O CARNAVAL ESTÁ EM MARCHA
David Graeber
Ondas de desilusão sobre as possibilidade de mudança social não são novidade. O século passado às vezes parece uma contínua sucessão delas. Cada geração cresceu na crença ingênua de que a tecnologia, o progresso ou a dialética a catapultaria para um mundo melhor, somente para ver essa esperança desmoronar (nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, na Grande Depressão, no Holocausto, na bomba...). Não está totalmente claro se hoje estamos no meio de uma dessas ondas.
O colapso da fé nas mudanças revolucionárias após o desmoronamento dos regimes marxistas foi seguindo quase imediatamente de uma nova onda de movimentos sociais visionários, inspirados principalmente pelos zapatistas, que efetivamente contiveram o neoliberalismo global. As elites mundiais começaram a entrar em pânico e, como tendem a fazer as elites globais quando entram em pânico, tentam iniciar uma guerra: uma tarefa nesse caso muito facilitada pelo súbito ressurgimento, desafiando as velhas economias do Atlântico Norte, de uma economia-mundo muito mais antiga, baseada no oceano Índico, com seu candidato a avatar político, Osama bin Laden. O resultado é, mais que qualquer coisa, um momento de confusão.
O que estamos presenciando é definitivamente uma desilusão sobre as possibilidades de se mudar o mundo tomando o controle do Estado. Mas parece-me que esse é realmente um sinal positivo, e que de fato estamos vivendo um momento muito esperançoso. Porque a antiga estratégia de mudar o mundo apoderando-se do Estado – que em última análise não passa de um mecanismo de violência – sempre foi criticamente defeituosa. Existem motivos pelos quais um dia ela pode ter parecido realista. Mas nunca poderia funcionar realmente.
O fato de os revolucionários e os reformadores sociais a estarem abandonado amplamente abrirá, em última instância, um mundo de possibilidades. Ele nos Permite, por um lado, repensar completamente o que entendemos pelo termo “democracia”.
Para chegar a esse ponto, porém, precisamos imaginar uma maneira de nos livrarmos dos argumentos dos filósofos liberais, que tendem a aparecer nessas conjunturas com novas razões pelas quais é impossível uma verdadeira transformação radical. Isso não é tão difícil, na verdade. Os filósofos liberais são artistas do desespero. Muitas vezes parece que sua própria existência é uma tentativa de elucidar o que um marxista à moda antiga chamaria de contradição social: a existência de um grande grupo de classe média razoavelmente confortável que, coletivamente, adota princípios sociais – igualdade, liberdade, justiça social – que, se levados a suas conclusões lógicas, implicariam que a sociedade precisa mudar de maneiras muito fundamentais.
Sua tarefa, ao que parece, é apresentar constantemente novos motivos pelos quais esses princípios não poderiam ou não deveriam ser levados a suas conclusões lógicas. Pelo menos parece haver um mercado permanente para esse tipo de argumento. Na verdade, é tão forte a demanda que os próprios argumentos não precisam fazer muito sentido lógico. Ás vezes parece que quase qualquer coisa serve. Nas décadas de 1980 e 90, por exemplo, muitas pessoas consideradas inteligentes nas universidades começaram a adotar avidamente teorias que afirmam que o reformismo liberal – buscar uma melhora situação para as minorias e os grupos de identidade marginalizados, celebrar estilos de vida subversivos etc. – era na realidade a coisa mais radical que se poderia fazer, muito mais radical do que, por exemplo, algo que pudesse contestar o capitalismo ou o Estado (essa posição foi chamada de “pós-modernismo”). Hoje em dia isso finalmente está começando a parecer depois da insurreição global contra o neoliberalismo, por isso a nova tendência é argumentar exatamente o contrário.
