quinta-feira, 26 de abril de 2018

IDF, o exército mais moral do mundo ... mas, com exceções.

Fonte: https://twitter.com/LatuffCartoons

“A liberdade não se concede, conquista-se. Que a conquistem os negros!” - por Lucinda Canelas

“A liberdade não se concede, conquista-se. Que a conquistem os negros!”
A Mário Domingues devem-se, nos anos 20, os primeiros textos da imprensa portuguesa a defender abertamente a independência das colônias. Hoje são poucos os que conhecem a obra deste anarquista, que denunciou as brutalidades cometidas pelo império na África e que, com o Estado Novo, trocou os jornais pela ficção. Um breve ensaio volta agora a recuperar parte da sua história.

O bilhete de identidade basta para que comecemos a falar de uma história singular – a de um rapaz que nasceu na ilha do Príncipe no final do século XIX, filho de um homem branco e de uma angolana que para lá tinha sido levada para trabalhar nas plantações de cacau da roça Infante D. Henrique. Quem lhe faz o registro, já em Portugal, onde chegou com apenas 18 meses para viver com a família paterna numa casa onde não faltava nada, não tem sequer a certeza do dia exato em que nasceu – Junho ou Julho de 1899 –, nem do nome da sua mãe – “Congala” ou “Manga” é o que consta no espaço que lhe é destinado, assim, sem quaisquer apelidos, ao passo que o pai tem direito a nome completo (António Alexandre José Domingues).
“Isto era o que acontecia com os escravos, não se lhes conheciam apelidos”, diz José Luís Garcia, sociólogo que há mais de 20 anos reúne informação sobre o jornalista e escritor Mário Domingues (1899-1977), um dos primeiros que em Lisboa levantou a voz pela independência das colônias na África, na década de 1920, numa série de artigos que são verdadeiros manifestos de defesa dos direitos humanos sustentados pelas leituras que fazia do movimento de libertação dos negros norte-americanos e pelos ideais anarquistas e, ao mesmo tempo, notas de denúncia das barbaridades cometidas pelo império português, sobretudo em São Tomé e Príncipe e em Angola.

No artigo de 20 páginas que agora publica no volume Media and the Portuguese Empire(coord. de José Luís Garcia, Chandrika Kaul, Filipa Subtil e Alexandra Santos, Ed. Palgrave Macmillan, 2017), uma edição em inglês que reúne 17 ensaios que analisam as relações entre o poder e a informação e olham para o império português tomando os meios de comunicação como agentes das lutas sociais, políticas e culturais, José Luís Garcia concentra-se em alguns dos 30 artigos que Mário Domingues escreveu nos anos 1920 nas páginas do diário anarquista A Batalha.
Estes artigos, escreve o sociólogo, revelam três atitudes de base: uma oposição sistemática a todas as formas dissimuladas de escravatura, que continuava a existir nos territórios portugueses na África sob o rótulo de trabalho forçado; a denúncia do racismo que atravessava toda a política e administração coloniais, e a que as instituições eram também altamente permeáveis; e a consciência da importância da independência africana.
A Batalha é, a partir de 1919, um jornal que critica abertamente a estratégia republicana para os territórios africanos e apoia as reivindicações da população negra em Portugal continental e nas colônias.
É neste quadro, em que se “começa a consolidar uma consciência anticolonial em alguns setores”, que Mário Domingues escreve os seus artigos “absolutamente visionários inspirados pelas leituras que faz sobre o movimento identitário dos afro-americanos”, diz José Luís Garcia.
“Vários jornalistas do Batalha começam a escrever sobre a corrupção entre os funcionários administrativos das colônias, sobre o tratamento privilegiado que é dado a muitas empresas que têm lá atividade, o racismo, a perseguição aos negros que reivindicam os seus direitos e que têm jornais próprios (O Angolense ou A Verdade) para o fazer e, sobretudo, sobre o trabalho escravo”, explica, expondo um regime de servidão que não é muito diferente daquele em que milhares viviam antes da abolição da escravatura em todo o território português, em 1869.
O regime republicano persegue todo aquele que ousa resistir às regras impostas ou manifestar-se contra as condições degradantes em que se vive, enquanto os altos-funcionários inescrupulosos vão abusando do seu poder e enriquecendo à boleia de negócios com as multinacionais e com as minas da antiga Rodésia (Zimbabwe) e da África do Sul, ex-colônias britânicas, para onde enviam grandes contingentes de trabalhadores negros. As prisões estão cheias de pessoas que ficam detidas durante longos períodos sem saberem sequer do que são acusadas – prisões onde os castigos físicos são severos e o jejum uma imposição recorrente.
“Outros escrevem sobre estas situações degradantes, mas o Mário Domingues é o primeiro a defender claramente a independência das colônias portuguesas de forma coerente num jornal português de grande popularidade”, diz este sociólogo, que tem na cabeça uma exposição e na gaveta um livro sobre este jornalista que desde cedo mostrou ter uma inclinação para a escrita e uma apetência invulgar para as línguas (inglês, alemão e francês). “O fato de ler jornais e revistas internacionais e de estar a par das mais atuais reivindicações de direitos humanos que vinham dos Estados Unidos fazem dele um caso muito singular.” Domingues saúda a criação, em 1921, do Partido Nacional Africano (PNA), naturalmente anticolonial, que A Batalha apoia de imediato, e acompanha o pensamento de ativistas da justiça racial como o norte-americano W.E. Burghardt Du Bois e o jamaicano Marcus Garvey, uma das figuras mais importantes do movimento nacionalista negro.
“Ele tira partido da sua diferença racial e politiza-a. Ele é um mulato que pega nas leituras que faz sobre a identidade e os direitos dos negros a que muitos não tinham acesso e adapta-as à realidade que conhece.” E fá-lo escrevendo e escrevendo na primeira pessoa ou inventando personagens para ilustrar pontos de vista.
Liberdade pela luta
Para melhor compreender os artigos de Domingues n’A Batalha importa olhar para o contexto em que são publicados, só brevemente enunciado no ensaio que Garcia assina no volume Media and the Portuguese Empire.

