2006 da Embaixada dos EUA em Caracas dirigido a outras agências na região. Isto foi quatro anos depois de os EUA tentarem livrar-se de Chavez através de um golpe. Ali se pormenorizava como a subversão deveria actuar. Naturalmente, eles vestiam isso como um trabalho de direitos humanos e assim por diante. Eu lia este documento oficial a pensar como a informação contida nele valia por anos da espécie de reportagem distorcida vinda da Venezuela. Também nos recorda que a chamada "intromissão" da Rússia nos EUA é apenas insensatez. A palavra "intromissão" não se aplica à espécie de acção implicada neste documento. Ela é a intervenção nos assuntos de outro país.

A WikiLeaks tem feito isso por todo o mundo. Ela dá às pessoas a informação a que elas têm direito. Elas têm o direito de descobrir a partir dos chamados "Registos de guerra" ("War Logs") a criminalidade das nossas guerras no Afeganistão e no Iraque. Elas têm o direito de descobrir acerca do Cablegate. Foi quando, numa observação da Clinton, soubemos que a NSA estava a reunir informação pessoal sobre membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas, incluindo os números dos seus cartões de crédito. Você pode ver porque Julian Assange fez inimigos. Mas ele também deveria ter um enorme número de amigos. Isto é informação crítica pois ela nos diz como o poder funciona e nunca aprenderemos o suficiente acerca disso. Penso que a WikiLeaks abriu um mundo de transparência e deu substância à expressão "direito a conhecer". Isto deve explicar porque ele é tão atacado, porque está tão ameaçado. Para a grande potência o inimigo não são tipos do Taliban, somos nós.

DB: E quem pode esquecer a divulgação do
filme "Assassinato colateral" de Chelsea Manning?

JP: Essa espécie de coisa não é incomum. O Vietname pretendia ser a guerra aberta, mas realmente não era. Não havia as câmaras em torno. É na verdade informação chocante mas ela informa o povo e devemos agradecer à coragem de Chelsea Manning por isso.

DB: Sim, e graças a isso ele ficou sete anos em confinamento solitário. Eles querem processar Assange e talvez enforcá-lo nas vigas do Congresso, mas e quanto a Judith Miller e The New York Times que põem o ocidente em guerra? São infindáveis os exemplos horrendos do que passa por ser jornalismo, em contraste com a admirável contribuição feita por Julian Assange.

11/Junho/2018

[*] Dennis J. Bernstein: jornalista da Pacifica Radio Network, autor de Follow the Money e Special Ed: Voices from a Hidden Classroom, dbernstein@igc.org.

O original encontra-se em
www.mintpressnews.com/silence-julian-assange/243665/

Fonte:
https://resistir.info/

Torcendo pela Seleção Brasiliera - por Latuff

Fonte: https://twitter.com/LatuffCartoons

segunda-feira, 4 de junho de 2018

Novo livro de David Graeber critica falta de propósito em uma série de trabalhos – A.N.A.

Novo livro de David Graeber critica falta de propósito em uma série de trabalhos
Para autor, manutenção de cargos inúteis dá poder a quem está no topo

por Pilita Clark

Imagine ter um emprego no qual você receba 12 mil libras (cerca de R$ 60 mil) para escrever um relatório de duas páginas para a reunião de uma grande empresa na qual o documento nem mesmo é discutido. Ou um trabalho que requer que você tenha um carro e faça uma viagem de até 500 quilômetros para supervisionar a mudança de um computador de uma sala para outra, a cinco metros de distância. Ou ser o recepcionista de uma editora na qual o telefone toca apenas uma vez por dia, se tanto, e suas únicas outras tarefas são reabastecer um vidro de balas e dar corda ao relógio cuco uma vez por semana.

Há pérolas como essas espalhadas por “Bullshit Jobs” [trabalhos absurdos], de David Graeber, um livro provocante, divertido e envolvente segundo o qual uma onda de trabalhos sem propósito está varrendo o planeta.

É uma acusação curiosa em um momento de desordenamento tecnológico abrangente e de crescente ansiedade sobre a preservação de nossos empregos, contra a ameaça dos robôs ou contra as indignidades da economia do frila. Mas ela certamente tem alguma validade.

Se a ideia de Graeber soa familiar é porque se baseia em um ensaio que ele escreveu em 2013 para uma revista radical chamada Strike!. O texto fez tanto sucesso que o número de visitas derrubou o site da publicação. Ele foi traduzido para dezenas de idiomas, em poucas semanas. A revista The Economist publicou uma resenha sobre o artigo. Anúncios que citavam o texto foram veiculados no metrô de Londres. Mais tarde, um instituto de pesquisa baseou nas ideias do artigo um levantamento que apontava que 37% das pessoas não acreditavam que seus empregos fizessem “uma contribuição significativa para o planeta”. Uma pesquisa holandesa posterior demonstrou resultado semelhante.

