segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Entrevista: Noam Chomsky a Sameer Dossani

Entrevista: Noam Chomsky a Sameer Dossani
“Cada vez que se vê o Hamas nos jornais, dizem: «Hamas, apoiado pelo Irão, quer destruir Israel.» Tentem encontrar uma frase que diga: «Hamas, eleito democraticamente, apela ao estabelecimento de dois Estados,» coisa que tem feito há anos. Sim, sem dúvida, trata-se de um belo sistema de propaganda. Até na imprensa americana deixaram de vez em quando aparecer artigos de líderes do Hamas, Ismail Haniya e outros, dizendo sim queremos como toda a gente o estabelecimento de dois Estados dentro da fronteira internacional.” Esta manipulação da informação pelos media, censura por omissão consciente, é cúmplice por milhares de vítimas palestinas, directas e indirectas, da guerra genocida que lhes é movida por Israel e os EUA.
Sameer Dossani*
Noam Chomsky é um conhecido linguista, autor e especialista de política internacional. Sameer Dossani entrevistou-o sobre o conflito entre Israel e Gaza.

DOSSANI: O governo israelita e muitos políticos israelitas e americanos afirmam que o actual ataque a Gaza é para pôr fim às descargas de rockets Qassam de Gaza para Israel. Porém, muitos observadores respondem que, se fosse realmente por isso, Israel deveria ter feito muito mais esforços para renovar o acordo de cessar-fogo que expirou em Dezembro e que quase tinha conseguido parar os disparos de rockets. Na sua opinião, quais as verdadeiras motivações por detrás da actual acção de Israel?
CHOMSKY: Há um motivo que remonta às origens do sionismo e que tem bastante lógica: «Adiemos as negociações e a diplomacia o mais que pudermos e entretanto “criemos factos consumados”.» Por isso, Israel vai criando a base para o que virá a ratificar nalgum acordo futuro, mas, quanto mais for criando, mais vai construindo e mais o acordo será favorável aos seus objectivos. Esses objectivos são essencialmente apropriar-se de tudo o que tem valor na antiga Palestina e minar o que for deixado para a população originária. Penso que uma das razões do apoio popular que isto tem nos Estados Unidos é estar muito em consonância com a história da América. Como se estabeleceram os Estados Unidos? Os motivos são parecidos. Há muitos exemplos de aplicação deste motivo ao longo da história de Israel e a situação actual é mais um caso. Têm um programa muito claro. Falcões racionais como Ariel Sharon perceberam que era uma loucura manter 8.000 colonos usando a terça parte das terras e uma boa parte das escassas reservas de Gaza, protegidos por uma importante parte do exército israelita enquanto o resto da sociedade à volta simplesmente apodrecia. Por isso, era preferível tirá-los de lá e enviá-los para a Margem Ocidental. É esse o lugar que lhes interessa e que pretendem. Aquilo que foi designado em Setembro de 2005 por «retirada unilateral» foi de facto uma transferência. Foram perfeitamente claros e abertos acerca disso. De facto, prolongaram os programas de construção de colonatos na Margem Ocidental, ao mesmo tempo que retiravam alguns milhares de pessoas de Gaza. Assim, Gaza iria tornar-se numa ratoeira, basicamente uma prisão, com Israel podendo atacar à vontade, e entretanto na Margem Ocidental apanhávamos o que queríamos. Não houve qualquer segredo sobre isso. Ehud Olmert esteve nos Estados Unidos em Maio de 2006, uns meses após a retirada. Numa sessão conjunta do Congresso e muito aplaudido, anunciou simplesmente que o direito histórico dos judeus a toda a terra de Israel está fora de questão. Anunciou aquilo a que chamou o seu programa de convergência, que é simplesmente uma versão do programa tradicional que remonta ao plano Allon de 1967. No essencial, Israel anexa a terra e os recursos valiosos junto à linha verde (fronteira de 1967). Essa terra está agora para lá do muro que Israel construiu na Margem Ocidental, que é um muro de