A República empenha-se em dar continuidade à política colonial da monarquia, que iniciara uma nova fase nas relações com África nas duas últimas décadas do século XIX, com a ocupação militar e administrativa dos territórios ultramarinos, escreve muito antes este investigador do Instituto de Ciências Sociais no artigo “A Batalha e a questão colonial”, que publica com o colega José Castro em 1995 na revista acadêmica Ler História.
É a República que cria o Ministério das Colônias, logo em 1911, e que nomeia para a sua administração figuras importantes dos seus quadros (Norton de Matos e Brito Camacho). É também com a República, nas décadas de 1910 e 1920, que os brancos se começam a estabelecer em força nas colônias portuguesas na África e que a presença militar se consolida, abrindo caminho a uma administração civil cada vez mais abrangente e incisiva, que beneficia da aprovação do “estatuto jurídico das populações indígenas”, lembram os autores.
“Os vetores fundamentais desta construção ideológica são a ideia da vocação colonial civilizadora dos portugueses e o paternalismo humanitário em relação aos negros”, defendem Castro e Garcia, falando de uma “missão civilizadora” que não passa de um falso pretexto para pôr em prática um projeto político que tem sobretudo grandes motivações econômicas.
“O que eles queriam de fato era garantir, tal como a monarquia já queria, que as colônias continuavam a dar matérias-primas baratas e a servir de destino aos produtos que se faziam em Portugal continental, e isto sem levantar problemas. Os militares e administração estavam lá para isso”, diz Garcia, lembrando que não se olhava a meios para atingir estes fins. “A escravatura já tinha sido abolida formalmente, mas ela continuava nas colônias, sob a forma de trabalho forçado [criado em 1890]. Ninguém tem dúvidas disso hoje ou ninguém devia ter. A forma como se trabalhava nas roças do cacau em São Tomé e Príncipe é típica de um quadro de escravatura.”
O aumento da população branca nos territórios africanos alimentou, naturalmente, o racismo. A República, lembram Castro e Garcia, dividia a população negra entre “crioulos ‘assimilados'” e “indígenas”, e recusava-se a que os primeiros servissem de mediadores entre os colonos e os segundos. Ora, isso fez crescer entre os “crioulos” o sentimento de pertença à raça negra e a necessidade de combater o racismo.
É neste quadro que Mário Domingues assina no jornal anarquista uma série de artigos denunciadores, alguns deles verdadeiros manifestos, ainda que apoiados em fatos, em que desmonta o sistema colonialista da República e o que o sustenta, defendendo a independência da África.
Escreve o primeiro desses artigos (“O ideal da independência”, 5 de Julho de 1922) depois de ler outro que o deixou indignado, assinado pelo seu colega Cristiano Lima (“Na Feira Mayer. Uma exibição cruel e aviltante”, 28 de Junho de 1922), e nele assegura que “o espírito separatista” existe em quase toda a África portuguesa, “revigorado a cada perseguição, robustecido pela própria tirania de alguns brancos sem escrúpulos”.
Cristiano Lima parte de uma barraca de feira em que um homem branco com o rosto pintado de preto serve de alvo aos que lhe atiram bolas de pano e serradura para ganhar um charuto – por cima desta “diversão” havia “um dístico chamariz” onde se podia ler “o preto que resiste a todos os portugueses” – para denunciar uma “brutal e inútil selvajaria” com que compactuam todos os que permanecem em silêncio perante tamanho ataque à dignidade humana que evoca “épocas longínquas de escravidão e despotismo”, mas sem nunca se referir às condições em que vivem os negros nas colônias.
O que escreve Mário Domingues logo no primeiro título da série, por seu turno, não deixa dúvidas sobre o que pensa do domínio colonial na África, garantindo ser missão de todos proclamar a verdade corajosamente: “(…) O separatismo alojou-se definitivamente no cérebro e no coração do negro escravizado e vexado por uma colonização iníqua. (…) Porque não houve ainda quem, público e raso, afirmasse desassombradamente que talvez não tardem dez, 15 ou 20 anos que Portugal corra o risco de ficar sem colônias para explorar, sem negros para tiranizar?” E continua: “Às infâmias praticadas pelo despotismo branco, na África, só um ideal de independência se pode opor com eficácia.” E insta os negros a lutarem pela sua liberdade, “unidos numa consciência rácica” e com a certeza de que as suas reivindicações são mais do que justas. “A liberdade não se concede, conquista-se. Que a conquistem os negros!” “Têm ou não os negros direito à independência? Têm. Como alcançá-la? Lutando.”
E termina, num artigo carregado de interrogações e exclamações que parece destinar-se mais a ser ouvido que lido, apelando a uma grande manifestação dos negros de Lisboa como forma de tornar pública a urgência da libertação das colônias. “Desejamos ardentemente a independência do povo negro, porque somos partidários da independência de todos os povos, porque queremos ver a humanidade livre, absolutamente livre, vivendo em paz e harmonia!”
Noutro texto, o último desta série a que deu o nome Para a história da colonização portuguesa, apela a que os “organismos negros” exijam de imediato o fim dos castigos corporais, a anistia para todos os presos políticos, a equiparação de salários entre brancos e negros e a liberdade de trabalho e imprensa, em consonância com outros movimentos revolucionários que vão surgindo no plano internacional. “É preciso que o negro português ingresse também nesse movimento colossal… que tem por objetivo a independência da África.”
“Ele não escreve sobre a libertação das colônias portuguesas na África como se fosse uma utopia distante e eternamente inalcançável. Nem o faz como se este movimento se pudesse isolar de outros que se opõem ao imperialismo europeu e ao seu sistema de dominação”, sublinha José Luís Garcia. “O Mário Domingues faz exigências muito concretas e quer ver resultados.”
O guarda-livros contrariado
Mário Domingues não seria o único na redação do A Batalha a defender estes ideais independentistas e a denunciar as atrocidades cometidas pelo colonialismo português, atrocidades que a República perpetuara, apesar de (algumas) boas intenções iniciais, mas é o primeiro a escrever abertamente sobre a total libertação dos territórios ultramarinos.
Tudo isto é publicado por um diário claramente vinculado aos ideais anarquistas e não está isento de contradições. São artigos que defendem os direitos humanos em geral e o direito dos negros a serem livres em particular, mas não podem ser isolados de um contexto em que as reivindicações do proletariado também estão muito presentes. “Mas o Mário Domingues fala muito mais de raça e da emancipação dos negros” do que os seus colegas Cristiano Lima e Ferreira de Castro, por exemplo. “Quase todo o seu trabalho jornalístico tinha que ver com o fato de ele ser um homem negro a trabalhar num meio dominado por homens brancos e a viver numa sociedade em que aos negros não eram reconhecidos os mesmos direitos que aos brancos”, acrescenta José Luís Garcia.
Domingues chegou a Lisboa com apenas 18 meses para viver com os seus avós paternos num ambiente de classe média. O pai queria que recebesse uma educação séria e a casa dos avós proporcionou-lhe um ambiente seguro.
Nunca mais viu a mãe e, durante anos, por causa da informação que lhe era transmitida pela família paterna, acreditou que morrera quando ele era ainda bebê.
Há uma passagem em O Menino entre Gigantes – romance autobiográfico que publica em 1960 numa edição cuja capa é assinada pelo seu filho, o pintor surrealista António Domingues – em que a avó do protagonista foge às perguntas que ele lhe faz sobre a mãe ao pegar numa camisa de bebê que estava guardada numa gaveta.
“Havia nele uma tristeza que vinha da ausência da mãe e do fato de ter descoberto que as pessoas que lhe mentiram sobre ela foram das que mais amou na vida. Essa mágoa ficou. Falava muito da mãe, do fato de ela ser negra”, diz José Luís Garcia, que chegou a conversar com pessoas que o conheciam bem e a quem a nora do escritor, Adelina Domingues, confiou muitas das suas fotografias e documentos.
Em Lisboa acaba por fazer, contrariado, o Curso Comercial no antigo Colégio Francês, começando a trabalhar como ajudante de guarda-livros, mesmo tendo consciência da atração que sentia pela escrita desde sempre. Foi pela ficção, aliás, que chegou ao jornalismo, carreira que viveu intensamente durante quase 20 anos. Publicou o seu primeiro conto no diário A Batalha quando tinha apenas 19, tendo escrito e até ajudado a criar outros jornais e revistas (ABC, Ilustração, África Magazine, Imprensa Livre, Repórter X, Detective). Se o entusiasmo pela escrita não bastasse para abandonar a contabilidade, bastaria o salário – Alexandre Vieira, o então diretor do Batalha, prometeu pagar-lhe o dobro do que ganhava e cumpriu, contou Domingues num programa da RTP, em Agosto de 1970.
Sempre no meio
Até ao final de 1919, começos de 1920, Mário Domingues assinou sobretudo ficção e crítica de arte (era um entusiasta de modernistas como Amadeo de Souza-Cardoso e Almada Negreiros), escreve Garcia, embora defendendo que é natural que alguns dos artigos contra a política colonial que já antes disso A Batalha publicava sob anonimato fossem, na realidade, do jornalista. “É o estilo dele, a ironia com que escreve”, diz o sociólogo, fazendo referência a um em particular, em que o autor aborda o problema da escravatura nas roças de São Tomé, descrita como a mais próspera das colônias portuguesas, procurando desmontar o sistema falacioso de contratação dos chamados “serviçais”, completamente explorados e deixados à mercê das vontades dos proprietários das grandes fazendas de cacau, trabalhando das seis da manhã às seis da tarde e vendo os seus contratos renovados automaticamente, sem que fosse essa a sua intenção. Mas depois, e até ao começo dos anos 1930, assina a série da colonização portuguesa, transformada num apelo ao “belo ideal da independência africana”.
São 30 artigos em que denuncia mortes e violações, em que ataca as grandes companhias que usam a abusam da força para disciplinar os seus trabalhadores que tratam como escravos, em que contesta as limitações à liberdade de imprensa e em que expõe a falsidade da “missão civilizadora dos portugueses” na África. “Falar de brancos e negros implica falar da colonização, e a colonização, mesmo hoje, não pode ser definida senão numa palavra – crime”, escreve num dos textos desta série em que passa em revista 500 anos de império.
“O primeiro artigo em que fala de uma África independente é de uma falta de cautela deliciosa e vai pagar o resto da vida por ela.” Porquê? “Porque fica eternamente no meio – vê-se inicialmente arredado pelo Estado Novo e pelo salazarismo e, depois, é menosprezado pelo anti-salazarismo e por aquela parte da elite portuguesa que se habituou a menorizar o jornalismo e a literatura de aventuras e de cordel, coisas muito importantes para a criação de imaginários.”
Domingues viveu sempre esta condição de quem está “no meio”, uma condição que começa na cor da sua pele: “Não podemos esquecer que ele fez tudo o que fez sendo um mulato, com tudo o que isso implicava no Portugal do seu tempo.” Por isso, e sobretudo pelo caráter visionário e pela qualidade da sua escrita, José Luís Garcia não podia deixar de o incluir no volume que a Palgrave Macmillan lançou em Dezembro (disponível em papel e em versão digital): “Eu não podia perder a oportunidade de o apresentar no plano internacional que ele merece, já que em Portugal está ainda muito longe de ser devidamente reconhecido.”
Um não-alinhado
Entre artigos de opinião e a reportagem, gênero a que dedica boa parte da sua energia em jornais como o Detective, chegando a disfarçar-se de mendigo, pedindo esmola e dormindo nas ruas para depois poder escrever, a partir de dentro, sobre o apoio aos mais pobres e sobre as condições de vida nas prisões, Mário Domingues continuou a ter tempo para a ficção, publicando o seu primeiro livro em 1923, Audácia de Um Tímido, a que se seguiram Anastácio José (1927), O Preto do Charleston (1930), Uma Luz na Escuridão (1937) ou já referido O Menino entre Gigantes (1960), romance que dedica à mãe e em que, dando voz a Zezinho, um menino mulato educado em Lisboa por uma família burguesa que não pode ser outro se não o próprio autor, escreve: “Eu ficara sucumbido como se me vibrassem uma bofetada à traição. Era a primeira vez que me faziam sentir, de maneira humilhante, a cor negra da minha pele. Talvez não acredites, Marisa adorada: eu nunca fizera até então reparo em que era muito diferente das pessoas que me cercavam.”
“Percebi a dada altura que persistir na minha carreira jornalística era prejudicar a minha carreira nas letras”, diz na mesma entrevista à televisão pública, justificando o abandono dos jornais. Em momento algum do programa em que a RTP o acompanha pelas ruas e praias da Costa da Caparica, onde vivia, se lhe houve qualquer comentário às limitações à liberdade de imprensa impostas pelo Estado Novo, o que é natural, já que o programa passa quatro anos antes da revolução que depõe a ditadura.
Trocado o jornalismo pela ficção, Mário Domingues passa a dedicar-se aos romances policiais e de aventuras, sob pseudônimo – Os Mistérios da Índia, Segredos da Espionagem Oriental, Perdidos na África –, conseguindo viver da sua escrita, como queria desde a adolescência: “Durante dez, 15 anos escrevi uns 160 ou 170 livrinhos desses de cerca de 200 páginas, recheados de aventuras, cheios de imprevistos, com índios e cowboys, viagens extraordinárias por regiões do mundo que eu nunca tinha visto.”
A estes romances seguiram-se as biografias de grandes vultos da história de Portugal (D. Manuel I, Padre António Vieira, Nun’Álvares Pereira), figuras que serviam na perfeição a retórica do Estado Novo. E isto tendo ainda no “currículo” traduções de obras de Charles Dickens e George Eliot.
“Mário Domingues era um escritor notável. Primeiro foi um jornalista incrível, repórter impressionante, e depois transformou-se no nosso Emilio Salgari [o escritor italiano que criou o corsário Sandokan]. Nunca parou de escrever, porque sempre quis viver da escrita”, diz Garcia.
Mas, se foi autor de uma obra tão vasta quanto diversificada, e sobretudo de uma série de textos absolutamente pioneiros no que toca à defesa da independência das colônias portuguesas, por que razão permanece Mário Domingues praticamente esquecido e, com raras exceções, confinado a publicações acadêmicas? Porque durante o Estado Novo troca os artigos revolucionários nos jornais por livros de cowboys e de aventuras? Porque a dada altura decide escrever sobre os “heróis” que tanto agradavam ao regime e acaba por ele condecorado?
“Fica oculto, porque não alinha com o PCP. Termina a vida pouco crítico, mas sem deixar o anarquismo, nem a ideia de viver apenas da escrita, condição típica e desgraçada do intelectual do século XX. É um não-alinhado”, acrescenta este investigador que está habituado a estudar as relações entre os meios de comunicação e o poder político – Garcia coordenou, com Tânia Alves e Yves Léonard, a obra Salazar, o Estado Novo e os Meios de Comunicação, que saiu no ano passado com a chancela das Edições 70 –, e que gosta de tratar os jornais como “arquivos da realidade” e não como meras ferramentas instrumentalizáveis ao serviço de determinado programa que lhes é exterior. “Os meios de comunicação influenciam estilos de vida, comportamentos, opiniões, e são, nessa medida, atores de primeiríssimo plano da história, pelo menos a partir da segunda metade do século XX. (…) A política faz-se com ideias, linguagens, correntes de opinião, e isso coloca os meios de comunicação no coração do processo.”
agência de notícias anarquistas-ana

