domingo, 30 de dezembro de 2012

Caso Latuff: A inversão ideológica; como fazer do ocupante uma vítima – por Luciana Garcia de Oliveira (*)

Caso Latuff: A inversão ideológica; como fazer do ocupante uma vítima
Um temor emerge por parte daqueles que fazem críticas contra o governo israelense: ser alvo da acusação de antissemitismo. A manipulação do conceito de antissemitismo comporta muitas armadilhas intelectuais e morais. Criticar Israel não significa negar o direito ao Estado, o direito à crítica é vital para todas as sociedades democráticas e, as sociedades que protegem esse direito têm mais chances de sobreviver do que as que negam.
Um breve resgate histórico sobre a formação do Oriente Médio, nos permite constatar que a fundação do Estado de Israel esta intimamente relacionado à muitos conflitos regionais. Porém desde a internacionalização do conflito Israel – Palestina decorrente da emergência do problema dos refugiados palestinos em 1948, o assunto passou a ser amplamente discutido nos meios jornalísticos, artísticos e acadêmicos no mundo inteiro.

A partir de então, entre tantos adversários da política israelense, muitos antissemitas confessos também passaram a configurar nessa mesma lista. Motivo pelo qual existem hoje a assimilação de toda crítica à Israel e de sua política à uma nova versão do antissemitismo. Mesmo sentimento pelo qual acarretou na ira de muitos deputados do Knesset (parlamento israelense), no momento em que o líder Yasser Arafat, à convite oficial do governo norte-americano, visitou o museu do Holocausto em Washington, em 1998. Cabe indagar, no entanto, o que teria acontecido se ele recusasse o convite?

Analisar a atual amplitude do termo antissemitismo requer antes de mais nada, eliminar qualquer confusão entre judaísmo e política israelense, distinguir entre crítica política e antissionismo e, sobretudo diferenciar antissemitismo e antissionismo. Essa confusão conceitual, propositadamente utilizada, teve início, muito provavelmente antes da segunda Intifada, no momento em que Ariel Sharon, de maneira provocativa visitou a Esplanada das Mesquitas/Monte do Templo em Jerusalém sob um forte esquema de segurança, às vistas de cerca de centenas de palestinos que estavam naquele local, a presença do primeiro ministro acarretaram violentos confrontos e muitas mortes, naquela ocasião.

Desde então um grupo de intelectuais da comunidade judaica – sionista, tem se dedicado à explorar politicamente a possibilidade dos desvios antissemitas a fim de angariar apoio em direção à política pró- israelense.

Se os atos discriminatórios aos judeus são intoleráveis, não é indiferente constatar que atualmente esses casos estejam intimamente ligados aos conflitos no Oriente Médio. Por outro lado, a suspeita de que os verdadeiros antissemitas se apropriam da causa palestina, não é considerado praticamente ilegítima.

Diante de todos esses fatores, um grande temor emerge por parte daqueles que estão dispostos à fazer críticas contra o governo israelense, sob pena de serem alvo de difamação, por intermédio da acusação de cometerem atos antissemita. De acordo com essa ideologia então predominante, o sionismo passa a ser sinônimo de Israel, ou seja, deixa de ser um movimento político e se torna o próprio Estado.

Os estragos causados por essa deformação são enormes, atingem desde a questão do véu islâmico, vai de encontro ao demasiado apoio à visão dos neoconservadores norte-americanos, até à obsessão securitária. Ao mesmo tempo, esses porta-vozes da comunidade judaica-sionista banalizam o antissemitismo e difamam centenas de judeus que rejeitam publicamente todas essas manipulações. De fato, quando a acusação de antissemitismo é sistematicamente utilizada para defender Israel à qualquer preço, inviabiliza, da mesma forma para que a eficácia dessas acusações recaiam de fato, naqueles que depredam as sinagogas ao redor do mundo, em conformidade à bandeira neonazista.

O sentimento antissemita, para esses autores, podem ser encontrado em todos os lados, mas principalmente na esquerda politica, dentro das comunidades árabes e islâmicas e, entre os judeus de esquerda. Esse inconveniente, acarreta no atual processo de transformação de toda a comunidade árabe, em um grande alvo de perseguições, ocupado no passado pela figura do judeu, de acordo com as palavras de Edward Said, em sua obra Orientalismo – O Oriente como uma invenção do Ocidente.

O antigo enredo da conspiração, a qual revelava a figura do judeu como o promotor de um empreendimento mundial desapareceu. Em seu lugar, emerge a representação simétrica com relação aos árabes e muçulmanos, na imagem dos grandes detentores das riquezas petrolíferas e do terrorismo suicida internacional.

Essa mesma imagem também foi explorada pelo comediante brasileiro, Marcelo Adnet, em um dos programas Comédia MTV, a qual de maneira irresponsável apresentou em formato de humor o que seria uma seleção dos melhores vídeo clips no Mundo Árabe e Islâmico. Adnet personifica um apresentador afegão, em um cenário deserto, com cavernas e vestido com uma roupa típica dos talebans e explora demasiadamente muitos esteriótipos árabes e islâmicos.

Um dos esteriótipos mais marcantes é a questão do ódio e da intolerância irracional nata por parte de todos os muçulmanos ao ocidente, simbolizada na referência irônica do apresentador ao sequestro dos jornalistas europeus no Afeganistão e no obsessivo projeto de destruição da cultura ocidental e norte-americana no mundo. Sobre esse aspecto, o muçulmano, representado por Adnet é apresentado como um sujeito ignorante, preconceituoso e violento, em um dos vídeos clipes apresentados, a sua esposa (encenada por um ator) usa uma burca preta, semelhante às utilizadas pelas mulheres na Arábia Saudita.

A violência contra a mulher muçulmana é apresentada de forma espontânea e generalizada, sobretudo quando o marido dela (no vídeo clipe) a ameaça com violência, diante da possibilidade de adultério. No mesmo instante em que a música estava sendo cantada pelo humorista, outro ator da mesma emissora realiza uma coreografia ao fundo, com um figurino jihadista e muitos explosivos ao redor do seu corpo, numa imagem que remete ao incurável fanatismo islâmico.

Além da prática de islamofobia (termo que denota aversão ao islã), o mesmo programa, de maneira debochada, apresentou em um dos “vídeos clipes premiados”, um palestino na Cisjordânia ocupada, representado por um funkeiro armado com duas metralhadoras, cuja a música retrata a banalização da violência contra os seus inimigos. A distorção das imagens utilizadas pelo programa juvenil e pelo humorista retrata o palestino de modo a ressaltar uma série de esteriótipos que vão muito além dos preceitos islamofóbicos. O palestino, o “Mc Mata” canta o funk É nois que tá, sob um refrão “Cisjordânia é nóis que tá”.

Ainda diante das graves conseqüências do emprego à islamofobia, muito recentemente, o embaixador norte-americano na Líbia, J. Christopher Stevens e três colegas de trabalho foram mortos na cidade de Benghazi, em um ataque de manifestantes salafistas (em sua maioria) ao escritório do consulado americano na cidade. O trágico ataque teria sido motivado por uma grande revolta gerada pelas informações contidas no filme Innocence of Muslims, produzido pelo americano-israelense Sam Bacile, as quais retratam o profeta Mohammed de modo caricato.

O auge da revolta no entanto, ocorreu após uma entrevista do diretor do filme ao Wall Street Journal, a qual declarou publicamente “que o Islã é um câncer”. O que de fato culminou para que as revoltas se espalhassem para outros países de maioria muçulmana, como o Egito. No Cairo, enquanto cerca de milhares de manifestantes protestavam em frente à embaixada dos Estados Unidos, alguns representantes da Fraternidade Muçulmana muito oportunamente puderam convocar novos protestos pacíficos contra o filme para a sexta-feira seguinte (dia sagrado na religião muçulmana).

A repercussão negativa da produção cinematográfica, ecoou, da mesma forma, dentro do grupo Taliban (no Afeganistão). Na quarta-feira (dia 12 de setembro), líderes talibans pediram à comunidade afegã para que se preparem para uma “guerra” contra os americanos e apelaram para que insurgentes “se vinguem” nos soldados norte-americanos ainda presentes no país.

Por esse lado, e afim de evitar tanta violência decorrente de distorções conceituais, todas as questões relativas ao sionismo, antissionismo, antissemitismo e islamofobia, deveriam ser formuladas no espaço público, de modo eqüitativo, de preferência dentro das Universidades, de acordo com o comprometimento dessas instituições na promoção ao debate político e acadêmico. Porém, muito diferentemente do papel que deveriam exercer, as Universidades, cada vez mais, têm sido palco de uma campanha de censura de informações e de difamação, capazes de distorcer qualquer trabalho artístico e acadêmico pró-palestino sob a acusação de práticas de antissemitismo.

Um dos principais alvos de difamação no Brasil, o cartunista Carlos Latuff, em algumas ocasiões teve o seu nome registrado em citações jornalistas e acadêmicas como um exemplo de artista antissemita, desde que começou a posicionar-se politicamente por meio de suas criações sobre a questão palestina, ao transmitir em seus desenhos à realidade dos territórios ocupados, a discriminação, a política de expansão dos assentamentos, o muro e muitos outros casos de desrespeito aos direitos humanos. Toda a campanha de difamação pessoal, atingiu o seu auge, sobretudo no momento em que participou de um concurso de cartoons sobre o Holocausto em Teerã (muito condenado internacionalmente). Cabe ressaltar que o evento iraniano foi criado em resposta à divulgação de alguns cartoons dinamarqueses sobre a imagem do profeta Mohammed, líder religioso da religião muçulmana.

Nessa altura, ao classificar-se em segundo lugar com um trabalho que retratava um palestino chorando diante de um muro erguido pelo governo de Israel, toda a polêmica do desenho, girou em torno do detalhe da roupa do palestino: um uniforme de prisioneiros dos campos de concentração nazista. A inevitável comparação do nazismo à política israelense nos territórios ocupados palestinos, rotulou à partir daí, todos os trabalhos do cartunista como sendo de natureza tendenciosa, antissemita e não comprometida com a promoção da paz.

Por outro lado, são ainda poucos o que conseguem de fato diferenciar os trabalhos preconceituosos dos trabalhos sérios, comprometidos com questões políticas e sociais relevantes. Ao tratarmos sobre os nomes citados, Marcelo Adnet, Sam Bacile e Carlos Latuff respectivamente, é bem possível constatar o uso apelativo dos dois primeiros aos estereótipos de modo à prejudicar a imagem da comunidade árabe, da mulher muçulmana, do anseios do povo palestino e da religião. Muito diferente dos desenhos de Carlos Latuff que, muito embora retratem de maneira crítica alguns integrantes do governo de Israel e de seu Exército, nunca o fazem de forma pejorativa e estereotipada, como eram feitos no passado, pelos publicitários do Reich alemão. Foi durante essa época que os judeus, de uma maneira geral, costumavam serem retratados na imagem do banqueiro explorador e mercenário, na figura do comunista perigoso e violento e suas feições geralmente ressaltavam o nariz e uma cartola mais extravagante do que o normal.

Aqui no Brasil, mesmo diante da gravidade das imagens retratadas nos programas humorísticos apresentados por Marcelo Adnet transmitido pelo canal MTV, o seu nome nunca esteve envolvido em quaisquer acusações de prática de discriminação de teor islamofóbico, qualificado como uma forma de racismo, de acordo com as palavras do secretario das Nações Unidos, Ban Ki-Moon, durante discurso proferido em uma Conferência Internacional contra o Racismo, em Genebra (Suiça). Muito diferente, dos prestigiados trabalhos do Latuff, que frequentemente são alvos de acusações por práticas de antissemitismo, sem qualquer tipo de critério.

