De Spinoza e Marx ao materialismo negriano
As bases conceituais da ontologia negriana se assentam, principalmente, sobre dois pilares materialistas da história da filosofia, da Europa maldita, da antimodernidade européia. Os filósofos Baruch de Spinoza e Karl Marx. Marxista e spinozano, o trabalho teórico e político de Negri se constrói por meio de uma releitura incessante desses dois pensadores. Seja pensando Spinoza a partir de Marx, ou Marx a partir de Spinoza, e assim sucessivamente, em leitura cruzada, Negri pôde configurar um pensamento radical da revolução e do sujeito. Criticado com frequência tanto por marxistas quanto spinozanos mais ortodoxos, amiúde mais interessados em firmar a interpretação canônica sobre a letra fria dos autores do passado, e assim disputá-la como quem briga pela posse de uma múmia; em Negri a recomposição do marxismo e do spinozismo está inteiramente atrelada a um projeto político. É o projeto comunista. Sua primazia como animador de teoria e prática não faz concessões ao beletrismo filosófico, e seu rigor será tanto maior a olhos desprendidos, quanto maior se valorizar a dimensão política e o primado da práxis na tradição da escrita revolucionária. Spinoza e Marx constituem antídotos clássicos contra toda forma de teologia política, bem como todo socialismo utópico deslumbrado, este que toma o comunismo como ideia fora da história. O comunismo não virá do céu, não será anunciado por profetas e não se construirá sob a espécie da utopia. Longe de arroubos retóricos ou vagos apelos à emancipação humana, o materialismo se concretiza paulatinamente na análise do sujeito revolucionário, na escuta da composição da classe proletária, suas mutações, e os modos de sua inscrição no processo produtivo. Um trabalho de formiguinha.
Renunciar à transitividade entre a teoria do sujeito e a atividade constituinte e imanente que produz o mundo, — i.e., o processo produtivo em sentido amplo, — só pode significar se descolar da materialidade das forças em ação, e assim distanciar em demasiado a prática da teoria. Idealizar o pensamento, tornar o texto depurado da força desagregadora de toda a energia exercida pelas mobilizações e paixões das massas, ou da premência das dominações e injunções com que o intolerável se exerce, em sua surda repetição cotidiana. A política precisa de chão. Precisa que os materialistas caminhem sobre a terra, de preferência descalços. O militante, — o legítimo portador do método “científico”, — nada produz, em termos de conhecimento, se não se situa à altura das lutas de seu tempo, se não fizer pesquisa nas entranhas dos sujeitos existentes, se não se impregnar dos processos de organização, se não tiver mãos, pés, estômago e algo mais.
A tarefa de reconstrução das bases spinozanas e marxistas, para uma ontologia constituinte (arrisco dizer: uma ontologia comunista!), se impõe na medida em que me filio àqueles que advogam o direito como potência, e não como norma. O direito como componente de uma prática de transformação das condições presentes, e não como dever-ser, como valor a efetivar-se num segundo estágio, — uma tarefa supostamente para outras instâncias de poder que não a mediação jurídica: a política, a economia, o “trabalho social”, a “construção do socialismo”. Aqui, a proposta é reafirmar o direito, sim, o direito contra a norma. A norma em qualquer acepção: regras ou princípios, leis ordinárias ou lei constitucional, heterônomas ou autônomas (penso em Kant), atributivas ou prescritivas. Em vez de renunciar ao campo do direito como um todo, é caso de reapropriar-se do direito como arma para o empoderamento. “Reapropriar do direito como instrumento de positivação de práticas sociais.”[1] Mesmo a legalidade, servir-se dela como arma surrupiada do adversário. Se a modernidade encapsulou o direito —, aquele reconhecido pelas ciências, — dentro do estado, como enunciador da validade ou mediador da eficácia, continuam as latências subterrâneas por outro direito. Outra forma de pensar e viver o direito. Um direito afirmado na dureza dos embates e na criatividade dos movimentos. Está em questão a autoprodução de um direito vivo. Porque essas forças operantes no tecido social se exprimem coletivamente num exercício do direito, como atividade, concretização e assanhamento de suas capacidades, quereres e potências de agir. Não precisam que lhes concedam, necessariamente, âmbitos de legitimidade ou legalidade, para poderem ser tudo o que podem. Não precisam de instâncias externas para lhes dizer o que fazer, para lhes reconhecer o quanto valem, para lhes atribuir o que podem, e decidir o certo do errado, a regra da exceção. Não lhes é essencial, aos genuínos criadores do direito, o reconhecimento legal-estatal de grupos de pertencimento. Sem prejuízo do uso derivado, posterior e segundo, de regimes discursivos dessa natureza como tática de luta. O sujeito revolucionário investiga e encontra dentro de si, — da essência produtiva imanente à malha de relações e encontros, — os valores com que se autovaloriza e se autoproduz como força política. As condições ontológicas da liberdade não estão distantes. Elas não dependem de monumentais e mirabolantes projetos de libertação da humanidade. É mais simples do que isso, e não suplanta a ética do dia a dia.