por uma só fresta
entra toda a vida
que o sol empresta
Alice Ruiz

Massacre de Eldorado dos Carajás, 22 anos de IMPUNIDADE!

Fonte: https://twitter.com/LatuffCartoons

Nova York retira estátua de médico que operava escravas sem anestesia – A.N.A.

Nova York retira estátua de médico que operava escravas sem anestesia
Estátua de J. Marion Sims, considerado o ‘pai da ginecologia moderna’ foi retirada do Central Park após protestos

Pela primeira vez, a cidade de Nova York retirou um monumento de uma figura histórica ligada a práticas de racismo. Na terça-feira retrasada (17/04) a estátua do médico J. Marion Sims, considerado o pai da ginecologia moderna, foi removida de uma base de granito no Central Park, onde ela permaneceu nos últimos 84 anos.
A retirada foi aprovada na segunda-feira por um comitê que está revisando os monumentos da cidade a pedido do prefeito Bill de Blasio, após o protesto de supremacistas brancos em Charlottesville, em agosto do ano passado, e faz parte de um movimento que tem mirado estátuas em todos os Estados Unidos.

A estátua de Sims foi retirada porque, na década passada, foi descoberto que ele testava técnicas cirúrgicas em escravas negras à força e sem o uso de anestesia.
Depois da violência em Charlottesville, o monumento, que ficava diante da Academia de Medicina de Nova York, foi vandalizado algumas vezes. Agora, ele será transferido para um cemitério no Brooklyn, onde o corpo do médico está enterrado.

Fonte: agências de notícias
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agência de notícias anarquistas-ana
folhinhas
linhas
zibelinas sozinhas


V. Maiakovski
Fonte: https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2018/04/24/eua-nova-york-retira-estatua-de-medico-que-operava-escravas-sem-anestesia/

segunda-feira, 23 de abril de 2018

#Israel aos 70 anos está usando militares #Snipers para matar palestinos inocentes que protestam pacificamente em #Gaza em #GreatReturnMarch - por Latuff

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O ‘anti-imperialismo’ dos idiotas - por Leila Al Shami

