O primeiro que devemos ressaltar das três
principais mobilizações da esquerda “antiguerra” ocidental é que tem pouco que
ver com que se acabe a guerra. Mais de meio milhão de sírios foram assassinados
desde 2011. A grande maioria das mortes de civis se produziram mediante o uso
de armas convencionais e 94% destas vítimas foram assassinadas pela aliança
sírio-russa-iraniana. Não há indignação nem se finge preocupação por esta
guerra, que seguiu à brutal repressão do regime contra manifestantes pacíficos
e em favor da democracia. Não há indignação quando se lançam bombas de barril,
armas químicas e napalm em comunidades democraticamente auto-organizadas ou em
hospitais e trabalhadores de resgate. Os civis são prescindíveis; as
capacidades militares de um regime genocida e fascista não o são. De fato, o
lema “Mãos fora da Síria” realmente significa “Não tocar Assad” e geralmente se
brinda apoio para a intervenção militar da Rússia. Isto foi evidente ontem em
uma manifestação organizada por Stop the War UK, onde se exibiram
vergonhosamente várias bandeiras do regime e russas.
Esta esquerda mostra tendências
profundamente autoritárias, aquela que coloca aos próprios estados no centro da
análise política. Portanto, a solidariedade se estende aos estados (vistos como
o ator principal na luta pela liberação) em lugar de grupos oprimidos ou
desfavorecidos em qualquer sociedade, sem importar a tirania desse estado.
Cegos à guerra social que ocorre dentro da Síria, os sírios (ali onde existam)
são vistos como simples peões em um jogo de xadrez geopolítico. Repetem o
mantra ‘Assad é o governante legítimo de um país soberano’. Assad, que herdou
uma ditadura de seu pai e nunca realizou, e muito menos ganhou, uma eleição
livre e justa. Assad, cujo “exército árabe sírio” só pôde recuperar o
território que perdeu graças ao respaldo de uma miscelânea de mercenários
estrangeiros e com o apoio de bombas estrangeiras, e que estão lutando, em
geral, contra rebeldes e civis nascidos na Síria. Quantos considerariam
legítimo a seu próprio governo eleito se começassem a realizar campanhas de
violação em massa contra os dissidentes? Tal posição só é possível pela
desumanização completa dos sírios. É um racismo que vê aos sírios como
incapazes de conseguir, e muito menos de merecer, algo melhor que uma das
ditaduras mais brutais de nosso tempo.
Para esta esquerda autoritária, o apoio se
estende ao regime de Assad em nome do “anti-imperialismo”. Assad é visto como
parte do “eixo de resistência” tanto contra o império estadunidense como contra
o sionismo. Pouco importa que o próprio regime de Assad tenha apoiado a
primeira guerra do Golfo, ou tenha participado no programa de entregas ilegais
dos Estados Unidos onde os supostos terroristas foram torturados na Síria em
nome da CIA. O fato de que este regime provavelmente tenha a duvidosa distinção
de massacrar a mais palestinos que o estado israelense é constantemente
ignorado, como o é o fato de que está mais decidido a utilizar suas forças
armadas para reprimir a dissidência interna que a liberar o Golã ocupado por
Israel.
Este ‘anti-imperialismo’ de idiotas é um
que equipara o imperialismo somente com as ações dos Estados Unidos. Parecem
ignorar que os Estados Unidos bombardeou a Síria desde 2014. Em sua campanha
para liberar Raqqa do Daesh, abandonaram todas as normas internacionais de
guerra e considerações de proporcionalidade. Mais de 1.000 civis foram
assassinados e a ONU estima que 80 por cento da cidade é agora inabitável. Não
houve protestos contra esta intervenção de parte das organizações que dirigem o
movimento contra a guerra, nem chamadas para assegurar a proteção dos civis ou
da infraestrutura civil. Ao invés disso, adotaram o discurso da “Guerra contra
o Terrorismo”, outrora domínio dos neoconservadores e agora promulgada pelo
regime, de que toda oposição a Assad é terrorismo jihadista. Fizeram vista
grossa quando Assad enchia seu gulag com milhares de manifestantes seculares,
pacíficos e pró-democracia para matá-los por tortura, enquanto liberava
militantes islamistas do cárcere. Do mesmo modo, ignoraram os contínuos protestos
em áreas opositoras liberadas contra grupos extremistas e autoritários como
Daesh, Nusra e Ahrar Al Sham. Não se considera que os sírios possuam a
sofisticação necessária para ter uma ampla gama de opiniões. Os ativistas da
sociedade civil (incluídas muitas mulheres surpreendentes), os jornalistas
cidadãos e os trabalhadores humanitários são irrelevantes. Toda a oposição se
reduz a seus elementos mais autoritários ou é vista como um mero correio de
transmissão de interesses estrangeiros.