Para o americano Graeber, professor de antropologia na London School of Economics, isso confirmou que ele havia detectado algo importante sobre o capitalismo do século 21: ele é muito parecido com o socialismo soviético do século 20, e gera uma profusão de empregos sem propósito, apenas para manter os trabalhadores empregados. Se levarmos em conta a maneira pela qual o sistema soviético acabou, a perspectiva é preocupante.

E se de fato isso estiver acontecendo, é bizarro. O capitalismo deveria produzir eficiência. Os avanços tecnológicos deveriam permitir que passássemos menos tempo fazendo trabalhos de qualquer espécie (em 1930, o economista John Maynard Keynes estimou que a jornada semanal de trabalho talvez caísse a apenas 15 horas).

Ainda que essas coisas não tenham se materializado até agora, a ideia de que muito do que transcorre nos escritórios modernos é absurdo nada tem de novidade: em 2019, a tira Dilbert, que satiriza a vida em um escritório moderno e se tornou uma das tiras de quadrinhos mais populares do planeta, completará 30 anos.

Assim, por que será que a definição de Graeber para um trabalho absurdo – um trabalho completamente sem propósito, ou pernicioso, que os trabalhadores sabem ser inútil mas sobre o qual precisam fingir o oposto – continua a ter tanta ressonância?

Graeber não consegue oferecer uma resposta completamente convincente em seu livro. Anarquista a quem é atribuído o lema do movimento Occupy, “nós somos os 99%”, ele dá a entender que os trabalhos absurdos fazem sentido para a elite empresarial rentista, temerosa de dar aos trabalhadores explorados mais tempo e tranquilidade para pensar.

Talvez. Mas é difícil imaginar que as grandes empresas de todo o mundo tenham se envolvido em uma conspiração silenciosa para controlar as massas por meio da criação de um monte de empregos sem propósito, pelos quais essas companhias pagam.

Tampouco fica claro quantos trabalhos exatamente são completamente sem propósito.

O livro de Graeber se baseia em mais de 250 depoimentos pessoais que ele recebeu depois de criar uma conta no Gmail com o endereço “doihaveabsjoborwhat” [“tenho mesmo um emprego cretino, né?”, em tradução livre]. (O Gmail não permitiu que ele usasse a palavra “bullshit” como parte do endereço, e por isso Graeber recorreu à abreviação “bs”). Ele também convidou seus seguidores no Twitter a lhe enviar relatos sobre seus empregos absurdos. Também baixou 124 descrições que pessoas ofereceram sobre seus empregos sem propósito, para seu ensaio de 2013.

Ele admite que os resultados “podem não ser adequados para a maioria das formas de análise estatística”. E também são altamente subjetivos. Mas permitiram que Graeber descrevesse cinco categorias de empregos cretinos que parecerão familiares a muitas das pessoas envolvidas com a moderna vida empresarial.

Há os lacaios (como o recepcionista subutilizado), que existem para conferir prestígio aos seus chefes; a tropa de choque (pessoal de relações públicas, lobistas, operadores de telemarketing), empregados apenas porque outras empresas também empregam pessoal nessas funções; a “turma do esparadrapo”, cujos empregos foram criados para consertar defeitos organizacionais que na verdade não existem; os carimbadores, que permitem que uma organização afirme estar fazendo alguma coisa que ela na verdade não faz; e os feitores, que supervisionam gente que não precisa de supervisão.

As histórias que ele relata são muitas vezes impagáveis, ainda que seja difícil acreditar em algumas delas. Graeber escreveu sobre um sujeito chamado Simon, que disse ter passado dois anos analisando o funcionamento interno de um grande banco, e ter descoberto que pelo menos 80% dos 60 mil funcionários da empresa eram desnecessários. “O trabalho deles podia ser executado por softwares simples, ou era completamente desnecessário, porque os programas foram criados para estruturar ou replicar um processo que já desde o começo era inútil”, disse Simon.

Graeber aceita sem discutir a ideia inconcebível de que o banco estava empregando 48 mil pessoas que nada faziam de útil – ou ao menos nada que uma máquina não fosse capaz de fazer com facilidade. Isso pode ser verdade. Ou pode ser uma completa asneira. Não há como saber, de fato.