O 'anti-imperialismo' dos idiotas
Uma vez mais, o movimento “antiguerra” ocidental se despertou para mobilizar-se em torno da Síria. Esta é a terceira vez desde 2011. A primeira foi quando Obama contemplou atacar a capacidade militar do regime sírio (mas não o fez) após os ataques químicos em Ghuta em 2013, considerados uma ‘línha vermelha’. A segunda vez foi quando Donald Trump ordenou um ataque que atingiu uma base militar vazia em resposta aos ataques químicos contra Khan Sheikhun em 2017. E hoje, quando os Estados Unidos, o Reino Unido e a França tomam medidas militares limitadas (ataques seletivos contra os ativos militares do regime e instalações de armas químicas) depois de um ataque com armas químicas em Duma que matou ao menos 34 pessoas, incluídos muitos menores que se refugiavam dos bombardeios nos porões.
O primeiro que devemos ressaltar das três principais mobilizações da esquerda “antiguerra” ocidental é que tem pouco que ver com que se acabe a guerra. Mais de meio milhão de sírios foram assassinados desde 2011. A grande maioria das mortes de civis se produziram mediante o uso de armas convencionais e 94% destas vítimas foram assassinadas pela aliança sírio-russa-iraniana. Não há indignação nem se finge preocupação por esta guerra, que seguiu à brutal repressão do regime contra manifestantes pacíficos e em favor da democracia. Não há indignação quando se lançam bombas de barril, armas químicas e napalm em comunidades democraticamente auto-organizadas ou em hospitais e trabalhadores de resgate. Os civis são prescindíveis; as capacidades militares de um regime genocida e fascista não o são. De fato, o lema “Mãos fora da Síria” realmente significa “Não tocar Assad” e geralmente se brinda apoio para a intervenção militar da Rússia. Isto foi evidente ontem em uma manifestação organizada por Stop the War UK, onde se exibiram vergonhosamente várias bandeiras do regime e russas.
Esta esquerda mostra tendências profundamente autoritárias, aquela que coloca aos próprios estados no centro da análise política. Portanto, a solidariedade se estende aos estados (vistos como o ator principal na luta pela liberação) em lugar de grupos oprimidos ou desfavorecidos em qualquer sociedade, sem importar a tirania desse estado. Cegos à guerra social que ocorre dentro da Síria, os sírios (ali onde existam) são vistos como simples peões em um jogo de xadrez geopolítico. Repetem o mantra ‘Assad é o governante legítimo de um país soberano’. Assad, que herdou uma ditadura de seu pai e nunca realizou, e muito menos ganhou, uma eleição livre e justa. Assad, cujo “exército árabe sírio” só pôde recuperar o território que perdeu graças ao respaldo de uma miscelânea de mercenários estrangeiros e com o apoio de bombas estrangeiras, e que estão lutando, em geral, contra rebeldes e civis nascidos na Síria. Quantos considerariam legítimo a seu próprio governo eleito se começassem a realizar campanhas de violação em massa contra os dissidentes? Tal posição só é possível pela desumanização completa dos sírios. É um racismo que vê aos sírios como incapazes de conseguir, e muito menos de merecer, algo melhor que uma das ditaduras mais brutais de nosso tempo.

Para esta esquerda autoritária, o apoio se estende ao regime de Assad em nome do “anti-imperialismo”. Assad é visto como parte do “eixo de resistência” tanto contra o império estadunidense como contra o sionismo. Pouco importa que o próprio regime de Assad tenha apoiado a primeira guerra do Golfo, ou tenha participado no programa de entregas ilegais dos Estados Unidos onde os supostos terroristas foram torturados na Síria em nome da CIA. O fato de que este regime provavelmente tenha a duvidosa distinção de massacrar a mais palestinos que o estado israelense é constantemente ignorado, como o é o fato de que está mais decidido a utilizar suas forças armadas para reprimir a dissidência interna que a liberar o Golã ocupado por Israel.
Este ‘anti-imperialismo’ de idiotas é um que equipara o imperialismo somente com as ações dos Estados Unidos. Parecem ignorar que os Estados Unidos bombardeou a Síria desde 2014. Em sua campanha para liberar Raqqa do Daesh, abandonaram todas as normas internacionais de guerra e considerações de proporcionalidade. Mais de 1.000 civis foram assassinados e a ONU estima que 80 por cento da cidade é agora inabitável. Não houve protestos contra esta intervenção de parte das organizações que dirigem o movimento contra a guerra, nem chamadas para assegurar a proteção dos civis ou da infraestrutura civil. Ao invés disso, adotaram o discurso da “Guerra contra o Terrorismo”, outrora domínio dos neoconservadores e agora promulgada pelo regime, de que toda oposição a Assad é terrorismo jihadista. Fizeram vista grossa quando Assad enchia seu gulag com milhares de manifestantes seculares, pacíficos e pró-democracia para matá-los por tortura, enquanto liberava militantes islamistas do cárcere. Do mesmo modo, ignoraram os contínuos protestos em áreas opositoras liberadas contra grupos extremistas e autoritários como Daesh, Nusra e Ahrar Al Sham. Não se considera que os sírios possuam a sofisticação necessária para ter uma ampla gama de opiniões. Os ativistas da sociedade civil (incluídas muitas mulheres surpreendentes), os jornalistas cidadãos e os trabalhadores humanitários são irrelevantes. Toda a oposição se reduz a seus elementos mais autoritários ou é vista como um mero correio de transmissão de interesses estrangeiros.

Esta esquerda pró-fascista parece cega a qualquer forma de imperialismo que não seja de origem ocidental. Combina a política identitária com o egoísmo. Tudo o que acontece se vê através do prisma do que significa para os ocidentais: só os homens brancos têm o poder de fazer história. Segundo o Pentágono, atualmente há ao redor de 2.000 tropas estadunidenses na Síria. Pela primeira vez na história da Síria, os Estados Unidos estabeleceu uma série de bases militares no norte controlado pelos curdos. Isto deveria preocupar a quem quer que apoie a autodeterminação síria, ainda que seja pouco em comparação com dezenas de milhares de tropas iranianas e milícias xiitas respaldadas pelo Irã que agora ocupam grande parte do país, ou os criminosos bombardeios realizados pela força aérea russa em apoio à ditadura fascista. Agora, a Rússia estabeleceu bases militares permanentes no país e lhes outorgaram direitos exclusivos sobre o petróleo e o gás da Síria como recompensa por seu apoio. Noam Chomsky uma vez sustentou que a intervenção da Rússia não podia ser considerada imperialismo porque foi convidada a bombardear o país pelo regime sírio. Segundo essa análise, a intervenção dos Estados Unidos no Vietnã tampouco foi imperialista, convidada como o foi pelo governo sul vietnamita.
Várias organizações pacifistas justificaram seu silêncio sobre as intervenções russas e iranianas argumentando que “o inimigo principal está em casa”. Isto os desculpa de empreender qualquer análise de poder séria para determinar quem são realmente os principais atores que impulsionam a guerra. Para os sírios, o principal inimigo está realmente em casa: é Assad o que comete o que a ONU chamou ‘crime de extermínio’. Sem ser conscientes de suas próprias contradições, muitas das mesmas vozes se proclamaram opostas (e com razão) ao ataque atual de Israel contra manifestantes pacíficos em Gaza. Claro, uma das principais formas em que funciona o imperialismo é negar as vozes autóctones. E assim, as principais organizações ocidentais contra a guerra fazem conferências na Síria sem convidar a nenhum palestrante sírio.