A manipulação do conceito de antissemitismo comporta, nesse sentido, muitas armadilhas intelectuais e morais. Criticar Israel não significa negar o direito ao Estado, o direito à crítica é vital para todas as sociedades democráticas e, as sociedades que protegem esse direito têm mais chances de sobreviver do que as que negam.

(*) Integrante do Grupo de Trabalho sobre o Oriente Médio e o Mundo Muçulmano do Laboratório de Estudos sobre a Ásia da Universidade de São Paulo (LEA-USP).

sábado, 29 de dezembro de 2012

"Governo israelense não representa o povo judeu", diz cartunista listado como antissemita - por Marina Mattar

"Governo israelense não representa o povo judeu", diz cartunista listado como antissemita
A organização Simon Wiesenthal divulgou nesta quinta-feira (27/12) sua edição anual do ranking dos “10 maiores antissemitas” ao redor do mundo. O cartunista brasileiro e colaborador do Opera Mundi Carlos Latuff aparece na terceira posição na lista de 2012 por conta de suas charges críticas à operação Pilar Defensivo, mais recente investida militar israelense na Faixa de Gaza.

"Crítica ou mesmo ataque a entidade política chamada Israel não é ódio aos judeus porque o governo israelense não representa o povo judeu, assim como nenhum governo representa a totalidade de seu povo”, escreveu ele em nota (veja a íntegra abaixo).
Latuff diz que o lobby pró-Israel tenta associar questionamentos ao Estado de Israel com o sentimento antijudaico para criminalizar a manifestação de posturas críticas e confundir a opinião pública: “Nenhuma campanha de difamação vai fazer com que eu abra mão da minha solidariedade com o povo palestino”.

Conhecido internacionalmente por suas charges, o artista se aproximou da luta palestina no final dos anos 1990 quando viajou para o país e, desde então, imprime críticas à política israelense.
Abaixo da Irmandade Muçulmana do Egito e do líder iraniano Mahmoud Ahmadinejad, o artista brasileiro aparece em terceiro na lista, na frente de torcidas organizadas e partidos políticos neonazistas no ranking, que incluiu também o jornalista e editor alemão Jakob Augstein.
“Durante os conflitos recentes instigados pelo Hamas contra o Estado judaico, o brasileiro criticou Israel e o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu por fazer o que qualquer outro líder mundial teria feito para proteger civis inocentes”, afirma o texto da organização.

A menção a Latuff é ilustrada por uma charge (veja ao lado) na qual o premiê aparece torcendo o corpo de uma criança palestina em cima de uma urna. A imagem faz referência às possíveis motivações políticas de Netanyahu, em plena campanha para a eleição legislativa marcada para 22 de janeiro, no ataque ao território palestino em novembro deste ano. A charge, no entanto, não tem nenhuma menção à religião judaica.

O desenho já havia sido criticado publicamente pelo rabino Marvin Hiers, fundador do Centro Simon Wiesenthal, quando foi divulgado pelo site norte-americano Huffington Post no mês passado. O ativista judeu acusou Latuff de “pior que antissemita” e pediu que o site retirasse a charge do ar.

“Estou no caminho certo”

O artista, que classificou sua colocação no ranking de “piada digna de filme de Woody Allen”, disse ao Opera Mundi se sentir “motivado” pelas críticas do centro judaico. “Se organizações do lobby pró-Israel estão incomodadas com minhas charges, é porque estou no caminho certo”, afirmou ele.

Ele lembra que o escritor português José Saramago, o ativista sul-africano Desmond Tutu e o ex-presidente norte-americano Jimmy Carter, e muitos outros também sofreram com esse tipo de acusações: “Estou em boa companhia”.

Leia a nota do cartunista em resposta ao Instituto Simon Wiesenthal na íntegra.
"Recebo com tranquilidade a citação de meu nome numa lista dos '10 mais antissemitas' pelo Centro Simon Wiesenthal. A organização, que leva o nome de um célebre caçador de nazistas, sob o argumento da proteção aos direitos humanos e combate ao antissemitismo, promove a agenda da política israelense.

A minha charge que acompanha o relatório mostra o primeiro-ministro de Israel Benjamin Netanyahu tirando proveito eleitoral dos recentes bombardeios a faixa de Gaza (o ataque foi realizado a 2 meses das eleições em Israel). Em novembro desse ano, o rabino Marvin Hiers, fundador do Centro Simon Wiesenthal, me acusou publicamente na Internet de ser "pior que antissemita" por fazer tal crítica através do desenho.

Não é por acaso que meu nome foi citado junto com o de diversos extremistas e racistas. É uma estratégia do lobby pró-Israel associar de maneira maliciosa críticas ao estado de Israel com ódio racial/religioso, numa tentativa de criminalizar a dissidência.

Crítica ou mesmo ataque a entidade política chamada Israel não é ódio aos judeus porque o governo israelense NÃO representa o povo judeu, assim como nenhum governo representa a totalidade de seu povo. Essa não foi a primeira e nem será a última vez que tal incidente acontece, e por entender que tais acusações são orquestradas por quem apoia a colonização da Palestina, seguirei com minha solidariedade ao povo palestino."
Fonte: http://operamundi.uol.com.br/

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

O papel sujo da bancada ruralista no Brasil - por Latuff

Fonte: http://twitpic.com/photos/CarlosLatuff

Michael Löwy: "Sem indignação, nada de grande e significativo ocorre na história humana" - Fundação Oswaldo Cruz

Michael Löwy: "Sem indignação, nada de grande e significativo ocorre na história humana"
Nesta entrevista à Fundação Oswaldo Cruz, o investigador do Centre National de la Recherce Scientifique (CNRS) diz que a dinâmica de movimentos como o dos “Indignados” é de uma crescente radicalização anticapitalista, embora nem sempre de forma consciente. Michael Löwy esteve no Brasil em dezembro para lançar ‘A teoria da revolução no jovem Marx', publicado em 1970 na França e que só agora ganha edição em português.
Michael Löwy esteve no Brasil no final de 2012 para lançar o livro ‘A teoria da revolução no jovem Marx', que foi publicado em 1970 na França e só agora tem uma edição em português.

Durante a sua estada no país, participou de muitos eventos e falou sobre temas diversos, como literatura e a questão ecológica. Nada que surpreenda no perfil de um pesquisador que circula com desenvoltura entre o estudo dos clássicos e a análise da conjuntura atual, e isso sem abrir mão da militância política de esquerda. Nesta entrevista, ele lança mão dos conceitos que aprendeu com os clássicos – principalmente Marx e Walter Benjamin – para discutir a crise que o capitalismo atravessa e os movimentos reivindicatórios que têm surgido em diferentes cantos do mundo. Além disso, explica os princípios e limitações da ideia de ‘ecossocialismo', com a propriedade de ter sido um dos autores do Manifesto que defende essa bandeira.

Brasileiro residente na França desde 1969, Löwy é diretor de pesquisas do Centre National de la Recherce Scientifique (CNRS) e responsável por um seminário na Écoles de Hautes Études en Sciences Sociales. Só em português, é autor de mais de 20 livros.

Como a teoria da revolução do jovem Marx, de que trata o seu livro, nos ajuda a entender o momento atual, com mobilizações de indignados no Estado espanhol, Grécia e vários outros países da Europa, além de movimentos de ‘ocupação' em vários locais do mundo? Esses são movimentos anticapitalistas?
Os movimentos de ‘Indignados' opõem-se às políticas ditadas pelo capital financeiro, pela oligarquia dos bancos e aplicadas por governos de corte neoliberal, cujo principal objetivo é fazer com que os trabalhadores, os pobres, a juventude, as mulheres, os pensionistas e aposentados – isto é, 99% da população – paguem a conta pela crise do capitalismo. Esta indignação é fundamental. Sem indignação, nada de grande e de significativo ocorre na história humana. A dinâmica destes movimentos é de uma crescente radicalização anticapitalista, embora nem sempre de forma consciente. É no curso de sua ação coletiva, de sua prática subversiva, que estes movimentos poderão tomar um caráter radical e emancipador. É o que explicava Marx na sua teoria da revolução, inspirada pela filosofia da práxis.

Marx escreveu no século XIX. As revoluções socialistas a que assistimos aconteceram no século 20. O que a realidade trouxe de diferente na forma como se concretizaram e na forma como se entende revolução nos séculos 19, 20 e 21?
As revoluções sempre tomam formas imprevistas, inovadoras, originais. Nenhuma se assemelha às anteriores. A Comuna de Paris (1871) foi um formidável levante da população trabalhadora da grande cidade e a Revolução Russa foi uma convergência explosiva entre proletariado urbano e massas camponesas. Nas demais revoluções do século 20, desde a Mexicana de 1911 até a Cubana de 1959, ou nas revoluções asiáticas (China, Vietname), foram os camponeses o principal sujeito do processo revolucionário. Não podemos prever como serão as revoluções do século 21: sem dúvida, não repetirão as experiências do passado. Por outro lado, existe o que Walter Benjamin chamava de ‘a tradição dos oprimidos': a experiência da Comuna de Paris inspirou a Revolução Russa e é ainda até hoje um exemplo de autoemancipação revolucionária das classes subalternas.

Com a crise capitalista de 2008 e o movimento de intervenção dos Estados para salvar a economia dos países, acreditou-se que a era neoliberal havia chegado ao fim. No entanto, tem sido intensificada cada vez mais a destruição dos direitos conquistados com o Estado de Bem-Estar Social, como temos visto acontecer na Europa (França, agora Espanha...). O que isso significa?
A intervenção dos Estados não significou de forma alguma o fim do neoliberalismo. O único objetivo desta intervenção era salvar os bancos, resgatar a dívida e assegurar os interesses dos mercados financeiros. Para este objetivo, foram sacrificadas conquistas de dezenas de anos de lutas dos trabalhadores: direitos sociais, serviços públicos, pensões e aposentadorias, etc. Para a lógica de chumbo do capitalismo neoliberal, tudo isto são ‘despesas inúteis'.

Um debate antigo da esquerda é sobre a relação entre revolução e reforma. O contexto do final do século 20 e do início do século 21, com situações como, por exemplo, a vitória eleitoral de partidos de esquerda na América Latina e mesmo em alguns países da Europa recolocam essa questão. Como analisa essa relação hoje?
Rosa Luxemburgo já havia explicado, em seu belo livro ‘Reforma ou Revolução?' (1899), que os marxistas não são contra as reformas; pelo contrário, apoiam qualquer reforma que seja favorável aos interesses dos trabalhadores: salário mínimo, seguro médico, seguro desemprego, por exemplo. Simplesmente, lembrava ela, não podemos chegar ao socialismo pela acumulação gradual de reformas; só uma ação revolucionária, que derruba o muro de pedra do poder político da burguesia, pode iniciar uma transição ao socialismo. O problema da maioria dos governos de centro-esquerda, seja na Europa ou na América Latina, é que as ‘reformas' que aplicam são muitas vezes de corte neoliberal: privatizações, regressões no estatuto dos pensionistas, etc. Tratam-se de variantes do social-liberalismo, que aceitam o quadro económico capitalista mas, contrariamente ao neoliberalismo reacionário, têm algumas preocupações sociais. É o caso dos governos Lula-Dilma no Brasil. Temo que no caso da França (François Hollande, recentemente eleito), nem a isto chegue...

