sábado, 7 de fevereiro de 2015

Alain Badiou: A farsa do Charlie Hebdo


Alain Badiou: A farsa do Charlie Hebdo
 [Alain Badiou: contra os crimes terroristas, é preciso reativar a ideia comunista e não o totem da República francesa]

Para Alain Badiou, o respaldo do atentado ao semanário francês adquiriu ares de um teatro farsesco. Em artigo intitulado “O vermelho e o tricolor” [Le rouge et le tricolore], publicado no Le monde no final de janeiro de 2015, o filósofo francês situa o episódio no seio de um mundo completamente tomado pelo capitalismo global e “predatório”. Na batalha de identidades e contra-identidades nacionais, religiosas, ideológicas encenadas neste contexto, a França recorre ao “totem” de sua République démocratique et laïque – auto-imagem fundada, lembra Badiou, nos massacres da Comuna de Paris de 1871. São nos vasos comunicantes entre o falatório pós-atentado da liberdade de expressão e a política de militarização da vida social francesa que Badiou identifica a atual figura desse perverso “pacto republicano”, do qual não poupa nem o humor do que chama dos “ex-esquerdistas” do Charlie Hebdo. O atentado de janeiro, por outro lado, aparece decifrado como um crime essencialmente fascista – ao que Badiou insiste: contra o antisemitismo e a lógica identitária não é o tricolor francês que se deve erguer, e sim a bandeira vermelha. A tradução é de Danilo Chaves Nakamura, para o Blog da Boitempo. Confira:
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Hoje o mundo está totalmente tomado pela figura do capitalismo global, submisso ao governo da oligarquia internacional e subjugado à abstração financeira como única figura reconhecidamente universal.

Neste contexto desesperador montou-se uma espécie de peça histórica farsesca. Sobre a trama geral do “Ocidente”, pátria civilizada do capitalismo dominante, contra o “Islamismo”, símbolo do terrorismo sanguinário. Aparentemente teríamos, de um lado, os grupos de assassinos e indivíduos fortemente armados, acenando para garantir o perdão de Deus; e do outro, em nome dos direitos humanos e da democracia, selvagens expedições militares internacionais que destroem Estados inteiros (Iugoslávia, Iraque, Líbia, Afeganistão, Sudão, Congo, Mali…), que fazem milhares de vítimas, que chegam para negociar com os bandidos mais corruptos em busca de poços, minas, recursos alimentares e enclaves onde as grandes empresas possam prosperar.

Esta é uma farsa que transforma as guerras e as atividades criminosas na principal contradição do mundo contemporâneo, a que alcança a essência da questão. Mas hoje, soldados e policiais da “guerra ao terror”, bandos armados que reivindicam um islã mortal e todos os Estados, sem exceção, pertencem ao mesmo mundo, o mundo do capitalismo predatório.

Várias identidades falsas, cada uma se considerando superior a outra, fixam ferozmente sua dominação local em pedaços deste mundo unificado. Elas dividem o mesmo mundo real, onde os interesses dos agentes são os mesmos em toda parte: a versão liberal do Ocidente, a versão autoritária e nacionalista da China ou da Rússia de Putin, a versão teocrática dos Emirados, a versão fascista dos grupos armados… As populações de todas as partes defendem, por unanimidade, a versão que sustenta o poder local.

Isto é tão certo que o verdadeiro universalismo – aquele que reconhece o destino da humanidade na própria humanidade e, portanto, a nova e decisiva encarnação histórico-político da ideia comunista – não será um poder em escala mundial sem anular a dominação dos Estados pelas oligarquias proprietárias e seus agentes, a abstração financeira e, finalmente, as identidades e contra-identidades que assolam as mentes e necessitam morrer.

A identidade francesa: a “República”
Nesta guerra de identidades, a França tenta se distinguir com a invenção de seu totem: a “república democrática e laica” ou o “pacto republicano”. Este totem valoriza a ordem estabelecida pelo parlamento francês – pelo menos, desde a sua fundação, a saber, o massacre em 1871 de 20.000 trabalhadores nas ruas de Paris, por Adolphe Thiers, Jules Ferry, Jules Favre e outras vedetes da esquerda “republicana”.