A outra tendência política mais importante por ter apoiado o regime de Assad e organizar-se contra os ataques dos Estados Unidos, do Reino Unido e da França contra a Síria é a extrema-direita. Hoje, o discurso dos fascistas e estes “esquerdistas anti-imperialistas” é praticamente indistinguível. Nos Estados Unidos, o supremacista branco Richard Spencer, o produtor de podcasts da direita alternativa (alt-right) Mike Enoch, e a ativista anti-imigração, Ann Coulter, se opõem aos ataques norte-americanos. No Reino Unido, o ex-líder do BNP (Partido Nacional Britânico), Nick Griffin, e a islamófoba Katie Hopkins se unem ao clamor. O lugar onde convergem com frequência o alt-right e o alt-left (esquerda alternativa) é em torno à promoção de várias teorias de conspiração para absolver o regime de seus crimes. Afirmam que as matanças químicas são bandeiras falsas ou que os trabalhadores de proteção civil são Al Qaeda e, portanto, objetivos legítimos de ataques. Aqueles que difundem tais informes não estão no terreno na Síria e não podem verificar independentemente o que reclamam. Geralmente dependem dos meios estatais de propaganda russos ou de Assad porque “não confiam na mídia” ou nos sírios diretamente afetados. As vezes, a convergência destas duas correntes aparentemente opostas do espetro político se converte em uma colaboração aberta. É o caso da coalizão ANSWER, que está organizando muitas das manifestações nos Estados Unidos contra um ataque a Assad. Com frequência, ambas as linhas promovem narrativas islamofóbicas e antissemitas. Ambos compartilham os mesmos argumentos e os mesmos memes.
Existem muitas razões válidas para opor-se à intervenção militar externa na Síria, seja por parte dos Estados Unidos, da Rússia, do Irã ou da Turquia. Nenhum destes estados está atuando no interesse do povo sírio, da democracia ou dos direitos humanos. Atuam unicamente por seus próprios interesses. Hoje, a intervenção dos Estados Unidos, do Reino Unido e da França não pretendem tanto proteger os sírios das atrocidades massivas mas sim fazer cumprir uma norma internacional de que o uso de armas químicas é inaceitável, por temor a que algum dia se utilizem contra os próprios ocidentais. Mas bombas estrangeiras não trarão paz nem estabilidade. Há pouca intenção de expulsar Assad do poder, o que contribuiria para terminar com a pior das atrocidades. No entanto, ao opor-se à intervenção estrangeira, alguém tem que encontrar uma alternativa para proteger os sírios da matança. É no mínimo moralmente repreensível, esperar que os sírios calem e morram para proteger o princípio superior do “anti-imperialismo”. Os sírios propuseram muitas vezes alternativas à intervenção militar estrangeira, que foram ignoradas. E então fica a pergunta, quando as opções diplomáticas falharam, quando um regime genocida está protegido da censura por poderosos apoios internacionais, quando não se consegue deter os bombardeios diários, pôr fim aos cercos por inanição ou liberar os prisioneiros torturados em escala industrial, o que se pode fazer?

Não tenho respostas. Sempre me opus a toda intervenção militar estrangeira na Síria, apoiei o processo liderado pela Síria para livrar seu país de um tirano e respaldei procedimentos internacionais baseados em esforços para proteger os civis e os direitos humanos e garantir a prestação de contas de todos os atores responsáveis de crimes de guerra. Um acordo negociado é a única maneira de terminar esta guerra e isso ainda parece tão distante como sempre. Assad (e seus protetores) estão decididos a frustrar qualquer processo, buscar uma vitória militar total e esmagar qualquer alternativa democrática que sobreviva. Centenas de sírios estão sendo assassinados todas as semanas da maneira mais bárbara imaginável. Os grupos extremistas e as ideologias estão prosperando no caos criado pelo Estado. Os civis continuam fugindo de milhares a medidas que se implementam como mecanismos legais. Como a Lei Nº 10, para garantir que nunca regressarão a seus lares. O sistema internacional em si mesmo está em colapso sob o peso de sua própria impotência. As palavras ‘Nunca mais’ soam ocas. Não há um movimento popular importante que se solidarize com as vítimas. Ao contrário, são caluniados, seu sofrimento é negado ou objeto de burla, e suas vozes, ausentes dos debates ou postas em dúvida por pessoas que estão longe, que não sabem nada da Síria, da revolução ou da guerra, e que arrogantemente creem que sabem o que é melhor. É esta situação desesperada a que faz com que muitos sírios deem as boas-vindas à ação dos Estados Unidos, Reino Unido e França, e que agora veem a intervenção estrangeira como sua única esperança, apesar dos riscos que sabem que isso implica.
Uma coisa é certa: não vou perder o sono pelos ataques dirigidos contra as bases militares do regime e as fábricas de armas químicas que podem proporcionar aos sírios um breve respiro da matança diária. E nunca serei uma aliada daqueles que põem os discursos rimbombantes acima das realidades vividas, que apoiem regimes brutais em países longínquos, ou que promovam o racismo, as teorias da conspiração e a negação das atrocidades.

> Leila Al Shami é uma ativista síria britânica que luta pelos direitos humanos e justiça social na Síria e no Oriente Médio desde 2000. Ela foi membro fundadora da rede Tahrir-ICN, ligada às lutas antiautoritárias em todo Oriente Médio, Norte da África e Europa.
Fonte: https://leilashami.wordpress.com/2018/04/14/the-anti-imperialism-of-idiots/

Tradução > Sol de Abril
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https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2018/03/27/espanha-comunicado-sobre-a-guerra-da-siria-de-mulheres-de-negro-de-madrid-contra-a-guerra/

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Alexandre Brito
Fonte: https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2018/04/23/o-anti-imperialismo-dos-idiotas/

sexta-feira, 6 de abril de 2018

Por que as elites apelam ao golpe – por Róber Iturriet Avila e João Santos Conceição

Por que as elites apelam ao golpe
Em 13 de Março de 1964, João Goulart fala no Comício da Central e defende as Reformas de Base. Dezoito dias depois, estaria deposto
Num país dividido em Casa Grande e Senzala, poucos governos ousaram elevar salários e cobrar impostos dos ricos. Nenhum deles permaneceu de pé

As destituições presidenciais ocorridas em 1964 e 2016 possuem distinções em termos de método, instrumento e velocidade. Um olhar mais cuidadoso, entretanto, é capaz de identificar nestes epifenômenos causalidades nos interesses políticos dos respectivos grupos sociais representados e contrários aos então presidentes. Este breve texto, de forma simplificadora, busca quantificar e qualificar algumas dessas causas através da variação real do salário mínimo, da incidência tributária e das políticas sociais distributivistas interrompidas ou restringidas.

No curto espaço de tempo da forma de governo presidencialista da gestão de João Goulart, houve a proposição das Reformas de Base. Nelas, estavam incluídas as seguintes reformas: agrária, bancária, fiscal, educacional, urbana e administrativa. Tais proposições alterariam com profundidade o quadro de distribuição de renda no País.

A reforma agrária previa a autorização de desapropriações, para que a terra servisse a sua função social, ampliaria os direitos do trabalhador rural e permitiria o fortalecimento sindical. Já a reforma bancária tinha o intuito de ampliar a concessão de crédito. A reforma educacional almejava a valorização da magistratura e a erradicação do analfabetismo. A reforma urbana visava diminuir a especulação imobiliária e o déficit habitacional.

A reforma fiscal, entretanto, parcialmente implementada, possuía impactos redistributivos relevantes. Além da ampliação da alíquota máxima de imposto para a faixa de 65%, havia previsão de impostos sobre ganhos especulativos de imóveis, implementação de tributos diferenciados de acordo com o setor das empresas, estímulo à reinversão de lucros, etc. Aliada a esses fatores houve uma valorização real do salário mínimo, em 18,76%. Esse foi um dos fatores de instabilidade do governo Goulart, que encontrava crescente resistência dos grupos econômicos dominantes (SOUZA, 2010; MOREIRA, 2011). O governo subsequente, de Castelo Branco, reverteu rapidamente as políticas implementadas por Goulart.

Na destituição de 2016 é possível elencar semelhanças e diferenças. Sabidamente, as gestões petistas tinham seu elo fundador nas políticas sociais que visavam à redução das desigualdades do País. Seja através da valorização real de 90,55% do salário mínimo, seja através de políticas sociais como: minha casa minha vida, farmácia popular, cotas sociais e étnicas nas universidades, bolsa permanência a estudantes carentes, programas de agricultura familiar, bolsa família, etc.

Na área fiscal, o governo Lula tentou realizar uma reforma tributária no seu primeiro ano de governo. Dentre as propostas, havia a ampliação de impostos sobre doações, heranças e sobre a aquisições de imóveis. Contudo, o projeto encontrou resistências no Congresso Nacional, especificamente nos grupos empresariais e conservadores. (SALVADOR, 2014).

O governo Dilma acenou para volta da tributação sobre os dividendos e para o aumento das alíquotas do imposto sobre heranças e doações, além de tentar instituir a taxação sobre grandes fortunas e retomar a CPMF. Esses acenos nunca foram encaminhados ao Congresso Nacional, motivada pela sinalização de que não seriam aprovados.