Um desafio dessa esquerda que chegou ao poder na América Latina tem sido equacionar a dependência econômica da exploração de recursos naturais (como o petróleo na Venezuela e o gás natural na Bolívia) com a tentativa de superação da lógica capitalista de destruição do meio ambiente. Na sua opinião, essa equação é possível?
Contrariamente aos governos social-liberais, os da Venezuela, Bolívia e Equador têm levado adiante uma verdadeira rutura com o neoliberalismo, enfrentando as oligarquias locais e o imperialismo. Mas dependem, para a sua sobrevivência económica, e para financiar os seus programas sociais, da exploração de energias fósseis – petróleo, gás –, que são os principais responsáveis pelo desastre ecológico que ameaça o futuro da humanidade.

É difícil exigir destes governos que deixem de explorar estes recursos naturais, mas eles poderiam utilizar uma parte do rendimento do petróleo para desenvolver energias sustentáveis – o que fazem muito pouco. Uma iniciativa interessante é o projeto ‘Parque Yasuni', do Equador, proposta dos movimentos indígenas e dos ecologistas assumida, após algumas hesitações, pelo governo de Rafael Correa. Trata-se de preservar uma vasta região de florestas tropicais, deixando o petróleo embaixo da terra, mas exigindo, ao mesmo tempo, que os países ricos paguem metade do valor (9 bilhões de dólares) deste petróleo. Até agora, não houve iniciativas comparáveis na Venezuela ou na Bolívia.

A crítica à destruição do meio ambiente como intrínseca ao capitalismo já estava presente na obra de Marx?
Muitos ecologistas criticam Marx por considerá-lo um produtivista, tanto quanto os capitalistas. Tal crítica parece-me completamente equivocada: ao fazer a crítica do fetichismo da mercadoria, é justamente Marx quem coloca a crítica mais radical à lógica produtivista do capitalismo, à ideia de que a produção de mais e mais mercadorias é o objetivo fundamental da economia e da sociedade. O objetivo do socialismo, explica Marx, não é produzir uma quantidade infinita de bens, mas sim reduzir a jornada de trabalho, dar ao trabalhador tempo livre para participar da vida política, estudar, jogar, amar.

Portanto, Marx fornece as armas para uma crítica radical do produtivismo e, notadamente, do produtivismo capitalista. No primeiro volume de O Capital, Marx explica como o capitalismo esgota não só as energias do trabalhador, mas também as próprias forças da Terra, esgotando as riquezas naturais, destruindo o próprio planeta. Assim, essa perspetiva, essa sensibilidade está presente nos escritos de Marx, embora não tenha sido suficientemente desenvolvida.

O Manifesto Ecossocialista, que o sr. ajudou a escrever em 2001, diz que o capitalismo não é capaz de resolver a crise ecológica que ele produz. Como o sr. analisa as soluções a esse problema que vêm sendo apresentadas pelo capitalismo, como é o caso da economia verde?
A assim chamada ‘economia verde', propagada por governos e instituições internacionais (Banco Mundial, etc), não é outra coisa senão uma economia capitalista de mercado que busca traduzir em termos de lucro e rentabilidade algumas propostas técnicas ‘verdes' bastante limitadas.

Claro, tanto melhor se alguma empresa trata de desenvolver a energia eólica ou fotovoltaica, mas isto não trará modificações substanciais se não for acompanhado de drásticas reduções no consumo das energias fósseis.

Mas nada disto é possível sem romper com a lógica de competição mercantil e rentabilidade do capital. Outras propostas ‘técnicas' são bem piores: por exemplo, os famigerados ‘biocombustíveis' que, como bem diz Frei Betto, deveriam ser chamados de ‘necrocombustíveis', pois tratam de utilizar os solos férteis para produzir uma pseudogasolina ‘verde', para encher os tanques dos carros – em vez de comida para encher o estômago dos famintos da terra.

É possível implementar uma perspetiva como a do ecossocialismo no capitalismo?
O ecossocialismo é anticapitalista por excelência. Como perspectiva, implica a superação do capitalismo, já que se propõe como uma alternativa radical à civilização capitalista/industrial ocidental moderna. Por outro lado, a luta pelo ecossocialismo começa aqui e agora, na convergência entre lutas sociais e ecológicas, no desenvolvimento de ações coletivas em defesa do meio ambiente e dos bens comuns. É através destas experiências de luta, de auto-organizaçâo, que se desenvolverá a consciência socialista e ecológica.

A perspectiva ecossocialista pressupõe uma crítica à noção de progresso. Em que consiste essa crítica?
Walter Benjamin insistia, com razão, que o marxismo precisa libertar-se da ideologia burguesa do progresso, que contaminou a cultura de amplos setores da esquerda. Trata-se de uma visão da história como processo linear, de avanços, levando, necessariamente, à democracia, ao socialismo.

Estes avanços teriam sua base material no desenvolvimento das forças produtivas, nas conquistas da ciência e da técnica. Em rutura com esta visão – pouco compatível com a história do século 20, de guerras imperialistas, fascismo, massacres, bombas atómicas –, precisamos de uma visão radicalmente distinta do progresso humano, que não se mede pelo PIB [Produto Interno Bruto], pela produtividade ou pela quantidade de mercadorias vendidas e compradas, mas sim pela liberdade humana, pela possibilidade, para os individuos, de realizarem suas potencialidades; uma visão para a qual o progresso não é a quantidade de bens consumidos, mas a qualidade de vida, o tempo livre - para a cultura, o ócio, o desporto, o amor, a democracia - e uma nova relação com a natureza. Para o ecossocialismo, a emancipaçâo humana não é uma ‘lei da história', mas uma possibilidade objetiva.

Quais as principais diferenças entre o ecossocialismo e a forma como o socialismo real lidou com os problemas ambientais? E a socialdemocracia, conseguiu construir alternativas a essa lógica destrutiva do capital?
O assim chamado ‘socialismo real' - muito real, mas pouco socialista - que se instalou na URSS sob a ditadura burocrática de Stalin e seus sucessores tratou de imitar o produtivismo capitalista, com resultados ambientais desastrosos, tão negativos quanto os equivalentes no Ocidente. O mesmo vale para os outros países da Europa Oriental e para a China. As intuições ecológicas de Marx foram ignoradas e se levou a cabo uma forma de industrialização forçada, copiando os métodos do capitalismo. A social-democracia é um outro exemplo negativo: nem tentou questionar o sistema capitalista, limitando-se a uma gestão mais ‘social' de seu funcionamento.

Mesmo nos países em que governou em aliança com os partidos verdes, a social-democracia não foi capaz de tomar nenhuma medida ecológica radical. O ecossocialismo corresponde ao projeto de um socialismo do século 21, que se distingue dos modelos que fracassaram no curso do século 20. Ele implica uma rutura com o modelo de civilização capitalista e propõe uma visão radicalmente democrática da planificação socialista e ecológica.