Quando para os pós-modernos não havia mais grandes sistemas totalitários e tudo estava reduzido a fluxos e fragmentos (e todos deveríamos ignorar a interminável expansão do mercado mundial, o maior e mais totalitário sistema da história mundial, que naquela época tentava subjugar absolutamente tudo), agora o argumento tornou-se precisamente o oposto. O capitalismo é uma enorme sistema totalitário que subjuga tudo o que toca. Portanto, não adianta tentar combatê-lo.
Os argumentos de Heath
A última versão deste argumento foi apresentada recentemente pelos filósofos canadenses Joseph Heath e Andrew Potter. É a seguinte: o capitalismo é invencível porque qualquer meio que você empregue para contestá-lo – uma nova subcultura subversiva, alguma forma de rebelião jovem, um movimento social revolucionário, uma tentativa de desenvolver um sistema alternativo de troca – é em última instância apenas mais um estratagema de marketing. Os capitalistas vão simplesmente apanhá-los e vendê-lo de volta para você.
Na verdade, o capitalismo precisa de rebelião para se reproduzir. Por isso, eles afirmam, tudo isso simplesmente faz parte da própria lógica interna do capitalismo. Portanto, vamos apenas esquecer as tentativas de contestar o sistema. É melhor operar dentro dele, pedir a seus representantes políticos para limitar os piores abusos, empregar incentivos de mercado para encorajar as corporações a não poluir tanto a assim por diante, Você sequer conseguirá isso se minar seus esforços fazendo exigências radicais e, excesso.
O argumento é perfeitamente circular. Ele define princípios a partir de sua conclusão. Se o capitalismo nunca poderá ser derrotado, então, sim, todos os movimentos anticapitalistas estão em última instância destinados a serem reabsorvidos pela lógica do capitalismo. Se o capitalismo é um sistema total cuja lógica abrange tudo, então, é verdade, qualquer coisa que pareça se opor a ele é somente mais um aspecto do capitalismo. Mas apenas dizer isso não prova nada.
Na verdade, argumentos como esse invariavelmente começam a parecer ridículos no momento em que são colocados em algum tipo de perspectiva histórica maior. Deixe-me dar um exemplo revelador.
Os camponeses da Europa medieval costumavam realizar grandes festas carnavalescas em que zombavam de seus superiores feudais e encenavam fantasias elaboradas de uma terra sem reis ou senhores, onde eles podiam se fartar com a abundância de comida e bebida. Isso certamente parece muito subversivo. Os teóricos sociais, porém, há muito afirmam que na verdade não é. Realmente, tudo faz parte do sistema feudal – uma maneira de deixar os camponeses liberarem energia, brincar de rebelião, se desintoxicar, de modo a serem mais capazes de voltar a sua vida rotineira de labuta.
Muitas pessoas usavam esse argumento já na época (uma grande parte do motivo pelo qual os senhores aceitavam esse tipo de coisa). É basicamente o mesmo argumento de Heath e Potter: como o feudalismo é um sistema totalitário que sempre existirá, esses atos de rebeldia realmente são apenas uma parte de sua própria lógica interna. O problema é que o feudalismo não existe mais.
Revoltas camponesas
Na verdade, se reexaminarmos os registros, descobriremos que praticamente todas as grandes revoltas camponesas na história européia começaram durante o carnaval (o Primeiro de Maio era o equivalente inglês – e é por isso que hoje é o feriado internacional dos trabalhadores; as rebeliões populares na Inglaterra quase sempre irromperam no primeiro de maio). É verdade que as revoltas reais tenderam a ser reprimidas com grande brutalidade, mas tiveram um papel importante para produzir o mundo de hoje – no qual os descendentes daqueles camponeses europeus realmente vivem em um mundo sem reis ou senhores, em que eles podem se fartar com uma abundância aparentemente infinita de comida e bebida (mas, obviamente, chegar a isso acarretou certos problemas imprevistos). Então o capitalismo está destinado a seguir o caminho do feudalismo (ou como quisermos chamar hoje o sistema medieval)?
Parece inevitável.
