segunda-feira, 30 de março de 2009

A cara antidemocrática do capitalismo. Por Noam Chomsky

A cara antidemocrática do capitalismo

NOAM CHOMSKY, Carta Clacso, Buenos Aires, mar./2009
http://www.clacso.org.ar/clacso/debates/debates-2009/a-cara-antidemocratica-do-capitalismo

A liberalização financeira teve efeitos para muito além da economia. Há muito que se compreendeu que era uma arma poderosa contra a democracia. O movimento livre dos capitais cria o que alguns chamaram um "parlamento virtual" de investidores e credores que controlam de perto os programas governamentais e "votam" contra eles, se os consideram "irracionais", quer dizer, se são em benefício do povo e não do poder privado concentrado. (NC, Sin Permiso)

O desenvolvimento de uma campanha presidencial norte-americana simultaneamente ao desenlace da crise dos mercados financeiros oferece uma dessas ocasiões em que os sistemas político e econômico revelam vigorosamente sua natureza.

Pode ser que a paixão pela campanha não seja uma coisa universalmente compartilhada, mas quase todo mundo pode perceber a ansiedade desencadeada pela execução hipotecária de um milhão de residências, assim como a preocupação com os riscos que correm os postos de trabalho, as poupanças e os serviços de saúde.

As propostas iniciais de Bush para lidar com a crise fediam a tal ponto a totalitarismo que não tardaram a ser modificadas. Sob intensa pressão dos lobbies, foram reformuladas "para o claro benefício das maiores instituições do sistema...uma forma de desfazer-se dos ativos sem necessidade de fracassar ou quase", segundo descreveu James Rickards, que negociou o resgate federal por parte do fundo de cobertura de derivativos financeiros Long Term Capital Management em 1998, lembrando-nos de que estamos caminhando em terreno conhecido.

As origens imediatas do desmoronamento atual estão no colapso da bolha imobiliária supervisionada pelo presidente do Federal Reserve, Alan Greenspan, que foi quem sustentou a coitada da economia dos anos Bush, misturando o gasto de consumo fundado na dívida com a tomada de empréstimos do exterior. Mas as razões são mais profundas. Em parte, fala-se no triunfo da liberalização financeira dos últimos 30 anos, quer dizer, nas políticas consistentes em liberar o máximo possível os mercados da regulação estatal.

Como era previsível, as medidas tomadas a esse respeito incrementaram a frequência e a profundidade dos grandes reveses econômicos, e agora estamos diante da ameaça de que se desencadeie a pior crise desde a Grande Depressão.

Também era previsível que os poucos setores que cresceram com os enormes lucros oriundos da liberalização demandariam uma intervenção maciça do Estado, a fim de resgatar as instituições financeiras colapsadas.

Esse tipo de intervencionismo é um traço característico do capitalismo de Estado, ainda que na escala atual seja inesperado. Um estudo dos pesquisadores em economia internacional Winfried Ruigrok e Rob van Tulder descobriu, há 15 anos, que pelo menos 20 companhias entre as 100 primeiras do ranking da revista Fortune, não teriam sobrevivido se não tivessem sido salvas por seus respectivos governos, e que muitas, entre as 80 restantes, obtiveram ganhos substanciais através das demandas aos governos para que "socializassem suas perdas", como hoje o é o resgate financiado pelo contribuinte. Tal intervenção pública "foi a regra, mais que a exceção, nos dois últimos séculos", concluíram.

Numa sociedade democrática efetiva, uma campanha política teria de abordar esses assuntos fundamentais, observar as causas e os remédios para essas causas, e propor os meios através dos quais o povo que sofre as conseqüências pudesse chegar a exercer um controle efetivo.

O mercado financeiro "despreza o risco" e é "sistematicamente ineficiente", como escreveram há uma década os economistas John Eatwell e Lance Taylor, alertando sobre os gravísimos perigos que a liberalização financeira engendrava, e mostrando os custos em que já se tinha incorrido.

Ademais, propuseram soluções que, deve-se dizer, foram ignoradas. Um fator de peso é a incapacidade de calcular os custos por parte daqueles que não participam dessas transações. Essas "externalidades" podem ser enormes. A ignorância do risco sistêmico leva a uma maior aceitação de riscos do que se daria numa economia eficiente, e isso adotando, inclusive, os critérios menos exigentes.

A tarefa das instituições financeiras é arriscar-se e, se são bem gestionadas, assegurar que as potenciais perdas em que elas mesmas podem incorrer serão cobertas. A ênfase há que pôr-se "nelas mesmas". Segundo as regras do capitalismo de estado, levar em conta os custos que para os outros possam ter – as "externalidades" de uma sobrevivência decente – umas práticas que levem, como espectro, a crises financeiras é algo que não lhes diz respeito.

A liberalização financeira teve efeitos para muito além da economia. Há muito que se compreendeu que era uma arma poderosa contra a democracia. O movimento livre dos capitais cria o que alguns chamaram um "parlamento virtual" de investidores e credores que controlam de perto os programas governamentais e "votam" contra eles, se os consideram "irracionais", quer dizer, se são em benefício do povo e não do poder privado concentrado.

Os investidores e credores podem "votar" com a fuga de capitais, com ataques às divisas e com outros instrumentos que a liberalização financeira lhes serve de bandeja. Essa é uma das razões pelas quais o sistema de Bretton Woods, estabelecido pelos EUA e pela Grã Bretanha depois da II Guerra Mundial, instituiu controle de capitais e regulou o mercado de divisas (1).

A Grande Depressão e a Guerra puseram em marcha poderosas correntes democráticas radicais que iam desde a resistência antifascita até as organizações da classe trabalhadora.

Essas pressões tornaram possível que se tolerassem políticas sociais democráticas. O sistema Bretton Woods foi, em parte, concebido para criar um espaço no qual a ação governamental pudesse responder à vontade pública cidadã, quer dizer, para permitir certa democracia.

John Maynard Keynes, o negociador britânico, considerou o direito dos governos a restringir os movimentos de capitais a mais importante conquista estabelecida em Bretton Woods.

Num contraste espetacular, na fase neoliberal que se seguiu ao desmonte do sistema de Bretton Woods nos anos 70, o Tesouro norte-americano passa a considerar a livre circulalação de capitais um "direito fundamental". À diferença, nem precisa dizer, dos pretensos "direitos" garantidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos: direito à saúde, à educação, ao emprego decente, à segurança e outros direitos que as administrações de Reagan e de Bush chamaram com desprezo de "cartas a Papai Noel", "ridículos" ou meros "mitos".

Nos primeiros anos, as pessoas não tiveram maiores problemas com o assunto. As razões disso Barry Eichengreen estudou em sua história, impecavelmente acadêmica, do sistema monetário. Nessa obra se explica que, no século XIX, os governos "ainda não estavam politizados pelo sufrágio universal masculino, o sindicalismo e os partidos trabalhistas parlamentares. Por conseguinte, os graves custos impostos pelo parlamento virtual podiam se transferidos para toda a população.

Porém, com a radicalização da população e da opinião pública que se seguiu à Grande Depressão e à guerra antifascista, o poder e a riqueza privados privaram-se desse luxo.

Daí que no sistema Bretton Woods "os limites da democracia como fonte de resistência às pressões do mercado foram substituídos por limites à circulação de capitais."

O corolário óbvio é que no rastro do desmantelamento do sistema do pós-guerra a democracia tenha sido restringida. Fez-se necessário controlar e marginalizar de algum modo a população e a opinião pública, processos particularmente evidentes nas sociedades mais avançadas no mundo dos negócios, como os EUA. A gestão das extravagâncias eleitorais por parte da indústria de relações públicas constitui uma boa ilustração.

"A política é a sombra da grande empresa sobre a sociedade", concluiu em seus dias o maior filósofo norte-americano do século XX, John Dewey, e assim seguirá sendo, enquanto o poder consista "nos negócios para benefício privado através do controle da banca, do território e da indústria que agora se vê reforçada pelo controle da imprensa, dos jornalistas e sobretudo dos meios de publicidade e propaganda."

Os EUA tem efetivamente um sistema de um só partido, o partido dos negócios, com duas facções, republicanos e democratas. Há diferenças entre eles. Em seu estudo sobre A Democracia Desigual: a economia política da nova Era da Cobiça, Larry Bartels mostra que durante as últimas seis décadas "a renda real das famílias de classe média cresceu duas vezes mais rápido sob administração democrata que republicana, enquanto a renda real das famílias pobres da classe trabalhadora cresceu seis vezes mais rápido sob os democratas que sob os republicanos".

Essas diferenças também podem ser vistas nestas eleições. Os eleitores deveriam tê-las em conta, mas sem ter ilusões sobre os partidos políticos, e reconhecendo o padrão regular que, nos últimos séculos, vem revelando que a legislação progressista e de bem-estar social sempre foram conquistas das lutas populares, nunca presentes dos de cima.

Essas lutas seguem ciclos de êxitos e de retrocessos. Hão de ser travadas a cada dia, não só a cada quatro anos, e sempre visando à criação de uma sociedade genuinamente democrática, capaz de resposta em toda parte, nas urnas não menos do que no posto de trabalho.

Fonte: www.novae.inf.br

"Com liberdade total para o mercado, quem atende aos pobres?" Eric Hobsbawm

"Com liberdade total para o mercado, quem atende aos pobres?"

Em entrevista publicada no jornal Página 12, o historiador britânico Eric Hobsbawm fala da crise atual e de suas possíveis implicações políticas. Para ele, o mundo está entrando em um período de depressão e os grandes riscos, diante da fragilidade da esquerda mundial, são o crescimento da xenofobia e da extrema-direita. Hobsbawm destaca o que está acontecendo na América Latina e elogia o presidente brasileiro. "É o verdadeiro introdutor da democracia no Brasil. No Brasil há muitos pobres e ninguém jamais fez tantas coisas concretas por eles".

Martin Granovsky - Página12

Em junho ele completa 92 anos. Lúcido e ativo, o historiador que escreveu "Rebeldes Primitivos", "A Era da Revolução" e a "História do Século XX", entre outros livros, aceitou falar de sua própria vida, da crise de 30, do fascismo e do antifascismo e da crise atual. Segundo ele, uma crise da economia do fundamentalismo de mercado é o que a queda do Muro de Berlim foi para a lógica soviética do socialismo.

Hobsbawm aparece na porta da embaixada da Alemanha, em Londres. São pouco mais de três da tarde na bela Belgrave Square e se enxergam as bandeiras das embaixadas por trás das copas das árvores. De óculos, chapéu na cabeça e um casaco muito pesado, cumprimenta. Tem mãos grandes e ossudas, mas não parecem as mãos de um velho. Nenhuma deformação de artrite as atacou. Rapidamente uma pequena prova demonstra que as pernas de Hobsbawm também estão em boa forma. Com agilidade desce três degraus que levam do corrimão a calçada. Parece enxergar bem. Tem uma bengala na mão direita. Não se apóia nela, mas talvez a use como segurança, em caso de tropeçar, ou como um sensor de alerta rápido que detecta degraus, poças e, de imediato, o meio-fio da calçada. Hobsbawm é alto e magro. Uns oitenta e bicos. Não pede ajuda. O motorista do Foreign Office lhe abre a porta esquerda do jaguar preto. Entra no carro com facilidade. O carro é grande, por sorte, e cabe, mas a viagem é curta.

- Acabo de me encontrar com um historiador alemão, por isso estou na embaixada, e devo voltar – avisa. Ele chegou de visita a Londres e quis conversar com alguns de nós. Sei que vamos a Canning House. Está bem. Poucas voltas, não?

O carro dá meia volta na Belgrave Square e pára na frente de outro palacete branco de três andares, com uma varanda rodeada de colunas e a porta de madeira pesada. Por algum motivo mágico o motorista de cabelos brancos com uma mecha sobre o rosto, traje azul e sorridente como um ajudante do inspetor Morse de Oxford, já abre a porta a Hobsbawm. Entre essas construções tão parecidas, a elegância do Jaguar o assemelha a uma carruagem recém polida. O motorista sorri quando Hobsbawm desce. O professor lhe devolve a simpatia enquanto sobe com facilidade num hall obscuro. Já entrou em Canning House e à direita vê uma enorme imagem de José de San Martin. À esquerda do corredor, uma grande sala. O chá está servido. Quer dizer, o chá, os pães e uma torta. Outro quadro do mesmo tamanho que o de San Martin. É Simon Bolívar. E também é Bolívar o cavalheiro do busto sobre o aparador.

Quanto chá tomaram Bolívar e San Martin antes de saírem de Londres para a América do Sul, em princípios do século XIX, para cumprir seus planos de independência?