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

De Spinoza e Marx ao materialismo negriano – por Bruno Cava

De Spinoza e Marx ao materialismo negriano
As bases conceituais da ontologia negriana se assentam, principalmente, sobre dois pilares materialistas da história da filosofia, da Europa maldita, da antimodernidade européia. Os filósofos Baruch de Spinoza e Karl Marx. Marxista e spinozano, o trabalho teórico e político de Negri se constrói por meio de uma releitura incessante desses dois pensadores. Seja pensando Spinoza a partir de Marx, ou Marx a partir de Spinoza, e assim sucessivamente, em leitura cruzada, Negri pôde configurar um pensamento radical da revolução e do sujeito. Criticado com frequência tanto por marxistas quanto spinozanos mais ortodoxos, amiúde mais interessados em firmar a interpretação canônica sobre a letra fria dos autores do passado, e assim disputá-la como quem briga pela posse de uma múmia; em Negri a recomposição do marxismo e do spinozismo está inteiramente atrelada a um projeto político. É o projeto comunista. Sua primazia como animador de teoria e prática não faz concessões ao beletrismo filosófico, e seu rigor será tanto maior a olhos desprendidos, quanto maior se valorizar a dimensão política e o primado da práxis na tradição da escrita revolucionária. Spinoza e Marx constituem antídotos clássicos contra toda forma de teologia política, bem como todo socialismo utópico deslumbrado, este que toma o comunismo como ideia fora da história. O comunismo não virá do céu, não será anunciado por profetas e não se construirá sob a espécie da utopia. Longe de arroubos retóricos ou vagos apelos à emancipação humana, o materialismo se concretiza paulatinamente na análise do sujeito revolucionário, na escuta da composição da classe proletária, suas mutações, e os modos de sua inscrição no processo produtivo. Um trabalho de formiguinha.
Renunciar à transitividade entre a teoria do sujeito e a atividade constituinte e imanente que produz o mundo, — i.e., o processo produtivo em sentido amplo, — só pode significar se descolar da materialidade das forças em ação, e assim distanciar em demasiado a prática da teoria. Idealizar o pensamento, tornar o texto depurado da força desagregadora de toda a energia exercida pelas mobilizações e paixões das massas, ou da premência das dominações e injunções com que o intolerável se exerce, em sua surda repetição cotidiana. A política precisa de chão. Precisa que os materialistas caminhem sobre a terra, de preferência descalços. O militante, — o legítimo portador do método “científico”, — nada produz, em termos de conhecimento, se não se situa à altura das lutas de seu tempo, se não fizer pesquisa nas entranhas dos sujeitos existentes, se não se impregnar dos processos de organização, se não tiver mãos, pés, estômago e algo mais.
A tarefa de reconstrução das bases spinozanas e marxistas, para uma ontologia constituinte (arrisco dizer: uma ontologia comunista!), se impõe na medida em que me filio àqueles que advogam o direito como potência, e não como norma. O direito como componente de uma prática de transformação das condições presentes, e não como dever-ser, como valor a efetivar-se num segundo estágio, — uma tarefa supostamente para outras instâncias de poder que não a mediação jurídica: a política, a economia, o “trabalho social”, a “construção do socialismo”. Aqui, a proposta é reafirmar o direito, sim, o direito contra a norma. A norma em qualquer acepção: regras ou princípios, leis ordinárias ou lei constitucional, heterônomas ou autônomas (penso em Kant), atributivas ou prescritivas. Em vez de renunciar ao campo do direito como um todo, é caso de reapropriar-se do direito como arma para o empoderamento. “Reapropriar do direito como instrumento de positivação de práticas sociais.”[1] Mesmo a legalidade, servir-se dela como arma surrupiada do adversário. Se a modernidade encapsulou o direito —, aquele reconhecido pelas ciências, — dentro do estado, como enunciador da validade ou mediador da eficácia, continuam as latências subterrâneas por outro direito. Outra forma de pensar e viver o direito. Um direito afirmado na dureza dos embates e na criatividade dos movimentos. Está em questão a autoprodução de um direito vivo. Porque essas forças operantes no tecido social se exprimem coletivamente num exercício do direito, como atividade, concretização e assanhamento de suas capacidades, quereres e potências de agir. Não precisam que lhes concedam, necessariamente, âmbitos de legitimidade ou legalidade, para poderem ser tudo o que podem. Não precisam de instâncias externas para lhes dizer o que fazer, para lhes reconhecer o quanto valem, para lhes atribuir o que podem, e decidir o certo do errado, a regra da exceção. Não lhes é essencial, aos genuínos criadores do direito, o reconhecimento legal-estatal de grupos de pertencimento. Sem prejuízo do uso derivado, posterior e segundo, de regimes discursivos dessa natureza como tática de luta. O sujeito revolucionário investiga e encontra dentro de si, — da essência produtiva imanente à malha de relações e encontros, — os valores com que se autovaloriza e se autoproduz como força política. As condições ontológicas da liberdade não estão distantes. Elas não dependem de monumentais e mirabolantes projetos de libertação da humanidade. É mais simples do que isso, e não suplanta a ética do dia a dia.
É preciso reapropriar-se dessas condições da liberdade, tomá-las para si se preciso, ter para nós o que sempre foi de direito, a nossa potência e singularidade. A intensidade com que o sujeito afirma a sua forma de vida, e antagoniza às tentativas de confinamento, é quem define o seu direito, a dignidade com que reafirmam o propósito e a vontade de viver além das constrições, ameaças e explorações, a vontade de viver simplesmente. Nesse sujeito que deseja afirmar-se, não estão presentes causas ausentes, as teleologias, os finalismos, a duplicidade de Céu e Inferno. O resultado não é nada de efetivo, se for abstraído do movimento pelo qual se engendrou, passo a passo, na gênese das forças. E tampouco é a falta de algo que os move para frente. Não desejam o que os sábios e gerentes do estado possam lhes oferecer: já que a riqueza social está à mão. O direito não é mais do que isso, mas também não é menos do que isso. O que já é muita coisa, em termos de resistência.
Pensar o direito com Negri, a partir de Marx e Spinoza, é pensá-lo como diretamente produzido pelo ser e no ser, pela afirmação de razão e desejo de quem vive. Razão e desejo, nesse marco teórico, não se opõem. O desejo pode fortalecer a razão e vice-versa. Do mesmo modo que o coração tem razões que a razão desconhece, a razão também tem lá os seus corações. Muitas vezes a razão que se apresenta como depurada de desejo, desinteressada e “autônoma”, essa não passa de um afeto passivo. Uma paixão triste disfarçada de razão. Uma planta venenosa do desejo que nada mais é que o desejo voltado contra si mesmo: ascetismo e moral de sacerdote. Na práxis, desejo e razão se expressam materialmente, e arregaçam elementos de autonomia no interior da ação política. Não há lugar, aqui, para concepções platônicas que tripartem o ser humano em razão, vontade e apetite, onde caberia à razão superior (o estado) dirigir a vontade (os interesses individuais) para controlar os apetites inferiores (a incontinência, o crime). As paixões se digladiam no domínio das paixões, em graus de intensidade que cruzam sem distinção real o plano da razão. Não existe estado desapaixonado, como sabe muito bem quem já apanhou da polícia, tanto mais sórdida quanto mais desinteressada em você. Orientar o carnaval de paixões e amores, no melhor moralismo de tradição francesa (Montaigne, Molière, Pascal, La Bruyère), continua sendo uma tarefa eminentemente política. Cada sujeito é animado por uma pulsação interna, um ímpeto propulsivo, um ânimo de desenvolvimento expansivo, — que porventura, ou quase sempre, vem a debater-se contra as condições limitadoras e antagonistas impostas pela ordem. Vai-se do ser ao sujeito por meio do desejo. A essência afirmativa do sujeito acelera a sua propagação na rede de relações sociais. Exprime-se sem negatividade nas formas reais de sua efetuação. E se, por acaso, desenvolve a potência do não, o faz reflexamente, o faz ao afirmar seu processo constitutivo, despojado de referência ao vazio ou ao não-ser.
A pulsação do desejo no sujeito impele a afirmação radical e exaustiva de seu poder causal, de tudo aquilo que ele quer e que ele pode (e poder querer o que se pode marca a máxima potência). Desse vórtice, tende a realizar todos os efeitos de seu ser, enquanto constitutivos desse mesmo ser em ato, aliás a única modalidade da existência para Spinoza. Essa realização plena assume imediata dimensão ética, inseparável da política, e se projeta diretamente no terreno da libertação. O desejo provoca a combinação de afetos. Eles se buscam, se excitam, se encontram, se alegram. Os encontros mais gratuitos e as combinações mais desarranjadas contêm a sua produtividade, ainda que inservível na lógica e métrica do capital. A combinação dos afetos ativos termina por potenciar a alegria do conjunto. Quer dizer, a potência de efetuação de todos juntos sem depor suas diferenças internas e irredutíveis. Daí que o desejo é o próprio mecanismo de libertação. O poder constituinte embute um mundo ético a efetuar-se, um horizonte político de contestação das formas de represamento do desejo. As relações de produção ordenam as forças produtivas para desviar, bloquear, explorar e expropriar a potência comum de produção de ser. Aí, nesse circuito de coações, se instala o regime de acumulação do capitalismo. Mas eis também o paradoxo intrínseco do capitalismo. Se ele precisa jogar com o desejo, a base última de todo o sistema produtivo, para possibilitar a exploração e aprofundar a dominação, esse mesmo desejo é revolucionário, imprevisível, agressivo, — e lhe ameaça como um espectro índio a rondar a civilização. A afirmação do desejo se revela uma política da constituição, uma prática de liberdade, uma abertura ontológica para o novo, uma subjetividade que se propaga e desarranja, destravando bloqueios e potenciando encontros; uma força incontável dentro, contra e além do “modo de produção”.
Lênin talvez tenha sido o primeiro a desenvolver uma práxis em que a organização da produção é a essência da política. O soviete original tinha por rendimento articular a decisão (o conselho) ao desenvolvimento produtivo (a industrialização). A arte da política está em organizar os bons encontros, do que convém ao plano de composição política dos diferentes, em combinar as potências produtivas. E dessa maneira maximizar a existência, como riqueza crescente de relações, afetos e produções. Organizar os encontros: multiplicar os nós de cooperação e sinergia, conferir e sustentar-lhes as condições de expansão e contágio e duração. Uma produtividade mobilizada pela alegria dos agentes de produção, que produzem na medida em que se produzem na sua desejada esfera de realização pessoal e aprendizado. Tem-se aí um direito voltado ao máximo existencial, na arte da expansão da potência combinada dos homens. Esse direito do máximo existencial depende da construção de uma base produtiva, do estabelecimento concreto de redes de empoderamento, educação, saúde e renda para todos. Eis uma engenhosidade da alegria: concretizar instituições que deem suporte à democratização de uma produção em que todos são sujeitos, de uma produção qualitativa voltada à combinação e recriação desses mesmos sujeitos. Esse engenho se situa do lado da afirmação, da pars construens implícita em qualquer processo de transformação. Uma imaginação voltada a elaborar novos modos de organizar as relações, além do capitalismo. A construção desse direito e dessas instituições não significa reproduzir as instâncias de normatividade e a economia das coações na base do capital. Mas, sim, conferir duração às condições necessárias da expressão ativa e alegre do desejo e da razão, fortalecendo dinâmicas alternativas que já existem e lutam para continuar existindo. O direito como potência não se deixa enquadrar como outra norma dotada de coerção, pairando sobre súditos amedrontados.
Mas, por outro lado, não se furta a instituir-se. Essa instituição da potência de agir pode ser definida como instituição de um exercício comum de direitos[2], implicado na reunião das capacidades sociais, da multiplicação de encontros produtivos, do lançamento de redes colaborativas e, como consequência, a libertação da cidade diante do tirano e sua manipulação de medo e morte. Nesse direito, não opera a guilhotina entre eficácia e validade, nenhuma deontologia mascarada de humanismo pequeno-burguês. Viver o direito com Negri significa também colocar-se no nível da produtividade imanente da vida. Habitar a beira do dizível e do visível, o que não aparece nas narrativas convencionais, essa coisa louca, a franja constituinte a partir do qual sujeitos e objetos situados na história vêm a existir. As instituições do direito comum se constroem sob esse ponto de vista, por dentro da franja de emergência do novo. Jamais da perspectiva do estado ou do poder constituído, do tirano e da economia mórbida de inseguranças, de tudo isso que sustenta a perpetuação do que já está, em toda a sua carga de intolerável e injustiça inscrita nas relações de produção. Não dá pra falar em direito comum sem se impregnar de copesquisa no seio dos novos movimentos e da política radical. Perquirir um direito em movimento, uma alternativa política de constituição de autonomia e produção além do estado e do mercado, do público e do privado[3]. É verdade que essa instituição do direito comum pode até vir a operar como instância externa ao agente. Uma organização das relações com que ele se depara sem participação direta anterior. Ele não se identifica inteiramente com o processo de sua constituição, mas nessa distância, ainda assim, ele pode produzir, abraçar a diferença sem renunciar à própria, conjugando e potenciando-a. Isto indica a necessidade de abertura na formulação das instituições do comum, bem como um desapego a identidades e propostas enrijecidas. A instituição não pode prescindir de um forte componente mutante. Só, assim, pode evitar a redução ou síntese das diferenças em mínimos denominadores, empobrecendo as dinâmicas, entristecendo os que não se ajustam à identidade coletiva. Essa forma de produzir depende também do cultivo da alegria, no sentido rigoroso e filosófico do termo: aumento da potência de agir e existir propiciado pelo bom encontro. Não é outra a definição spinozana de amor: “a alegria acompanhada da ideia de uma causa exterior”[4]. E ainda: “minha liberdade começa quando começa a do outro. O que nos convém, pois, são os entrelaçamentos, os entretecimentos, as vinculações (relações de composição), os compromissos que produzam cada vez maior intensidade, quer dizer, maior liberdade em nossos encontros.”[5] Uma vez instituído o exercício comum dos direitos, na base material de condições desse exercício, é preciso continuar propiciando a combinação alegre de desejos e razões, a cooperação, a adequação mútua dos muitos componentes diferentes na sua diferença, tudo o que, funcionando, realiza o amor: o amor da construção comum.
A imanência entre ser, ética, política e direito indicia a necessidade de articular a teoria do sujeito com a crítica do sistema produtivo. Em Negri leitor de Spinoza, uma vez que o próprio ser é atividade produtiva infinita de todas as coisas, — em suma, como essentia actuosa[6], — o conceito de “modo de produção” assume uma dimensão ontológica, na dobradura e redobradura de política e vida, ou biopolítica. O capitalismo não se resolve como uma forma de estruturar as relações sociais somente na sua dimensão econômica. Em Negri leitor de Marx, a ideia de produção não se resume a concepções objetivistas, que achatam o conceito de produção à mera produção, distribuição e consumo de coisas e bens, à organização objetiva e/ou estrutural dos circuitos de acumulação e valorização, — segundo o reducionismo da ortodoxia marxista e/ou estruturalista. A produção quer dizer também produção de subjetividade, o campo prolífico em que se geram permanentemente processos de efetuação de objetos e sujeitos, bem como a articulação e animação entre eles.
A produção de subjetividade não se situa do lado do objeto, nem do sujeito, mas no interstício, no entre eles, e se desenreda por uma dinâmica intensiva, por uma escala de intensidades no próprio interior da produção. Isto é, não é questão de produzir ou consumir mais ou menos, mas contestar a própria lógica quantitativa. Desafiar a métrica com que o capital faz comungar capital e trabalho, lucro e salário, dívida e renda, patrão e empregado. Noutras palavras, a métrica definida pela comunhão do dinheiro, esse líquido amniótico do mundo capitalista. Na subsunção real, o dinheiro se torna o operador com que um sistema financeiro demiúrgico controla os fluxos produtivos numa escala ao mesmo tempo vasta e infinitesimal. A moeda é a polícia do capital. Nessa operação de captura, o capital investe as subjetividades imanentes aos corpos sociais à moda do sujeito transcendental. O sujeito transcendental exprime o conceito com que a forma capitalista drena os conteúdos. Refiro-me ao sujeito kantiano, o conjunto de formas e sínteses que possibilitam o conhecimento e a organização dos fenômenos a partir do númeno incognoscível (o “em-si” das coisas). Com a mesma analítica transcendental, o capital se apresenta como a única instância competente para organizar as forças produtivas (o “em-si” da produção), e assim efetuar objetos e sujeitos no mundo. O capital se apresenta como campo transcendental, o único uso legítimo das sínteses da produção de sujeitos e objetos. Nessa metafísica, o caráter produtivo do trabalho depende da ação indispensável do capital.
O processo do capital se disfarça de transcendental, e nenhum conhecimento, moral ou produtividade poderiam existir sem a sua mediação “imanente”. Sem o capital, reinaria o caos numênico, a desordem social como improdução e estado de natureza. Autônomo, mesmo, só o burguês. Diante dessa mistificação, a coloca-se a necessidade teórica de exercer uma crítica imanente às condições transcendentais da produção capitalista, num esforço teórico além de Kant. A hipótese negriana da subsunção real, — absolutamente imprescindível em sua ontologia comunista, — avança as armas críticas do marxismo por sobre esse campo transcendental. Não se limita a criticar sujeitos e objetos, mas o campo transcendental que os sintetiza. É uma crítica à própria metafísica do capital, enquanto máquina abstracionista de sínteses. Nessa tarefa, Negri não se limita a descrever minuciosamente o campo transcendental, em que o capital inscreve os objetos e sujeitos, como engrenagens e agentes de produção. Não o faz, quer pelo lado dos objetos: como sociologia do capital, a destrinchar os dispositivos e estruturas que sustentam a economia política. Nem pelo lado dos sujeitos: por quaisquer das vias disponíveis no pensamento radical: a crítica da indústria cultural, da sociedade do espetáculo ou de consumo. A crítica imanente negriana se orienta pela percepção de como o campo transcendental da sociedade capitalista já é posterior, ontologicamente segundo. O campo transcendental se ordena internamente como relações de produção. Os objetos e sujeitos são dispostos como termos dessas relações mediadoras. Mas esse campo das relações de produção já é um desdobramento das próprias forças produtivas, um desdobramento menor, menos potente. Aí a crítica avança além das relações de produção, mostrando a sua correlação com as forças produtivas. Além (e aquém) do transcendental, a imanência produtiva. As relações de produção consistem num recalcamento de tudo o que as forças produtivas podem, uma separação do que elas podem. As relações de produção se assentam nas forças produtivas como uma espécie de casca apodrecida ou armação esquelética, aplicada na substância primeira: o ser produtivo, vivente, constituinte. A manobra consiste, assim, em resgatar essa produtividade imanente à política (primeiro momento) e à vida dentro do escopo da crítica, sem se limitar à crítica da produção de sujeitos e objetos (segundo momento). Tem-se assim uma crítica da própria mediação (passagem despotenciante do primeiro ao segundo momento). Se, no capitalismo, o sujeito transcendental é imposto como mediação necessária e civilizatória, trata-se de desafiar as suas condições e sínteses, para colocar imediatamentea imanência da produtividade, a produção biopolítica como suficiente para a organização da produção.
Na subsunção real, a ontologia do ser é tal que essa produção biopolítica reúne qualidades suficientes para auto-organizar-se. Trata-se das qualidades cooperativas e imaginativas do saber social de massa, o intelecto geral social. A liberdade spinozana, afinal, não coincide com a transformação da realidade dos objetos por um sujeito que lhe é externo. Como se o sujeito se apropriasse do objeto fora, usando-o segundo um entendimento transformador. Essa liberdade acontece na expressão imediata de um poder ontológico que produz o sujeito no ato mesmo em que o conecta no sistema múltiplo e relacional (o ser produtivo), onde as ações e produções se sucedem, num processo dinâmico de deslocamentos intensivos e extensivos. Desta forma a imediata produtividade que é a liberdade material opõe-se às metafísicas que prescrevem medições entre o transcendental ao constituinte. A implosão do “modo de produção” livra o campo transcendental, com todas as mediações implícitas, para a geração de sujeitos e objetos outros, formas de vida outras, imediatamente na auto-organização.
Formam-se novas subjetividades com velocidade de escape às operações de acumulação e exploração do capital. Acelera-se, e desta vez sem mediações, um processo de multiplicação de relações, afetos, perspectivas e instituições de tipo novo, — um desbloqueio geral das capacidades naturais e culturais. Com isso, podem ser maquinados seres híbridos ao capital, formações subjetivas em estado deliquescente, trânsitos entre os planos heterogêneos de formas de vida, e instituições onde se pratica a autonomia. Essa maquinação depende de um perspectivismo. Só pode obter êxito ao materializar um plano de composição política, em que as diferenças possam atuar e produzir juntas. Juntas sem perder a força implicada nas próprias diferenças, organizando o viver na distância constitutiva entre elas, — e sem se reduzir a fórmulas vazias, palavras de ordem ou seitazinhas enfadonhas que confundem suas fraquezas psíquicas, desgraças íntimas e credos religiosos com trabalho político de verdade. O caso é reunir a imaginação com o pragmatismo, num ativismo alegre, porém não deslumbrado. O comunismo desmonta a lógica transcendental com que o capital se autojustifica. E assim, — só por esse fato e nada mais, — o sujeito liberta a produtividade do parasitismo capitalista, seus limites e suas brutais desigualdades.
Este é o subcapítulo 3.1 da dissertação de minha lavra: “Produzir direitos, gerar o comunismo; teoria do sujeito em Badiou e Negri“. Para baixar na íntegra: http://www.4shared.com/office/V4llFHPP/CAVA_Bruno_-_Produzir_direitos.html