Veja como aqueles que afirmam o contrário, que o capitalismo sempre existirá, quase nunca nos dizem exatamente o que eles pensam sobre o capitalismo. Geralmente há uma razão para isso. Geralmente eles só podem defender sua tese alterando constantemente entre definições completamente contraditórias.
Por exemplo: muitas vezes ouvimos o argumento de que o capitalismo existe há 5.000 anos e que, portanto, é tolice queixar-se da existência do McDonald´s ou Starbucks ou outras óbvias emanações do capitalismo. Se você definir o capitalismo como, digamos, “pessoas ricas usando seu dinheiro para ganhar mais dinheiro”, então certamente pode afirmar que ele existe há muito tempo. Mas nesse caso você também teria de admitir que o capitalismo conseguiu existir por pelo menos 4.950 anos sem criar algo remotamente parecido com uma franquia de lanchonetes.
Usar esse argumento para considerar esse fato como inevitável parece muito estranho. Mesmo fazer uma versão mais sofisticada desse argumento – digamos, definir o capitalismo como um sistema mundial em que a economia global é dominada por financistas e industriais privados movidos pela necessidade de continuamente expandir suas operações e conquistar lucros sempre maiores – e dizer que portanto o capitalismo existe desde 1492, ou talvez 1750, também, significaria que uma economia mundial capitalista ainda pode encontrar espaço para fenômenos como o Império Otomano, a União Soviética ou as elaboradas redes de trocas de porcos na Papua Nova Guiné. Em outras palavras, quase qualquer coisa. Ainda há espaço para experiência sociais.
Alternativamente, se definirmos o capitalismo como uma vasta máquina movida por enormes corporações e consumo de massa determinado a abraçar todo o globo, então estaremos lidando com uma criatura que existe em uma parcela minúscula, quase infinitesimal, da história mundial. Honestamente: qual a probabilidade de que um sistema que existe há apenas algumas décadas dure pelo resto da história humana? Realmente acreditamos que, se a China, por exemplo, torna-se a hegemonia global no final do século, o mundo será conduzido exatamente da mesma maneira? Qual probabilidade de que daqui a 50 ou cem anos o mundo seja dirigido por corporações maciças empregando trabalhadores assalariados, vendendo seus produtos por meio de redes de consumo e envolvida numa expansão interminável em busca de lucros?
Colocadas nesses termos, a pergunta torna-se óbvia. A questão não é se o capitalismo em sua forma atual será substituído. A questão é pelo quê: uma forma diferente de capitalismo? Um conjunto heterogêneo de sistemas econômicos? E, é claro, alguma coisa que substitua o capitalismo será melhor ou ainda mais catastrófica para a maioria da população mundial? Ao insistir que o capitalismo em sua forma atual é o fim da história, estamos efetivamente nos excluindo do que provavelmente será uma das mais importantes conversas na história humana.
O que é a democracia?
“Todo mundo ama a democracia. Todo mundo odeia o governo. Anarquismo: isso é exatamente democracia sem governo” – “The Crimethinc Collective”.
Neste ponto posso voltar à minha tese principal.
O motivo pelo qual considero este momento particularmente esperançoso é que os revolucionários e até os reformistas sociais começaram a perceber que não é possível realizar seus objetivos tomando o controle do Estado. Grande parte da frustração dos últimos anos veio da percepção de que, se desafiarmos o capitalismo tentando dominar o governo, provavelmente terminaremos (como colocou recentemente meu amigo Andrej Grubacic) como (Jean-Bertrand) Aristide (presidente deposto do Haiti), como (Fidel) Castro ou como Lula – derrubado, presidindo apesar de si mesmo algum tipo de horrível Estado policial, ou sendo obrigado a abandonar quase todos os princípios que o inspiraram a tentar se eleger.