Hobsbawm pega a primeira taça e quer ser quem faz a primeira pergunta.

- Como está a Argentina? - interroga mas não muito, porque não espera e comenta – No ano passado Cristina esteve para vir a Londres para uma reunião de presidentes progressistas e pediu para me ver. Eu disse sim, mas ela não veio. Não foi sua culpa. Estava no meio do confronto com a Sociedade Rural.

Hobsbawm fala um inglês sem afetação nem os trejeitos de alguns acadêmicos do Reino Unido. Mas acaba de pronunciar “Sociedade Rural” em castellhano.

- O que aconteceu com esse conflito?

Durante a explicação, o professor inclina a cabeça, mais curioso que antes, enquanto com a mão direita seu garfo tenta cortar a torta de maçã. É uma tarefa difícil. Então se desconcentra da torta e fixa o olhar esperando, agora sim, alguma pergunta.

- O mundo está complicado – afirma ainda mantendo a iniciativa. Não quero cair em slogans, mas é indubitável que o Consenso de Washington morreu. A desregulação selvagem já não é somente má: é impossível. Há que se reorganizar o sistema financeiro internacional. Minha esperança é que os líderes do mundo se dêem conta de que não se pode renegociar a situação para voltar atrás, senão que há que se redesenhar tudo em direção ao futuro.

A Argentina experimentou várias crises, a última forte em 2001. Em 2005 o presidente Néstor Kirchner, de acordo com o governo brasileiro, que também o fez, pagou ao FMI e desvinculou a Argentina do organismo para que o país não continuasse submetido a suas condicionalidades.

- É que a esta altura se necessita de um FMI absolutamente distinto, com outros princípios que não dependam apenas dos países mais desenvolvidos e em que uma ou duas pessoas tomam as decisões. É muito importante o que o Brasil e a Argentina estão propondo, para mudar o sistema atual. Como estão as relações de vocês?

- Muito bem

- Isso é muito importante. Mantenham-nas assim. As boas relações entre governos como os de vocês são muito importantes em meio a uma crise que também implica riscos políticos. Para os padrões estadunidenses, o país está girando à esquerda e não à extrema direita. Isso também é bom. A Grande Depressão levou politicamente o mundo para a extrema direita em quase todo o planeta, com exceção dos países escandinavos e dos Estados Unidos de Roosevelt. Inclusive o Reino Unido chegou a ter membros do Parlamento que eram de extrema direita [e começa a entrevista propriamente].

- E que alternativa aparece?
- Não sei. Sabe qual é o drama? O giro à direita teve onde se apoiar: nos conservadores. O giro à esquerda também teve em quem descansar: nos trabalhistas.

- Os trabalhistas governam o Reino Unido.
- Sim, mas eu gostaria de considerar um quadro mais geral. Já não existe esquerda tal como era.

- Isso lhe é estranho?
- Faço apenas o registro.

- A quê se refere quando diz “a esquerda tal como era”?
- Às distintas variantes da esquerda clássica. Aos comunistas, naturalmente. E aos socialdemocratas. Mas, sabe o que acontece? Todas as variantes da esquerda precisam do Estado. E durante décadas de giro à direita conservadora, o controle do Estado se tornou impossível.

- Por que?
- Muito simples. Como você controla o estado em condições de globalização? Convém recordar que, em princípios dos anos 80 não só triunfaram Ronald Reagan e Margareth Thatcher. Na França, François Miterrand não obteve uma vitória.

- Havia vencido para a presidência dem 1974 e repetiu a vitória em 1981.
- Sim. Mas quando tentou uma unidade das esquerdas para nacionalizar um setor maior da economia, não teve poder suficiente para fazê-lo. Fracassou completamente. A esquerda e os partidos socialdemocratas se retiraram de cena, derrotados, convencidos de que nada se podia fazer. E, então, não só na França como em todo mundo ficou claro que o único modelo que se podia impor com poder real era o capitalismo absolutamente livre.

- Livre, sim. Por que diz “absolutamente”?
- Porque com liberdade absoluta para o mercado, quem atende aos pobres? Essa política, ou a política da não-política, é a que se desenvolveu com Margareth Thatcher e Ronald Reagan. E funcionou – dentro de sua lógica, claro, que não compartilho – até a crise que começou em 2008. Frente à situação anterior a esquerda não tinha alternativa. E frente a esta? Prestemos atenção, por exemplo, à esquerda mais clássica da Europa. É muito débil na Europa. Ou está fragmentada. Ou desapareceu. A Refundação Comunista na Itália é débil e os outros ramos do ex Partido Comunista Italiano estão muito mal. A Esquerda Unida na Espanha também está descendo ladeira abaixo. Algo permaneceu na Alemanha. Algo na França, como Partido Comunista. Nem essas forças, nem menos ainda a extrema esquerda, como os trotskistas, e nem sequer uma socialdemocracia como a que descrevi antes alcançam uma resposta a esta crise a seus perigos, contudo. A mesma debilidade da esquerda aumenta os riscos.

- Que riscos?
- Em períodos de grande descontentamento como o que começamos a viver, o grande perigo é a xenofobia, que alimentará e será por sua vez alimentada pela extrema direita. E quem essa extrema direita buscará? Buscará atrair os “estúpidos” cidadãos que se preocupam com seu trabalho e têm medo de perdê-lo. E digo estúpidos ironicamente, quero deixar claro. Porque aí reside outro fracasso evidente do fundamentalismo de mercado. Deu liberdade para todos, e a verdadeira liberdade de trabalho? A de mudá-lo e melhorar em todos os aspectos? Essa liberdade não foi respeitada porque, para o fundamentalismo de mercado isso tinha se tornado intolerável. Também teriam sido politicamente intoleráveis a liberdade absoluta e a desregulação absoluta em matéria laboral, ao menos na Europa. Eu temo uma era de depressão.

- Você ainda tem dúvidas de que entraremos em depressão?
- Se você quiser posso falar tecnicamente, como os economistas, e quantificar trimestres. Mas isso não é necessário. Que outra palavra pode se usar para denominar um tempo em que muito velozmente milhões de pessoas perdem seu emprego? De qualquer maneira, até o momento no vejo um cenário de uma extrema direita ganhando maioria em eleições, como ocorreu em 1933, quando a Alemanha elegeu Adolf Hitler. É paradoxal, mas com um mundo muito globalizado um fator impedirá a imigração, que por sua vez aparece como a desculpa para a xenofobia e para o giro à extrema direita. E esse fator é que as pessoas emigrarão menos – falo em termos de emigração em massa – ao verem que nos países desenvolvidos a crise é tão grave. Voltando à xenofobia, o problema é que, ainda que a extrema direita não ganhe, poderia ser muito importante na fixação da agenda pública de temas e terminaria por imprimir uma face muito feia na política.

- Deixemos de lado a economia, por um momento. Pensando em política, o que diminuiria o risco da xenofobia?
- Me parece bem, vamos à prática. O perigo diminuiria com governos que gozem de confiança política suficiente por parte do povo em virtude de sua capacidade de restaurar o bem-estar econômico. As pessoas devem ver os políticos como gente capaz de garantir a democracia, os direitos individuais e ao mesmo tempo coordenar planos eficazes para se sair da crise. Agora que falamos deste tema, sabe que vejo os países da América Latina surpreendentemente imunes à xenofobia?

- Por que?
- Eu lhe pergunto se é assim. É assim?

- É possível. Não diria que são imunes, se pensamos, por exemplo, no tratamento racista de um setor da Bolívia frente a Evo Morales, mas ao menos nos últimos 25 anos de democracia, para tomar a idade da democracia argentina, a xenofobia e o racismo nunca foram massivos nem nutriram partidos de extrema direita, que são muito pequenos. Nem sequer com a crise de 2001, que culminou o processo de destruição de milhões de empregos, apesar de que a imigração boliviana já era muito importante em número. Agora, não falamos dos cantos das torcidas de futebol, não é?

- Não, eu penso em termos massivos.

- Então as coisas parecem ser como você pensa, professor. E, como em outros lugares do mundo, o pensamento da extrema direita aparece, por exemplo, com a crispação sobre a segurança e a insegurança das ruas.
- Sim, a América Latina é interessante. Tenho essa intuição. Pense num país maior, o Brasil. Lula manteve algumas idéias de estabilidade econômica de Fernando Henrique Cardoso, mas ampliou enormemente os serviços sociais e a distribuição. Alguns dizem que não é suficiente...

- E você, o que diz?
- Que não é suficiente. Mas que Lula fez, fez. E é muito significativo. Lula é o verdadeiro introdutor da democracia no Brasil. E ninguém o havia feito nunca na história desse país. Por isso hoje tem 70% de popularidade, apesar dos problemas prévios às últimas eleições. Porque no Brasil há muitos pobres e ninguém jamais fez tantas coisas concretas por eles, desenvolvendo ao mesmo tempo a indústria e a exportação de produtos manufaturados. A desigualdade ainda assim segue sendo horrorosa. Mas ainda faltam muitos anos para mudar as cosias. Muitos.

- E você pensa que serão de anos de depressão mundial
- Sim. Lamento dizê-lo, mas apostaria que haverá depressão e que durará alguns anos. Estamos entrando em depressão. Sabem como se pode dar conta disso? Falando com gente de negócios. Bom, eles estão mais deprimidos que os economistas e os políticos. E, por sua vez, esta depressão é uma grande mudança para a economia capitalista global.

- Por que está tão seguro desse diagnóstico?
- Porque não há volta atrás para o mercado absoluto que regeu os últimos 40 anos, desde a década de 70. Já não é mais uma questão de ciclos. O sistema deve ser reestruturado.

- Posso lhe perguntar de novo por que está tão seguro?
- Porque esse modelo não é apenas injusto: agora é impossível. As noções básicas segundo as quais as políticas públicas deviam ser abandonadas, agora estão sendo deixadas de lado. Pense no que fazem e às vezes dizem, dirigentes importantes de países desenvolvidos. Estão querendo reestruturar as economias para sair da crise. Não estou elogiando. Estou descrevendo um fenômeno. E esse fenômeno tem um elemento central: ninguém mais se anima a pensar que o Estado pode não ser necessário ao desenvolvimento econômico. Ninguém mais diz que bastará deixar que o mercado flua, com sua liberdade total. Não vê que o sistema financeiro internacional já nem funciona mais? Num sentido, essa crise é pior do que a de 1929-1933, porque é absolutamente global. Nem os bancos funcionam.

- Onde você vivia nesse momento, no começo dos anos 30?
- Nada menos que em Viena e Berlim. Era um menino. Que momento horroroso. Falemos de coisas melhores, como Franklin Delano Roosevelt.

- Numa entrevista para a BBC no começo da crise você o resgatou.
- Sim, e resgato os motivos políticos de Roosevelt. Na política ele aplicou o princípio do “Nunca mais”. Com tantos pobres, com tantos famintos nos Estados Unidos, nunca mais o mercado como fator exclusivo de obtenção de recursos. Por isso decidiu realizar sua política do pleno emprego. E desse modo não somente atenuou os efeitos sociais da crise como seus eventuais efeitos políticos de fascistização com base no medo massivo. O sistema de pleno emprego não modificou a raiz da sociedade, mas funcionou durante décadas. Funcionou razoavelmente bem nos Estados Unidos, funcionou na França, produziu a inclusão social de muita gente, baseou-se no bem-estar combinado com uma economia mista que teve resultados muito razoáveis no mundo do pós-Segunda Guerra. Alguns estados foram mais sistemáticos, como a França, que implantou o capitalismo dirigido, mas em geral as economias eram mistas e o Estado estava presente de um modo ou de outro. Poderemos fazê-lo de novo? Não sei. O que sei é que a solução não estará só na tecnologia e no desenvolvimento econômico. Roosevelt levou em conta o custo humano da situação de crise.

- Quer dizer que para você as sociedades não se suicidam.
(Pensa) – Não deliberadamente. Sim, podem ir cometendo erros que as levam a catástrofes terríveis. Ou ao desastre. Com que razoabilidade, durante esses anos, se podia acreditar que o crescimento com tamanho nível de uma bolha seria ilimitado? Cedo ou tarde isso terminaria e algo deveria ser feito.

- De maneira que não haverá catástrofe.
- Não me interessam as previsões. Observe, se acontece, acontece. Mas se há algo que se possa fazer, façamos-no. Não se pode perdoar alguém por não ter feito nada. Pelo menos uma tentativa. O desastre sobrevirá se permanecermos quietos. A sociedade não pode basear-se numa concepção automática dos processos políticos. Minha geração não ficou quieta nos anos 30 nem nos 40. Na Inglaterra eu cresci, participei ativamente da política, fui acadêmico estudando em Cambridge. E todos éramos muito politizados. A Guerra Civil espanhola nos tocou muito. Por isso fomos firmemente antifascistas.