Esta esquerda pró-fascista parece cega a
qualquer forma de imperialismo que não seja de origem ocidental. Combina a
política identitária com o egoísmo. Tudo o que acontece se vê através do prisma
do que significa para os ocidentais: só os homens brancos têm o poder de fazer
história. Segundo o Pentágono, atualmente há ao redor de 2.000 tropas
estadunidenses na Síria. Pela primeira vez na história da Síria, os Estados
Unidos estabeleceu uma série de bases militares no norte controlado pelos
curdos. Isto deveria preocupar a quem quer que apoie a autodeterminação síria,
ainda que seja pouco em comparação com dezenas de milhares de tropas
iranianas e milícias xiitas respaldadas pelo Irã que agora ocupam grande parte
do país, ou os criminosos bombardeios realizados pela força aérea russa em
apoio à ditadura fascista. Agora, a Rússia estabeleceu bases militares
permanentes no país e lhes outorgaram direitos exclusivos sobre o petróleo e o
gás da Síria como recompensa por seu apoio. Noam Chomsky uma vez sustentou que
a intervenção da Rússia não podia ser considerada imperialismo porque foi
convidada a bombardear o país pelo regime sírio. Segundo essa análise, a
intervenção dos Estados Unidos no Vietnã tampouco foi imperialista, convidada
como o foi pelo governo sul vietnamita.
Várias organizações pacifistas justificaram
seu silêncio sobre as intervenções russas e iranianas argumentando que “o
inimigo principal está em casa”. Isto os desculpa de empreender qualquer
análise de poder séria para determinar quem são realmente os principais atores
que impulsionam a guerra. Para os sírios, o principal inimigo está realmente em
casa: é Assad o que comete o que a ONU chamou ‘crime de extermínio’. Sem ser
conscientes de suas próprias contradições, muitas das mesmas vozes se
proclamaram opostas (e com razão) ao ataque atual de Israel contra
manifestantes pacíficos em Gaza. Claro, uma das principais formas em que
funciona o imperialismo é negar as vozes autóctones. E assim, as principais
organizações ocidentais contra a guerra fazem conferências na Síria sem
convidar a nenhum palestrante sírio.
A outra tendência política mais importante
por ter apoiado o regime de Assad e organizar-se contra os ataques dos Estados
Unidos, do Reino Unido e da França contra a Síria é a extrema-direita. Hoje, o
discurso dos fascistas e estes “esquerdistas anti-imperialistas” é praticamente
indistinguível. Nos Estados Unidos, o supremacista branco Richard Spencer, o
produtor de podcasts da direita alternativa (alt-right) Mike Enoch, e a
ativista anti-imigração, Ann Coulter, se opõem aos ataques norte-americanos. No
Reino Unido, o ex-líder do BNP (Partido Nacional Britânico), Nick Griffin, e a
islamófoba Katie Hopkins se unem ao clamor. O lugar onde convergem com
frequência o alt-right e o alt-left (esquerda alternativa) é em torno à
promoção de várias teorias de conspiração para absolver o regime de seus
crimes. Afirmam que as matanças químicas são bandeiras falsas ou que os
trabalhadores de proteção civil são Al Qaeda e, portanto, objetivos legítimos
de ataques. Aqueles que difundem tais informes não estão no terreno na Síria e
não podem verificar independentemente o que reclamam. Geralmente dependem dos
meios estatais de propaganda russos ou de Assad porque “não confiam na mídia”
ou nos sírios diretamente afetados. As vezes, a convergência destas duas
correntes aparentemente opostas do espetro político se converte em uma
colaboração aberta. É o caso da coalizão ANSWER, que está organizando muitas
das manifestações nos Estados Unidos contra um ataque a Assad. Com frequência,
ambas as linhas promovem narrativas islamofóbicas e antissemitas. Ambos
compartilham os mesmos argumentos e os mesmos memes.