É por isso que o movimento por justiça global foi iniciado principalmente por grupos que rejeitavam explicitamente a idéia de tomar o governo, e em vez disso se apoiavam em idéias desenvolvidas na tradição anarquista – auto-organização, associação voluntária, ajuda mútua -, mesmo que apenas raramente usassem a palavra “anarquia” (a preferência era geralmente por: horizontalidade, autonomia, associativismo, autogestão, zapatismo... Mas, como diria a maioria dos anarquista, os rótulos não importam). Nos últimos anos, muitos sentiram-se encorajados por seu próprio sucesso a buscar o poder, ou pelo menos a começar a trabalhar com os que o buscam. Os resultados foram ambivalentes, para dizer o mínimo.
Há bons motivos para isso. Se há um grande tema no movimento por justiça global, é a reinvenção da democracia. Os Estados, porém, nunca podem ser genuinamente democráticos, e as pessoas estão começando a percebê-lo.
Para compreender o que quero dizer seria útil voltar aos revolucionários do século 18 que criaram os primeiros modelos do que hoje chamamos de constituições “democráticas”. Todos eles eram abertamente hostis à democracia, que entendiam como algo nas linhas das antiga Atenas, em que a comunidade como um todo toma suas decisões por meio de debates em assembléias públicas. Eles tendiam a ver Atenas como um exemplo de regime de turba. Os federalistas norte-americanos também foram explícitos ao insistir que com a verdadeira democracia seria impossível sustentar o aparato de força necessário para manter as grandes desigualdades de propriedade. Eles aditaram como modelo a “constituição mista” da República Romana, que combinava elementos de monarquia (um presidente), aristocracia (o senado) e alguns elementos democráticos limitados.
O que tornou tudo isso possível, é claro, foi a idéia relativamente nova de representação política. Originalmente, os representantes populares eram na verdade embaixadores, que “representavam” os interesses do povo diante do soberano. Sob as novas constituições republicanas, os poderes soberanos passaram aos próprios deputados, que governavam em nome do povo.
Foi somente quando a franquia se estendeu mais amplamente, nas décadas de 1830 e 40, candidatos populistas na França e nos Estados Unidos começaram a ganhar eleições chamando-se de “democratas” e seus adversários foram obrigados a imitá-los, que as repúblicas foram rebatizadas de “democracia”. O fato de as elites políticas terem sido obrigadas a mudar a terminologia é testemunho do poder persistente da idéia democrática: que pessoas livres deveriam governar seus próprios assuntos. Mas foi exatamente isso: uma mudança de terminologia, e não de forma. Como os conservadores norte-americanos às vezes ainda apontam: os EUA não são uma democracia, são uma república.
Mesmo as maiores conquistas da forma de governo republicana se baseiam na supressão do autogoverno popular: os princípios de liberdade de expressão é liberdade de reunião, por exemplo, só se tornaram direitos sagrados e inalienáveis no exato momento em que se estabeleceu que a expressão e a reunião públicas não seriam meios reais para se tomar decisões políticas, mas no máximo de protestar contra decisões tomadas pelos governantes.
De fato, a própria idéia de um “Estado democrático” sempre foi uma espécie de contradição em termos. “Democracia” refere-se a um sistema em que “o povo”, seja como for definido, governa seus próprios assuntos. Um Estado é um aparato de coerção sistemática destinado a obrigar as pessoas a obedecerem ordens sob a ameaça de violência. Elementos de ambos podem no máximo existir em uma proximidade desconfortável, mas nunca mistura-se. Mesmo nos Estados mais democráticos, por exemplo, os mecanismos pelos quais a violência é de fato exercida – polícia, tribunais, prisões – operam sobre princípios completamente autoritários.
Se alguém chegar a sugerir que algum aspecto desse sistema seja democratizado – digamos, permitindo que os júris operem fora das ordens de juízes -, provavelmente receberiam a mesma reação horrorizada que alguém que procurasse uma constituição democrática na época de Carlos Magno ou da rainha Elizabeth. “Mas isso significaria o governo da turba”.