É preciso reapropriar-se dessas condições da liberdade, tomá-las para si se preciso, ter para nós o que sempre foi de direito, a nossa potência e singularidade. A intensidade com que o sujeito afirma a sua forma de vida, e antagoniza às tentativas de confinamento, é quem define o seu direito, a dignidade com que reafirmam o propósito e a vontade de viver além das constrições, ameaças e explorações, a vontade de viver simplesmente. Nesse sujeito que deseja afirmar-se, não estão presentes causas ausentes, as teleologias, os finalismos, a duplicidade de Céu e Inferno. O resultado não é nada de efetivo, se for abstraído do movimento pelo qual se engendrou, passo a passo, na gênese das forças. E tampouco é a falta de algo que os move para frente. Não desejam o que os sábios e gerentes do estado possam lhes oferecer: já que a riqueza social está à mão. O direito não é mais do que isso, mas também não é menos do que isso. O que já é muita coisa, em termos de resistência.
Pensar o direito com Negri, a partir de Marx e Spinoza, é pensá-lo como diretamente produzido pelo ser e no ser, pela afirmação de razão e desejo de quem vive. Razão e desejo, nesse marco teórico, não se opõem. O desejo pode fortalecer a razão e vice-versa. Do mesmo modo que o coração tem razões que a razão desconhece, a razão também tem lá os seus corações. Muitas vezes a razão que se apresenta como depurada de desejo, desinteressada e “autônoma”, essa não passa de um afeto passivo. Uma paixão triste disfarçada de razão. Uma planta venenosa do desejo que nada mais é que o desejo voltado contra si mesmo: ascetismo e moral de sacerdote. Na práxis, desejo e razão se expressam materialmente, e arregaçam elementos de autonomia no interior da ação política. Não há lugar, aqui, para concepções platônicas que tripartem o ser humano em razão, vontade e apetite, onde caberia à razão superior (o estado) dirigir a vontade (os interesses individuais) para controlar os apetites inferiores (a incontinência, o crime). As paixões se digladiam no domínio das paixões, em graus de intensidade que cruzam sem distinção real o plano da razão. Não existe estado desapaixonado, como sabe muito bem quem já apanhou da polícia, tanto mais sórdida quanto mais desinteressada em você. Orientar o carnaval de paixões e amores, no melhor moralismo de tradição francesa (Montaigne, Molière, Pascal, La Bruyère), continua sendo uma tarefa eminentemente política. Cada sujeito é animado por uma pulsação interna, um ímpeto propulsivo, um ânimo de desenvolvimento expansivo, — que porventura, ou quase sempre, vem a debater-se contra as condições limitadoras e antagonistas impostas pela ordem. Vai-se do ser ao sujeito por meio do desejo. A essência afirmativa do sujeito acelera a sua propagação na rede de relações sociais. Exprime-se sem negatividade nas formas reais de sua efetuação. E se, por acaso, desenvolve a potência do não, o faz reflexamente, o faz ao afirmar seu processo constitutivo, despojado de referência ao vazio ou ao não-ser.