Ambos os governos conviveram com a desaprovação dos grupos sociais de renda mais elevados, não apenas por desgostarem das políticas, mas fundamentalmente porque os ganhos sociais representam a redução relativa da apropriação de renda das camadas superiores e, eventualmente, redução do lucro empresarial. O Gráfico 1 (logo abaixo) explicita uma trajetória de elevação da participação dos salários no PIB a partir de 2004 e, consequentemente, uma queda do excedente operacional bruto sobre o produto no mesmo período.
Nota: Foram excluídas as receitas governamentais e o rendimento de autônomos. No rendimentos do trabalho foram inclusas contribuições sociais

A variação do salário mínimo tem relação direta com o aumento dos ganhos sociais. O gráfico 2 indica a concomitância dos valores salariais elevados e acentuados conflitos políticos. No governo de Castelo Branco, posterior ao golpe, a variação real do salário foi negativa. Houve queda de 36,03%. No governo de Michel Temer, a variação do salário mínimo seguiu a regra previamente estabelecida, mas a reforma trabalhista implementada rebaixa os ganhos dos trabalhadores, uma vez que viabiliza uma jornada de trabalho menor do que 44 horas. Adicionalmente, é uma clara precarização das relações de trabalho.

Cabe destacar que ambas destituições tiveram aberto apoio de grupos empresariais, dos grandes grupos midiáticos, das federações de bancos e das agremiações ruralistas — em um termo, das elites. As políticas regressivas adotadas nos governos sem a legitimidade das urnas, mas apoiados pelas elites, demonstram a dificuldade desses grupos conviverem com políticas distributivistas. Fenômeno mais intenso do que em países desenvolvidos, os quais possuem, em sua maioria, políticas fiscais e sociais mais redistributivistas. Além de mais conservadora, a elite brasileira parece ser mais autoritária, dispensando a democracia em momentos que seus interesses estão em jogo.

Gráfico 2 – Variação real do salário mínimo 1940-2018 e destituições de João Goulart e Dilma Roussef
Nota: A preços de 2018, deflacionado pelo INPC. Elaboração própria

Do ponto de vista do método, é também possível identificar semelhanças em meio às diferenças. Quando o retorno do capital é ameaçado, há uma rápida articulação entre grupos empresariais, midiáticos e amplos setores da classe média, que se mobilizam com a mesma narrativa. Dessa forma, observa-se a técnica, bem-sucedida, de associar governos moderados à esquerda radical, abrindo espaço à extemporânea retórica anticomunista. O discurso anticorrupção se presta a conquistar corações e mentes. Dessa maneira, nos termos de Santos (2017), tal método disfarça “que as prioridades dos governos usurpadores não têm sido o combate a corrupção, mas, isso sim, notável, a adoção de medidas estancando políticas favoráveis aos destituídos”.
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Os autores agradecem as contribuições de João Batista Santos Conceição, Pedro Sofiati de Sá e Mário Lúcio Pedrosa, eximindo-os das posições aqui firmadas 
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REFERÊNCIAS

MOREIRA, Cássio da Silva. O projeto nação do governo João Goulart: o Plano Trienal e as Reformas de Base (1961-1964). 2011. 406. Tese (Doutorado em Economia). Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011.

SALVADOR, Evilasio. As implicações do sistema tributário nas desigualdades de renda. 1. Ed. Brasília, 2014.

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. A Democracia Impedida: O Brasil no Século XXI. Rio de Janeiro: FGV, 2016

Situação no Império Brasil: as Oligarquias se levantam, as Burocracias caem – por A.N.A.

Situação no Império Brasil: as Oligarquias se levantam, as Burocracias caem
O Brasil nasceu no Império e assim segue. As oligarquias imperialistas das regiões sulistas e brancas do Império, aliadas às oligarquias coloniais do Nordeste e do Norte, conseguem não só manter-se, desde a época da escravidão, mas também com a chegada dos meios de comunicação nas décadas de 60, 70 e 80 do século passado e da informática nos últimos 20 anos, conseguem êxito em manter e aumentar a exploração sobre os trabalhadores ao passo em que deixam a massa ainda mais alienada.

Na Década Sócio-liberal, o sonho induzido às massas alienadas e ignorantes de elevarem-se à categoria de consumidores médios (cidadãos), acabou com o golpe burocrático-legal imposto pelos mesmos aliados do Governo deposto.

As oligarquias não estavam dispostas a continuar a dar qualquer pedaço do bolo: sua ganância psicopática exige roubar tudo e agora. As burocracias culturais, partidárias e sindicais, acomodadas nos salários seguros e saborosos do Estado, servos leais das Oligarquias, não eram, como já se comprovou, inimigos, mas, parceiros na putrefata tarefa de manter os explorados e oprimidos imersos na eterna desmobilização, no incontestável assistencialismo, paternalismo e alienação estatal e ou religiosa.

É digno de atenção como uma década de liberalismo social burocrático e populista pode desaparecer totalmente em um ano de governo das Oligarquias tradicionais, aliadas, como não, com seus pares estrangeiros.

Os “direitos” dos trabalhadores, indígenas, quilombolas, estudantes e a brutal exploração do território, o uso indiscriminado de agrotóxicos, além dos desastres ecológicos impunes, a liberação de Licenças Ambientais, tem sofrido em poucos meses, modificados de forma que permita às Oligarquias acumularem muito mais dinheiro e poder, e para que as pessoas sejam ainda mais exploradas, oprimidas e alienadas.

As burocracias municipais, estaduais, federais, sindicais, universitárias e de ONGs também tem sido afetadas. Todo esse movimento social é semelhante ao que ocorreu na Europa ou nas Américas, mas o que levou décadas para deteriorar-se lá, no Império Brasil foi alcançado em pouco mais de 12 messes.

E ainda não acabou, pois a recente militarização do Rio de Janeiro, a Reforma da Previdência, a venda do Aquífero Guarani, a Militarização e Venda da Amazônia negociadas com seus sócios e companheiros norte-americanos, demonstram tragicamente que as ânsias predatórias da Oligarquia Psicopática que dominam o Império Brasil ainda não estão satisfeitas ou saciadas. Para a Oligarquia Imperialista Brasileira, o território e seus habitantes são meios para aumentar seus patrimônios, benefícios e delírios.

O fazem de forma efetiva graças à capacidade em se disfarçar como “Estado de Direito” e “República Federativa”, contudo, basta apenas a leitura das notícias diárias para ver facilmente que a divisão de poderes entre executivo, legislativo e judiciário no Império Brasil é uma grande mentira propagada pelas mídias e meios de comunicação de massa, totalmente dominados e controlados por seus proprietários, as Oligarquias.

A Justiça é outra corrupção descaradamente hipócrita, delirante e inapresentável.

As supostas organizações ou movimentos que, supostamente, enfrentam a estas Oligarquias, como em qualquer Estado ou Império, também estão corruptas e burocratizadas. Mas, uma das características do Império Brasil em sua fração de “esquerda”, é a forma triste e bruta de vender-se e beijar a mão do opressor, compartilhando de sua lógica (Democracia, Estado de Direito, Pátria-Nação, Paternalismo, Liderismo…) e com soberba presunção, hipocritamente utilizar-se da situação de opressão do povo para jogar discursos tão inúteis como retrógrados.

Sua função de recuperadores à serviço dos oligarcas é evidente, e até mesmo alguns destas esquerdas são tão autoritários e obtusos, que nem sabem a quem servem, amparados por um marxismo vulgar, cheio do frente populismo mais repugnante e regado com academicismo asqueroso. Esperar algo de todas essas esquerdas acomodadas, sindicatos burocráticos e ineficientes, academias tristes e presunçosas é tão inútil e ilusório como rezar para que em um bem-aventurado dia o Império Brasil se refaça e se torne uma democracia escandinava.

O tratamento assassino da polícia contra a população da periferia, pobre (61.000 homicídios em 2016), número de encarcerados (730.000), o autoritarismo, racismo, xenofobia e machismo a cada dia maior entre as Oligarquias, pequena burguesia e até entre os trabalhadores e pobres alienados, é escandaloso. A polícia e os meios de comunicação são tão brutos e alienantes quanto os seus pares norte-americanos… ou mais!

Sem a proposta de Autonomia e Autogestão, não há como se pensar em mudança para os povos oprimidos. Continuar acompanhando as organizações burocráticas é perder energia e tempo, desperdiçar situações.