Este “pacto republicano” ao qual aderiram muitos ex-esquerdistas, até o Charlie Hebdo, sempre suspeitou da trama de coisas assustadoras nos subúrbios, nas fábricas da periferia e nos bares escuros do subúrbio. Com inúmeros pretextos, uma República sempre povoada de prisões, de perigosos jovens mal educados que lá vivem. Na República, ocorreu também a multiplicação de massacres e de novas formas de escravidão exigidos para a manutenção da ordem no império colonial. É este império sangrento que encontrou seu estatuto de fundação nas declarações do mesmo Jules Ferry – indubitavelmente, um ativista do pacto republicano – que exaltava a “missão civilizadora” da França.

Agora, veja você, os inúmeros jovens que povoam nossos subúrbios, além de atividades suspeitas e flagrante falta de educação (estranhamente, ao que parece, a famosa “escola republicana” não tem sido capaz de fazer nada e assumir que a culpa é sua e não dos alunos), são filhos de proletários de origem africana ou vieram por conta própria da África para sobreviver e, consequentemente, na maioria das vezes, são muçulmanos. Em suma, de uma só vez, proletários e colonizados. Duas razões para desconfiar e tomar sérias medidas repressivas.

Suponhamos que você é um jovem negro ou um jovem com aspectos árabes, ou ainda, uma jovem mulher que decidiu, no sentido da livre revolta, já que é proibido, cobrir a cabeça. Bem, assim você terá sete ou oito vezes mais chances de ser parado na rua por nossa polícia democrática e, muitas vezes ser retido em uma delegacia, o que indica que se você tiver a cara de um “francês”, simplesmente, não deve ter a cara de um proletário nem de um ex-colonizado. Nem de um muçulmano.

Charlie Hebdo, em certo sentido, protestava com esses meios e costumes policiais no estilo “divertido” de piadas com conotação sexual. Nada muito novo. Lembrem-se das obscenidades de Voltaire sobre Joana d’Arc: a donzela de Orleans é um poema digno de Charlie Hebdo. Por si só, este poema sujo dirigido contra uma heroína sublimemente cristã, autoriza a dizer que as verdades e as luzes do pensamento crítico não são ilustradas por esse Voltaire medíocre.

Ele ilumina a sabedoria de Robespierre quando ele condena todos os que fazem da violência antirreligiosa o coração da Revolução e obtendo somente a deserção popular e a guerra civil. Ele nos convida a considerar que o que divide a opinião democrática francesa é, conscientemente ou não, o lado constantemente progressista e realmente democrático de Rousseau, ou então, o lado das negociatas, dos ricos e especuladores céticos e sensuais, que como o gênio do mal alojado neste Voltaire também é capaz, por sua vez, de autênticos combates.

O crime de tipo fascista
E os três jovens franceses que a polícia rapidamente matou? Eu diria que eles cometeram o que deve ser chamado de crime de tipo fascista. Eu chamo de crime de tipo fascista um crime que tem três características.
Em primeiro lugar, ele é orientado, não de maneira cega, por suas motivações ideológicas, de caráter fascista, que são estritamente identitárias: nacional, racial, comunitária, consuetudinária, religiosa… Nestas circunstancias, os assassinatos são antissemitas. Muitas vezes, o crime fascista visa publicitários, jornalistas, intelectuais e escritores tais como os assassinos representantes do lado oposto. Nas circunstancias, o Charlie Hebdo. 

Em seguida, ele é de uma violência extrema, assumido, espetacularmente, dado que ele procura impor a ideia de uma determinação fria e absoluta que, no entanto, inclui de forma suicida a probabilidade de matar o assassino. Este aspecto de “viva la muerte!” de aparente niilismo, está em ação.