Mas a situação se enquadra a uma das teorias centrais de Graeber sobre o motivo para que trabalhos inúteis tenham proliferado: “gestão feudal”, com hierarquias complexas de pessoas que dão empregos a subordinados a fim de maximizar a importância delas mesmas. O resultado, ele afirma, é um desastre que significa “uma verdadeira cicatriz em nossa alma coletiva”.

A solução que ele propõe será familiar para muitos leitores: a renda universal básica. Que cada cidadão recebesse um valor fixo por mês permitiria, segundo Graeber, que as pessoas se libertassem de trabalhos inúteis, e as libertaria para que tivessem propósitos reais em suas vidas.

O conceito já tem defensores em todo o espectro político. Os esquerdistas acham que isso poderia acabar com a pobreza e promover a igualdade da mulher. Bilionários do Vale do Silício como Elon Musk acreditam que a prática virá a se tornar necessária, porque as máquinas roubarão empregos humanos. O objetivo de Graeber é mais radical: ele quer eliminar de vez a conexão entre o trabalho e o sustento.

Provavelmente vai ter de esperar muito. Nos últimos anos, programas piloto de renda básica foram lançados em todo o mundo, do Quênia ao Canadá e Estados Unidos. Os resultados ainda não puderam ser avaliados. A Finlândia anunciou que seu teste do conceito não seria prorrogado para além do prazo inicial planejado, de dois anos.

Mas como muita coisa mais no livro de Graeber, a ideia captura a imaginação, nos leva a refletir e merece atenção.

> Financial Times, tradução de Paulo Migliacci

Bullshit Jobs

David Graeber, ed. Simon & Schuster, R$ 42,90, 368 págs.

Fonte: Folha de S. Paulo | 02/06/2018

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Alarme contra o incêndio
Diálogo com Hilda Hilst e Walter Benjamin. “Nos 200 anos de Karl Marx e 50 anos das sublevações e contestações de maio de 68, quem, quais lutas irromperão nosso vazio, nossa suspensão?”


 “Se às vezes é lógico confiar na aparência dos fenômenos,
este primeiro canto termina aqui.”
Lautrámont, Cantos de Maldoror

“Alguém disse: estou triste com uma fita preta. Quem foi?” [1] Essa é uma frase do livro Estar sendo, ter sido da autora Hilda Hilst e, este texto não trata de sua obra. Ora, não tratar de sua obra, de seus textos, suas poesias pode significar não explorá-los formalmente, enquanto uma ciência literária ou acadêmica. No entanto, poderíamos fazer um movimento de suspensão dessa frase e pensá-la em outras dimensões, algo fora de um intuito científico. De que forma?

Seriam várias, a começar por essa ideia de suspensão: temos a obra, o livro, a frase em seu contexto ficcional, sim, de uma narrativa, muito embora não linear, não tradicional, não comum. No tocante à obra temos vários personagens num fluxo de consciência impecável e bem característico da criação hilstiana: são vários e um só, ao mesmo tempo se misturam, gritam, pedem, procuram o mistério, se debatem em diversas questões “da baixeza e grandeza do ser humano”, para lembrar Henry Miller. Enfim, a obra se explica sozinha, não precisaríamos aqui, acredito, estudá-la minuciosamente e digerir para leitores, ao menos caberia a outra intenção, não a nossa nesse texto. Falávamos das formas de suspensão. A idéia é retirarmos a sentença de seu contexto formal e estendê-lo a vida atual, atividade livre, demais individual diriam: um esforço-de-cada-um. Mesmo?

Bom, leiamos novamente: “Alguém disse: estou triste com uma fita preta. Quem foi?” Um ser alguém disse, não o sabemos, habita os longes, demasiado distante de nós, no entanto é um ser de ação: está triste, e por uma materialidade: a fita preta. Uma pausa. Diríamos que esse exercício está de certa forma tautológico, afirmando o Real, ou melhor, o re-afirmando. Sim, estamos convencidos disso, da tristeza por uma causa específica do personagem. Bom, é justamente essa dureza Real que nos interessa suspender, e para onde, que lugar, qual sua geografia? Digamos, para lembrar o poeta italiano [2] que “os sentimentos são históricos”, somos impelidos por eles, nos angustiamos, entristecemos, amamos e etc. E essas formas de expressão, por mais contidas e individuais que sejam, guardam sua dimensão histórica; desde a família e como aprendemos a sofrer e a falar; à cultura mais geral e às dimensões de classe. Em relação ao personagem de Hilda Hilst ele nos é estranho, “estranho à vossa lavra”, bem lembra ela em outra poesia. Também essa característica do desconhecido nos autoriza a suspendê-lo e unir à idéia da historicidade do sentimento.