- Tocou a esquerda de todo o mundo. Também na América Latina
- Claro, foi um tema muito forte para todos. E nós, em Cambridge, víamos que os governos não faziam nada para defender a República. Por isso reagimos contra as velhas gerações e os governos que as representavam. Anos depois entendi a lógica de por quê o governo do Reino Unido, onde nós estávamos, não fez nada contra Francisco Franco. Já tinha a lucidez de se saber um império em decadência e tinha consciência de sua debilidade. A Espanha funcionou como uma distração. E os governos não deviam tê-la tomado assim. Equivocaram-se. O levante contra a República foi um dos feitos mais importantes do século XX. Logo depois, na Segunda Guerra...

- Pouco depois, não? Porque o fim da Guerra Civil Espanhola e a invasão alemã da Tchecoslováquia ocorreu no mesmo ano.
- É verdade. Dizia-lhe que logo depois o liberalismo e o comunismo tiveram uma causa comum. Se deram conta de que, assim não fosse, eram débeis frente ao nazismo. E no caso da América Latina o modelo de Franco influenciou mais que o de Benito Mussolini, com suas idéias conspiratórias da sinarquia, por exemplo. Não tome isso como uma desculpa para Mussolini, por favor. O fascismo europeu em geral é uma ideologia inaceitável, oposta a valores universais.

- Você fala da América Latina...
- Mas não me pergunte da Argentina. Não sei o suficiente de seu país. Todos me perguntam do peronismo. Para mim está claro que não pode ser tomado como um movimento de extrema direita. Foi um movimento popular que organizou os trabalhadores e isso talvez explique sua permanência no tempo. Nem os socialistas nem os comunistas puderam estabelecer uma base forte no movimento sindical. Sei das crises que a Argentina sofreu e sei algo de sua história, do peso da classe média, de sua sociedade avançada culturalmente dentro da América Latina, fenômeno que creio ainda se mantém. Sei da idade de ouro dos anos 20 e sei dos exemplos obscenos de desigualdade comuns a toda a América Latina.

- Você sempre se definiu com um homem de esquerda. Também segue tendo confiança nela?
- Sigo na esquerda, sem dúvida com mais interesse em Marx do que em Lênin. Porque sejamos sinceros, o socialismo soviético fracassou. Foi uma forma extrema de aplicar a lógica do socialismo, assimo como o fundamentalismo de mercado foi uma forma extrema de aplicação da lógica do liberalismo econômico. E também fracassou. A crise global que começou no ano passado é, para a economia de mercado, equivalente ao que foi a queda do Muro de Berlim em 1989. Por isso Marx segue me interessando. Como o capitalismo segue existindo, a análise marxista ainda é uma boa ferramenta para analisá-lo. Ao mesmo tempo, está claro que não só não é possível como não é desejável uma economia socialista sem mercado nem uma economia em geral sem Estado.

- Por que não?
- Se se mira a história e o presente, não há dúvida alguma de que os problemas principais, sobretudo no meio de uma crise profunda, devem e podem ser solucionados pela ação política. O mercado não tem condições de fazê-lo.

(*) Martin Granovsky é analista internacional e presidente da agência de notícias Télam.

Publicado no jornal Página 12, em 29 de março de 2009

Tradução: Katarina Peixoto

FONTE: AGÊNCIA CARTA MAIOR

Sim, nós podemos manter o embargo! Latuff

sexta-feira, 27 de março de 2009

Denúncias de crimes de guerra atingem imagem do exército de Israel. Por Clarissa Pont

Denúncias de crimes de guerra atingem imagem do exército de Israel

Dois meses depois da ofensiva de Israel na Faixa de Gaza, deflagrada entre 27 de dezembro e 18 de janeiro, surgem novas denúncias sobre crimes que teriam sido cometidos contra civis palestinos – muitas delas provenientes de jornais e entidades israelenses. Nos últimos dias, o grupo de proteção dos direitos civis Human Rights Watch, o diário inglês The Guardian e o jornal israelense Haaretz publicaram matérias e divulgaram documentos sobre o tema.

Clarissa Pont

Data: 26/03/2009
Entre as denúncias publicadas pelo The Guardian figuram ataques diretos contra médicos e hospitais, que foram relatados em um documento divulgado dia 22 de março pela organização Médicos pelos Direitos Humanos. Médicos e motoristas de ambulâncias contaram ter sido alvo de disparos israelenses e denunciaram 16 mortes nestas condições, algo estritamente proibido pelas convenções de Genebra. O jornal britânico disse ter provas de ataques contra civis realizados por aviões não-tripulados. No total, a ofensiva teria matado mais de 1000 civis.

O Guardian publicou três vídeos feitos que dão força à chamada internacional para que se investigue a operação israelense contra o Hamas, em Gaza. Dentre os relatos, está o de três irmãos adolescentes da família Al-Attar, que contam terem sido utilizados como escudo humano em frente a carros de combate israelenses. Os irmãos contam também que soldados israelenses os enviaram a casas de famílias palestinas para também servirem de escudo para as primeiras balas. A utilização de escudos humanos foi declarada ilegal em 2005 pela Suprema Corte israelense após vários incidentes do tipo.

Degradação ética
De acordo com a Organização Mundial da Saúde, mais da metade dos 27 hospitais e das 44 clínicas de Gaza foram bombardeadas pelos israelenses. Em relatório publicado esta semana a própria organização Médicos pelos Direitos Humanos de Israel denuncia as violações. "Observamos uma forte degradação ética por parte das Forças de Defesa Israelenses no que se refere ao tratamento da população civil de Gaza, que equivale de fato a um total desprezo pelas vidas dos palestinos", critica a organização.

O Canal 10 da televisão israelense divulgou um documentário com imagens de uma reunião militar, no qual o comandante exigiria “agressividade” aos seus homens. “Se estiver alguém suspeito no andar de cima de uma casa temos de bombardear. Se tivermos uma casa suspeita, temos de botar abaixo”, ordenou o oficial.

As imagens alimentam a polêmica que o Haaretz começou ao divulgar testemunhos de soldados que admitem terem matado civis em Gaza e destruído casas, no cumprimento de ordens. Logo em seguida, a Breaking the Silence, organização de antigos militares, contou ao Guardian ter conseguido o testemunho de 15 soldados que confirmaram as denúncias de mortes indiscriminadas e de vandalismo pelas forças israelenses. “Não estamos falando de algumas unidades que foram mais agressivas do que outras, mas denunciando uma política. De tal forma que os soldados nos disseram que tiveram de refrear as ordens que receberam”, disse um dos ativistas do grupo ao Guardian.

"Um tiro, duas mortes"
O jornalista Uri Blau, do Haaretz, relatou outras práticas habituais entre militares, como a fabricação de camisetas. As encomendas que chegaram nos últimos meses às lojas de estampagem retratam uma violência sem precedentes. Uma camiseta encomendada mostra uma mulher grávida na mira e em baixo os dizeres: “Um tiro, duas mortes”.

Por meio de um porta-voz, o exército de Israel disse desconhecer as denúncias. Também afirmou que a credibilidade das informações será verificada e, se for o caso, será aberta uma investigação. Grupos israelenses de defesa dos direitos humanos pediram uma apuração independente sobre os supostos crimes de guerra. Várias organizações afirmaram em comunicado que a decisão do governo de investigar a morte de civis palestinos não garante a isenção necessária para a tarefa.

O relator das Nações Unidas para os Territórios Palestinos, Richard Falk, também declarou que há indícios de que os israelenses cometeram abusos na ofensiva. Segundo Falk, se não é possível distinguir os alvos militares e os civis, “então lançar os ataques é inerentemente ilegal e poderia constituir um crime de guerra da maior magnitude sob a legislação internacional”. Para Falk, outro agravante é o fato de que a fronteira de Gaza ficou fechada, de forma que “os civis não podiam escapar dos locais atacados”.

As bombas de fósforo branco
Em outra matéria publicada dia 25 de março, o Guardian diz que Israel “atirou bombas de fósforo branco sobre áreas lotadas de Gaza repetidas e indiscriminadas vezes em três semanas, matando e ferindo civis e cometendo crime de guerra”. A matéria também cita o relatório de 71 páginas do Human Rights Watch onde o grupo diz que a repetida utilização de bombas de fósforo branco como artilharia em zonas povoadas de Gaza não foi fortuita ou acidental, “mas revelou um padrão, ou uma política de conduta”. O relatório afirma que os militares israelenses estavam conscientes dos perigos do fósforo branco, não quiseram usar alternativas menos perigosas e, em um dos casos, Israel ignorou repetidas advertências das Nações Unidas sobre o assunto.

"Em Gaza, os militares israelenses não utilizaram apenas fósforo branco em áreas abertas como proteção para suas tropas", afirmou Fred Abrahams, investigador do Human Rights Watch. "Dispararam fósforo branco repetidamente ao longo de áreas densamente povoadas, mesmo quando as suas tropas não estavam na área e bombas mais seguras estavam disponíveis. Como resultado, civis sofreram e morreram desnecessariamente".

Após a publicação do relatório, o Human Rights Watch convocou o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, a lançar uma comissão internacional de inquérito para investigar as violações do direito internacional na Guerra de Gaza pelas forças militares israelenses e do Hamas. Israel defende sua conduta em Gaza e diz que seus soldados não atingiram intencionalmente alvos civis. Ainda segundo o Guardian, quando o uso de fósforo branco por Israel surgiu durante a guerra, os militares primeiro negaram que estariam usando a arma, então disseram que só utilizaram as armas em conformidade com o direito internacional. Mais tarde, anunciaram que um inquérito interno seria realizado.

O jornal britânico também afirma ter encontrado, em janeiro, uma cápsula de fósforo branco ainda queimando vários dias após ter sido despejada, fora da casa da família Abu Halima, em Atatra. Uma bomba de fósforo branco atingiu diretamente a casa, matando o pai e quatro dos filhos da família. A esposa ficou gravemente queimada. O mesmo caso foi relatado pelo Human Rights Watch. As novas denúncias estão produzindo um significativo abalo na imagem do exército de Israel, inclusive dentro do próprio país.

FONTE: AGÊNCIA CARTA MAIOR

quinta-feira, 19 de março de 2009

O carnaval está em marcha. Por David Gaeber

O CARNAVAL ESTÁ EM MARCHA
David Graeber

Ondas de desilusão sobre as possibilidade de mudança social não são novidade. O século passado às vezes parece uma contínua sucessão delas. Cada geração cresceu na crença ingênua de que a tecnologia, o progresso ou a dialética a catapultaria para um mundo melhor, somente para ver essa esperança desmoronar (nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, na Grande Depressão, no Holocausto, na bomba...). Não está totalmente claro se hoje estamos no meio de uma dessas ondas.
O colapso da fé nas mudanças revolucionárias após o desmoronamento dos regimes marxistas foi seguindo quase imediatamente de uma nova onda de movimentos sociais visionários, inspirados principalmente pelos zapatistas, que efetivamente contiveram o neoliberalismo global. As elites mundiais começaram a entrar em pânico e, como tendem a fazer as elites globais quando entram em pânico, tentam iniciar uma guerra: uma tarefa nesse caso muito facilitada pelo súbito ressurgimento, desafiando as velhas economias do Atlântico Norte, de uma economia-mundo muito mais antiga, baseada no oceano Índico, com seu candidato a avatar político, Osama bin Laden. O resultado é, mais que qualquer coisa, um momento de confusão.
O que estamos presenciando é definitivamente uma desilusão sobre as possibilidades de se mudar o mundo tomando o controle do Estado. Mas parece-me que esse é realmente um sinal positivo, e que de fato estamos vivendo um momento muito esperançoso. Porque a antiga estratégia de mudar o mundo apoderando-se do Estado – que em última análise não passa de um mecanismo de violência – sempre foi criticamente defeituosa. Existem motivos pelos quais um dia ela pode ter parecido realista. Mas nunca poderia funcionar realmente.
O fato de os revolucionários e os reformadores sociais a estarem abandonado amplamente abrirá, em última instância, um mundo de possibilidades. Ele nos Permite, por um lado, repensar completamente o que entendemos pelo termo “democracia”.
Para chegar a esse ponto, porém, precisamos imaginar uma maneira de nos livrarmos dos argumentos dos filósofos liberais, que tendem a aparecer nessas conjunturas com novas razões pelas quais é impossível uma verdadeira transformação radical. Isso não é tão difícil, na verdade. Os filósofos liberais são artistas do desespero. Muitas vezes parece que sua própria existência é uma tentativa de elucidar o que um marxista à moda antiga chamaria de contradição social: a existência de um grande grupo de classe média razoavelmente confortável que, coletivamente, adota princípios sociais – igualdade, liberdade, justiça social – que, se levados a suas conclusões lógicas, implicariam que a sociedade precisa mudar de maneiras muito fundamentais.
Sua tarefa, ao que parece, é apresentar constantemente novos motivos pelos quais esses princípios não poderiam ou não deveriam ser levados a suas conclusões lógicas. Pelo menos parece haver um mercado permanente para esse tipo de argumento. Na verdade, é tão forte a demanda que os próprios argumentos não precisam fazer muito sentido lógico. Ás vezes parece que quase qualquer coisa serve. Nas décadas de 1980 e 90, por exemplo, muitas pessoas consideradas inteligentes nas universidades começaram a adotar avidamente teorias que afirmam que o reformismo liberal – buscar uma melhora situação para as minorias e os grupos de identidade marginalizados, celebrar estilos de vida subversivos etc. – era na realidade a coisa mais radical que se poderia fazer, muito mais radical do que, por exemplo, algo que pudesse contestar o capitalismo ou o Estado (essa posição foi chamada de “pós-modernismo”). Hoje em dia isso finalmente está começando a parecer depois da insurreição global contra o neoliberalismo, por isso a nova tendência é argumentar exatamente o contrário.
Quando para os pós-modernos não havia mais grandes sistemas totalitários e tudo estava reduzido a fluxos e fragmentos (e todos deveríamos ignorar a interminável expansão do mercado mundial, o maior e mais totalitário sistema da história mundial, que naquela época tentava subjugar absolutamente tudo), agora o argumento tornou-se precisamente o oposto. O capitalismo é uma enorme sistema totalitário que subjuga tudo o que toca. Portanto, não adianta tentar combatê-lo.

