Para autor, manutenção de cargos inúteis dá poder a quem está no topo
por Pilita
Clark
Imagine
ter um emprego no qual você receba 12 mil libras (cerca de R$ 60 mil) para escrever
um relatório de duas páginas para a reunião de uma grande empresa na qual o
documento nem mesmo é discutido. Ou um trabalho que requer que você tenha um
carro e faça uma viagem de até 500 quilômetros para supervisionar a mudança de
um computador de uma sala para outra, a cinco metros de distância. Ou ser o
recepcionista de uma editora na qual o telefone toca apenas uma vez por dia, se
tanto, e suas únicas outras tarefas são reabastecer um vidro de balas e dar
corda ao relógio cuco uma vez por semana.
Há
pérolas como essas espalhadas por “Bullshit Jobs” [trabalhos absurdos], de
David Graeber, um livro provocante, divertido e envolvente segundo o qual uma
onda de trabalhos sem propósito está varrendo o planeta.
É
uma acusação curiosa em um momento de desordenamento tecnológico abrangente e
de crescente ansiedade sobre a preservação de nossos empregos, contra a
ameaça dos robôs ou contra as indignidades da economia do frila. Mas ela
certamente tem alguma validade.
Se
a ideia de Graeber soa familiar é porque se baseia em um ensaio que ele
escreveu em 2013 para uma revista radical chamada Strike!. O texto fez tanto
sucesso que o número de visitas derrubou o site da publicação. Ele foi
traduzido para dezenas de idiomas, em poucas semanas. A revista The Economist
publicou uma resenha sobre o artigo. Anúncios que citavam o texto foram
veiculados no metrô de Londres. Mais tarde, um instituto de pesquisa baseou nas
ideias do artigo um levantamento que apontava que 37% das pessoas não
acreditavam que seus empregos fizessem “uma contribuição significativa para o
planeta”. Uma pesquisa holandesa posterior demonstrou resultado semelhante.
Para
o americano Graeber, professor de antropologia na London School of Economics,
isso confirmou que ele havia detectado algo importante sobre o capitalismo do
século 21: ele é muito parecido com o socialismo soviético do século 20, e gera
uma profusão de empregos sem propósito, apenas para manter os trabalhadores
empregados. Se levarmos em conta a maneira pela qual o sistema soviético
acabou, a perspectiva é preocupante.
E
se de fato isso estiver acontecendo, é bizarro. O capitalismo deveria produzir
eficiência. Os avanços tecnológicos deveriam permitir que passássemos menos
tempo fazendo trabalhos de qualquer espécie (em 1930, o economista John Maynard
Keynes estimou que a jornada semanal de trabalho talvez caísse a apenas 15
horas).
Ainda
que essas coisas não tenham se materializado até agora, a ideia de que muito do
que transcorre nos escritórios modernos é absurdo nada tem de novidade: em
2019, a tira Dilbert, que satiriza a vida em um escritório moderno e se tornou
uma das tiras de quadrinhos mais populares do planeta, completará 30 anos.
Assim,
por que será que a definição de Graeber para um trabalho absurdo – um trabalho
completamente sem propósito, ou pernicioso, que os trabalhadores sabem ser
inútil mas sobre o qual precisam fingir o oposto – continua a ter tanta
ressonância?
Graeber
não consegue oferecer uma resposta completamente convincente em seu livro.
Anarquista a quem é atribuído o lema do movimento Occupy, “nós somos
os 99%”, ele dá a entender que os trabalhos absurdos fazem sentido para a elite
empresarial rentista, temerosa de dar aos trabalhadores explorados mais tempo e
tranquilidade para pensar.
Talvez.
Mas é difícil imaginar que as grandes empresas de todo o mundo tenham se
envolvido em uma conspiração silenciosa para controlar as massas por meio da
criação de um monte de empregos sem propósito, pelos quais essas companhias
pagam.
Tampouco
fica claro quantos trabalhos exatamente são completamente sem propósito.