Acabar com o Império Brasil, iniciar um caminho nesta direção exige uma ação municipal e regional, esquecendo-se de uma vez das “Coordenações Nacionais” que apenas repetem a dialética territorial e a ideologia burguesa repassada dos opressores, burocratizando ainda mais qualquer tentativa legítima de se iniciar algum movimento autônomo de base. Continuar acompanhando as organizações religiosas ou marxistas corriqueiras é ir a lugar nenhum.

Construir Assembleias Autônomas convocadas e autogeridas pelas mesmas Comunidades, e não pela lista interminável de organizações de esquerda, ONGs e burocratas culturais e acadêmicos, para avançar na Autonomia dos indivíduos, das Comunidades, na perspectiva da Autogestão generalizada.

Construir escolas livres, um sistema de saúde alternativo, autogestão de alimentos saudáveis para a comunidade, um sistema de habitação autogerido e igualitário, indústrias ecológicas e úteis, aposentadorias dignas e progressivas, solidariedade de vizinhança e comunidade… Podem ser alcançados de forma autônoma, assemblearia e autogestiva.

Para se alcançar uma justiça restaurativa e não punitiva, para acabar com a Guerra das Drogas, com as prisões desumanas e as pragas da marginalidade e do crime cotidiano, é necessária outra cultura, de Solidariedade e Apoio Mútuo e, acima de tudo, deixar de confiar na Reforma de Impérios ou Estados que historicamente provaram ser assassinos corruptos e ineficazes.

Esperar que o Estado ou o Império dos Oligarcas e dos Burocratas facilitem a Autonomia e a Autogestão é inútil e ilusório. Basta conhecer a história dos últimos 200 anos. Certamente, as realidades mexicanas dos zapatistas em Chiapas ou as autodefesas em Guerrero, o movimento Mapuche na região chilena e na Argentina, ou as Autodefesas Indígenas no Cauca colombiano podem servir de referência. Ou a auto-organização de cidades, municípios e comarcas na Bolívia ou entre as comunidades indígenas no Equador. Também as práticas no Curdistão de Municipalismo Libertário – Confederalismo Democrático – deveriam servir para aprender sobre a Autogestão da Comunidade e sobre a nocividade dos Estados e dos Impérios Capitalistas, Patriarcais e Ecocidas

Destruir o Império Brasil e construir Comunidades e Municípios livres. Autonomia contra a burocracia e a psicose social. Vamos colocar nossa inteligência, sensibilidade, vontade, cultura e organização à serviço da ação libertadora.

– Irrecuperável –

Upaon Açu, Março de 2018

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agência de notícias anarquistas-ana

Nesse fim de mundo
Um girassol solitário —
A quem marca as horas?

Neide Rocha Portugal

 

Latuff: quem precisa de golpe militar?

Fonte: https://twitter.com/LatuffCartoons

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terça-feira, 3 de abril de 2018

Entre os matadouros e a prefeitura: a luta dos trabalhadores da cidade de São Paulo - por Danilo Chaves Nakamura*

Entre os matadouros e a prefeitura: a luta dos trabalhadores da cidade de São Paulo

Misturada à grita dos argumentos que vem da câmara e mídia, escutamos as vozes daqueles que sabem quais sãos as necessidades reais dos seres humanos.
Joana: “Vocês ficam aí de camarote, os grandes figurões, certos de que as suas trapaças não serão descobertas e não querendo saber da miséria lá fora”.
B. Brecht – A Santa Joana dos Matadouros.
Depois de mais um dia de greve, assembleia, manifestação e caminhada pela cidade de São Paulo – dessa vez debaixo de uma forte chuva –, voltei para casa, tomei um banho e fui ler algo inteligente. Resolvi revisitar a boa e velha A Santa Joana dos Matadouros, de Bertolt Brecht.
Ao reler a apresentação do livro escrita pelo crítico literário Roberto Schwarz, pensei que a atual greve dos servidores públicos contra a reforma da previdência municipal também poderia compor uma boa peça de teatro. O assunto seria a crise econômica e as necessárias reformas estruturais para reequilibrar as contas públicas e capitalizar as empresas privadas. “A crise do capital”, diríamos tempos atrás. Os personagens seriam muitos. De um lado, os professores, a categoria majoritária dos protestos, mas juntos, os agentes de saúde, os funcionários do administrativo, os bibliotecários, os agentes de vigilância sanitária e, por que não, os coveiros dos cemitérios municipais. Disputando as consciências, os sindicatos e os radicais grupos de oposição. Do lado oposto, um prefeito empresário e vereadores representando os mais diversos ramos dos negócios. Na segurança, uma horda uniformizada pronta para bater nos manifestantes e defender o patrimônio. À espreita, nos bastidores, empresários de conglomerados internacionais que investem na educação. Socialites, filantropos e lumpens dos institutos especializados na formação de professores. E, claro, gestores dos fundos de pensão que querem ampliar suas carteiras. Serviriam de lugares, as escolas e as ruas, obviamente. Também as diretorias de ensino, onde funcionários comissionados fingiriam que nada está acontecendo. A câmara de vereadores, o gabinete do prefeito (com câmeras para selfies e fantasias para publicidade), o quartel da horda de policiais e, claro, a bolsa de valores. A linguagem, agressiva e descalibrada, mas certa do que precisa expressar, por parte dos trabalhadores em greve. Debochada e populista, por parte dos políticos despreparados. Cínica ou puramente técnica por parte dos políticos que aprenderam o beabá do marketing eleitoral. As canções seriam variadas. Ora escutaríamos salmos a favor do livre mercado, ora coros entusiasmados por um intervencionismo estatal miraculoso.

Ironias e brincadeiras à parte, todas essas analogias com a literatura e com o teatro rapidamente se dissiparam quando resolvi buscar informações e assistir à entrevista dada pelo vereador Caio Miranda Carneiro para o site Infomoney, no dia 20 de março de 2018. De imediato concluí: Caio Miranda poderia ser um personagem complexo, dissimulado e ligeiro, mas não é nada além de um político banal. Poderia não ser assim, trata-se de um jovem cheio de oportunidades na vida. Como filho de uma professora da Universidade de São Paulo e ex-professora da rede básica de ensino, ele poderia encenar uma defesa mais contraditória da categoria em greve, potenciais eleitores. Como advogado e ex-presidente do centro acadêmico de direito, poderia simular uma defesa daquilo que não acredita, ou seja, a justiça social. E, como técnico que trabalhou no Tribunal de Contas, poderia ser mais habilidoso com os números que apresenta. Assim, daria significações honrosas para as tabelas e os gráficos que busca apresentar como inquestionáveis. Mas, como já foi dito, o vereador e relator do Projeto de Lei 621/2016, que institui o Regime de Previdência Complementar Sampaprev, é um ser que, ao tentar ser complexo e inteligente, só consegue ser simplório. Um célebre homem que, ao defender o “bem público”, revela com todas as letras que é apenas um serviçal do capital financeiro.
Como aqui se trata de um texto que, antes de tudo, visa o debate esclarecido com as companheiras e os companheiros em luta, vale abandonarmos os chistes e tentarmos reconstruir os principais argumentos do vereador Caio Miranda na entrevista para o Infomoney. As respostas explicitam, sem rodeios, os interesses materiais que estão por trás da “urgência” da reforma da previdência municipal. Precisamos ter em mente que o projeto é muito mais do que um desavergonhado aumento de alíquotas. Trata-se de um projeto de destruição da previdência social baseada na solidariedade dos trabalhadores.
Já no início da entrevista, o vereador Caio Miranda afirma que “o servidor não confia na gestão da previdência pública, por várias razões”. Por isso, é necessário aprovar uma reforma que tem como base o seguinte tripé:
a) Aumentar a alíquota de contribuição previdenciária dos servidores;

b) Criar um regime suplementar de previdência autossustentável para os futuros servidores. E permitir a migração dos atuais servidores para o novo regime;
c) Reestruturar o Instituto de Previdência Municipal de São Paulo (IPREM), preparando-o para gerir pensão e não previdência.
O vereador é direto nas palavras. É necessário aumentar a alíquota de 11% para 14%, porque atualmente o IPREM é deficitário. Os servidores (ativos e inativos) contribuem com 11% e a prefeitura com mais 22%. Para além desses 33%, a prefeitura gastou quase 5 bilhões do tesouro, a fundo perdido, para honrar com o pagamento da aposentadoria de aproximadamente 90 mil aposentados. Ele lembra que já houve um aumento da alíquota de 5% para 11% em 2005, no governo de José Serra, e que até então a prefeitura pouco contribuía para o sistema, apenas 2%. Mas quem criou essa situação dita “insusentável”? E estariam os aposentados apenas onerando os cofres públicos? Caio demonstra que, ao longo da história, a prefeitura, como patronal, quase nada contribuiu para a “saúde financeira” do Instituto. O vereador também destaca que os servidores aposentados, colocados como “culpados pelo rombo”, continuam contribuindo de forma solidária para os cofres da previdência e não usufruem livremente da poupança acumulada por anos de trabalho. Mas ele conclui, mesmo com a prefeitura aumentando sua contribuição e os aposentados contribuindo, o sistema atual já está falido.