Os argumentos de Heath
A última versão deste argumento foi apresentada recentemente pelos filósofos canadenses Joseph Heath e Andrew Potter. É a seguinte: o capitalismo é invencível porque qualquer meio que você empregue para contestá-lo – uma nova subcultura subversiva, alguma forma de rebelião jovem, um movimento social revolucionário, uma tentativa de desenvolver um sistema alternativo de troca – é em última instância apenas mais um estratagema de marketing. Os capitalistas vão simplesmente apanhá-los e vendê-lo de volta para você.
Na verdade, o capitalismo precisa de rebelião para se reproduzir. Por isso, eles afirmam, tudo isso simplesmente faz parte da própria lógica interna do capitalismo. Portanto, vamos apenas esquecer as tentativas de contestar o sistema. É melhor operar dentro dele, pedir a seus representantes políticos para limitar os piores abusos, empregar incentivos de mercado para encorajar as corporações a não poluir tanto a assim por diante, Você sequer conseguirá isso se minar seus esforços fazendo exigências radicais e, excesso.
O argumento é perfeitamente circular. Ele define princípios a partir de sua conclusão. Se o capitalismo nunca poderá ser derrotado, então, sim, todos os movimentos anticapitalistas estão em última instância destinados a serem reabsorvidos pela lógica do capitalismo. Se o capitalismo é um sistema total cuja lógica abrange tudo, então, é verdade, qualquer coisa que pareça se opor a ele é somente mais um aspecto do capitalismo. Mas apenas dizer isso não prova nada.
Na verdade, argumentos como esse invariavelmente começam a parecer ridículos no momento em que são colocados em algum tipo de perspectiva histórica maior. Deixe-me dar um exemplo revelador.
Os camponeses da Europa medieval costumavam realizar grandes festas carnavalescas em que zombavam de seus superiores feudais e encenavam fantasias elaboradas de uma terra sem reis ou senhores, onde eles podiam se fartar com a abundância de comida e bebida. Isso certamente parece muito subversivo. Os teóricos sociais, porém, há muito afirmam que na verdade não é. Realmente, tudo faz parte do sistema feudal – uma maneira de deixar os camponeses liberarem energia, brincar de rebelião, se desintoxicar, de modo a serem mais capazes de voltar a sua vida rotineira de labuta.
Muitas pessoas usavam esse argumento já na época (uma grande parte do motivo pelo qual os senhores aceitavam esse tipo de coisa). É basicamente o mesmo argumento de Heath e Potter: como o feudalismo é um sistema totalitário que sempre existirá, esses atos de rebeldia realmente são apenas uma parte de sua própria lógica interna. O problema é que o feudalismo não existe mais.

Revoltas camponesas
Na verdade, se reexaminarmos os registros, descobriremos que praticamente todas as grandes revoltas camponesas na história européia começaram durante o carnaval (o Primeiro de Maio era o equivalente inglês – e é por isso que hoje é o feriado internacional dos trabalhadores; as rebeliões populares na Inglaterra quase sempre irromperam no primeiro de maio). É verdade que as revoltas reais tenderam a ser reprimidas com grande brutalidade, mas tiveram um papel importante para produzir o mundo de hoje – no qual os descendentes daqueles camponeses europeus realmente vivem em um mundo sem reis ou senhores, em que eles podem se fartar com uma abundância aparentemente infinita de comida e bebida (mas, obviamente, chegar a isso acarretou certos problemas imprevistos). Então o capitalismo está destinado a seguir o caminho do feudalismo (ou como quisermos chamar hoje o sistema medieval)?
Parece inevitável.
Veja como aqueles que afirmam o contrário, que o capitalismo sempre existirá, quase nunca nos dizem exatamente o que eles pensam sobre o capitalismo. Geralmente há uma razão para isso. Geralmente eles só podem defender sua tese alterando constantemente entre definições completamente contraditórias.
Por exemplo: muitas vezes ouvimos o argumento de que o capitalismo existe há 5.000 anos e que, portanto, é tolice queixar-se da existência do McDonald´s ou Starbucks ou outras óbvias emanações do capitalismo. Se você definir o capitalismo como, digamos, “pessoas ricas usando seu dinheiro para ganhar mais dinheiro”, então certamente pode afirmar que ele existe há muito tempo. Mas nesse caso você também teria de admitir que o capitalismo conseguiu existir por pelo menos 4.950 anos sem criar algo remotamente parecido com uma franquia de lanchonetes.
Usar esse argumento para considerar esse fato como inevitável parece muito estranho. Mesmo fazer uma versão mais sofisticada desse argumento – digamos, definir o capitalismo como um sistema mundial em que a economia global é dominada por financistas e industriais privados movidos pela necessidade de continuamente expandir suas operações e conquistar lucros sempre maiores – e dizer que portanto o capitalismo existe desde 1492, ou talvez 1750, também, significaria que uma economia mundial capitalista ainda pode encontrar espaço para fenômenos como o Império Otomano, a União Soviética ou as elaboradas redes de trocas de porcos na Papua Nova Guiné. Em outras palavras, quase qualquer coisa. Ainda há espaço para experiência sociais.
Alternativamente, se definirmos o capitalismo como uma vasta máquina movida por enormes corporações e consumo de massa determinado a abraçar todo o globo, então estaremos lidando com uma criatura que existe em uma parcela minúscula, quase infinitesimal, da história mundial. Honestamente: qual a probabilidade de que um sistema que existe há apenas algumas décadas dure pelo resto da história humana? Realmente acreditamos que, se a China, por exemplo, torna-se a hegemonia global no final do século, o mundo será conduzido exatamente da mesma maneira? Qual probabilidade de que daqui a 50 ou cem anos o mundo seja dirigido por corporações maciças empregando trabalhadores assalariados, vendendo seus produtos por meio de redes de consumo e envolvida numa expansão interminável em busca de lucros?
Colocadas nesses termos, a pergunta torna-se óbvia. A questão não é se o capitalismo em sua forma atual será substituído. A questão é pelo quê: uma forma diferente de capitalismo? Um conjunto heterogêneo de sistemas econômicos? E, é claro, alguma coisa que substitua o capitalismo será melhor ou ainda mais catastrófica para a maioria da população mundial? Ao insistir que o capitalismo em sua forma atual é o fim da história, estamos efetivamente nos excluindo do que provavelmente será uma das mais importantes conversas na história humana.

O que é a democracia?
“Todo mundo ama a democracia. Todo mundo odeia o governo. Anarquismo: isso é exatamente democracia sem governo” – “The Crimethinc Collective”.
Neste ponto posso voltar à minha tese principal.
O motivo pelo qual considero este momento particularmente esperançoso é que os revolucionários e até os reformistas sociais começaram a perceber que não é possível realizar seus objetivos tomando o controle do Estado. Grande parte da frustração dos últimos anos veio da percepção de que, se desafiarmos o capitalismo tentando dominar o governo, provavelmente terminaremos (como colocou recentemente meu amigo Andrej Grubacic) como (Jean-Bertrand) Aristide (presidente deposto do Haiti), como (Fidel) Castro ou como Lula – derrubado, presidindo apesar de si mesmo algum tipo de horrível Estado policial, ou sendo obrigado a abandonar quase todos os princípios que o inspiraram a tentar se eleger.
É por isso que o movimento por justiça global foi iniciado principalmente por grupos que rejeitavam explicitamente a idéia de tomar o governo, e em vez disso se apoiavam em idéias desenvolvidas na tradição anarquista – auto-organização, associação voluntária, ajuda mútua -, mesmo que apenas raramente usassem a palavra “anarquia” (a preferência era geralmente por: horizontalidade, autonomia, associativismo, autogestão, zapatismo... Mas, como diria a maioria dos anarquista, os rótulos não importam). Nos últimos anos, muitos sentiram-se encorajados por seu próprio sucesso a buscar o poder, ou pelo menos a começar a trabalhar com os que o buscam. Os resultados foram ambivalentes, para dizer o mínimo.
Há bons motivos para isso. Se há um grande tema no movimento por justiça global, é a reinvenção da democracia. Os Estados, porém, nunca podem ser genuinamente democráticos, e as pessoas estão começando a percebê-lo.
Para compreender o que quero dizer seria útil voltar aos revolucionários do século 18 que criaram os primeiros modelos do que hoje chamamos de constituições “democráticas”. Todos eles eram abertamente hostis à democracia, que entendiam como algo nas linhas das antiga Atenas, em que a comunidade como um todo toma suas decisões por meio de debates em assembléias públicas. Eles tendiam a ver Atenas como um exemplo de regime de turba. Os federalistas norte-americanos também foram explícitos ao insistir que com a verdadeira democracia seria impossível sustentar o aparato de força necessário para manter as grandes desigualdades de propriedade. Eles aditaram como modelo a “constituição mista” da República Romana, que combinava elementos de monarquia (um presidente), aristocracia (o senado) e alguns elementos democráticos limitados.
O que tornou tudo isso possível, é claro, foi a idéia relativamente nova de representação política. Originalmente, os representantes populares eram na verdade embaixadores, que “representavam” os interesses do povo diante do soberano. Sob as novas constituições republicanas, os poderes soberanos passaram aos próprios deputados, que governavam em nome do povo.
Foi somente quando a franquia se estendeu mais amplamente, nas décadas de 1830 e 40, candidatos populistas na França e nos Estados Unidos começaram a ganhar eleições chamando-se de “democratas” e seus adversários foram obrigados a imitá-los, que as repúblicas foram rebatizadas de “democracia”. O fato de as elites políticas terem sido obrigadas a mudar a terminologia é testemunho do poder persistente da idéia democrática: que pessoas livres deveriam governar seus próprios assuntos. Mas foi exatamente isso: uma mudança de terminologia, e não de forma. Como os conservadores norte-americanos às vezes ainda apontam: os EUA não são uma democracia, são uma república.
Mesmo as maiores conquistas da forma de governo republicana se baseiam na supressão do autogoverno popular: os princípios de liberdade de expressão é liberdade de reunião, por exemplo, só se tornaram direitos sagrados e inalienáveis no exato momento em que se estabeleceu que a expressão e a reunião públicas não seriam meios reais para se tomar decisões políticas, mas no máximo de protestar contra decisões tomadas pelos governantes.
De fato, a própria idéia de um “Estado democrático” sempre foi uma espécie de contradição em termos. “Democracia” refere-se a um sistema em que “o povo”, seja como for definido, governa seus próprios assuntos. Um Estado é um aparato de coerção sistemática destinado a obrigar as pessoas a obedecerem ordens sob a ameaça de violência. Elementos de ambos podem no máximo existir em uma proximidade desconfortável, mas nunca mistura-se. Mesmo nos Estados mais democráticos, por exemplo, os mecanismos pelos quais a violência é de fato exercida – polícia, tribunais, prisões – operam sobre princípios completamente autoritários.
Se alguém chegar a sugerir que algum aspecto desse sistema seja democratizado – digamos, permitindo que os júris operem fora das ordens de juízes -, provavelmente receberiam a mesma reação horrorizada que alguém que procurasse uma constituição democrática na época de Carlos Magno ou da rainha Elizabeth. “Mas isso significaria o governo da turba”.
Como Michael Mann observou recentemente, os Estados sempre parecem ter a necessidade de citar “o povo” em tribunais e locais de execução, ou seja, no momento em que infligem julgamento ou punição, para justificar seus atos. Mas o povo não pode realmente ser envolvido. Ainda mais porque nas repúblicas liberais nunca está muito claro quem é realmente “o povo”. Mann sugere que são exatamente os esforços pragmáticos para elucidar essa contradição, usar o aparato da violência para identificar e constituir um “povo”, que aqueles sue sustentam esse aparato consideram dignos de ser a fonte de sua autoridade, que no pior dos casos foi responsável por pelo menos 60 milhões de assassinatos somente no século 21.