A pulsação do desejo no sujeito impele a afirmação radical e exaustiva de seu poder causal, de tudo aquilo que ele quer e que ele pode (e poder querer o que se pode marca a máxima potência). Desse vórtice, tende a realizar todos os efeitos de seu ser, enquanto constitutivos desse mesmo ser em ato, aliás a única modalidade da existência para Spinoza. Essa realização plena assume imediata dimensão ética, inseparável da política, e se projeta diretamente no terreno da libertação. O desejo provoca a combinação de afetos. Eles se buscam, se excitam, se encontram, se alegram. Os encontros mais gratuitos e as combinações mais desarranjadas contêm a sua produtividade, ainda que inservível na lógica e métrica do capital. A combinação dos afetos ativos termina por potenciar a alegria do conjunto. Quer dizer, a potência de efetuação de todos juntos sem depor suas diferenças internas e irredutíveis. Daí que o desejo é o próprio mecanismo de libertação. O poder constituinte embute um mundo ético a efetuar-se, um horizonte político de contestação das formas de represamento do desejo. As relações de produção ordenam as forças produtivas para desviar, bloquear, explorar e expropriar a potência comum de produção de ser. Aí, nesse circuito de coações, se instala o regime de acumulação do capitalismo. Mas eis também o paradoxo intrínseco do capitalismo. Se ele precisa jogar com o desejo, a base última de todo o sistema produtivo, para possibilitar a exploração e aprofundar a dominação, esse mesmo desejo é revolucionário, imprevisível, agressivo, — e lhe ameaça como um espectro índio a rondar a civilização. A afirmação do desejo se revela uma política da constituição, uma prática de liberdade, uma abertura ontológica para o novo, uma subjetividade que se propaga e desarranja, destravando bloqueios e potenciando encontros; uma força incontável dentro, contra e além do “modo de produção”.
Lênin talvez tenha sido o primeiro a desenvolver uma práxis em que a organização da produção é a essência da política. O soviete original tinha por rendimento articular a decisão (o conselho) ao desenvolvimento produtivo (a industrialização). A arte da política está em organizar os bons encontros, do que convém ao plano de composição política dos diferentes, em combinar as potências produtivas. E dessa maneira maximizar a existência, como riqueza crescente de relações, afetos e produções. Organizar os encontros: multiplicar os nós de cooperação e sinergia, conferir e sustentar-lhes as condições de expansão e contágio e duração. Uma produtividade mobilizada pela alegria dos agentes de produção, que produzem na medida em que se produzem na sua desejada esfera de realização pessoal e aprendizado. Tem-se aí um direito voltado ao máximo existencial, na arte da expansão da potência combinada dos homens. Esse direito do máximo existencial depende da construção de uma base produtiva, do estabelecimento concreto de redes de empoderamento, educação, saúde e renda para todos. Eis uma engenhosidade da alegria: concretizar instituições que deem suporte à democratização de uma produção em que todos são sujeitos, de uma produção qualitativa voltada à combinação e recriação desses mesmos sujeitos. Esse engenho se situa do lado da afirmação, da pars construens implícita em qualquer processo de transformação. Uma imaginação voltada a elaborar novos modos de organizar as relações, além do capitalismo. A construção desse direito e dessas instituições não significa reproduzir as instâncias de normatividade e a economia das coações na base do capital. Mas, sim, conferir duração às condições necessárias da expressão ativa e alegre do desejo e da razão, fortalecendo dinâmicas alternativas que já existem e lutam para continuar existindo. O direito como potência não se deixa enquadrar como outra norma dotada de coerção, pairando sobre súditos amedrontados.