No atual cenário, afirma Caio, o sistema seria viável se tivéssemos 4 servidores públicos para cada 1 servidor aposentado. Hoje temos 1,2 servidores na ativa para 1 aposentado. Sobre essa questão, ele inverte o argumento, afirma que devido à falta de recursos, a prefeitura vem privatizando setores dos serviços públicos. Mas aqui qualquer pessoa sabe que esses números revelam uma escolha política de todas as últimas administrações. Independente do partido no executivo, as terceirizações e as privatizações foram crescentes e, certamente, contribuíram para o desequilíbrio entre servidores ativos e inativos que contribuem para o IPREM. Nas escolas, por exemplo, a limpeza e a merenda foram entregues para empresas terceirizadas. As novas escolas infantis e creches são todas administradas por convênios com a iniciativa privada. Os hospitais e postos de saúde, entregues para Organizações Sociais. Os exemplos se multiplicam em todas as áreas. Em síntese, além de diversos recursos públicos estarem sendo canalizados para os cofres das empresas privadas, expulsou-se do serviço público uma massa de trabalhadores, que passaram a trabalhar de forma precarizada para empresas com reputação duvidosa. Essa escolha política impacta na previdência social.
Mas seguindo o argumento do vereador, como conter a curva de déficit que hoje está em R$5 bilhões e que, se nada for feito, em 10 anos chegará a R$10 bilhões? Caio Miranda afirma que a atual reforma da previdência municipal é uma reforma de longo prazo. O equilíbrio do IPREM seria alcançado depois de 28 anos. Alguém acredita que Doria governa projetando três décadas? Mas tudo bem, vamos seguir a narrativa do vereador. O aumento de 11% para 14% na alíquota garantiria aproximadamente R$160 milhões anuais. E a alíquota suplementar de 1% a 5% para os salários acima de R$5.531,00 traria um fluxo anual de R$320 milhões. Mas, além disso, o município ainda ficaria num compasso de espera pela reforma federal, pois os aumentos do tempo mínimo de contribuição e da idade mínima impactariam significativamente nos servidores, que é um grupo majoritariamente feminino (professoras que hoje podem se aposentar com 55 anos teriam que contribuir por mais 10 anos).
O vereador entende que a categoria é incapaz de entender isso. E que os sindicatos foram ágeis em desinformar os trabalhadores. No entanto, o questionamento desses cálculos vem dos antigos companheiros de trabalho do vereador. O Tribunal de Contas Municipais constatou que não há cálculos na justificativa do projeto que mostre que a elevação da alíquota “levaria ao equacionamento do déficit”. Afirma também que o projeto do prefeito João Doria “peca no embasamento técnico, contém inconstitucionalidades” e “possui trechos com possível caráter de confisco”. O relatório aponta que o projeto se “insere em um momento incerto para definições sobre a previdência, dada a suspensão da tramitação da reforma em escala federal”. E afirma que “a alta contribuição dos servidores não pode ser feita visando a sobra de recursos para outras áreas que não a seguridade social”.
Com um olhar atento para essa reforma, percebemos rapidamente que João Doria não visa o equilíbrio financeiro. Suas intenções estão além da simples matemática financeira. E, vale repetir, Caio Miranda é revelador quando abre a boca. Para ele, não vale a pena um funcionário na ativa que ganha acima do INSS pagar 14%, mais os 5% que incidirão sobre o que exceder do teto. Nas palavras dele, “é melhor ter a renda para ele e aplicar no tesouro direto”. Afinal, “as pessoas não são reféns e não precisam ficar em um sistema que ela não criou”. Em suma, o Projeto de Lei é mais que aumento de alíquotas, ele busca criar um sistema suplementar de arrecadação, o Sampaprev, mas atualmente sem criar uma nova autarquia, como estava previsto no projeto do ex-prefeito Haddad, que também cedeu às pressões da agência Standard & Poors para criar um sistema paralelo de capitalização.

Com o sistema suplementar, o servidor poderia optar, por exemplo, em investir no SPPREV (do Governo do Estado) ou no Funpresp (do Governo Federal), afirma Caio. Os servidores novos já contribuiriam dentro do novo sistema. E os que contribuem hoje para o IPREM poderiam migrar para esse novo sistema. Na cabeça do vereador, essa migração aconteceria facilmente, pois o servidor obteria vantagens econômicas. O vereador rememora que desde 2003 os servidores perderam a paridade e a integralidade nas aposentadorias, na época também com a justificativa de reduzir o déficit da previdência. Seguindo a argumentação do vereador, o professor, por exemplo, migraria para o novo regime porque no final da carreira ele passa a ganhar acima do teto do INSS e não gostaria de receber um benefício de aposentadoria menor do que ganhava quando estava na ativa, então nada melhor que uma previdência que promete ampliar seus ganhos.
Dito isso, o sentido desse PL fica claro. A reforma não visa o equilíbrio do atual sistema. O aumento da contribuição, a imposição do teto do INSS e mais a criação de um sistema suplementar são ações que buscam esvaziar o IPREM. Esquematizando:
a) Não aceitando mais nenhum funcionário novo para contribuir para o Instituto de Previdência atual;
b) Atraindo o máximo possível de servidores que já perderam a integralidade/paridade para o novo sistema;

c) Tornando o Instituto desvantajoso com os 19% de alíquota sob os salários e sem nenhuma vantagem futura, uma vez que a aposentadoria seria limitada ao teto.
Com a desculpa de que os investimentos nas áreas sociais (saúde, educação, segurança, moradia e transporte) não estão ocorrendo porque enormes quantias estão sendo drenadas para o pagamento das “privilegiadas” aposentadorias dos servidores, o prefeito Doria pretende transferir a gestão da aposentadoria pública para o capital financeiro. Nas palavras do relator do projeto na Câmara: “transformar o sistema de previdência em um sistema de pensão”. Em resumo, a solução da gestão Doria é criar uma segregação no funcionalismo. Ele quer isolar os antigos funcionários no IPREM e assumir os pagamentos desses como despesa da prefeitura. E entrega a contribuição dos funcionários novos, que terão anos de contribuição pela frente, para os fundos de pensão, bancos ou qualquer instituição financeira que o valha.

Temos, assim, um cenário de desmonte do serviço público para garantir os rendimentos do capitalismo financeiro. Contra o parasitismo das finanças escancarado pelas reformas trabalhistas e previdenciárias apresentadas em todos os níveis de poder no país (Federal, Estadual e Municipal), os trabalhadores têm as ruas. Assim, o que temos hoje nas ruas de São Paulo é, sem dúvidas, a maior greve da historia do funcionalismo. Para concluirmos com o nosso devaneio inicial, assim como na peça A Santa Joana dos Matadores, texto sempre mais revelador que as falas insultuosas dos lacaios das finanças, podemos dizer que, misturada à grita dos argumentos que vem da câmara e mídia, escutamos – nas enormes manifestações dos servidores – as vozes daqueles que sabem quais sãos as necessidades reais dos seres humanos.

São Paulo 21 de março de 2018.
*Danilo Chaves Nakamura é professor da rede municipal
As imagens que ilustram o artigo são de Tommaso Ausili.

Fonte: http://passapalavra.info/2018/03/119076