[1] FLORES, Joaquín H. Teoria crítica dos direitos humanos… Op. cit. p. 27
[2] Sirvo-me da elaboração teórica do direito comum, sob a inspiração da ética spinozana, por GUIMARAENS, Francisco de. Direito, ética e política em Spinoza. Op. cit. Recomendo especialmente o cotejamento com a deontologia kantiana, origem de muitos normativismos modernos, p. 163-210.
[3] Sirvo-me também das formulações do direito do comum, uma linha de elaboração do direito e das instituições fora da dialética moderna do público e do privado, do estado e do mercado. Por todos, Dentro/contro il diritto sovrano; Dallo Stato dei partiti ai movimenti della governance. Verona: ombre corte, 2009. Recomendo ainda a tese recém-publicada de MENDES, Alexandre F. Além da ‘tragédia do comum.’ 2012. 202 f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Disponível online em http://www.4shared.com/office/v4y85rOf/tese_Comum_AFMENDES.html. Acesso em 20 ago. 2012.
     [4] SPINOZA, Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. 6ª definição dos afetos. p. 241.
[5] FLORES, Joaquín H. Teoria crítica dos direitos humanos. Op. cit. p. 185
[6] “Deus age pela mesma necessidade pela qual compreende a si próprio, isto é, que assim se segue da necessidade da natureza divina que Deus compreende a si próprio (como, unanimemente, afirmam todos), também se segue da mesma necessidade que Deus faça infinitas coisas, de infinitas maneiras. (…) a potência de Deus não é senão sua essência atuante [actuosam essentiam]” SPINOZA, Ética. Op. cit. II, 3, escólio. p. 83.

Cartéis, grupos e conspirações do poder que não é somente discursivo - por Rahu

Cartéis, grupos e conspirações do poder que não é somente discursivo
Após um longo período de silencio e contemplação, de abandono ao diário de poseidon, retornamos aos ambientes esquizofrênicos e neuróticos de horror, dos gritos e das vozes de denuncia e indignação com as com os modelos coloniais, que são completamente atuais, ver o exemplo do que acontece hoje com os indígenas Guarani Kaiowá denunciado publicamente através do documentário À Sombra de um Delírio Verde, e de outros inúmeros tipos de exemplos de marginalização racial e cultural em imposições de situações e conspirações de grupos exploradores que visam a submissão do individuo livre pensante em uma rede de exploração, alienação e condicionamento cotidiano, com interesses unicamente nos lucros pessoais de uma elite fascista "sem nome" que gera (cegos) seguidores violentos dos "istas" no mundo inteiro, mas esta elite tem muito dinheiro pra gastar com o objetivo no controle da humanidade. Não se trata de uma tola tentativa de denuncia ao charlatanismo dos cartéis, de um mercado de domínio local de desapropriações, de crimes e chacinas, em análise micro esse assunto possui proporções profissionais no Brasil, embora não muito discutido socialmente, é por demais praticado, e mesmo o domínio global não deixando de ser um tema bastante abstrato, é possível se chegar criticamente a ele, seguindo a sugestão da análise da inclusão excludente, do ciclo da margem ao centro e do centro à margem com a teoria da informação. As formações de nossos partidos políticos surgiram ao compactuarem com a subordinação do povo em um domínio de submissão ao tempo, escravizados pelo consumo de quem não mais produz para si, em um calendário de servidão, e mais ao divulgarem uma possível autonomia política dos falsos "benefícios" assistencialismos, dentro de uma atual sociedade colonizada de valores que dissemina intolerância, violência e animalidade, a quem deseja o laicismo (aos da área do direito uma utopia constitucional?), o nomadismo e a instrução (utópica) criticamente livre de dogmas como acusado de novo modelo de seguidor do diabo, ao mesmo tempo que ostenta cegamente de forma ortodoxa (pelo "bem" dos descendentes) e idolatra as corporações e as vozes institucionais do deu$ da salvação financeira e da adoração ao consumo. Nossas tarifas e nossos impostos são altíssimos ao mesmo tempo que os sindicatos, assim como as igrejas e instituições bancárias muito lucram e simplesmente nada declaram a ninguém. São os monopólios institucionais do presente. E a ti resta trabalhar muito e calado para servi-los em seus códigos e leis. Será que se calam mesmo sem receber? A estatística é que muitos dos políticos que declaram suas informações, antes que haja a quebra de sigilo fiscal em que os mais descarados são submetidos, ainda procuram e acham diversas formas de trambicar, burlar, deturpar as informações, com os explícitos exemplos dos diversos processos de corrupção, nos muitos setores da sociedade, das trocas de favores pessoais, do nepotismo inconsequente aos  mensalões atualmente presentes na mídia brasileira. Algo que todos esperavam ansiosos para ver, e quando se mostra assim tão nitidamente na realidade, a reação é de imobilização e inércia, típico daquele que assiste o passar do tempo escatológico através da TV. Pelo menos uma prova se tem dos vestígios, é de que a coisa foi instaurada de forma eficaz. Do capitalismo selvagem, de estabelecer o máximo quantitativo "possível" de trabalhadores (dependentes) com um salário (condição material) vergonhoso que mal cobre as necessidades básicas, ao socialismo que termina quando acabar o dinheiro dos outros, os sistemas que se movimentam através do viés financeiro, das crises financeiras na Europa, aos escândalos no Brasil, a situação é de perplexidade.
Imagem: a chegada de Lampião ao inferno

Não à exploração: Air Canada se recusa a transportar primatas para testes - Por Natalia Cesana

Não à exploração: Air Canada se recusa a transportar primatas para testes
Foto: Richard Clement/Reuters
Grupos em defesa dos direitos animais estão aplaudindo a decisão da companhia aérea Air Canada em se recusar a transportar macacos que seriam usados para testes em laboratórios. As informações são da CBC News.
A Agência de Saúde Pública do Canadá e a Universidade do Queens apresentaram queixa contra a empresa aérea por se sentirem discriminados. Eles argumentaram que seria menos humano transportar os animais utilizando um meio de transporte mais lento, como um caminhão.
O tribunal da Agência de Transportes do Canadá determinou legítima a ação e a companhia está dentro dos seus direitos ao se negar deslocar os animais.
A Air Canada chegou a receber 47 mil cartas de pessoas reclamando da política de transporte de animais, algumas delas ameaçando inclusive nunca mais voar pela companhia.
Liz White, da Aliança Animal do Canadá, diz que as companhias aéreas desempenham um papel importante na cadeia de sofrimento imposto a primatas e outros seres. Por isso, a Air Canada deve parabenizada por não fazer mais parte desta crueldade contra os animais.
De acordo com a PETA, a United Airlines é a única companhia da América do Norte a participar ainda deste negócio sangrento.