Em relação ao atual país, precisaríamos nos perguntar: quais perspectivas temos, ou melhor, de que forma nossa intuição nos permite produzir um horizonte de espera e expectativa que justifique o presente? Uma pergunta mais geral. Politicamente, quais nossas expectativas: não as possuímos mais, elas se encontram suspensas, evidentemente que de maneira abstrata, muito embora a sensação na concretude seja de “vazio”, a uma nebulosidade intensa, ainda uma suspensão.

O poder hoje no país não possui uma forma exata, digamos em termos mais práticos de governo mesmo, quem dirá ser Michel Temer aquilo que nos governa? Não, não há. Não há dramaticidade em sua política, não há identificação, aquilo é um vazio e toda sua constituição é vazia e, é vazia pois é farsesca, possui um caráter de perversidade, não no sentido moral do mal e bem, mas por se saber farsante e ainda sim, simular. Vladimir Safatle nos indicou uma leitura, “somos um país em desagregação” [3], qualquer metáfora de espera (não esqueçamos de Godot) é pouca para nós, de sorte que não esperamos nada: temos um candidato à presidência que ganharia com apoio popular, muito embora não tenha constituído um projeto, um projeto verdadeiramente popular, de base, que está preso politicamente. Um outro, abertamente fascista e violento, surfa numa onda de parte de uma juventude proto-fascista, conservadora, degradante. Juventude essa que não mais porta os valores de seus pais, por mais conservadores que eles também sejam, é uma juventude violenta e, talvez pela primeira vez no Brasil, se envolve no discurso “bolsonarista” como aquilo que vai retirá-la do tradicional, isto é, soma forças as ideias desse sujeito por creditarem a elas algo ”marginal”, “de rebeldia”.

Sabemos que não o é, representa outra coisa, mas é colocado com a “alternativa rebelde”. Basta ver seus apoiadores, quem eles são. Ora, vocês imaginam, mais um esforço se quereis, uma retomada do PSDB em 2018? Não conseguimos vislumbrar, poderíamos justificar isso como um mecanismo de defesa nossa, para não nos aprofundarmos mais (ainda) num pessimismo. Talvez sim, mas, retornemos à idéia de “suspensão”, o que nos diz? Politicamente, em seu sentido mais pobre de democracia representativa, eleitoreira, não temos horizonte, sabemos que hoje há um vazio, somadas a desagregação nacional e a de um imaginário mantido a duras penas por anos, de uma república consolidada, de paz social.

Na realidade para parte da população sim, isso poderia ter ocorrido, entretanto é a velha frase de Walter Benjamin, quando acuado pela força nazi-fascista crescente na Europa durante o entre-guerras, ele dizia nas teses “Sobre o conceito da História”:

“A tradição dos oprimidos ensina-nos que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é a regra.Temos de chegar a um conceito de história que corresponde a essa ideia. Só então se perfilará diante dos nossos olhos, como nossa tarefa, a necessidade de provocar o verdadeiro estado de exceção; e assim a nossa posição na luta contra o fascismo melhorará. […] O espanto por as coisas a que assistimos ‘ainda’ poderem ser assim no século vinte não é um espanto filosófico” [4] .

A dificuldade que encontramos hoje para compreender de forma mais sólida o que acontece pode nos indicar a encruzilhada em que fomos metidos: não há perspectiva, faltam horizontes, de forma que a “política está suspensa”, é esse o sentimento histórico, de sorte que podemos estar mais aprofundados numa exceção, numa ausência que imaginamos (e não é essa a tristeza? Conseguimos, com nossa imaginação, vislumbrar somente uma radicalização maior da direita, mais um Golpe, uma tutela armada geral.) Há o vazio; há suspensão, é esse o Real, “a fita preta nos entristece”. Não se trata de saber quem ganhará ou quem perderá, mas compreender que nessa exceção atual o progresso rumo a um abismo não está tão longe, tão alhures. Nos 200 anos de Karl Marx e 50 anos das sublevações e contestações de maio de 68, quem, quais lutas irromperão nosso vazio, nossa suspensão? “É preciso cortar o rastilho antes que a centelha chegue à dinamite”, diria Walter Benjamin. Puxemos, então, o alarme contra o incêndio.
________________________
[1] Hilda Hilst, Estar Sendo, Ter Sido. São Paulo, Nankin Editorial, 1997
[2] Pasolini, Pier Paolo. Poemas. São Paulo, Cosac Naify, 2015
[3] Revista Cult. “Criar o poder popular”. São Paulo,abril 2018
[4] Walter Benjamin. “Sobre o conceito da História”, in O anjo da história. Belo Horizonte, Ed. Autêntica, 2012.

Imagem: Hieronymus Bosch