Mas, por outro lado, não se furta a instituir-se. Essa instituição da potência de agir pode ser definida como instituição de um exercício comum de direitos[2], implicado na reunião das capacidades sociais, da multiplicação de encontros produtivos, do lançamento de redes colaborativas e, como consequência, a libertação da cidade diante do tirano e sua manipulação de medo e morte. Nesse direito, não opera a guilhotina entre eficácia e validade, nenhuma deontologia mascarada de humanismo pequeno-burguês. Viver o direito com Negri significa também colocar-se no nível da produtividade imanente da vida. Habitar a beira do dizível e do visível, o que não aparece nas narrativas convencionais, essa coisa louca, a franja constituinte a partir do qual sujeitos e objetos situados na história vêm a existir. As instituições do direito comum se constroem sob esse ponto de vista, por dentro da franja de emergência do novo. Jamais da perspectiva do estado ou do poder constituído, do tirano e da economia mórbida de inseguranças, de tudo isso que sustenta a perpetuação do que já está, em toda a sua carga de intolerável e injustiça inscrita nas relações de produção. Não dá pra falar em direito comum sem se impregnar de copesquisa no seio dos novos movimentos e da política radical. Perquirir um direito em movimento, uma alternativa política de constituição de autonomia e produção além do estado e do mercado, do público e do privado[3]. É verdade que essa instituição do direito comum pode até vir a operar como instância externa ao agente. Uma organização das relações com que ele se depara sem participação direta anterior. Ele não se identifica inteiramente com o processo de sua constituição, mas nessa distância, ainda assim, ele pode produzir, abraçar a diferença sem renunciar à própria, conjugando e potenciando-a. Isto indica a necessidade de abertura na formulação das instituições do comum, bem como um desapego a identidades e propostas enrijecidas. A instituição não pode prescindir de um forte componente mutante. Só, assim, pode evitar a redução ou síntese das diferenças em mínimos denominadores, empobrecendo as dinâmicas, entristecendo os que não se ajustam à identidade coletiva. Essa forma de produzir depende também do cultivo da alegria, no sentido rigoroso e filosófico do termo: aumento da potência de agir e existir propiciado pelo bom encontro. Não é outra a definição spinozana de amor: “a alegria acompanhada da ideia de uma causa exterior”[4]. E ainda: “minha liberdade começa quando começa a do outro. O que nos convém, pois, são os entrelaçamentos, os entretecimentos, as vinculações (relações de composição), os compromissos que produzam cada vez maior intensidade, quer dizer, maior liberdade em nossos encontros.”[5] Uma vez instituído o exercício comum dos direitos, na base material de condições desse exercício, é preciso continuar propiciando a combinação alegre de desejos e razões, a cooperação, a adequação mútua dos muitos componentes diferentes na sua diferença, tudo o que, funcionando, realiza o amor: o amor da construção comum.
A imanência entre ser, ética, política e direito indicia a necessidade de articular a teoria do sujeito com a crítica do sistema produtivo. Em Negri leitor de Spinoza, uma vez que o próprio ser é atividade produtiva infinita de todas as coisas, — em suma, como essentia actuosa[6], — o conceito de “modo de produção” assume uma dimensão ontológica, na dobradura e redobradura de política e vida, ou biopolítica. O capitalismo não se resolve como uma forma de estruturar as relações sociais somente na sua dimensão econômica. Em Negri leitor de Marx, a ideia de produção não se resume a concepções objetivistas, que achatam o conceito de produção à mera produção, distribuição e consumo de coisas e bens, à organização objetiva e/ou estrutural dos circuitos de acumulação e valorização, — segundo o reducionismo da ortodoxia marxista e/ou estruturalista. A produção quer dizer também produção de subjetividade, o campo prolífico em que se geram permanentemente processos de efetuação de objetos e sujeitos, bem como a articulação e animação entre eles.