A Folha tenta se explicar – por Emir Sader

A Folha tenta se explicar
Nos três momentos mais importantes da história brasileira, a mídia estava do lado golpista, do lado das elites, contra o povo e a democracia. Entre eles, o jornal dos Frias, um dos que mais tem a esconder do seu passado e do seu presente. Uma funcionária da empresa há 24 anos, que fez sua carreira totalmente na Folha, que já ocupou vários cargos na direção na mesma, escreveu uma espécie de história ou de justificativa da empresa. O livrinho tem o titulo "Folha explica Folha". Mas poderia também se intitular Folha tenta se explicar, em vão. 
Os órgãos da imprensa brasileira não podem fazer suas histórias, tantos são os episódios, as posições, as atitudes indefensáveis deles ao longo do tempo. Suas trajetórias estão marcadas pelas posições mais antipopulares, mais antidemocráticas, racistas, golpistas, discriminatórias, de tal forma que eles não ousam tentar contas suas histórias.

Como relatar que estiveram sempre contra o Getúlio, pelas políticas populares e nacionalistas dele? Como recordar que todos pregaram o golpe de 1964 e apoiaram a ditadura militar, em nome da democracia? De que forma negar que apoiaram entusiasticamente o Collor e o FHC e fizeram tudo para que o Lula não se elegesse e se opuseram sempre a ele, por suas políticas sociais e de soberania nacional? Nos três momentos mais importantes da história brasileira, a mídia estava do lado golpista, do lado das elites, contra o povo e a democracia.

Entre eles, o jornal dos Frias, um dos que mais tem a esconder do seu passado e do seu presente. Uma funcionária da empresa há 24 anos, que fez sua carreira profissional totalmente na empresa, sem sequer conhecer outras experiências profissionais, que já ocupou vários cargos na direção da empresa, decidiu – ou foi decidida – a escrever uma espécie de história ou de justificativa da empresa dos Frias.

O livro foi publicado numa coleção da empresa. A funcionária se chama Ana Estela de Sousa Pinto e o livrinho tem o titulo Folha explica Folha. Mas poderia também se intitular Folha tenta se explicar, em vão.

Livro mais patronal, não poderia existir, até porque quem o escreve não tem a mínima isenção para analisar a trajetória da empresa da qual é funcionária. Começa com uma singela apresentação histórica das origens da empresa. De resgatável, uma citação do editorial de apresentação do primeiro jornal da empresa, que se diz como um jornal “incoerente” e “oportunista”, numa visão premonitória do que viria depois. Nada do que é relatado considera a historia como elemento constitutivo do presente. São informações juntadas, num péssimo estilo de historiografia que não explica nada.

Logo no primeiro grande acontecimento histórico que a empresa vive, sua natureza política já aflora claramente: apoio a Washington Luís e oposição férrea a Getúlio, tudo na ótica que perduraria ao longo do tempo: “a defesa dos interesses paulistas” ou do interesse das elites, revelando a função da imprensa paulista: passar seus interesses pelos de São Paulo.

Naquele momento se tratava de defender os interesses da lavoura do café. Para favorecer aos fazendeiros em crise, a empresa aceitava o pagamento de assinaturas em sacas de café, revelando o promiscuidade entre jornal e o café.

De forma coerente com esse anti-getulismo em nome dos interesses de São Paulo, a empresa se alinha com a “Revolução Constitucionalista” de 1932, contra a “ditadura inoperante, obscura e inepta em relação ao Estado de São Paulo”. O estado é sempre a referência, sinônimo de progresso, de liberdade, de democracia. O anti-getulismo é visceral: “O diretor Rubens Amaral levava seu anti-getulismo ao extremo de impedir que os filhos saíssem de casa quando o ditador (sic) visitava São Paulo. ‘Dizia que o ar estava poluído”, conta sua filha mais velha.”

Esse elitismo paulistano fez, por exemplo, que o Maracanaço de 1950 só fosse noticiado na terça-feira, na pagina 4 do caderno “Economia e Finanças”.

A autora tenta abrandar as coisas. Afirma que “A posição da Folha foi oscilante ao abordar o governo de João Goulart (1961-64) e a ditadura que o sucedeu.” Mentira, o jornal fez campanha sistemática pelo golpe militar.

Bastaria ela ter se dado ao trabalho de ler os jornais daquela época.

Encontraria, por exemplo, no dia 20/3/1964, a manchete: “São Paulo parou ontem para defender o regime”. E, ainda na primeira pagina: “A disposição de São Paulo e dos brasileiros de todos os recantos da pátria para defender a Constituição e os princípios democráticos , dentro do mesmo espírito que dito a Revolução de 32, originou ontem o maior movimento cívico em nosso Estado: “Marcha da Família, com Deus, pela Liberdade”. E vai por aí afora, reproduzindo exatamente as posições que levaram ao golpe. Editorial de primeira página vai na mesma direção.

Bastaria ler alguns dos jornais desses dias e semanas, para se dar conta da atitude claramente golpista, mobilizadora a favor da ditadura militar, pregando e enaltecendo as “Marchas”. Nenhuma oscilação ou ambiguidade como, de maneira subserviente, a autora do livrinho sugere.

A transformação da Folha da Tarde num órgão diretamente vinculado à ditadura militar e a seus órgãos repressivos, o papel de Carlos Caldeira, sócio dos Frias, no financiamento da Oban, assim como o empréstimo de veículos da empresa para dar cobertura à ações terroristas da Oban, são coerentes com essas posições.

De Caldeira, ela não pode deixar de mencionar que “tinha afinidade com integrantes do regime militar e era amigo do coronel Erasmo Dias”. “Caldeira não era o único com conexões militares. Na redação da empresa havia policiais civis e militares, tanto infiltrados como declarados – alguns até trabalhavam armados.”

Sobre o empréstimo dos carros à Oban, a autora tenta aliviar a responsabilidade dos patrões, mas fica em maus lençóis. Há os testemunhos de Ivan Seixas e de Francisco Carlos de Andrade, que viram as caminhonetas com logotipos da empresa estacionadas várias vezes no pátio interno na fatídica sede da Rua Tutoia. Só lhe resta o apelo às palavras do então diretor do Doi-Codi, major Carlos Alberto Brilhante Ustra – condenado pela Justiça Militar como torturador - que “nega as afirmações dos guerrilheiros”. Bela companhia e testemunha a favor da empresa dos Frias, que a condena por si mesma.

Já um então jornalista da empresa, Antonio Aggio Jr. “reconhece o uso de caminhonete da empresa por militares, mas antes do golpe”. Dado o precedente, ainda na preparação do golpe, nada estranho que isso tivesse se sistematizado já durante a ditadura. Fica, portanto, plenamente caracterizado tudo o que diz Beatriz Kushnir no seu indispensável livro “Caes de Guarda”, da Boitempo, significativamente ausente da bibliografia do livro, sobre a conivência direta da empresa dos Frias na ditadura, incluído o empréstimo das viaturas para a Oban.

Editorial citado confirma a posição da empresa: “É sabido que esses criminosos, que o matutino (Estado) qualifica tendenciosamente de presos políticos, mas que não são mais do que assaltantes de bancos, sequestradores, ladrões, incendiários e assassinos, agindo, muitas vezes, com maiores requintes de perversidade que os outros, pobres-diabos, marginais da vida, para os quais o órgão em apreço julga legítimas toda promiscuidade.” (30/6/1972)

Assim os Frias caracterizam os que lutaram contra a ditadura. Fica plenamente caracterizado que a empresa estava totalmente do lado da ditadura, reproduzindo os seus jargões e a desqualificação dos que estavam do lado da resistência.

Passando pelo apoio ao Plano Collor, a empresa saúda a eleição de FHC como a Era FHC, com um caderno especial, assumindo que se virava a pagina do getulismo, para que o Brasil ingressasse plenamente na era neoliberal. Do anti-getulismo a empresa passou diretamente para o anti-lulismo – posição que caracteriza o jornal há tempos -, sempre em nome da elite paulista. A Era FHC acabou sem que o jornal tivesse feito sequer uma errata e nem se deu conta que a nova era é a Era Lula.

A decadência da empresa não consegue ser escondida. Depois de propalar que tinha chegado a tirar 1.117.802 exemplares em agosto de 1994, 18 anos depois, com todo o aumento da população e da alfabetização, afirma que tira pouco mais de 300 mil, para vender muito menos – incluída ainda a cota dos governos tucanos.

Ao longo dos governos FHC e Lula, a empresa foi sendo identificada, cada vez mais, com órgão dos tucanos paulistanos, seus leitores ficaram reduzidos aos partidários do PSDB, sua idade foi aumentando cada vez mais e o nível de renda concentrado nos setores mais ricos.

A direção do jornal, exercida pelos membros da família Frias nos seus cargos mais importantes, tendo a Otavio Frias Filho escolhido por seu pai para sucedê-lo, cargo que ocupa já há 18 anos, por sucessão familiar.

Apesar de quererem explicar a Folha, a impossibilidade de encarar com transparência sua trajetória, o livro se revela uma publicação subserviente aos proprietários da empresa, oficialista, patronal, que reflete o nível a que desceu a empresa ao longo das duas ultimas décadas.

domingo, 23 de dezembro de 2012

México: zapatistas retomam marchas em Chiapas no fim da era maia – por Federico Mastrogiovanni

México: zapatistas retomam marchas em Chiapas no fim da era maia
Protesto silencioso foi marcado pela juventude dos manifestantes, escolarizados em centros educativos comunitários
Manifestação dos zapatistas ocorre um dia antes do aniversário de 15 anos do Massare de Acteal, que deixou 45 indígenas mortos

Em silêncio e sob chuva, milhares de zapatistas deixaram suas comunidades nas montanhas de Chiapas e tomaram pacificamente as ruas de San Cristobal de las Casas, Ocosingo e Las Margaritas. Caminhando com as bandeiras da EZLN (Exército Zapatista de Libertação Nacional) e do México, o grupo voltou a se manifestar depois de anos de silêncio.