anexação. Significa isso a terra árabe, as principais reservas de água, os agradáveis subúrbios de Jerusalém e Tel Aviv, as colinas, etc. Apanham o vale do Jordão, que é cerca de um terço da Margem Ocidental, onde se têm vindo a estabelecer desde o fim dos anos 60. Depois, traçam algumas super-autoestradas através de todo o território – existe uma, a leste de Jerusalém para a cidade de Ma'aleh Adumim, que foi construída sobretudo nos anos 90, durante os anos de Oslo, essencialmente com a finalidade de dividir a Margem Ocidental, e mais duas para norte incluindo Ariel, Kerumin e outras cidades que não fazem mais que retalhar o resto. Estabelecem postos de controlo e toda a espécie de meios complicativos nas outras áreas, a população que ficar será no fundo acantonada e incapaz de levar uma vida decente e, se quiserem ir-se embora, tanto melhor. Ou então, ficarão como figuras pitorescas para os turistas – do género de um sujeito a levar uma cabra pelo monte acima lá ao longe – e entretanto os israelitas, incluindo os colonos, passam de carro ao largo em super-autoestradas exclusivas para eles. Os palestinianos esses podem contentar-se com umas estraditas onde quando chove se cai em buracos. É esse o objectivo. E é explícito. Não podem ser acusados de estar a enganar ninguém, porque é explícito. E por aqui [EUA], acha-se bem.
DOSSANI: Em termos do apoio dos EUA, o Conselho de Segurança da ONU adoptou uma resolução apelando ao cessar-fogo. Trata-se de alguma mudança, principalmente à luz do facto de os EUA não terem vetado a resolução, mas antes terem-se abstido, deixando que passasse?
CHOMSKY: Logo a seguir à guerra de 1967, o Conselho de Segurança votou resoluções firmes de condenação do movimento de expansão de Israel e da tomada de Jerusalém. Israel ignorou-as simplesmente, porque os EUA lhe fazem festas na cabeça dizendo «vá, podes violá-las». Há uma série de resoluções desde então até hoje a condenar o estabelecimento de colonatos, que, como Israel sabia e toda a gente concordava, violavam as convenções de Genebra. Os EUA ou vetam as resoluções ou por vezes votam a favor, mas com uma piscadela de olho a dizer «avança na mesma, que nós aguentamos e damos-te apoio militar.» Trata-se de um padrão consistente. Durante os anos de Oslo, por exemplo, a construção de colonatos aumentou com regularidade, em violação daquilo que, teoricamente, o acordo de Oslo era suposto conter. De facto, o ano pico dos colonatos foi o último ano Clinton, 2000. E depois continuou. É uma coisa aberta e explícita. Voltando à questão da motivação, eles têm suficiente controlo militar sobre a Margem Ocidental para aterrorizarem a população e torná-la passiva. Agora esse controle aumentou devido às forças colaboracionistas que os EUA, a Jordânia e o Egipto treinaram para dominar a população. De facto, se se olhar para a imprensa das últimas semanas, quando há na Margem Ocidental uma manifestação de apoio a Gaza, as forças de segurança da Fatah reprimem-na. É para isso que lá estão. A Fatah funciona agora mais ou menos como força policial de Israel na Margem Ocidental. Mas, a Margem Ocidental é apenas uma parte dos territórios palestinianos ocupados. A outra parte é Gaza e ninguém põe em dúvida que constituem uma unidade. E há ainda resistência em Gaza, esses rockets. Por isso, é evidente, querem também acabar com isso e então não haverá mais resistência e podem continuar a fazer o que lhes apetecer sem interferências, adiando entretanto a diplomacia o mais que puderem e «consumando factos» da maneira que quiserem. De novo, isso remonta às origens do sionismo. Varia evidentemente de acordo com as circunstâncias, mas a política fundamental é a mesma e percebe-se perfeitamente. Se se quer dominar um país cuja população está contra, quer dizer, de que outro modo se pode fazê-lo? Como foi este nosso país conquistado?
DOSSANI: O que está a descrever é uma tragédia.