Existem muitas razões válidas para opor-se
à intervenção militar externa na Síria, seja por parte dos Estados Unidos, da
Rússia, do Irã ou da Turquia. Nenhum destes estados está atuando no interesse
do povo sírio, da democracia ou dos direitos humanos. Atuam unicamente por seus
próprios interesses. Hoje, a intervenção dos Estados Unidos, do Reino Unido e
da França não pretendem tanto proteger os sírios das atrocidades massivas mas
sim fazer cumprir uma norma internacional de que o uso de armas químicas é
inaceitável, por temor a que algum dia se utilizem contra os próprios
ocidentais. Mas bombas estrangeiras não trarão paz nem estabilidade. Há pouca
intenção de expulsar Assad do poder, o que contribuiria para terminar com a
pior das atrocidades. No entanto, ao opor-se à intervenção estrangeira, alguém
tem que encontrar uma alternativa para proteger os sírios da matança. É no mínimo
moralmente repreensível, esperar que os sírios calem e morram para proteger o
princípio superior do “anti-imperialismo”. Os sírios propuseram muitas vezes
alternativas à intervenção militar estrangeira, que foram ignoradas. E então
fica a pergunta, quando as opções diplomáticas falharam, quando um regime
genocida está protegido da censura por poderosos apoios internacionais, quando
não se consegue deter os bombardeios diários, pôr fim aos cercos por inanição
ou liberar os prisioneiros torturados em escala industrial, o que se pode
fazer?
Não tenho respostas. Sempre me opus a toda
intervenção militar estrangeira na Síria, apoiei o processo liderado pela Síria
para livrar seu país de um tirano e respaldei procedimentos internacionais
baseados em esforços para proteger os civis e os direitos humanos e garantir a
prestação de contas de todos os atores responsáveis de crimes de guerra. Um
acordo negociado é a única maneira de terminar esta guerra e isso ainda parece
tão distante como sempre. Assad (e seus protetores) estão decididos a frustrar
qualquer processo, buscar uma vitória militar total e esmagar qualquer
alternativa democrática que sobreviva. Centenas de sírios estão sendo
assassinados todas as semanas da maneira mais bárbara imaginável. Os grupos
extremistas e as ideologias estão prosperando no caos criado pelo Estado. Os
civis continuam fugindo de milhares a medidas que se implementam como
mecanismos legais. Como a Lei Nº 10, para garantir que nunca regressarão a seus
lares. O sistema internacional em si mesmo está em colapso sob o peso de sua
própria impotência. As palavras ‘Nunca mais’ soam ocas. Não há um movimento
popular importante que se solidarize com as vítimas. Ao contrário, são
caluniados, seu sofrimento é negado ou objeto de burla, e suas vozes, ausentes
dos debates ou postas em dúvida por pessoas que estão longe, que não sabem nada
da Síria, da revolução ou da guerra, e que arrogantemente creem que sabem o que
é melhor. É esta situação desesperada a que faz com que muitos sírios deem as
boas-vindas à ação dos Estados Unidos, Reino Unido e França, e que agora veem a
intervenção estrangeira como sua única esperança, apesar dos riscos
que sabem que isso implica.
Uma coisa é certa: não vou perder o sono
pelos ataques dirigidos contra as bases militares do regime e as fábricas de
armas químicas que podem proporcionar aos sírios um breve respiro da matança
diária. E nunca serei uma aliada daqueles que põem os discursos rimbombantes
acima das realidades vividas, que apoiem regimes brutais em países longínquos,
ou que promovam o racismo, as teorias da conspiração e a negação das
atrocidades.
> Leila Al Shami é uma ativista síria britânica que luta pelos direitos humanos e justiça
social na Síria e no Oriente Médio desde 2000. Ela foi membro fundadora da rede
Tahrir-ICN, ligada às lutas antiautoritárias em todo Oriente Médio, Norte da
África e Europa.
Fonte: https://leilashami.wordpress.com/2018/04/14/the-anti-imperialism-of-idiots/
Tradução > Sol de Abril
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agência de notícias anarquistas-ana
tarde cinzaborboleta amarela
toda luz do dia
Alexandre Brito
Fonte: https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2018/04/23/o-anti-imperialismo-dos-idiotas/
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