Em um ato simbólico que durou algumas horas, os descendentes dos maias aproveitaram o dia em que muitos esperam o fim do mundo para sair às ruas do país.

Esta época é importante para os zapatistas porque foi em 22 de dezembro de 1997 que o Estado mexicano, por meio de cem paramilitares, assassinou 45 indígenas, sendo 18 crianças e 22 mulheres, enquanto rezavam em um templo religioso em Chiapas.

Depois de 15 anos, o massacre de Acteal, ainda não foi julgado. Em 30 de janeiro de 2008, porém, a Comissão Civil Internacional de Observação dos Direitos Humanos sinalizou que o Estado teve responsabilidade nos fatos.

Por essa razão, o presidente do México na segunda metade da década de 1990, Ernesto Zedillo, foi acusado de ser o responsável político pelo massacre. No entanto, em setembro deste ano Zedillo foi absolvido nos Estados Unidos, onde mora atualmente.
Os zapatistas saíram às ruas das três cidades de Chiapas desde a madrugada desta sexta-feira (21/12), com homens, mulheres e crianças em caminhonetes vestindo máscaras. Despostos em fileiras, desfilaram sem dizer uma palavra.
Apesar de os líderes do EZLN não terem feito nenhum discurso, chamou a atenção a juventude dos manifestantes, escolarizados nos centros educativos comunitários dos indígenas.

Durante os anos em que os zapatistas se mantiveram em silêncio, o Estado manteve uma guerra de baixa intensidade contra os mesmos, com violências, abusos e agressões. 

Assange anuncia nova divulgação de documentos secretos para 2013 – por Marcelo Justo

Assange anuncia nova divulgação de documentos secretos para 2013
O fundador de Wikileaks saiu à sacada da embaixada equatoriana em Londres, onde se encontra asilado desde junho, para anunciar que em 2013 tornará públicos um milhão de novos documentos confidenciais. Assange disse que não deixaria se intimidar pela campanha contra ele. Ao mesmo tempo, se mostrou aberto a uma negociação que permita destravar sua situação de prisioneiro virtual na embaixada do Equador.
Londres - Em um presente pré-natalino a governos de todo o mundo, o fundador de Wikileaks, Julian Assange, saiu à sacada da embaixada equatoriana em Londres, onde se encontra asilado desde junho, para anunciar que em 2013 tornará públicos um milhão de novos documentos confidenciais.

Falando a uma centena de seguidores na gelada noite londrina e a dezenas de câmeras de televisão e flashes fotográficos do mundo, Assange disse que não deixaria se intimidar pela campanha contra ele. Ao mesmo tempo, se mostrou aberto a uma negociação que permita destravar sua situação de prisioneiro virtual na embaixada do Equador. “A porta está aberta e permanecerá aberta para quem quiser usar os canais normais para falar comigo ou garantir meu salvo-conduto ao Equador”, afirmou.

A aparição pública de Assange lançou por terra os rumores sobre graves problemas de saúde por conta do encerramento na embaixada e deu novas asas aos que falam sobre sua possível candidatura ao senado australiano nas eleições de 2013, pelo Partido de Wikileaks. A mensagem coincidiu com o sexto mês de seu asilo na embaixada equatoriana e permitiu que ele roubasse a cena do tradicional declaração natalina da rainha Elizabeth.

O conteúdo não podia ser mais diferente.
O jornalista australiano de 41 anos acusou o Pentágono de lançar uma campanha contra sua pessoa e sua organização que o Ministério da Defesa dos EUA classificou como criminoso. Ao mesmo tempo em que apontava os inimigos, Assange reivindicou seus amigos. “Há seis meses que entrei neste edifício que se converteu em minha casa, meu escritório, meu refúgio. Agradeço ao governo do Equador e a seu povo pelo apoio que receberam”, disse.

A embaixada-escritório não aprece ter afetado sua lendária capacidade de trabalho. Em seu cativeiro equatoriano-londrino, o jornalista australiano trabalha cerca de 16 horas diárias e escreveu um livro – “Ciberpunks: a liberdade e o futuro da internet” – que permitiu com que permanecesse no lugar que cativa: o centro do ringue. A liberdade de imprensa foi o eixo dos 12 minutos de sua fala de 12 minutos na sacada da embaixada. Assange pediu a libertação do soldado Bradley Manning a quem comparou com jornalistas que lutaram pela liberdade de imprensa em todo o mundo. “É só por meio da revelação da verdade que sustentamos os cimentos de nossa civilização. Quando nossos meios de comunicação são corruptos, quando nossos acadêmicos são tímidos, nossa civilização desmorona”, assinalou Assange.

A mensagem é outra maneira de lembrar ao mundo que ele continua no limbo diplomático-político. O Equador concedeu-lhe asilo, o Reino Unido não reconheceu a decisão e Assange precisa que o governo britânico garanta um salvo-conduto ao aeroporto para ele viajar ao Equador, algo que o chanceler William Hague jurou que jamais fará. O Tribunal Superior de Londres aprovou em abril a entrega de Assange às autoridades suecas, que buscam interrogá-lo por dois supostos casos de abuso sexual, e a Corte Suprema britânica rechaçou em junho de forma unânime a reabertura do caso.

A lei europeia de extradição obriga o governo britânico a realizar a detenção e a extradição de Assange. O australiano alega que pode prestar testemunho à justiça sueca desde a embaixada e que o célebre caso apresentado pelas duas mulheres (A e B, no jargão legal) é uma manobra obscura para que, uma vez na Suécia, seja extraditado aos Estados Unidos, que já deixou claro que deseja sua cabeça desde que, em 2010, Wikileaks difundiu mensagens classificadas sobre a guerra no Iraque e no Afeganistão.