A produção de subjetividade não se situa do lado do objeto, nem do sujeito, mas no interstício, no entre eles, e se desenreda por uma dinâmica intensiva, por uma escala de intensidades no próprio interior da produção. Isto é, não é questão de produzir ou consumir mais ou menos, mas contestar a própria lógica quantitativa. Desafiar a métrica com que o capital faz comungar capital e trabalho, lucro e salário, dívida e renda, patrão e empregado. Noutras palavras, a métrica definida pela comunhão do dinheiro, esse líquido amniótico do mundo capitalista. Na subsunção real, o dinheiro se torna o operador com que um sistema financeiro demiúrgico controla os fluxos produtivos numa escala ao mesmo tempo vasta e infinitesimal. A moeda é a polícia do capital. Nessa operação de captura, o capital investe as subjetividades imanentes aos corpos sociais à moda do sujeito transcendental. O sujeito transcendental exprime o conceito com que a forma capitalista drena os conteúdos. Refiro-me ao sujeito kantiano, o conjunto de formas e sínteses que possibilitam o conhecimento e a organização dos fenômenos a partir do númeno incognoscível (o “em-si” das coisas). Com a mesma analítica transcendental, o capital se apresenta como a única instância competente para organizar as forças produtivas (o “em-si” da produção), e assim efetuar objetos e sujeitos no mundo. O capital se apresenta como campo transcendental, o único uso legítimo das sínteses da produção de sujeitos e objetos. Nessa metafísica, o caráter produtivo do trabalho depende da ação indispensável do capital.
O processo do capital se disfarça de transcendental, e nenhum conhecimento, moral ou produtividade poderiam existir sem a sua mediação “imanente”. Sem o capital, reinaria o caos numênico, a desordem social como improdução e estado de natureza. Autônomo, mesmo, só o burguês. Diante dessa mistificação, a coloca-se a necessidade teórica de exercer uma crítica imanente às condições transcendentais da produção capitalista, num esforço teórico além de Kant. A hipótese negriana da subsunção real, — absolutamente imprescindível em sua ontologia comunista, — avança as armas críticas do marxismo por sobre esse campo transcendental. Não se limita a criticar sujeitos e objetos, mas o campo transcendental que os sintetiza. É uma crítica à própria metafísica do capital, enquanto máquina abstracionista de sínteses. Nessa tarefa, Negri não se limita a descrever minuciosamente o campo transcendental, em que o capital inscreve os objetos e sujeitos, como engrenagens e agentes de produção. Não o faz, quer pelo lado dos objetos: como sociologia do capital, a destrinchar os dispositivos e estruturas que sustentam a economia política. Nem pelo lado dos sujeitos: por quaisquer das vias disponíveis no pensamento radical: a crítica da indústria cultural, da sociedade do espetáculo ou de consumo. A crítica imanente negriana se orienta pela percepção de como o campo transcendental da sociedade capitalista já é posterior, ontologicamente segundo. O campo transcendental se ordena internamente como relações de produção. Os objetos e sujeitos são dispostos como termos dessas relações mediadoras. Mas esse campo das relações de produção já é um desdobramento das próprias forças produtivas, um desdobramento menor, menos potente. Aí a crítica avança além das relações de produção, mostrando a sua correlação com as forças produtivas. Além (e aquém) do transcendental, a imanência produtiva. As relações de produção consistem num recalcamento de tudo o que as forças produtivas podem, uma separação do que elas podem. As relações de produção se assentam nas forças produtivas como uma espécie de casca apodrecida ou armação esquelética, aplicada na substância primeira: o ser produtivo, vivente, constituinte. A manobra consiste, assim, em resgatar essa produtividade imanente à política (primeiro momento) e à vida dentro do escopo da crítica, sem se limitar à crítica da produção de sujeitos e objetos (segundo momento). Tem-se assim uma crítica da própria mediação (passagem despotenciante do primeiro ao segundo momento). Se, no capitalismo, o sujeito transcendental é imposto como mediação necessária e civilizatória, trata-se de desafiar as suas condições e sínteses, para colocar imediatamentea imanência da produtividade, a produção biopolítica como suficiente para a organização da produção.