A sociedade contra o voto
Então a nova idéia é voltar a algo semelhante à democracia ateniense? Provavelmente não. Ou não exatamente. Se examinarmos as comunidades ao redor do mundo que administram seus próprios assuntos em uma base relativamente igualitária – seja porque não há Estado ou porque o Estado realmente não se importa com a administração local –, descobrimos que essas comunidades que nunca usam o voto majoritário no estilo da Grécia Antiga.
Quase invariavelmente elas têm algum tipo de processo de consenso – todos os envolvido na tomada de uma decisão, mesmo que não gostem muito dela, têm de pelo menos oferecer seu consentimento passivo. Isso realmente faz muito sentido se não podemos - ou–não desejamos – obrigar fisicamente alguém a acatar a decisão do grupo. Porque é muito mais fácil, em uma comunidade realmente igualitária, descobrir o que a maioria das pessoas quer do que descobrir como convencera minoria a aceitar a decisão. A última coisa que se deseja é realizar um concurso público em que a minoria será vista publicamente como perdedora. Isso quase certamente garantirá ressentimento e resistência.
O próprio voto majoritário parece ter nascido de uma circunstância incomum: um sistema em que havia ao mesmo tempo um ideal de que “o povo” deveria tomar suas próprias decisões e também um aparato de coerção capaz de impor essas decisões a qualquer um que concordasse. A própria Atenas foi uma espécie de anomalia histórica nesse sentido, uma polis situada em algum lugar entre uma comunidade tradicional autogovernante e um Estado real, (Vemos vestígios dessas polis democrática espalhados pelo mundo, na Índia, na China e também no Oriente Médio, sempre nos primórdios do registro histórico. Quase sempre elas foram desprezadas pelos filósofos e poetas que são responsáveis por preservar esse “registro histórico”; quase sempre elas desapareceram em algumas centenas de anos e foram substituídas por impérios, que duraram milênios. Esse é incidentalmente um dos motivos pelos quais os argumentos de que a democracia é de certa forma um produto da tradição “ocidental” são tão ridículos.)
Na Grécia Antiga, a democracia era basicamente uma instituição militar: como notou Aristóteles, as democracias ocorriam nas cidades onde todos os homens adultos livres estavam supostamente armados. Podemos ver claramente como a lógica funcionava na “Anábasis” de Xenofonte, que conta a história de um exército de mercenários gregos que repente se vê sem líder e perdido no meio da Pérsia. Eles elegem novos oficiais e então realizam uma votação coletiva para decidir o que farão. Em um caso como esse, mesmo que a votação fosse 60/40, todos podiam ver o equilíbrio de forças e o que aconteceria se as coisas realmente chegassem a um conflito. Cada voto era, num sentido real, uma conquista. Em outras palavras, essas foram formas mínimas, muito cruas, de Estado, onde potencialmente não havia distinção entre o aparato de tomada de decisões e o aparato de coerção. O próprio eleitorado podia impor sua vontade.
Considerando tudo isso, é notável que o sistema raramente tenha degenerado em guerra civil, mas não é de surpreender que os revolucionários norte-americanos e franceses suspeitassem dele. O sistema representativos que eles inventaram era realmente apenas uma maneira de adotar uma lógica parecida ao Estado burocrático moderno, em que o aparato coercitivo foi entregue a especialistas.
O que temos hoje, então, é um mundo dividido entre uma interminável sucessão de repúblicas. Algumas são mais “democráticas” que outras, é claro: pelo menos no sentido de que têm muito menor probabilidade de matar dissidentes e maior probabilidade de permitir que os cidadãos ocasionalmente escolham entre grupos diferentes de potenciais governantes. (Quando poderes imperiais como os Estados Unidos afirmam estar “disseminando a democracia”, por outro lado, tudo o que Realmente querem dizer é que desejam ver mais repúblicas com maior respeito pelo Estado de direito, pelo menos na medida em que o direito seja amistosa com os investidores estrangeiros.)
Assim como o capitalismo, as repúblicas desse tipo só existem há um período muito curto do tempo histórico. Elas não existiram para sempre. Certamente não existiram por tanto tempo quanto as comunidades de pequena escala que realmente se governam por consenso igualitário: estas existem desde o início da história e escondidas em partes obscuras do globo.
O trabalho de criar alternativas genuinamente democráticas apropriadas às condições modernas está apenas começando: embora estejam ocorrendo esforços enormes seja nos “caracoles” de Chiapas, nas “asambleas” e fábricas ocupadas na Argentina, cos conselhos de cidadãos norte-americanos, ocupações e centros sociais da Itália, guetos da África do Sul, ninhos de hackers de computador em toda parte e outras brechas e fissuras na estrutura de poder mundial que provavelmente ainda nem conhecemos. Parece-me que a grande pergunta do dia é se um número significativo de liberais, que afinal acreditam nos princípios de liberdade e igualdade, eventualmente começarão a unir-se a eles ou se continuarão buscando novas garantias de que nada que eles façam realmente possa contribuir para um mundo fundamentalmente melhor.

Anarquista, Graeber foi desligado de Yale.
Professor do departamento de antropologia da Universidade Yale (EUA) até maio deste ano, David Graeber, teórico do anarquismo, é o centro de uma da principais celeumas da vida acadêmica norte-americana atualmente. A renovação de seu contrato foi negada no início de 2005, após dois dos quatro anos do padrão para professor associado na instituição, apesar de o antropólogo ter realizado todas as suas obrigações no período.
A decisão, não explicada pelo conselho do departamento, que votou secretamente pelo seu desligamento, acarretou manifestações dentro da própria universidade mas também em outros centros de excelência de ensino de antropologia, como o da Universidade de Chicago, que é um dos mais importantes na área, e o da London School of Economics (LSE).
Intelectuais de peso, como Marshall Sahlins – o principal especialista em antropologia econômica vivo – e Maurice Bloch – professor da LSE, que se manifestou afirmando que Graeber é “o melhor teórico da antropologia de sua geração no mundo” – se juntaram a outros quase 4.000 assinantes de uma petição on-line que apoia o pedido de Graeber para que seu caso seja reavaliado. O abaixo-assinado virtual pode ser encontrado no site www.petitiononline.com/graeber.
Em seu apelo, Graeber protesta contra o fato de não ter havido nenhuma justificativa para a decisão, o que normalmente é obrigatório pela política da instituição, Questionada, a direção de Yale disse que as razões para a negação para renovar o contrato não poderiam ser revelada.
Conhecido por teses anarquistas, Graeber tem reputação internacional como professor e pesquisador. É autor dos livro “Fragments of an Anarchist Anthropology” (Fragmentos de uma Antropologia Anarquista”, Prickly Paradigm Press) e “Toward an Anthropological Theory of Valeu – The False Coin of Our Own Dreams” (Para uma teoria Antropológica do Valor – A Moeda Falsa de Nossos Próprios Sonhos, Palgrave Macmillan), além de ter publicado artigos em mais de 12 idiomas.

Tradução:
Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Retirado do caderno Mais! da Folha de São Paulo 14 de agosto de 2005

quarta-feira, 18 de março de 2009

A próxima vítima de Israel - por Latuff

Mirar Battisti, acertar a multidão – por Giuseppe Cocco

Mirar Battisti, acertar a multidão – por Giuseppe Cocco

No dia 1º de março de 2009 faleceu em Paris, Giancarlo Santilli. Tinha 57 anos e morreu de câncer. A história de Giancarlo é exemplar para abrir mais uma pequena janela na incrível cobertura que a grande mídia brasileira está fazendo no caso de Cesare Battisti, dedicada a “sentenciá-lo” como se fosse "terrorista" – ou tentando talvez impor ao STF o ponto de vista do governo italiano. Em matéria publicada em 1º de março de 2009, O Estado de São Paulo – para citar apenas um órgão de imprensa – afirma o contrário de todas as evidências: "STF vai extraditar Battisti, se seguir rito" [1], lê-se logo no título. Não se sabe que critérios dariam tanta segurança aos jornalistas João Bosco Rabello e Felipe Recondo para afirmar tal coisa, pois o STF recusou a extradição de todos os italianos refugiados no Brasil, a partir de acusações relacionadas a eventos dos movimentos da década de 1970 [2]. O que a mídia deveria constatar, se fosse isenta, é que uma decisão diferente do STF seria uma ruptura com sua própria jurisprudência: uma ruptura que não teria explicações jurídicas, mas sim políticas. Mas lembremos das manchetes produzidas logo depois da concessão, pelo ministro Tarso Genro, de refúgio a Battisti. Falavam em "dois pesos e duas medidas" entre a decisão relativa ao “terrorista” (Battisti) e a “deportação” (inventada) dos atletas de Cuba! Está fartamente demonstrado, hoje que os atletas voltaram a Cuba porque quiseram fazê-lo. Exatamente o que se sabia, à época. Exatamente o contrário do que os jornais publicavam. O vexame e a falta de profissionalismo, aparentemente, não são suficiente para que se peça desculpas. A hipocrisia da mídia conservadora combina-se à histeria da cruzada de um colunista e do editor de um semanário que se pretende alternativa à mídia de mercado. Já vimos em outros momento que o conhecimento deles da história política da Itália contemporânea é simplório e redutor. Mas há uma “outra” linha de argumentação capital nessa Carta. Sempre com o objetivo de defender “pela esquerda” a extradição de Battisti, Mino Carta e Walter Maierovitch recorrem sistematicamente a entrevistas ou citações dos que eles chamam de “magistrados vermelhos” italianos. A mobilização das entrevistas desses magistrados rossi se faz, em primeiro lugar, com o objetivo de confundir as tradicionais clivagens políticas e, em segundo lugar, os campos de atuação. Mistura-se luta contra o terrorismo e repressão dos crimes de colarinho branco, pelo simples fato de os ditos magistrados “vermelhos” atuarem na repressão da corrupção e/ou da máfia e outras formas do crime organizado italiano. Superficialmente, esta confusão parece proposital e instrumental. Mas, se olharmos com mais cuidado, podemos ver que Carta e Maierovitch incorrem, de fato, num embaralhamento político e teórico.