Em terceiro lugar, o crime visa, por sua grandiosidade, pelo seu efeito de surpresa, pelo seu lado fora da norma, criar um efeito de terror e estimular, por conseguinte, do lado do Estado e da opinião, reações descontroladas, completamente fechada em uma vingativa contra-identidade, as quais, aos olhos dos criminosos e dos seus patrões, justificarão após o fato, por simetria, o atentado sangrento. E foi isso o que aconteceu. Neste sentido, o crime fascista obteve uma espécie de vitória.

O Estado e a opinião
De fato, desde o inicio, o Estado estava envolvido na utilização desproporcional e extremamente perigosa de crime fascista, porque ele está inscrito no registro das identidades da Guerra Mundial. O “fanático muçulmano” se opõe descaradamente ao bom democrata francês.

A confusão estava no auge quando vimos o chamado do Estado, claramente autoritário, para a manifestação. Caso Manuel Valls não tivesse a intenção de capturar os fugitivos e não tivesse convocado as pessoas, uma vez que elas têm demonstrado uma obediência identitária sob a bandeira francesa, elas se esconderiam em suas casas ou vestiriam o uniforme de reservista sob o som da corneta na Síria.

Assim, no momento mais baixo de popularidade, nossos líderes têm tido a capacidade, através de três fascistas pervertidos que não poderiam imaginar tal triunfo, de aparecer diante de milhares de pessoas, também aterrorizadas pelos “muçulmanos” e alimentadas por vitaminas de democracia, o pacto republicano e a grandiosa soberba da França.

A liberdade de expressão, vamos falar sobre ela! Era praticamente impossível durante todos os primeiros dias deste caso, expressar o que estava acontecendo por outro ponto de vista que não aquele que consiste em se encantar por nossa liberdade, nossa República, em amaldiçoar a corrupção de nossa identidade por jovens muçulmanos proletários e suas filhas horrivelmente cobertas com véu, e em se preparar corajosamente para a guerra contra o terror. Ouvimos o seguinte grito dessa admirável liberdade de expressão: “Somos todos policiais”.

Na realidade é natural que o pensamento único e a submissão ao medo sejam regras em nosso país. A liberdade em geral, incluindo a de pensamento, de expressão, de ação, da própria vida, consiste, hoje em dia, em tornar-se unanimemente auxiliar da polícia para o rastreamento de dezenas de agrupamentos fascistas, para delação universal de suspeitos barbudos ou cobertos com véu, e criar uma exceção permanente nos escuros conjuntos habitacionais, herdeiros dos subúrbios onde já mataram os communards? Por outro lado, a tarefa central da emancipação, da liberdade pública, consiste em agir conjuntamente com a maioria desses jovens proletários dos subúrbios, a maioria das jovens, cobertas com véu ou não, pois isto não importa. Nos quadros de uma nova política, que não se refere a nenhuma identidade (“os proletários não tem pátria”) prepara-se uma figura igualitária de uma humanidade que finalmente se apropria do seu próprio destino? Uma política que considera de forma racional que nossos verdadeiros mestres impiedosos, os ricos governantes do nosso destino, devem ser finalmente demitidos?

Houve na França, há muito tempo, dois tipos de manifestações: as sob a bandeira vermelha e as sob a bandeira tricolor. Acredite em mim: no que concerne a reduzir a nada os pequenos grupos fascistas identitários e assassinos – aqueles que apelam para formas sectárias do Islã, a identidade nacional francesa ou a superioridade Ocidental –, não são as tricolores, controladas e utilizadas pelos poderosos, que são eficientes. Estas bandeiras são outras, as vermelhas, e que precisam voltar.

* Publicado em francês no Le monde de 27 de janeiro de 2015. A tradução é de Danilo Chaves Nakamura, para o Blog da Boitempo.
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Alain Badiou é tido como um dos principais filósofos franceses da atualidade. Nascido em 1937 na cidade marroquina de Rabat, lecionou filosofia entre 1969 e 1999 na Universidade de Paris-VIII e, atualmente, é professor emérito da École Normale Supérieure de Paris...

Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/2015/02/04/o-vermelho-e-o-tricolor-alain-badiou-sobre-o-charlie-hebdo/

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