Como Michael Mann observou recentemente, os Estados sempre parecem ter a necessidade de citar “o povo” em tribunais e locais de execução, ou seja, no momento em que infligem julgamento ou punição, para justificar seus atos. Mas o povo não pode realmente ser envolvido. Ainda mais porque nas repúblicas liberais nunca está muito claro quem é realmente “o povo”. Mann sugere que são exatamente os esforços pragmáticos para elucidar essa contradição, usar o aparato da violência para identificar e constituir um “povo”, que aqueles sue sustentam esse aparato consideram dignos de ser a fonte de sua autoridade, que no pior dos casos foi responsável por pelo menos 60 milhões de assassinatos somente no século 21.
A sociedade contra o voto
Então a nova idéia é voltar a algo semelhante à democracia ateniense? Provavelmente não. Ou não exatamente. Se examinarmos as comunidades ao redor do mundo que administram seus próprios assuntos em uma base relativamente igualitária – seja porque não há Estado ou porque o Estado realmente não se importa com a administração local –, descobrimos que essas comunidades que nunca usam o voto majoritário no estilo da Grécia Antiga.
Quase invariavelmente elas têm algum tipo de processo de consenso – todos os envolvido na tomada de uma decisão, mesmo que não gostem muito dela, têm de pelo menos oferecer seu consentimento passivo. Isso realmente faz muito sentido se não podemos - ou–não desejamos – obrigar fisicamente alguém a acatar a decisão do grupo. Porque é muito mais fácil, em uma comunidade realmente igualitária, descobrir o que a maioria das pessoas quer do que descobrir como convencera minoria a aceitar a decisão. A última coisa que se deseja é realizar um concurso público em que a minoria será vista publicamente como perdedora. Isso quase certamente garantirá ressentimento e resistência.
O próprio voto majoritário parece ter nascido de uma circunstância incomum: um sistema em que havia ao mesmo tempo um ideal de que “o povo” deveria tomar suas próprias decisões e também um aparato de coerção capaz de impor essas decisões a qualquer um que concordasse. A própria Atenas foi uma espécie de anomalia histórica nesse sentido, uma polis situada em algum lugar entre uma comunidade tradicional autogovernante e um Estado real, (Vemos vestígios dessas polis democrática espalhados pelo mundo, na Índia, na China e também no Oriente Médio, sempre nos primórdios do registro histórico. Quase sempre elas foram desprezadas pelos filósofos e poetas que são responsáveis por preservar esse “registro histórico”; quase sempre elas desapareceram em algumas centenas de anos e foram substituídas por impérios, que duraram milênios. Esse é incidentalmente um dos motivos pelos quais os argumentos de que a democracia é de certa forma um produto da tradição “ocidental” são tão ridículos.)
Na Grécia Antiga, a democracia era basicamente uma instituição militar: como notou Aristóteles, as democracias ocorriam nas cidades onde todos os homens adultos livres estavam supostamente armados. Podemos ver claramente como a lógica funcionava na “Anábasis” de Xenofonte, que conta a história de um exército de mercenários gregos que repente se vê sem líder e perdido no meio da Pérsia. Eles elegem novos oficiais e então realizam uma votação coletiva para decidir o que farão. Em um caso como esse, mesmo que a votação fosse 60/40, todos podiam ver o equilíbrio de forças e o que aconteceria se as coisas realmente chegassem a um conflito. Cada voto era, num sentido real, uma conquista. Em outras palavras, essas foram formas mínimas, muito cruas, de Estado, onde potencialmente não havia distinção entre o aparato de tomada de decisões e o aparato de coerção. O próprio eleitorado podia impor sua vontade.
Considerando tudo isso, é notável que o sistema raramente tenha degenerado em guerra civil, mas não é de surpreender que os revolucionários norte-americanos e franceses suspeitassem dele. O sistema representativos que eles inventaram era realmente apenas uma maneira de adotar uma lógica parecida ao Estado burocrático moderno, em que o aparato coercitivo foi entregue a especialistas.