Nesta justiça de justiceiros, os derrotados não teriam jamais qualquer direito; mas, pela ousadia de ter enfrentado o poder, a punição eterna e eternamente “atualizada”. Esse é o substrato dos argumentos de Maierovitch e Carta

Em primeiro lugar, i magistrati rossi, os “magistrados vermelhos” dos quais tanto se orgulham Mino e Walter não são problema para quem defenda o refúgio para Battisti e a anistia para os anos 1970. O problema está no fato que o cromatismo político aqui invocado é absurdo. Por que esses magistrados italianos haveriam de ser "vermelhos", se o partido de referência (o Partito Democrático, PD) não o é mais, há muito tempo? Porque, nos dizem, assim os chamam os berlusconianos. Mas então, por que os supostos "vermelhos" estão do mesmo lado de Berlusconi na perseguição dos ex-militantes dos 1970 ? A tinta pega somente de um lado? Será, para comparar com o Brasil, que o PPS de Roberto Freire [3], fiel aliado do PSDB, seria "vermelho"? O que Mino e Walter não querem entender – ou não podem – é que a esquerda italiana sumiu do mapa; o PD é como se fosse um grande PPS. Aqueles magistrados “vermelhos” são problema – que deveria fazer avermelhar as caras – para Mino e Walter, tanto quanto são problema também os ex-comunistas que votam com os fascistas, com os "leguistas" xenófobos, e com o partido de Berlusconi (que mudou as leis para escapar à cadeia), contra os militantes da década de 1970. Por trás dos fogos de artifício e frases rápidas, e de referências a combates contra a máfia e o colarinho branco, é Walter que deve explicar (e explicar-se) essa sagrada união, com todas a promiscuidades que ela implica com os crimes do colarinho branco. A tese em que Carta Capital funda-se é simplória e historicamente insustentável: a Itália seria democrática, naqueles anos; a resistência teria sido terrorismo. Por esse tipo de justiça de justiceiros, os derrotados não teriam jamais qualquer direito, além de punição eterna e eternamente “atualizada”, pela ousadia de ter enfrentado o poder. Esse é o substrato dos argumentos de Maierovitch e Carta. Em segundo lugar, as posições de Mino e Maierovitch derivam de um outro viés, particularmente problemático e com relação ao qual o caso Battisti e um revelador eficaz.
Da mesma maneira que o fizeram os magistrados ligados ao que era a esquerda italiana, Carta e Maierovitch aplicam uma visão política fundamentalmente conservadora. Segundo eles, a Itália era e é uma democracia. Essa democracia foi perturbada pela violência do terrorismo (na década de 1970). Sua repressão permitiu a manutenção da democracia. Essa repressão não pode prever nenhum reconhecimento da revolta, nem abrir mão da perseguição (se cometidos no Brasil, os supostos crimes de Battisti já estariam prescritos). Mino e Walter enxergam a Lei como um mecanismo acima do conflito social, algo que seria primeiro, anterior à legitimidade e à sua produção. Para eles, a “lei” tem princípios próprios: divinos. Eles acreditam mesmo que a magistratura e a “judicialização” dos direitos e da sociedade civil sejam um avanço democrático. Pensam que um dos problemas do Brasil – e, mais em geral, das democracias – seja mesmo a impunidade, a falta de um rigoroso respeito à Lei. Para eles, o vigor da Lei (a força da Lei) seria o fato do rigor da Lei.

Há três séculos, Jefferson frisou: “O espírito de resistência ao poder é tão valioso em determinadas ocasiões que eu desejo que ele seja sempre mantido vivo. Ele será muitas vezes exercido mesmo quando é um erro, mas isso é melhor de que não ser exercido nunca”

Ou seja, a violência, a violação dos direitos seriam sempre a conseqüência do não respeito da ordem e da Lei. Mas isso é – inclusive desde o ponto de vista liberal – completamente falso: a força da Lei está na existência de contra-poderes. A dinâmica desses contra-poderes atravessa, e ao mesmo tempo é atravessada, pela realidade que eles enfrentam. A Lei sem legitimidade e sem contraditório não é nada de mais do que a Lei da força, a efetividade que constrói sua própria e exclusiva legitimidade, legitimidade da opressão. Esse tipo de postura ignora, por um lado, que a legitimidade da Lei está na democracia como espaço do contraditório, do conflito e, em última instância, no poder constituinte: a legitimidade capaz de construir sua própria legitimidade. O consenso que forma o alicerce da república deve necessariamente construir-se pelo reconhecimento do conflito. Algo que Thomas Jefferson explicitava nesses termos: “O espírito de resistência ao poder é tão valioso em determinadas ocasiões que eu desejo que ele seja sempre mantido vivo. Ele será muitas vezes exercido mesmo quando é um erro, mas isso é melhor de que não ser exercido nunca” [4]. Por outro lado, essa visão “judiciária” da transformação social é incapaz de ver que, no Brasil,lei da força sobrevive, desde sempre, dentro da força da lei. Quando o campo foi para as cidades e as transformou em metrópoles monstruosas, o crime do poder tornou-se o principal mecanismo de regulação biopolítica das populações. A violência endêmica, em todas as suas formas e, sobretudo, nas formas supostamente mais “organizadas”, constitui a face visível de um poder cujos tratos tecnocráticos nem conseguem mascarar o horrível rosto neoescravagista. A única paz que esse poder pode proporcionar é, na realidade, a paz do medo. É exatamente o que podemos observar de maneira nítida nesses dias: o presidente do STF, Gilmar Mendes, ergue-se como defensor das liberdades dos presos nas operações da Policia Federal contra banqueiros, empresários, comerciantes (quer dizer contra uma elite que até hoje era intocada). Ao mesmo tempo ameaça com o rigor da Lei as lutas do MST. A Lei é a mesma, mas, para os ricos (banqueiros), clamam-se as garantias constitucionais ao passo que, para os pobres sem-terra, pede-se o rigor punitivo da Constituição. É por isso que um movimento de democratização não deve nunca cair na armadilha de pensar que seus problemas serão resolvidos pela magistratura, pela polícia ou, mais em geral, pela ampliação dos poderes do Estado. É por isso que a elite está sempre pronta a organizar uma CPI (quando o governo não é completamente controlado por ela) ou uma frente parlamentar contra a corrupção. A corrupção do poder (dos ricos) é usada contra toda tentativa de constituição da potência (dos pobres). A denuncia retórica da impunidade da elite (dos ricos) serve para chamar para mais punição contra os pobres.

A indecência dos que pedem “rigor” aparece clamorosamente quando lembramos os editoriais redigidos quando da prisão de Daniel Dantas. Nesses, assumiam-se com veemência posições de defesa das garantias constitucionais — e, pois, da “tibieza”...

Num país como o Brasil, marcado pelo excesso de punição e por níveis iníquos de desigualdade, esses senhores cujo poderio tem origem na vergonha da escravidão e se consolidou na não menos vergonhosa ditadura militar denunciam – por exemplo em editorial de O Globo de 28 de fevereiro de 2008) as “várias distorções existentes na Constituição de 1988)” [5]. Assim, continua o mesmo editorial, “já passou da hora de agentes públicos deixarem de ser tíbios (...)” para enfim esclarecer:
“Este é o pano de fundo da correta iniciativa do presidente do STF, Gilmar Mendes, de alertar para a ilegalidade na atuação de organizações de sem-terra – MST à frente – e, em especifico, na transferência de recursos públicos para esses grupos, que vivem na semi-clandestinidade e atuam ao arrepio da lei, com a conivência dos agentes públicos”. O ódio racista e de classe contra os pobres, e o cinismo diante de um “social” que significa miséria e violência, não são os únicos elementos indignos desse tipo de jornalismo escancaradamente anti-democrático – o mesmo que os escravocratas mobilizavam contra os abolicionistas. A indecência e a ausência de qualquer ética aparecem clamorosamente quando comparamos esse editorial com o tom dos editoriais de há alguns poucos meses, quando da prisão do banqueiro Daniel Dantas. Nesses, assumiam-se com veemência posições de defesa das garantias (e, pois, da tibieza) constitucionais. Em julho de 2008, durante a operação Satiagraha, o mesmo Gilmar Mendes e a mesma imprensa defendiam a necessidade de a magistratura ser – para usar os termos de O Globo — “tíbia” com o banqueiro Daniel Dantas. Os editoriais de O Globo (todos no mesmo mês de julho) são ilustrativos e repetitivos: “A Polícia Federal não pode agir como policia política, acima das instituições” (dia 10); “Defesa do Direito” (é o título dia 12); “Estado Policial” (título do dia 15); “Cultura da tutela” (título do dia 16) e, enfim, no dia 17, denunciava-se “o atropelamento de direitos individuais garantidos pela Constituição (...)”. A Folha de São Paulo foi no mesmo tom. Inicialmente, tentou jogar acusações para cima do governo, tentando semear duvidas: “História das trevas: governo que se afirma paladino da República no caso Dantas é o mesmo que, em surdina, facilita e conduz fusão de teles” recita o editorial do 16 de julho de 2008. “Poder em descrédito” foi o título do editorial do 20 de julho de 2008. Já no dia 12 de setembro, o editorial da mesma Folha deixa de lado as ambigüidades e titula “Grampo controlado”. Em entrevista à Folha (em 29 de setembro de 2008), é o próprio Gilmar Mendes que faz a síntese: “no plano institucional, tenho a impressão de que há algum tempo o Brasil denuncia o descontrole dessas áreas (grampo telefônico)”. E, o que está fora de controle é “o aparato policial”. No caso Satiagraha, a defesa do estado de direito não atrapalha, diz Gilmar Mendes, “o combate à impunidade”. Umas três semana antes, o editorial de O Globo (7 de setembro de 2008) [6] antecipava-se, ao uníssono com Gilmar: “Vinte e três anos depois a redemocratização, este é um daqueles momentos em que a sociedade se depara com os limites estabelecidos pelo estado de direito com o objetivo de protegê-la”.

Gilmar Mendes cobra e limita a operação da polícia e dos magistrados, no caso Dantas; e cobra mais inquéritos e mais repressão de polícia e magistrados contra os sem-terra. Tudo no mesmo dia e na mesma ...Folha! A força da lei é na realidade a lei da força

Estamos, plenamente, no campo do indigno: o mesmo jornal (O Globo), como já citamos, que convoca “os agentes públicos (a) deixarem de ser tíbios” [7] com as lutas sociais e mais em geral contra os pobres (os informais, as favelas, as invasões) escreveu no editorial de 7 de setembro de 2008: “Alegar que se trata de uma tibieza da legislação brasileira é não conhecer os termos de alguns desses inquéritos (está se falando da operação Satiagraha) e a visível fragilidade de certas acusações”. No combate aos movimentos e aos pobres, a propaganda da oligarquia (e de uma oposição sem projeto) acusam “as várias distorções existentes na Constituição”. Ou seja: “em nome do ’social’ relaxa-se diante da favelização, da desordem urbana generalizada, de homicídios, de agressões a preceitos constitucionais (...).” [8] Quando se trata do colarinho braço, os Torquemada da luta contra os marajás e a corrupção tem a preocupação oposta: “É preciso combater a cultura salvacionista que considera a Constituição impeditiva da moralização do poder público”. Como isso se traduz? De maneira tão nítida quanto as afirmações da “literatura” que citamos acima. É só ler, mesmo que de forma distraída, os noticiários do 5 de março de 2009. “Mendes orienta tribunais a priorizar questão fundiária” e, na mesma página, “Juiz De Sanctis – aquele que emitiu dois mandados de prisão contra Daniel Dantas - é alvo de mais um processo administrativo” [9]. O presidente do STF, Gilmar Mendes cobra e limita a operação da polícia e dos magistrados, no caso Dantas; e cobra mais inquéritos e mais repressão de polícia e magistrados contra os sem-terra. Tudo no mesmo dia e na mesma ...Folha! A força da lei é na realidade a lei da força. Há também uma tradução meramente jornalística dessa postura ultra-conservadora de uma elite que ainda não acertou as contas com suas origens escravocratas (apesar de ter tido a ilusão que a tecnocracia “tucana” lhe forneceria algo como um laissez passer que limpasse as mãos secularmente sujas do sangue das senzalas...). O Globo está sempre à frente: em 5 de março de 2009, podemos ver a mais nova cobertura da violência urbana. “Barbárie na Niemeyer” é a manchete, ilustrada por duas fotos em primeira página (com mais duas páginas inteiras na abertura do “caderno Rio” [10]).
As fotos e os artigos falam do ferimento de um “empresário e sua namorada” por um grupo de “marginais”. No mesmo dia, a notícia do assassinato do líder de uma ocupação de terras conduzida por 200 famílias na Zona Oeste do Rio de Janeiro está relegada na página 16, na rubrica “notas”. São 19 linhas ao todo!