Na subsunção real, a ontologia do ser é tal que essa produção biopolítica reúne qualidades suficientes para auto-organizar-se. Trata-se das qualidades cooperativas e imaginativas do saber social de massa, o intelecto geral social. A liberdade spinozana, afinal, não coincide com a transformação da realidade dos objetos por um sujeito que lhe é externo. Como se o sujeito se apropriasse do objeto fora, usando-o segundo um entendimento transformador. Essa liberdade acontece na expressão imediata de um poder ontológico que produz o sujeito no ato mesmo em que o conecta no sistema múltiplo e relacional (o ser produtivo), onde as ações e produções se sucedem, num processo dinâmico de deslocamentos intensivos e extensivos. Desta forma a imediata produtividade que é a liberdade material opõe-se às metafísicas que prescrevem medições entre o transcendental ao constituinte. A implosão do “modo de produção” livra o campo transcendental, com todas as mediações implícitas, para a geração de sujeitos e objetos outros, formas de vida outras, imediatamente na auto-organização.
Formam-se novas subjetividades com velocidade de escape às operações de acumulação e exploração do capital. Acelera-se, e desta vez sem mediações, um processo de multiplicação de relações, afetos, perspectivas e instituições de tipo novo, — um desbloqueio geral das capacidades naturais e culturais. Com isso, podem ser maquinados seres híbridos ao capital, formações subjetivas em estado deliquescente, trânsitos entre os planos heterogêneos de formas de vida, e instituições onde se pratica a autonomia. Essa maquinação depende de um perspectivismo. Só pode obter êxito ao materializar um plano de composição política, em que as diferenças possam atuar e produzir juntas. Juntas sem perder a força implicada nas próprias diferenças, organizando o viver na distância constitutiva entre elas, — e sem se reduzir a fórmulas vazias, palavras de ordem ou seitazinhas enfadonhas que confundem suas fraquezas psíquicas, desgraças íntimas e credos religiosos com trabalho político de verdade. O caso é reunir a imaginação com o pragmatismo, num ativismo alegre, porém não deslumbrado. O comunismo desmonta a lógica transcendental com que o capital se autojustifica. E assim, — só por esse fato e nada mais, — o sujeito liberta a produtividade do parasitismo capitalista, seus limites e suas brutais desigualdades.
Este é o subcapítulo 3.1 da dissertação de minha lavra: “Produzir direitos, gerar o comunismo; teoria do sujeito em Badiou e Negri“. Para baixar na íntegra: http://www.4shared.com/office/V4llFHPP/CAVA_Bruno_-_Produzir_direitos.html
[1] FLORES, Joaquín H. Teoria crítica dos direitos humanos… Op. cit. p. 27
[2] Sirvo-me da elaboração teórica do direito comum, sob a inspiração da ética spinozana, por GUIMARAENS, Francisco de. Direito, ética e política em Spinoza. Op. cit. Recomendo especialmente o cotejamento com a deontologia kantiana, origem de muitos normativismos modernos, p. 163-210.
[3] Sirvo-me também das formulações do direito do comum, uma linha de elaboração do direito e das instituições fora da dialética moderna do público e do privado, do estado e do mercado. Por todos, Dentro/contro il diritto sovrano; Dallo Stato dei partiti ai movimenti della governance. Verona: ombre corte, 2009. Recomendo ainda a tese recém-publicada de MENDES, Alexandre F. Além da ‘tragédia do comum.’ 2012. 202 f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. Disponível online em http://www.4shared.com/office/v4y85rOf/tese_Comum_AFMENDES.html. Acesso em 20 ago. 2012.
[4] SPINOZA, Ética. Tradução de Tomaz Tadeu. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. 6ª definição dos afetos. p. 241.
[5] FLORES, Joaquín H. Teoria crítica dos direitos humanos. Op. cit. p. 185
[6] “Deus age pela mesma necessidade pela qual compreende a si próprio, isto é, que assim se segue da necessidade da natureza divina que Deus compreende a si próprio (como, unanimemente, afirmam todos), também se segue da mesma necessidade que Deus faça infinitas coisas, de infinitas maneiras. (…) a potência de Deus não é senão sua essência atuante [actuosam essentiam]” SPINOZA, Ética. Op. cit. II, 3, escólio. p. 83.
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