quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

O que podemos aprender com Hippies e Punks – por Rafael Azzi

O que podemos aprender com Hippies e Punks
Marcha ao Pentágono, 21/10/1967
Absorvidos aparentemente pelo mercado, eles retornaram pela atualidade de sua crítica radical ao consumismo e desejo de produzir com autonomia
Atualmente há um determinado tipo de ideologia que conquistou grande parte da sociedade. Essa ideologia vem gerando consequências como prejuízo à saúde dos indivíduos, aumento da desigualdade social e degradação do meio ambiente. Trata-se de uma ideia sedutora e perigosa que hoje está mais difundida no mundo do que qualquer religião ou outra forma de pensamento. Essa ideologia é o consumismo.
Nenhuma sociedade sobrevive sem algum tipo de relação entre produção e consumo. O consumismo não é o mero incentivo ao consumo; é o pensamento de que uma vida boa e feliz depende inteiramente da quantidade de bens materiais que se pode consumir. Ao nível dos países, é a ideia de que o bem estar de uma nação deve ser medido apenas pelos números de produção e consumo de bens. Nesse contexto, o principal papel do Estado seria estimular a população para que consuma cada vez mais. Para o consumismo, o sucesso de uma sociedade ou de um indivíduo é medido simplesmente pela quantidade de produtos consumidos.
Essas noções estão de tal forma naturalizadas no imaginário coletivo que causa estranhamento demonstrar que elas representam uma ideologia cuja origem pode ser investigada à luz da história recente da sociedade ocidental.
No campo das ideias, o primeiro estímulo para o desenvolvimento da economia de consumo foi dado pelo escocês Adam Smith. Em 1776, o economista publicou o texto A riqueza das nações, no qual defendia que o verdadeiro progresso econômico ocorre quando os indivíduos são livres para buscar os próprios interesses. Assim, quando todos agem de forma egoísta, a sociedade como um todo se beneficia. Cabe ao Estado interferir o menos possível nessa dinâmica e apenas deixar que as pessoas invistam livremente em seus interesses individuais. Surge então a teoria que sustenta, até hoje, a essência do capitalismo.
Logo, as inovações técnicas da Revolução Industrial permitiram que um grande número de pessoas tivesse acesso a bens materiais que estavam nas mãos da elite. O princípio de democratização do consumo foi levado adiante por Henry Ford que, ao criar sua companhia, em 1901, tinha como objetivo que todas as classes pudessem adquirir um carro, até então um artigo de luxo. Ford realizou seu desejo em 1908, com o lançamento do primeiro Modelo T, um automóvel resistente, barato, simples de dirigir e fácil de consertar.
O industrial pretendia que seu carro popular fosse feito para durar e se preocupava em não fazer melhorias que tornassem o modelo anterior obsoleto. Graças ao desenvolvimento da linha de montagem e da escala de produção, Ford conseguiu baratear cada vez mais o preço de seu Modelo T, que passou de US$950, em 1909, para US$290, em 1924.
Devido ao desenvolvimento da linha de montagem, produtos industrializados mais complexos como os carros e os eletrodomésticos deixaram de ser privilégio e se tornaram acessíveis para muitos. As famílias médias norte-americanas logo possuíam bens materiais em abundância, destinados às mais diversas ações. As empresas, movidas por questões econômicas, mudariam radicalmente a visão e o papel do consumo na sociedade.
Durante a década de 1920, percebendo que logo poderiam ter um excesso de produção, as empresas resolveram investir no aumento da demanda. A solução seria fazer com que as pessoas quisessem comprar coisas novas mesmo que as coisas antigas ainda estivessem funcionando. Acabava a era do consumo que servia para suprir as necessidades. A criação e o constante estímulo à aquisição de bens materiais se tornariam ações centrais no desenvolvimento da sociedade. A chave para a prosperidade econômica era a criação organizada da insatisfação, pois se todos estivessem satisfeitos ninguém teria interesse em comprar coisas novas. A insatisfação social seria organizada de duas maneiras: a obsolescência dos produtos e a propaganda.
A obsolescência dos produtos faz parte de uma estratégia de mercado que pretende manter o consumo constante fazendo com que os produtos parem de funcionar (obsolescência programada) ou tornem-se obsoletos em pouco tempo (obsolescência percebida), tendo que ser substituídos.