Na tristeza da morte de Giancarlo Santilli, temos a possibilidade de falar de um caso tão exemplar quanto o de Battisti, sem correr o risco de criar mais problemas para a vítima

A vergonha desse jornalismo é a mesma que Primo Levi tratava como a vergonha de ser um homem — ou seja de pactuar com a segregação, a desigualdade e a violência insuportável que o poder exerce para regular a população pobre. Essa vergonha se traduz no paradoxo dos que continuam presos do esquema político e mental do poder. Pensam que o combate à violência da desigualdade – ou seja, a uma violência provocada pela ausência de liberdade material e efetiva – passe pela redução da liberdade. Como dizia Spinoza, “sabemos que as guerras, o desrespeito ou a violação das leis não são atribuíveis à malvadez dos súditos, mas à má constituição do governo”. O problema não está em aumentar a autoridade do Estado, mas sim em potencializar a democracia. “Se em um Estado, escreveu Spinoza, reina mais do que num outro a malvadez, e perpetram-se mais crimes do que num outro, isso é devido com certeza ao fato que esse Estado não procurou o suficientemente a concórdia e não ordenou com sagacidade os direitos (...)”. Então, só a liberdade funda a paz e, com ela, o melhor governo. A liberdade da qual falamos é própria dinâmica da constituição: o direito à rebelião, que Jefferson escreveu na Constituição norte-americana. E na Itália: qual paz foi imposta com a repressão dos movimentos da década de 1970, e é atualizada pelo conluio da toda a classe política na perseguição, mais de trinta anos depois, de Battisti e Giancarlo Santilli? É a paz de Gomorra [11], de uma violência social proporcional à violência do poder — ou seja, à inexistência de uma norma consensual que evite a guerra. A destruição dos direitos civis abre-se no direito de guerra. Por isso, o pensamento de um Walter Maierovitch, de um Gilmar Mendes e da mídia oligárquica se entrecruzam na cruzada contra o refugio para Battisti e na criminalização dos sem-terra: para eles, a multidão que não tem medo dá medo! Na tristeza da morte de Giancarlo Santilli, temos a possibilidade de falar de um caso tão exemplar quanto o de Battisti, sem correr o risco de criar mais problemas para a vítima: Giancarlo foi operário da Fiat de Turim, militante da Autonomia Operária. Participou das grandes greves autônomas e das lutas contra a reestruturação, na segunda metade dos anos 1970. Giancarlo participou assim de um vasto e profundo momento de constituição da liberdade e, pois, da paz, na Itália dos 1970. Foi demitido dia 9 de outubro de , com outros 60 operários (delegados sindicais e militantes de base) da Fiat. Foi demissão política. A direção da empresa disse-o formalmente: os demitidos tiveram"que caracterizava prestações de trabalho que não atendiam os princípios da diligência, correção e boa fé e [foram demitidos] por ter tido comportamento não compatível com os princípios da convivência civil no lugares de trabalho". A demissão daqueles 61, pela Fiat, foi investida política direta contra as organizações autônomas dos operários; foi ataque à autonomia, quer dizer, ao processo constituinte. Na demissão, foram cúmplices os principais sindicatos e o Partido Comunista Italiano. Isso aconteceu poucos meses depois de duas tragédia. Primeiro, o seqüestro e o homicídio de Aldo Moro – uma prática de luta (armada) que se declarava antagonista mas reproduzia especularmente o modo de funcionamento do Estado. Um ano depois, a demissão em massa de 40 mil operários da mesma Fiat. Já estávamos então nos anos 1980, e a ofensiva neoliberal se generalizara. O Partido Comunista e os sindicatos só sobreviveriam, dali em diante, aparelhados para participar da co-gestão do sistema de proteção do desemprego mais injusto, mais corporativo e excludente, em todos os países desenvolvidos: a Cassa Integrazione Guadagni —uma instituição herdada do fascismo, e que só protege os trabalhadores das grandes empresas industriais. Em 1981, Giancarlo foi acusado de ser responsável moral por uma ação durante a qual um segurança da Fiat foi ferido mortalmente. Refugiou-se na França de Mitterand. Seu processo é exemplar do modo de funcionamento da justiça italiana: condenado em primeira instância a 22 anos de prisão por "concurso moral" naquele assassinato, foi depois absolvido em apelação. Mais tarde, foi novamente condenado pela Corte de Cassação (algo como o STF). Na França, onde Giancarlo viveu 29 anos de exílio, tornou-se sociólogo de muito prestígio – por suas análises da reestruturação da Fiat – e passou a trabalhar na RATP, a empresa pública do metrô de Paris. Foi diretor da linha 1, Château de Vincennes-La Défense.
Quantas vezes os patrões da grande mídia brasileira, os editorialistas, Gilmar Mendes, Carta e Maierovitch terão andado em metrô, em Paris, sem saber que sua segurança e conforto estavam entregues à competência e aos saberes diligentes do operário "terrorista" Giancarlo Santilli!

[1] Em http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20090301/not_imp331378,0.php
[2] O STF recusou quatro pedidos anteriores, reconhecendo cada vez com mais propriedade e lucidez a natureza política dos crimes imputados.
[3] Não por acaso, em artigo publicado na Folha de São Paulo (Tendências e Debates, 8 de Janeiro de 2009), Roberto Freire enfatiza o "esforço de reinvenção da esquerda italiana corporificado pelo Partito Democrático (PD), o herdeiro mais importante do velho PCI". Que capacidade de antecipação! Hoje, início de março de 2009, o PD vive caos total, rachado, à beira da implosão.
[4] “Carta a Abigail Adams”, apud Michael Hardt, “Thomas Jefferson, or the transition of democracy”, in “Michael Hardt presents Thomas Jefferson, The declaration of Independence, Verso, London-New York, 2007.
[5] O título é de um cinismo escancarado: “Tudo pelo ‘social’”.
[6] “País que se deseja”, deixamos de lado a questão de saber quem é o sujeito desse “se”.
[7] No citado editorial do 28 de fevereiro de 2009.
[8] Editorial O Globo, 28 de fevereiro de 2009.
[9] Folha de São Paulo, p. A8, 5 de março de 2009.
[10] P. 13-4. Nem vamos comentar o tratamento meio aprovador do espancamento dos suspeito pelos narcotraficantes da Rocinha na página 14.
[11] Estamos falando do filme-documentário sobre a violência na região de Napoli, do livro homonimo de Saviano.

terça-feira, 17 de março de 2009

Como sempre os Banqueiros recebem socorro, e socorro público. Latuff

"A Igreja Católica sempre legitimou a violência dos Estados"... Michel Onfray

"A Igreja Católica sempre legitimou a violência dos Estados"

A polêmica sobre a decisão do arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho, que excomunhou os médicos que realizaram o aborto no episódio da menina estuprada pelo pai ganhou repercussão internacional. Para o filósofo francês Michel Onfray, decisão é coerente com pensamento oficial da Igreja Católica de hoje. "A ideologia da Igreja é reacionária, conservadora e insuportável. A Igreja apresenta indignações seletivas. Durante e após a II Guerra Mundial, ela excomungou todos os comunistas e nunca excomungou um único nazista", critica Onfray.

Marta Fantini

Data: 16/03/2009
O filósofo francês Michel Onfray, iniciador da Universidade Popular de Caen , autor de 51 livros, traduzidos em mais de 20 línguas, e de uma coleção de 12 CDs, aposta na Filosofia como meio de vencer o lado irrracional do ser humano: "Apesar do sofrimento da existência humana, que sempre existiu e existirá, é preciso viver em pé, com dignidade e não ajoelhado. O filósofo tem a obrigação de construir um movimento universal de elevação da condição humana".

Por ocasião da sua passagem por Bordeaux, para o lançamento de seu último livro, "Contra-história da Filosofia: as radicalidades existenciais" , Michel Onfray nos concedeu uma entrevista sobre o lastimável episódio do aborto terapêutico, ocorrido em Recife.

Marta Fantini: O sofrimento de uma família, que deveria permanecer na esfera privada, acabou se tornando um evento midiático de repercursão internacional, devido a uma punição da Igreja Católica que parece sair das "entranhas da Idade Média": a excomunhão.

Michel Onfray: A decisão parece da Idade Média, mas ela está inscrita no corpus do pensamento oficial da Igreja de hoje. Não se pode ignorá-la: a Igreja diz claramente que o aborto é proibido, que é um pecado e o clero aplica o que a Igreja professa. Na minha opinião, não há incoêrencia entre a excomunhão, que é insignificante, e a ideologia da Igreja, que é reacionária, conservadora e insuportável.

A Igreja apresenta indignações seletivas. Durante e após a II Guerra Mundial, ela excomungou todos os comunistas e nunca excomungou um único nazista. Hitler nunca foi excomungado assim como os ideólogos do nazismo e os membros do partido. A Igreja somente demonstra o que ela foi e é, colocando-se sempre ao lado dos fortes, dos poderosos, da colaboração. Ela não resiste. Ela não se preocupa com os pobres. Ela não demonstrou misericórdia a este ser frágil que foi violentado pelo padrasto. Ela não apoiou esta menina. Ao contrário, ela ainda a afligiu, considerando-a até culpada e responsável.

Eu li na imprensa francesa que, para o bispo de Recife, o estrupo é menos grave que o aborto. Quando alguém lhe perguntou porque o padastro não foi excomungado, ele respondeu que "dar a morte é mais grave". Dar a morte a um feto é mais grave que o estupro e a pedofilia? O feto é um ser potencialmente vivo que está programado para se tornar uma pessoa, mas não é uma pessoa. Antes que se torne um ser humano, pode-se praticar o aborto, e sobretudo, nestas condições, parece-me um ato evidente.

MF : Como explicar esta insistência em preservar a vida se, por outro lado, a Igreja sempre legitimou a violência dos Estados?

MO: Ela pretende defender a vida, mas ela não a defende. Onde está a dignidade nesta aventura? O que se pode chamar de vida? Onde ela se encontra? Numa manifestação biológica? Neste caso a simples ejaculação, na hora da masturbação, é um genocídio! É preciso parar com isso. O espermatozóide é matéria viva. Neste caso, ela deveria excomungar todos os homens que se masturbam, pois os espermatozóides vão terminar no fundo de um vaso sanitário e não na destinação prevista que é a fecundação do óvulo! É um delírio total esta posição da Igreja que se diz defensora da vida e, ao mesmo tempo, justifica a pena de morte no "Catecismo da Igreja Católica".

Eu até ganhei uma caixa de champanhe numa aposta com alguém que não acreditava que isso fosse possível! No "Catecismo da Igreja Católica" está escrito, explicitamente, que, em alguns casos extremos, pode-se aplicar a pena de morte. Sinto muito, é uma questão de princípio: não se defende a pena de morte quando se é cristão. E ainda querem que acreditemos que defendem a vida quando se defende, ao mesmo tempo, a pena de morte?

A Igreja defendeu a vida ao dar a bênção às bombas atômicas que explodiram em Hirocsima e Nagasaki? Ela defendeu a vida ao dar a bênção às armas que serviram para assassinar os republicanos espanhóis durante a Guerra da Espanha?. A Igreja pretende defender a vida, mas o que ela defende é o poder em vigor. Na verdade, o que fascina a Igreja é a morte. É a morte que lhe interessa.

MF: O que a imprensa francesa não citou, nos inúmeros artigos sobre este trágico evento, é que a Igreja, no Brasil, enfrenta uma queda de braço com o Estado. A República democrática brasileira se moderniza: a pesquisa sobre as células troncos foi liberada, a legalização do aborto está em discussão, a população se beneficia da distribuição gratuita de preservativos e pílulas do dia seguinte. Como explicar que esta Igreja, que não consegue acompanhar a evolução dos costumes morais e o progresso da Ciência, está se tornando cada vez mais fundamentalista?

MO : A questão não é o que ela está se tornando, o problema é que ela sempre foi e é fundamentalista. Acredito que, ultimamente, a Igreja está tentando colocar as coisas no seu eixo original. Com o recente retorno do islamismo, no mercado intelectual, ideológico e espiritual, ela diz que nem tudo está perdido para as religiões. Ela constata que, finalmente, ainda existem pessoas que acreditam em Deus e que em nome de Alá são capazes de morrer por ele, de lutar por ele, de viver por ele, que se comportam, na existência de uma vida cotidiana, de acordo com os preceitos que teriam sido ditados por ele. Penso que a Igreja está numa lógica de reconquista e que é o momento ideal de avançar seus peões. O papa Bento XVI, começou a avançá-los, por exemplo, com a reabilitação dos bispos negacionistas. Quando percebeu que esta estratégia estava provocando muito debate na imprensa internacional, ele recuou.

Acredito que há uma espécie de desejo de reconquistar a fé em escala planetária. Eu li no Le Figaro, o único jornal disponível no hotel, uma página inteira consagrada ao Papa e à carta que ele enviou aos bispos. Ele cita que o desejo de São Pedro era fazer proselitismo. O cristianismo e o número 1 dos cristãos, Bento XVI, concluem: se o Islã faz proselitismo e obtem resultados positivos, porque a Igreja Católica também não o faria? É uma maneira de reconquistar o terreno perdido, em todos os países.

É o que aconteceu na Itália. Recentemente, houve uma eleição ultra politizada, uma espécie de referendum sobre a questão do aborto, do reembolso deste tipo de intervenção, de células troncos, etc. A Igreja pediu a abstenção. Uma boa tática que se revelaria na hora da contagem dos votos, uma prova que a abstenção seria a Igreja, com um número considerável de vozes. A era de João Paulo II, da mediatização do tipo «rock star» e das viagens planetárias, terminou. O eucumenismo, da época em que se dançava com os aborígines, na Austrália, como pretexto de comunhão com o sagrado, tudo isso acabou. O único objetivo da Igreja atual é o retorno à antiga boa fé católica apostólica romana. Neste período de niilismo generalizado, ela se impõe uma posição mais rígida. A suspensão da excomunhão dos bispos negacionistas, o que se passou na Itália e no Brasil, são, para mim, sinais convergentes.