Tradução: Katarina Peixoto

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

O que podemos aprender com Hippies e Punks – por Rafael Azzi

O que podemos aprender com Hippies e Punks
Marcha ao Pentágono, 21/10/1967
Absorvidos aparentemente pelo mercado, eles retornaram pela atualidade de sua crítica radical ao consumismo e desejo de produzir com autonomia
Atualmente há um determinado tipo de ideologia que conquistou grande parte da sociedade. Essa ideologia vem gerando consequências como prejuízo à saúde dos indivíduos, aumento da desigualdade social e degradação do meio ambiente. Trata-se de uma ideia sedutora e perigosa que hoje está mais difundida no mundo do que qualquer religião ou outra forma de pensamento. Essa ideologia é o consumismo.
Nenhuma sociedade sobrevive sem algum tipo de relação entre produção e consumo. O consumismo não é o mero incentivo ao consumo; é o pensamento de que uma vida boa e feliz depende inteiramente da quantidade de bens materiais que se pode consumir. Ao nível dos países, é a ideia de que o bem estar de uma nação deve ser medido apenas pelos números de produção e consumo de bens. Nesse contexto, o principal papel do Estado seria estimular a população para que consuma cada vez mais. Para o consumismo, o sucesso de uma sociedade ou de um indivíduo é medido simplesmente pela quantidade de produtos consumidos.
Essas noções estão de tal forma naturalizadas no imaginário coletivo que causa estranhamento demonstrar que elas representam uma ideologia cuja origem pode ser investigada à luz da história recente da sociedade ocidental.
No campo das ideias, o primeiro estímulo para o desenvolvimento da economia de consumo foi dado pelo escocês Adam Smith. Em 1776, o economista publicou o texto A riqueza das nações, no qual defendia que o verdadeiro progresso econômico ocorre quando os indivíduos são livres para buscar os próprios interesses. Assim, quando todos agem de forma egoísta, a sociedade como um todo se beneficia. Cabe ao Estado interferir o menos possível nessa dinâmica e apenas deixar que as pessoas invistam livremente em seus interesses individuais. Surge então a teoria que sustenta, até hoje, a essência do capitalismo.
Logo, as inovações técnicas da Revolução Industrial permitiram que um grande número de pessoas tivesse acesso a bens materiais que estavam nas mãos da elite. O princípio de democratização do consumo foi levado adiante por Henry Ford que, ao criar sua companhia, em 1901, tinha como objetivo que todas as classes pudessem adquirir um carro, até então um artigo de luxo. Ford realizou seu desejo em 1908, com o lançamento do primeiro Modelo T, um automóvel resistente, barato, simples de dirigir e fácil de consertar.
O industrial pretendia que seu carro popular fosse feito para durar e se preocupava em não fazer melhorias que tornassem o modelo anterior obsoleto. Graças ao desenvolvimento da linha de montagem e da escala de produção, Ford conseguiu baratear cada vez mais o preço de seu Modelo T, que passou de US$950, em 1909, para US$290, em 1924.
Devido ao desenvolvimento da linha de montagem, produtos industrializados mais complexos como os carros e os eletrodomésticos deixaram de ser privilégio e se tornaram acessíveis para muitos. As famílias médias norte-americanas logo possuíam bens materiais em abundância, destinados às mais diversas ações. As empresas, movidas por questões econômicas, mudariam radicalmente a visão e o papel do consumo na sociedade.
Durante a década de 1920, percebendo que logo poderiam ter um excesso de produção, as empresas resolveram investir no aumento da demanda. A solução seria fazer com que as pessoas quisessem comprar coisas novas mesmo que as coisas antigas ainda estivessem funcionando. Acabava a era do consumo que servia para suprir as necessidades. A criação e o constante estímulo à aquisição de bens materiais se tornariam ações centrais no desenvolvimento da sociedade. A chave para a prosperidade econômica era a criação organizada da insatisfação, pois se todos estivessem satisfeitos ninguém teria interesse em comprar coisas novas. A insatisfação social seria organizada de duas maneiras: a obsolescência dos produtos e a propaganda.
A obsolescência dos produtos faz parte de uma estratégia de mercado que pretende manter o consumo constante fazendo com que os produtos parem de funcionar (obsolescência programada) ou tornem-se obsoletos em pouco tempo (obsolescência percebida), tendo que ser substituídos.
A obsolescência programada consiste em simplesmente reduzir a vida útil do produto, fazendo com que ele funcione cada vez menos tempo. Esse tipo de obsolescência teve início com as lâmpadas elétricas. Em 1924, as lâmpadas duravam cerca de 2.500 horas, enquanto que em 1940 o padrão já havia sido reduzido para 1.000 horas.
No que se refere à obsolescência percebida, trata-se da essência da política das empresas contemporâneas: lançamentos no mercado de novos modelos com mínimas atualizações, apenas com o objetivo de tornar obsoletos os produtos anteriores. Assim, os consumidores sentiriam a necessidade de se manter sempre atualizados com bens de última geração, descartando produtos antigos, ainda que estejam em funcionamento.
Hoje, tais estratégias comerciais, iniciadas na primeira metade do século 20, chegaram ao extremo, sobretudo em relação aos bens tecnológicos. Aparelhos de telefonia móvel são produzidos para serem trocados, em média, a cada ano. Um exemplo tradicional de obsolescência percebida é o Ipod: lançado em 2001, o aparelhinho já havia passado por seis “gerações” em 2009, levando-se em conta apenas o modelo “clássico”. Se incluirmos as variações do mesmo produto, como o Shuffle, o Nano, o Mini e o Touch, são impressionantes 24 modelos de um mesmo produto, tudo isso em apenas 11 anos. Além disso, a bateria do primeiro modelo de Ipod era produzida para durar apenas um ano; depois desse período, o consumidor seria obrigado a comprar um novo produto, pois o aparelho era produzido de uma forma que praticamente impossibilitava a reposição de bateria.
De forma ampla, essas práticas comerciais aumentaram de forma drástica a demanda por recursos naturais e aceleraram a produção de lixo. Cada vez mais computadores, celulares e eletrodomésticos, ainda em pleno funcionamento, são descartados. A obsolescência dos produtos aumentou a demanda; mas isso ainda não era suficiente para as empresas, pois o consumidor não possuía a autonomia de escolher quando se atualizar. A solução seria encontrar uma forma de aumentar a insatisfação e estimular os desejos de consumo. Surgem então as técnicas de controle e de manipulação das massas desenvolvidas a partir das teorias psicanalíticas de Freud sobre o ser humano.
Eleito pela revista Time um dos norte-americanos mais influentes do século 20, Edward Bernays foi o criador da propaganda moderna. Ele utilizou as ideias de seu tio, Sigmund Freud, para manipular as emoções e os desejos das massas. Bernays acreditava que ao conhecer as motivações das pessoas, seria possível influenciar seu comportamento sem que elas se dessem conta disso. Ao vincular bens materiais a desejos inconscientes, Bernays ensinou às indústrias como fazer as pessoas desejarem algo de que não precisam de fato. A propaganda não se limitaria mais a apresentar o produto e a informar sobre suas qualidades. Agora, a publicidade teria o objetivo de influenciar a audiência, produzindo respostas emocionais e não racionais aos produtos. Nesse momento, surge a noção de consumismo como é compreendida atualmente, tornando-se uma forma de explorar mentes, emoções e identidades das pessoas.Medos e inseguranças são manipulados de modo a serem traduzidos em desejos de produtos materiais, e a sociedade é então condicionada a desejar sempre além.
Para aumentar o desejo das pessoas, o consumismo instiga as inseguranças e as carências emocionais, gerando cada vez mais ansiedade e depressão nos indivíduos. Tal fato ocorre pois a propaganda na cultura consumista é baseada em uma falsa promessa de felicidade. Os bens materiais são vendidos como uma forma de suprir carências que não são do âmbito material. Estimula-se a busca da solução de problemas emocionais através da aquisição de produtos comerciais. A propaganda vende a ideia de que mais produtos nos farão mais amados, mais estimados, mais felizes e mais valorizados. A verdade é que, quanto mais tempo o indivíduo gasta focado na aquisição dos bens, menos tempo ele possui para cultivar vínculos afetivos com a família, os amigos e a comunidade.
A dinâmica “mais produtos = menos vínculos” não foi pensada ao acaso. Bernays acreditava que as massas eram irracionais e perigosas e que deveriam ser controladas. Para ele, a democracia sem o controle da população configurava um fator de risco para a estabilidade social. Nesse sentido, seu método de propaganda buscava manter as massas ocupadas em busca da felicidade através de bens materiais. Quanto mais o consumismo é estimulado, menos as pessoas se interessam pela participação ativa na política. Na cultura consumista, as pessoas são induzidas a acreditar que a felicidade não depende do Estado ou da sociedade, mas dos produtos criados pelas empresas. O cidadão que busca a realização pessoal através da participação política transforma-se no consumidor que passivamente aguarda as empresas realizarem seus desejos. A liberdade política torna-se então a liberdade de consumir. Dessa forma, a combinação de democracia e consumismo é a fórmula perfeita para manter o povo longe do poder e preservar o status quo.
Além da apatia política, a cultura consumista estimula o egoísmo, a inveja e promove a desagregação social. Em uma sociedade baseada no consumismo, não basta ter o suficiente para viver bem; o consumismo é comparativo. Assim, manipula-se o desejo a fim de possuir mais do que o outro: mais do que o vizinho, mais do que o colega de trabalho, mais do que as pessoas que aparecem nas mídias sociais e tradicionais. Isso gera uma infinita insatisfação e um ciclo de consumo cada vez em proporções maiores. As pessoas tornam-se isoladas, centradas nos próprios desejos; e, por sua vez, a sociedade é construída de forma mais fragmentada.
O consumo tem se consolidado como o objetivo central da vida pessoal, arregimentando as esferas do lazer, da cultura, da vida social e familiar. Os shoppings estabeleceram-se como novos templos de dedicados súditos, espaços nos quais as pessoas reúnem-se, consomem e passam seu tempo livre. Entretanto, deve-se observar que, ao contrário dos antigos templos e das praças públicas, nos shoppings a vida social se empobrece e é reduzida ao simples ato solitário de comprar.
Porém, o consumismo nem sempre triunfou sem oposição. Algumas vozes dissonantes surgiram no decorrer do século 20. Dentre elas, as mais expressivas estão ligadas à cultura hippie nos anos 60, e do movimento punk, nos anos 70.
A cultura hippie floresceu nos anos 1960 nos EUA, epicentro do consumismo. Os hippies rejeitavam as hierarquias e as instituições estabelecidas, contestavam os valores da classe média, opunham-se às armas nucleares e à guerra e eram comumente vegetarianos. Eles utilizavam-se de artes alternativas como o teatro de rua e o rock psicodélico para expressar suas ideias e valores. Opondo-se à política tradicional, cultivavam ideias não doutrinárias e libertárias em favor da paz, do amor e da vida em comunidade.
Desiludidos pela sociedade moderna extremante individualista, egoísta e competitiva, decidiram viver em comunidades próprias e independentes, adotando um estilo de vida coletivo que estimulava a cooperação e a comunhão com a natureza. Nessas comunidades, as decisões são consideradas coletivamente, não havendo hierarquias, e todos os participantes exercem alguma função. Adota-se como prática o cultivo dos próprios alimentos e o comércio ocorre entre os moradores através da troca ou da permuta.
Já a cultura punk surgiu nos anos 70 nos EUA e na Inglaterra. Ela se caracteriza por ser um movimento extremamente urbano que, de forma ampla, defende uma visão anarquista centrada na autonomia do indivíduo, opondo-se à mídia tradicional, ao Estado, às instituições religiosas e às grandes corporações capitalistas.
A primeira manifestação cultural do punk foi no âmbito musical. O punk rock surge como a retomada de um estilo autêntico, no qual o mais importante é a expressão individual, pois os membros estavam profundamente decepcionados com a cena do rock que, na época, se mostrava vinculada à grande indústria da música. O showbizz americano e inglês tinha como preocupação produzir estrelas e divulgá-las em grandes shows, criando artistas que, na visão dos punks, careciam de autenticidade. Assim, a cultura punk começou a produzir músicas curtas e bastante simples, tocadas com pouco mais do que três acordes, sendo facilmente reproduzidas por qualquer pessoa sem formação musical. Essa concepção musical tinha como objetivo instigar outros jovens a criar suas próprias bandas. Surgia então uma grande expressão do anticonsumismo: a cultura do “faça você mesmo” (do inglês do it yourself – DIY).
O princípio do “faça você mesmo” relaciona-se ao questionamento tanto da necessidade de comprar coisas quanto dos processos existentes que impulsionam a dependência do indivíduo às estruturas sociais vigentes. De acordo com a cultura punk, os indivíduos podem se expressar e produzir trabalhos sérios, ainda que com recursos limitados. As bandas punks gravavam suas próprias músicas, produziam e distribuíam os álbuns, e se apresentavam em garagens ou em porões, evitando o controle das grandes corporações e assegurando a liberdade de suas performances. Suas ideias circulavam através de fanzines, isto é, publicações caseiras realizadas, editadas e distribuídas por fãs.
Aparentemente, esses dois movimentos culturais perderam a força inicial após alguns anos, tendo sido, de certa forma, assimilados pela moda e pela sociedade consumista, ainda que isso soe paradoxal. Entretanto, pode-se afirmar que suas ideias demonstravam força suficiente para, cinquenta anos depois, ressurgirem como uma possibilidade alternativa à atual cultura de consumo.
Na verdade, longe de estarem esquecidos, muitos desses valores permanecem na nossa cultura em áreas inusitadas. É possível afirmar que a contracultura dos anos 60 promoveu o desenvolvimento do computador pessoal e a organização da internet. A concepção de uma grande rede mundial sem fronteiras, sem qualquer autoridade central, na qual indivíduos são livres para compartilhar informações, deve-se à influência hippie da cultura americana. Os valores hippies baseados nas ideias de comunhão e de colaboração mostram-se cada vez mais presentes no mundo virtual e tecnológico. Exemplo disso são os sites de construção coletiva estilo wiki; bem como os softwares livres e de código aberto, nos quais todos podem contribuir livremente e de forma espontânea para o desenvolvimento, o compartilhamento, a edição e a difusão de ideias e de conhecimento.
Na sociedade contemporânea, a internet permite o compartilhamento de ideias, tornando-se um instrumento capaz de estimular novas formas de consumo e de conexão entre as pessoas. A noção de consumo colaborativo vem crescendo em meio à troca de ideias, pondo em cena práticas alternativas que envolvem trocar, emprestar, reusar e revender objetos. Torna-se cada vez mais comum grupos que se organizam e se reúnem a fim de trocar roupas, brinquedos e livros; planejando caronas; compartilhando carros e aparelhos eletrônicos; praticando a permuta de serviços; fazendo uso do sistema de book crossing ou couchsurfing. As atividades são realizadas e negociadas diretamente entre as pessoas, estimulando os laços de comunidade e permitindo viver bem com menos dinheiro. Em tais práticas, o indivíduo é valorizado pelo modo como interage com a comunidade, marcando o surgimento de um novo tipo de capital: o capital social.
O movimento do “faça você mesmo” hoje é mais presente do que nunca. Através de vídeos e aulas pela internet, na rede é possível ter acesso a possibilidades infinitas de aprender a produzir e a divulgar suas próprias realizações, fugindo da cultura passiva consumista e buscando a realização pessoal de forma ativa. Hoje pode-se plantar vegetais em casa, fazer cerveja caseira, costurar as próprias roupas e até mesmo produzir objetos manufaturados. A produção pode ser individual ou coletiva, e os objetos podem ser feitos para o próprio consumo ou para a venda, pois o século 21 aumentou a produtividade da produção de pequena escala. Pode-se exercitar a criatividade, desenvolver novas habilidades e talentos e a criatividade em novas formas de produzir bens de consumo. A ética do “faça você mesmo” dá poder aos indivíduos e às comunidades, encorajando o emprego de abordagens alternativas para a solução de problemas.
Assim, observa-se que a sociedade consumista enfraquece os laços sociais, estimula o individualismo, e retira a autonomia dos indivíduos, que se tornam consumidores passivos, cujo único poder é a escolha entre a marca A ou a marca B. Em contrapartida, a cultura hippie e seus ideais fortalecem a ideia de coletividade e de colaboração. O princípio do “faça você mesmo” estimula a autonomia, dá poder e liberdade aos indivíduos.
Um novo modelo cultural pode entrar em cena, criado à luz de ações que priorizam a partilha de produtos e de conhecimentos, a produção de bens de consumo, e o comprometimento crítico por seu modo de vida, a fim de consolidar conexões sociais e comunitárias. Meio século depois do surgimento dos hippies, eles e os punks são mais atuais que nunca: já temos todas as ferramentas que possibilitam promover  de uma sociedade mais feliz, socialmente mais justa e ecologicamente sustentável, bem como o desenvolvimento de uma economia de abordagem essencialmente humana, e não simplesmente monetária. Teremos coragem para usá-los?