A obsolescência programada consiste em simplesmente reduzir a vida útil do produto, fazendo com que ele funcione cada vez menos tempo. Esse tipo de obsolescência teve início com as lâmpadas elétricas. Em 1924, as lâmpadas duravam cerca de 2.500 horas, enquanto que em 1940 o padrão já havia sido reduzido para 1.000 horas.
No que se refere à obsolescência percebida, trata-se da essência da política das empresas contemporâneas: lançamentos no mercado de novos modelos com mínimas atualizações, apenas com o objetivo de tornar obsoletos os produtos anteriores. Assim, os consumidores sentiriam a necessidade de se manter sempre atualizados com bens de última geração, descartando produtos antigos, ainda que estejam em funcionamento.
Hoje, tais estratégias comerciais, iniciadas na primeira metade do século 20, chegaram ao extremo, sobretudo em relação aos bens tecnológicos. Aparelhos de telefonia móvel são produzidos para serem trocados, em média, a cada ano. Um exemplo tradicional de obsolescência percebida é o Ipod: lançado em 2001, o aparelhinho já havia passado por seis “gerações” em 2009, levando-se em conta apenas o modelo “clássico”. Se incluirmos as variações do mesmo produto, como o Shuffle, o Nano, o Mini e o Touch, são impressionantes 24 modelos de um mesmo produto, tudo isso em apenas 11 anos. Além disso, a bateria do primeiro modelo de Ipod era produzida para durar apenas um ano; depois desse período, o consumidor seria obrigado a comprar um novo produto, pois o aparelho era produzido de uma forma que praticamente impossibilitava a reposição de bateria.
De forma ampla, essas práticas comerciais aumentaram de forma drástica a demanda por recursos naturais e aceleraram a produção de lixo. Cada vez mais computadores, celulares e eletrodomésticos, ainda em pleno funcionamento, são descartados. A obsolescência dos produtos aumentou a demanda; mas isso ainda não era suficiente para as empresas, pois o consumidor não possuía a autonomia de escolher quando se atualizar. A solução seria encontrar uma forma de aumentar a insatisfação e estimular os desejos de consumo. Surgem então as técnicas de controle e de manipulação das massas desenvolvidas a partir das teorias psicanalíticas de Freud sobre o ser humano.
Eleito pela revista Time um dos norte-americanos mais influentes do século 20, Edward Bernays foi o criador da propaganda moderna. Ele utilizou as ideias de seu tio, Sigmund Freud, para manipular as emoções e os desejos das massas. Bernays acreditava que ao conhecer as motivações das pessoas, seria possível influenciar seu comportamento sem que elas se dessem conta disso. Ao vincular bens materiais a desejos inconscientes, Bernays ensinou às indústrias como fazer as pessoas desejarem algo de que não precisam de fato. A propaganda não se limitaria mais a apresentar o produto e a informar sobre suas qualidades. Agora, a publicidade teria o objetivo de influenciar a audiência, produzindo respostas emocionais e não racionais aos produtos. Nesse momento, surge a noção de consumismo como é compreendida atualmente, tornando-se uma forma de explorar mentes, emoções e identidades das pessoas.Medos e inseguranças são manipulados de modo a serem traduzidos em desejos de produtos materiais, e a sociedade é então condicionada a desejar sempre além.
Para aumentar o desejo das pessoas, o consumismo instiga as inseguranças e as carências emocionais, gerando cada vez mais ansiedade e depressão nos indivíduos. Tal fato ocorre pois a propaganda na cultura consumista é baseada em uma falsa promessa de felicidade. Os bens materiais são vendidos como uma forma de suprir carências que não são do âmbito material. Estimula-se a busca da solução de problemas emocionais através da aquisição de produtos comerciais. A propaganda vende a ideia de que mais produtos nos farão mais amados, mais estimados, mais felizes e mais valorizados. A verdade é que, quanto mais tempo o indivíduo gasta focado na aquisição dos bens, menos tempo ele possui para cultivar vínculos afetivos com a família, os amigos e a comunidade.