O
livro de Graeber se baseia em mais de 250 depoimentos pessoais que ele recebeu
depois de criar uma conta no Gmail com o endereço “doihaveabsjoborwhat” [“tenho
mesmo um emprego cretino, né?”, em tradução livre]. (O Gmail não permitiu que
ele usasse a palavra “bullshit” como parte do endereço, e por isso Graeber
recorreu à abreviação “bs”). Ele também convidou seus seguidores no Twitter a
lhe enviar relatos sobre seus empregos absurdos. Também baixou 124 descrições
que pessoas ofereceram sobre seus empregos sem propósito, para seu ensaio de
2013.
Ele
admite que os resultados “podem não ser adequados para a maioria das formas de
análise estatística”. E também são altamente subjetivos. Mas permitiram que
Graeber descrevesse cinco categorias de empregos cretinos que parecerão
familiares a muitas das pessoas envolvidas com a moderna vida empresarial.
Há
os lacaios (como o recepcionista subutilizado), que existem para conferir
prestígio aos seus chefes; a tropa de choque (pessoal de relações públicas,
lobistas, operadores de telemarketing), empregados apenas porque outras
empresas também empregam pessoal nessas funções; a “turma do esparadrapo”,
cujos empregos foram criados para consertar defeitos organizacionais que na
verdade não existem; os carimbadores, que permitem que uma organização afirme
estar fazendo alguma coisa que ela na verdade não faz; e os feitores, que
supervisionam gente que não precisa de supervisão.
As
histórias que ele relata são muitas vezes impagáveis, ainda que seja difícil
acreditar em algumas delas. Graeber escreveu sobre um sujeito chamado Simon,
que disse ter passado dois anos analisando o funcionamento interno de um grande
banco, e ter descoberto que pelo menos 80% dos 60 mil funcionários da empresa
eram desnecessários. “O trabalho deles podia ser executado por softwares
simples, ou era completamente desnecessário, porque os programas foram criados
para estruturar ou replicar um processo que já desde o começo era inútil”,
disse Simon.
Graeber
aceita sem discutir a ideia inconcebível de que o banco estava empregando 48
mil pessoas que nada faziam de útil – ou ao menos nada que uma máquina não
fosse capaz de fazer com facilidade. Isso pode ser verdade. Ou pode ser uma
completa asneira. Não há como saber, de fato.
Mas
a situação se enquadra a uma das teorias centrais de Graeber sobre o motivo
para que trabalhos inúteis tenham proliferado: “gestão feudal”, com hierarquias
complexas de pessoas que dão empregos a subordinados a fim de maximizar a
importância delas mesmas. O resultado, ele afirma, é um desastre que significa
“uma verdadeira cicatriz em nossa alma coletiva”.
A
solução que ele propõe será familiar para muitos leitores: a renda
universal básica. Que cada cidadão recebesse um valor fixo por mês permitiria,
segundo Graeber, que as pessoas se libertassem de trabalhos inúteis, e as
libertaria para que tivessem propósitos reais em suas vidas.
O
conceito já tem defensores em todo o espectro político. Os esquerdistas acham
que isso poderia acabar com a pobreza e promover a igualdade da mulher.
Bilionários do Vale do Silício como Elon Musk acreditam que a prática virá a se
tornar necessária, porque as máquinas roubarão empregos humanos. O objetivo de
Graeber é mais radical: ele quer eliminar de vez a conexão entre o trabalho e o
sustento.
Provavelmente
vai ter de esperar muito. Nos últimos anos, programas piloto de renda básica
foram lançados em todo o mundo, do Quênia ao Canadá e Estados Unidos. Os
resultados ainda não puderam ser avaliados. A Finlândia anunciou que seu teste
do conceito não seria prorrogado para além do prazo inicial
planejado, de dois anos.
Mas
como muita coisa mais no livro de Graeber, a ideia captura a imaginação, nos
leva a refletir e merece atenção.
> Financial
Times, tradução de Paulo Migliacci
Bullshit Jobs
David Graeber, ed. Simon & Schuster, R$
42,90, 368 págs.
Fonte:
Folha de S. Paulo | 02/06/2018
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