MF : Com a crise, o fundamentalismo pode piorar no seio das três grandes religiões monoteístas? A micro resistência, à qual você sempre faz alusão, não seria uma esperança como foi a Teoria da Libertação ou os Movimentos Pastorais na América Latina?

MO: As microresistências são a única solução possível. Eu penso que há cristãos que não estão de acordo com esta opção de direita à extrema direita da Igreja. Na “Golias”, uma excelente revista, publicada por católicos franceses de esquerda, pode-se encontrar artigos extremamente inteligentes. No último número, por exemplo, publicaram análises interessantes sobre o caso do bispos negacionistas. Há sempre uma categoria de católicos de esquerda com a qual se pode contar. Há sempre alguém que não aceita o inaceitável, que não se submete. Há esta esperança e há também a esperança no avanço do combate ateu.

Nos Estados Unidos e na Inglaterra as obras sobre o ateísmo fazem muito sucesso. «O Tratado da Ateologia» foi best seller na Austrália, Espanha e Itália, quer dizer, se fizermos avançar o combate ateu, obteremos soluções. Evidentemente, sem repetir o erro do «ser ateu» do século XIX: anticlerical , mas fabricante de uma espécie de igreja atéia, de clero ateu. Seria o pior que poderia acontecer, ou seja, querer destruir, utilizando os mesmos métodos. É preciso avançar argumentos, debater questões como as dos tratamentos paliativos, da eutanásia… A França está com muito atraso em relação a estes assuntos. Porque a eutanásia não avança, mas sim os tratamentos paliativos? Porque o lobby cristão é potente para interferir nas decisões dos deputados e dos senadores e impedir que a lei sobre a eutanásia seja votada.

MF: Seus livros estão traduzidos em mais de vinte línguas e a venda de seus CDs atingiram 50 mil exemplares. Parece-me um número impressionante, em se tratando de conteúdo filosófico. Este sucesso seria a prova que a Filosofia preenche um vazio deixado pela religião que já não satisfaz a busca espiritual do ser humano do século XXI ?

MO: Minha proposta é sair da era religiosa e teológica para entrar na era filosófica. É preciso parar de projetar a vida em universos inexistentes para construir a sua existência. Devemos nos contentar com este mundo real, examinar o que podemos fazer de nossas existências nesta vida que é pós moderna, pós industrial, pós fascista, pós comunista e pós cristã, seguramente. O que podemos fazer num período de niilismo? Somente a Filosofia poderá trazer as respostas. Gostaria que os livros de catecismo fossem substituídos, nas escolas, por ateliers de Filosofia, gostaria que todos nós refletíssemos juntos para, pelo menos, provocar a vontade de adquirir conhecimento. Sobretudo para aqueles que ficaram às margens, pois um dia, alguém disse que a Filosofia não era para eles; que ela foi feita para a elite, para a aristocracia e quem não fizesse parte dela, não teria direito a ela.

O desejo da filosofia é o desejo da sabedoria, da necessidade de ética, de reflexão e de moral. Almejo uma Filosofia que esclareça, que simplifique sem se empobrecer. Quando me deparo, nos meus cursos da Universidade Popular de Caen, com anfiteatros lotados, com mais de mil pessoas, com transmissão em vídeo no saguão, para aqueles que não conseguiram entrar, eu constato que é possível, que a Filosofia poderá vencer o irracional.

Marta Fantini é produtora e apresentadora do programa “Le Brésil en Noir & Blanc”, na Rádio Campus Bordeaux, França.

fonte: Agência Carta Maior

segunda-feira, 16 de março de 2009

O Novo Gueto da Palestina - por Latuff

A grande mídia e o golpe de 64 - por Venício A. de Lima

A grande mídia e o golpe de 64

Ao se aproximar os 45 anos do 1º de abril de 1964 e diante de tentativas recentes de revisar a história da ditadura e reconstruir o seu significado através, inclusive, da criação de um vocabulário novo, é necessário relembrar o papel – para alguns, decisivo – que a grande mídia desempenhou na preparação e sustentação do golpe militar. A análise é de Venício A. de Lima.

Venício A. de Lima

Data: 13/03/2009
No debate contemporâneo sobre a relação entre história e memória, argumenta-se com propriedade que a história não só é construída pela ação de seres humanos em situações específicas como também por aqueles que escrevem sobre essas ações e dão significado a elas. Sabemos bem disso no Brasil.

Ao se aproximar os 45 anos do 1º de abril de 1964 e diante de tentativas recentes de revisar a história da ditadura e reconstruir o seu significado através, inclusive, da criação de um vocabulário novo, é necessário relembrar o papel – para alguns, decisivo – que a grande mídia desempenhou na preparação e sustentação do golpe militar.

Referência clássica
A participação ativa dos grandes grupos de mídia na derrubada do presidente João Goulart é fato histórico fartamente documentado. Creio que a referência clássica continua sendo a tese de doutorado de René A. Dreifuss (infelizmente, já falecido), defendida no Institute of Latin American Studies da University of Glasgow, na Escócia, em 1980 e publicada pela Editora Vozes sob o título “1964: A Conquista do Estado” (7ª. edição, 2008).

Através das centenas de páginas do livro de Dreifuss o leitor interessado poderá conhecer quem foram os conspiradores e reconstruir detalhadamente suas atividades, articuladas e coordenadas por duas instituições, fartamente financiadas por interesses empresariais nacionais e estrangeiros (“o bloco multinacional e associado”): o IBAD, Instituto Brasileiro de Ação Democrática e o IPES, Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais.

No que se refere especificamente ao papel dos grupos de mídia, sobressai a ação do GOP, Grupo de Opinião Pública ligado ao IPES e constituído por importantes jornalistas e publicitários. O capítulo VI sobre “a campanha ideológica”, traz ampla lista de livros, folhetos e panfletos publicados pelo IPES e uma relação de jornalistas e colunistas a serviço do golpe em diferentes jornais de todo o país. Além disso, Dreyfuss afirma (p. 233):

O IPES conseguiu estabelecer um sincronizado assalto à opinião pública. Através de seu relacionamento especial com os mais importantes jornais, rádios e televisões nacionais, como: os Diários Associados, a Folha de São Paulo, o Estado de São Paulo (...) e também a prestigiosa Rádio Eldorado de São Paulo. Entre os demais participantes da campanha incluíam-se (...) a TV Record e a TV Paulista (...), o Correio do Povo (RS), O Globo, das Organizações Globo (...) que também detinha o controle da influente Rádio Globo de alcance nacional. (...) Outros jornais do país se puseram a serviço do IPES. (...) A Tribuna da Imprensa (Rio), as Notícias Populares (SP).

Vale lembrar às gerações mais novas que o poder relativo dos Diários Associados no início dos anos 60 era certamente muito maior do que o das Organizações Globo neste início de século XXI. O principal biógrafo de Assis Chateaubriand afirma que ele foi “infinitamente mais forte do que Roberto Marinho” e “construiu o maior império de comunicação que este continente já viu”.

A visão do USIA
Há outro estudo, menos conhecido, que merece ser mencionado. Trata-se de pesquisa realizada por Jonathan Lane, Ph. D. em Comunicação por Stanford, ex-funcionário da USIA, United States Information Agency no Brasil, publicado originalmente no Journalism Quarterly, (hoje Journalism & Mass Communication Quarterly), em 1967, e depois no Boletim n. 11 do Departamento de Jornalismo da Bloch Editores, em 1968, (à época, editado por Muniz Sodré) sob o título “Função dos Meios de Comunicação de Massas na Crise Brasileira de 1964”.

Lane enfatiza a liberdade de imprensa existente no país e a pressão exercida pelo governo sobre os meios de comunicação utilizando os recursos a seu dispor (empréstimos, licenças para importação de equipamentos, publicidade, concessões de radiodifusão e “recursos de partidos comunistas”). A grande mídia, no entanto, resiste, até porque “o governo não é a única fonte de subsídio com que contam os jornais. Existem outras, interesses conservadores, econômicos e políticos que controlam bancos ou dispõem de outros capitais para influenciar os jornais” (p. 7).

O autor, curiosamente, não menciona o IBAD ou o IPES e conclui que as ações do governo João Goulart e da “esquerda” retratadas nos meios de comunicação provocaram um “desgaste da antiga ordem baseada na hierarquia e na disciplina” que se tornou “psicologicamente insuportável” para os chefes militares e para a elite política, levando, então, ao golpe.

O artigo de Lane, no entanto, traz um importante conjunto de informações para se identificar a atuação da grande mídia. Tomando como exemplo a cidade do Rio de Janeiro - “o centro de comunicações mais importante” – afirma:

“Apesar das armas à disposição do governo, Goulart passou um mau bocado com a maior parte da imprensa. A maioria dos proprietários e diretores dos jornais mais importantes são homens (e mulheres) de linhagem e posição social, que freqüentam os altos círculos sociais de uma sociedade razoavelmente estratificada. Suas idéias são classicamente liberais e não marxistas, e seus interesses conservadores e não revolucionários” (p. 7).

No que se refere aos jornais, Lane chama atenção para a existência dos “revolucionários”, de circulação reduzida, como Novos Rumos, Semanário e Classe Operária (comunistas) e Panfleto (Brizolista). O mais importante jornal de “propaganda esquerdista” era Última Hora, “porta-voz do nacionalismo-esquerdista desde o tempo de Vargas”. Já “no centro, algumas apoiando Jango, outras censurando-o, estavam os influentes Diário de Notícias e Correio da Manhã”. E continua:

“Enfileirados contra (Jango) razoavelmente e com razoável (sic) constância, encontravam-se O Jornal, principal órgão da grande rede de publicações dos Diários Associados; O Globo, jornal de maior circulação da cidade; e o Jornal do Brasil, jornal influente que se manteve neutro por algum tempo, porém opondo forte resistência a Goulart mais para o fim. A Tribuna da Imprensa, ligada ao principal inimigo político de Goulart, o governador Carlos Lacerda, da Guanabara (na verdade, a cidade do Rio de Janeiro), igualmente se opunha ferrenhamente a Goulart” (pp. 7-8).

Quanto ao rádio e à televisão, Lane explica:

“Cerca de metade das estações de televisão do país são de propriedade da cadeia dos Diários Associados, que também possui muitas emissoras radiofônicas e jornais em várias cidades. (...) Os meios de comunicação dos Diários Associados, inclusive rádio e tevê, empenharam-se numa campanha coordenada contra a agitação esquerdista, embora não contra Goulart pessoalmente, nos últimos meses que antecederam ao golpe” (p. 8).

Participação ativa
A pequena descrição aqui esboçada de dois estudos que partem de perspectivas teóricas e analíticas radicalmente distintas não deixa qualquer dúvida sobre o ativo envolvimento da grande mídia na conspiração golpista de 1964.

A relação posterior com o regime militar, sobretudo a partir da vigência da censura prévia iniciada com o AI-5, ao final de 1968, é outra história. Recomendo os estudos de Beatriz Kushnir, “Cães de Guarda – Jornalistas e censores do AI-5 à Constituição de 1988” (Boitempo, 2004) e de Bernardo Kucinski, “Jornalistas e Revolucionários nos tempos da imprensa alternativa” (EDUSP, 2ª. edição 2003).

As Organizações Globo merecem, certamente, um capítulo especial. Elio Gaspari refere-se ao “mais poderoso conglomerado de comunicações do país” como “aliado e defensor do regime” (Ditadura Escancarada, Cia. das Letras, 2004; p. 452).

Em defesa da democracia
Não são poucos os atores envolvidos no golpe de 1964 – ou seus herdeiros – que continuam vivos e ativos. A grande mídia brasileira, apesar de muitas e importantes mudanças, continua basicamente controlada pelos mesmos grupos familiares, políticos e empresariais.

O mundo mudou, o país mudou. Algumas instituições, no entanto, continuam presas ao seu passado. Não nos deve surpreender, portanto, que eventualmente transpareçam suas verdadeiras posições e compromissos, expressos em editoriais, notas ou, pior do que isso, disfarçados na cobertura jornalística cotidiana.

Tudo, é claro, sempre feito “em nome e em defesa da democracia”.

Por todas essas razões, lembrar e discutir o papel da grande mídia na preparação e sustentação do golpe de 1964 é um dever de todos nós.

Fonte: Agência Carta Maior