A dinâmica “mais produtos = menos vínculos” não foi pensada ao acaso. Bernays acreditava que as massas eram irracionais e perigosas e que deveriam ser controladas. Para ele, a democracia sem o controle da população configurava um fator de risco para a estabilidade social. Nesse sentido, seu método de propaganda buscava manter as massas ocupadas em busca da felicidade através de bens materiais. Quanto mais o consumismo é estimulado, menos as pessoas se interessam pela participação ativa na política. Na cultura consumista, as pessoas são induzidas a acreditar que a felicidade não depende do Estado ou da sociedade, mas dos produtos criados pelas empresas. O cidadão que busca a realização pessoal através da participação política transforma-se no consumidor que passivamente aguarda as empresas realizarem seus desejos. A liberdade política torna-se então a liberdade de consumir. Dessa forma, a combinação de democracia e consumismo é a fórmula perfeita para manter o povo longe do poder e preservar o status quo.
Além da apatia política, a cultura consumista estimula o egoísmo, a inveja e promove a desagregação social. Em uma sociedade baseada no consumismo, não basta ter o suficiente para viver bem; o consumismo é comparativo. Assim, manipula-se o desejo a fim de possuir mais do que o outro: mais do que o vizinho, mais do que o colega de trabalho, mais do que as pessoas que aparecem nas mídias sociais e tradicionais. Isso gera uma infinita insatisfação e um ciclo de consumo cada vez em proporções maiores. As pessoas tornam-se isoladas, centradas nos próprios desejos; e, por sua vez, a sociedade é construída de forma mais fragmentada.
O consumo tem se consolidado como o objetivo central da vida pessoal, arregimentando as esferas do lazer, da cultura, da vida social e familiar. Os shoppings estabeleceram-se como novos templos de dedicados súditos, espaços nos quais as pessoas reúnem-se, consomem e passam seu tempo livre. Entretanto, deve-se observar que, ao contrário dos antigos templos e das praças públicas, nos shoppings a vida social se empobrece e é reduzida ao simples ato solitário de comprar.
Porém, o consumismo nem sempre triunfou sem oposição. Algumas vozes dissonantes surgiram no decorrer do século 20. Dentre elas, as mais expressivas estão ligadas à cultura hippie nos anos 60, e do movimento punk, nos anos 70.
A cultura hippie floresceu nos anos 1960 nos EUA, epicentro do consumismo. Os hippies rejeitavam as hierarquias e as instituições estabelecidas, contestavam os valores da classe média, opunham-se às armas nucleares e à guerra e eram comumente vegetarianos. Eles utilizavam-se de artes alternativas como o teatro de rua e o rock psicodélico para expressar suas ideias e valores. Opondo-se à política tradicional, cultivavam ideias não doutrinárias e libertárias em favor da paz, do amor e da vida em comunidade.
Desiludidos pela sociedade moderna extremante individualista, egoísta e competitiva, decidiram viver em comunidades próprias e independentes, adotando um estilo de vida coletivo que estimulava a cooperação e a comunhão com a natureza. Nessas comunidades, as decisões são consideradas coletivamente, não havendo hierarquias, e todos os participantes exercem alguma função. Adota-se como prática o cultivo dos próprios alimentos e o comércio ocorre entre os moradores através da troca ou da permuta.
Já a cultura punk surgiu nos anos 70 nos EUA e na Inglaterra. Ela se caracteriza por ser um movimento extremamente urbano que, de forma ampla, defende uma visão anarquista centrada na autonomia do indivíduo, opondo-se à mídia tradicional, ao Estado, às instituições religiosas e às grandes corporações capitalistas.
A primeira manifestação cultural do punk foi no âmbito musical. O punk rock surge como a retomada de um estilo autêntico, no qual o mais importante é a expressão individual, pois os membros estavam profundamente decepcionados com a cena do rock que, na época, se mostrava vinculada à grande indústria da música. O showbizz americano e inglês tinha como preocupação produzir estrelas e divulgá-las em grandes shows, criando artistas que, na visão dos punks, careciam de autenticidade. Assim, a cultura punk começou a produzir músicas curtas e bastante simples, tocadas com pouco mais do que três acordes, sendo facilmente reproduzidas por qualquer pessoa sem formação musical. Essa concepção musical tinha como objetivo instigar outros jovens a criar suas próprias bandas. Surgia então uma grande expressão do anticonsumismo: a cultura do “faça você mesmo” (do inglês do it yourself – DIY).