O que temos hoje, então, é um mundo dividido entre uma interminável sucessão de repúblicas. Algumas são mais “democráticas” que outras, é claro: pelo menos no sentido de que têm muito menor probabilidade de matar dissidentes e maior probabilidade de permitir que os cidadãos ocasionalmente escolham entre grupos diferentes de potenciais governantes. (Quando poderes imperiais como os Estados Unidos afirmam estar “disseminando a democracia”, por outro lado, tudo o que Realmente querem dizer é que desejam ver mais repúblicas com maior respeito pelo Estado de direito, pelo menos na medida em que o direito seja amistosa com os investidores estrangeiros.)
Assim como o capitalismo, as repúblicas desse tipo só existem há um período muito curto do tempo histórico. Elas não existiram para sempre. Certamente não existiram por tanto tempo quanto as comunidades de pequena escala que realmente se governam por consenso igualitário: estas existem desde o início da história e escondidas em partes obscuras do globo.
O trabalho de criar alternativas genuinamente democráticas apropriadas às condições modernas está apenas começando: embora estejam ocorrendo esforços enormes seja nos “caracoles” de Chiapas, nas “asambleas” e fábricas ocupadas na Argentina, cos conselhos de cidadãos norte-americanos, ocupações e centros sociais da Itália, guetos da África do Sul, ninhos de hackers de computador em toda parte e outras brechas e fissuras na estrutura de poder mundial que provavelmente ainda nem conhecemos. Parece-me que a grande pergunta do dia é se um número significativo de liberais, que afinal acreditam nos princípios de liberdade e igualdade, eventualmente começarão a unir-se a eles ou se continuarão buscando novas garantias de que nada que eles façam realmente possa contribuir para um mundo fundamentalmente melhor.
Anarquista, Graeber foi desligado de Yale.
Professor do departamento de antropologia da Universidade Yale (EUA) até maio deste ano, David Graeber, teórico do anarquismo, é o centro de uma da principais celeumas da vida acadêmica norte-americana atualmente. A renovação de seu contrato foi negada no início de 2005, após dois dos quatro anos do padrão para professor associado na instituição, apesar de o antropólogo ter realizado todas as suas obrigações no período.
A decisão, não explicada pelo conselho do departamento, que votou secretamente pelo seu desligamento, acarretou manifestações dentro da própria universidade mas também em outros centros de excelência de ensino de antropologia, como o da Universidade de Chicago, que é um dos mais importantes na área, e o da London School of Economics (LSE).
Intelectuais de peso, como Marshall Sahlins – o principal especialista em antropologia econômica vivo – e Maurice Bloch – professor da LSE, que se manifestou afirmando que Graeber é “o melhor teórico da antropologia de sua geração no mundo” – se juntaram a outros quase 4.000 assinantes de uma petição on-line que apoia o pedido de Graeber para que seu caso seja reavaliado. O abaixo-assinado virtual pode ser encontrado no site www.petitiononline.com/graeber.
Em seu apelo, Graeber protesta contra o fato de não ter havido nenhuma justificativa para a decisão, o que normalmente é obrigatório pela política da instituição, Questionada, a direção de Yale disse que as razões para a negação para renovar o contrato não poderiam ser revelada.
Conhecido por teses anarquistas, Graeber tem reputação internacional como professor e pesquisador. É autor dos livro “Fragments of an Anarchist Anthropology” (Fragmentos de uma Antropologia Anarquista”, Prickly Paradigm Press) e “Toward an Anthropological Theory of Valeu – The False Coin of Our Own Dreams” (Para uma teoria Antropológica do Valor – A Moeda Falsa de Nossos Próprios Sonhos, Palgrave Macmillan), além de ter publicado artigos em mais de 12 idiomas.
Tradução:
Luiz Roberto Mendes Gonçalves
Retirado do caderno Mais! da Folha de São Paulo 14 de agosto de 2005
quinta-feira, 19 de março de 2009
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