CHOMSKY: É uma tragédia que é fabricada aqui. A imprensa não fala nela e mesmo os académicos, na maior parte, não falam nela, mas o facto é que existiu um entendimento político sobre a mesa, durante 30 anos em agenda. Designadamente, o estabelecimento de dois estados dentro das fronteiras internacionais com talvez alguma modificação da fronteira comum. Esteve de pé oficialmente desde 1976, quando havia uma resolução do Conselho de Segurança proposta pelos principais estados árabes e apoiada pela OLP (Organização de Libertação da Palestina) essencialmente nesses termos. Os Estados Unidos vetaram-na, por isso está fora da história e continua quase sem alteração desde então. Houve de facto uma modificação significativa. No último mês do mandato Clinton, Janeiro de 2001, houve negociações que os EUA autorizaram, mas onde não participaram, entre Israel e os palestinianos e chegaram muito próximo de um acordo.
DOSSANI: As negociações de Taba?
CHOMSKY: Sim, as negociações de Taba. Os dois lados chegaram muito próximo de um acordo. Foram adiadas por Israel. Mas, foi essa a única semana em cerca de 30 anos em que os Estados Unidos e Israel abandonaram a sua posição permanente rejeição. É um verdadeiro tributo dos media e comentadores conseguirem manter isto em silêncio. Os EUA e Israel estão isolados. O consenso internacional inclui virtualmente todos. Inclui a Liga Árabe, que foi além dessa posição e apelou para a normalização de relações, e inclui o Hamas. Cada vez que se vê o Hamas nos jornais, dizem: «Hamas, apoiado pelo Irão, que quer destruir Israel.» Tentem encontrar uma frase que diga: «Hamas, eleito democraticamente, apela ao estabelecimento de dois Estados,» coisa que tem feito há anos. Sim, sem dúvida, trata-se de um belo sistema de propaganda. Até na imprensa americana deixaram de vez em quando aparecer artigos de líderes do Hamas, Ismail Haniya e outros, dizendo sim queremos como toda a gente o estabelecimento de dois Estados dentro da fronteira internacional.
DOSSANI: Quando é que o Hamas adoptou essa posição?
CHOMSKY: É a posição oficial tomada pelo líder eleito Haniya e Khalid Mesh'al, o líder político no exílio na Síria, escreveu a mesma coisa. E é constantemente repetido. Não há dúvidas sobre isso, mas o Ocidente não quer ouvir. De modo que, portanto, o Hamas está empenhado na destruição de Israel… Num certo sentido está, mas, se formos a uma reserva de nativos americanos nos EUA, estou certo que muitos gostariam de ver os EUA destruídos. Se formos ao México e fizermos uma sondagem, estou certo que não reconhecem o direito dos Estados Unidos existirem sobre metade do México, terra conquistada na guerra. E o mesmo acontece em todo o mundo. Mas, aceitam um entendimento político. Israel não o quer e os Estados Unidos também não. São os únicos na retranca. Como os Estados Unidos na prática mandam no mundo, está bloqueado. Aqui, apresentam-se sempre as coisas como se os Estados Unidos, que são um mediador honesto, devessem envolver-se mais; o problema com Bush seria ter descuidado a questão. Não é esse o problema. O problema é que os Estados Unidos se envolveram bastante e envolveram-se para bloquear um entendimento político e para fornecerem apoio material, ideológico e diplomático aos planos de expansão, que são pura e simplesmente planos criminosos. É unânime no mundo, incluindo a justiça americana, o julgamento de que qualquer transferência de populações para os Territórios Ocupados constitui uma violação da lei fundamental internacional, as convenções de Genebra. E Israel concorda. De facto, até os seus tribunais concordam, simplesmente contornam o assunto de diversas formas ínvias. Por isso, não há problema. Aceita-se nos Estados Unidos que somos simplesmente uma espécie de estado fora-da-lei. A lei não se aplica a nós. Por isso, não há discussão.
Este texto foi publicado em Foreign Policy In Focus.

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