O princípio do “faça você mesmo” relaciona-se ao questionamento tanto da necessidade de comprar coisas quanto dos processos existentes que impulsionam a dependência do indivíduo às estruturas sociais vigentes. De acordo com a cultura punk, os indivíduos podem se expressar e produzir trabalhos sérios, ainda que com recursos limitados. As bandas punks gravavam suas próprias músicas, produziam e distribuíam os álbuns, e se apresentavam em garagens ou em porões, evitando o controle das grandes corporações e assegurando a liberdade de suas performances. Suas ideias circulavam através de fanzines, isto é, publicações caseiras realizadas, editadas e distribuídas por fãs.
Aparentemente, esses dois movimentos culturais perderam a força inicial após alguns anos, tendo sido, de certa forma, assimilados pela moda e pela sociedade consumista, ainda que isso soe paradoxal. Entretanto, pode-se afirmar que suas ideias demonstravam força suficiente para, cinquenta anos depois, ressurgirem como uma possibilidade alternativa à atual cultura de consumo.
Na verdade, longe de estarem esquecidos, muitos desses valores permanecem na nossa cultura em áreas inusitadas. É possível afirmar que a contracultura dos anos 60 promoveu o desenvolvimento do computador pessoal e a organização da internet. A concepção de uma grande rede mundial sem fronteiras, sem qualquer autoridade central, na qual indivíduos são livres para compartilhar informações, deve-se à influência hippie da cultura americana. Os valores hippies baseados nas ideias de comunhão e de colaboração mostram-se cada vez mais presentes no mundo virtual e tecnológico. Exemplo disso são os sites de construção coletiva estilo wiki; bem como os softwares livres e de código aberto, nos quais todos podem contribuir livremente e de forma espontânea para o desenvolvimento, o compartilhamento, a edição e a difusão de ideias e de conhecimento.
Na sociedade contemporânea, a internet permite o compartilhamento de ideias, tornando-se um instrumento capaz de estimular novas formas de consumo e de conexão entre as pessoas. A noção de consumo colaborativo vem crescendo em meio à troca de ideias, pondo em cena práticas alternativas que envolvem trocar, emprestar, reusar e revender objetos. Torna-se cada vez mais comum grupos que se organizam e se reúnem a fim de trocar roupas, brinquedos e livros; planejando caronas; compartilhando carros e aparelhos eletrônicos; praticando a permuta de serviços; fazendo uso do sistema de book crossing ou couchsurfing. As atividades são realizadas e negociadas diretamente entre as pessoas, estimulando os laços de comunidade e permitindo viver bem com menos dinheiro. Em tais práticas, o indivíduo é valorizado pelo modo como interage com a comunidade, marcando o surgimento de um novo tipo de capital: o capital social.
O movimento do “faça você mesmo” hoje é mais presente do que nunca. Através de vídeos e aulas pela internet, na rede é possível ter acesso a possibilidades infinitas de aprender a produzir e a divulgar suas próprias realizações, fugindo da cultura passiva consumista e buscando a realização pessoal de forma ativa. Hoje pode-se plantar vegetais em casa, fazer cerveja caseira, costurar as próprias roupas e até mesmo produzir objetos manufaturados. A produção pode ser individual ou coletiva, e os objetos podem ser feitos para o próprio consumo ou para a venda, pois o século 21 aumentou a produtividade da produção de pequena escala. Pode-se exercitar a criatividade, desenvolver novas habilidades e talentos e a criatividade em novas formas de produzir bens de consumo. A ética do “faça você mesmo” dá poder aos indivíduos e às comunidades, encorajando o emprego de abordagens alternativas para a solução de problemas.
Assim, observa-se que a sociedade consumista enfraquece os laços sociais, estimula o individualismo, e retira a autonomia dos indivíduos, que se tornam consumidores passivos, cujo único poder é a escolha entre a marca A ou a marca B. Em contrapartida, a cultura hippie e seus ideais fortalecem a ideia de coletividade e de colaboração. O princípio do “faça você mesmo” estimula a autonomia, dá poder e liberdade aos indivíduos.
Um novo modelo cultural pode entrar em cena, criado à luz de ações que priorizam a partilha de produtos e de conhecimentos, a produção de bens de consumo, e o comprometimento crítico por seu modo de vida, a fim de consolidar conexões sociais e comunitárias. Meio século depois do surgimento dos hippies, eles e os punks são mais atuais que nunca: já temos todas as ferramentas que possibilitam promover  de uma sociedade mais feliz, socialmente mais justa e ecologicamente sustentável, bem como o desenvolvimento de uma economia de abordagem essencialmente humana, e não simplesmente monetária. Teremos coragem para usá-los?

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