Cinco mentiras que a direita quer que você acredite
Depois de um texto
em que desconstruímos o devaneio do discurso em torno de “marxismo
cultural” que a direita tanto repete, vamos agora discutir outras inverdades e
distorções grosseiras que são repetidas à exaustão por aquelas pessoas
que se identificam como direita ou
conservadores. Escolhi cinco temas que considero que estão entre os
principais: Bolsa família, cotas raciais, meritocracia, “ideologia de gênero” e
Paulo Freire. A maior parte do que é dito sobre esses assuntos está no nível do
senso comum. Contudo, frequentemente ganha contornos de uma narrativa
ideológica. Vamos analisar brevemente as narrativas em torno de cada um desses
temas e mostrar seus equívocos.
1. Bolsa Família
é esmola pra condicionar as pessoas a votarem em um partido. Tem que ensinar a
pescar ao invés de dar o peixe.
Bolsa Família é
política de redistribuição direta de renda. Foi criada durante o governo Lula a
partir da fusão de outros programas que já existiam antes e que foram criados
por FHC. Juntamente com o Fome Zero, esse programa foi responsável pela saída
de dezenas de milhões de pessoas da linha de pobreza ou, para ser mais exato,
mais de trinta milhões entre 2004 e 2010.
A
afirmação “tem que ensinar a pescar ao invés de dar o peixe” não se aplica
nesse caso. O poder de compra que o Bolsa Família concedeu a muitas pessoas
alavancou a economia e proporcionou a muitos que outrora dependiam de um
emprego com carteira assinada ou nem tinham perspectiva de emprego, que se
tornassem empreendedores e gerassem outros empregos. Inclusive muitos pequenos
empresários que são contra o programa não sabem que suas empresas existem por
causa dele.
Além disso, um dos
critérios do programa é que, para receber o benefício, os filhos dos
beneficiados devem estar matriculados em uma escola. O programa contribuiu
decisivamente para a queda da mortalidade infantil. Isso desmonta outro
argumento muito utilizado contra ele: que as pessoas “fazem” mais filhos para
receber o pagamento. Mas não tem problema. Com a melhoria da qualidade de vida,
apesar de o valor pago ainda estar muito aquém das necessidades básicas das
famílias mais pobres, o objetivo também é que esses filhos na escola se tornem
futuros profissionais e tenham condições de ingressar com dignidade no mercado
de trabalho.
Falar de Bolsa
Família como medida eleitoreira também não faz sentido. O programa trouxe
resultados concretos, palpáveis, contribuiu para a melhora da economia e
redução da miséria de forma visível e ainda foi adotado por outros países.
O PT, apesar de todos os seus erros, ganhou as últimas três eleições
presidenciais porque fez políticas de caráter social-democrata que a oposição
não fez. Portanto, é natural que isso tenha rendido ao partido votos entre os
segmentos sociais, as regiões e estados do país onde houve mais ascensão social
e melhoria da qualidade de vida em decorrência dessas políticas. Além disso, o
programa não torna as pessoas dependentes dele: apenas entre 2003 e 2013, mais
1,5 milhão de pessoas deixaram o benefício por terem melhorado de vida.
Por outro lado, a
atual recessão econômica e aumento do desemprego são decorrentes da corrupção.
O Bolsa Família não tem nenhuma relação com isso e em parte é por causa dele
que a economia não está pior. Conceder bolsas sociais é uma prática comum em
países desenvolvidos e com valores muito mais altos do que o que vemos aqui.
Por exemplo: recentemente, a Suíça anunciou um plebiscito para conceder um
salário básico no valor de 2.700,00 euros mensais a toda a população.
Nós temos condições
não apenas de ampliar o valor do benefício como também de manter outros
programas sociais. Infelizmente, no Brasil os ricos sempre tiveram a máquina
pública a seu favor, inclusive aqueles que defendem “Estado mínimo” sempre
recorrem ao Estado para receber benefícios e financiamentos para seus negócios.
O discurso contra programas sociais escamoteia uma tentativa de patologizar a
pobreza de modo a retratá-la como indolente, inapta, conformada e indigna de
qualquer ação do Estado a seu favor.
2. Cotas raciais
na universidade privilegia o negro e é racismo contra o branco, que também não
tem cota.
A incompreensão do
que sejam as cotas e quais seus objetivos é o que mais contribui para a
reprodução desse discurso. Primeiro, é importante dizer o que as cotas não são:
elas não existem para saldar dívida histórica com a escravidão ou o quer que
seja. Se fosse, seria patético. Seria impossível resolver problemas ainda
decorrentes da escravidão no passado apenas com as cotas. Segundo: as cotas não
constituem uma política para melhorar a educação. É por isso que não vem ao
caso criar cota para o branco e para o pobre, porque sua meta não está
relacionada à elevação da qualidade do ensino. Isso significa dizer que cota
não é política educacional.
Cota é política de
integração racial. Seu objetivo é reduzir o preconceito com a presença do negro
em espaços onde ele historicamente não está presente ou está presente em número
muito reduzido. Nesse sentido, a cota é política de ação afirmativa, é política
de inclusão. A ausência do negro na universidade é uma das maiores causas de
preconceito com aqueles poucos que conseguiam ingressar, que são minoria e, não
raramente, são estigmatizados por estarem num espaço que historicamente não é
deles. Mesmo nas universidades públicas, em especial nos cursos mais
concorridos, o negro é ínfima minoria.
Apenas melhorar a
escola pública não seria suficiente para isso porque, mesmo numa escola pública
melhor, o negro ainda poderia sofrer preconceito na universidade porque
continuaria a chegar lá em pequeno número. Além disso, numa escola pública de
qualidade o negro continua sendo excluído dela pelo branco por ter menos
capital cultural e econômico para concorrer em condições de igualdade. Melhorar
a escola pública para que o negro também esteja nela deve passar por políticas
de combate à favelização, ao subemprego (onde o negro está presente em grande
quantidade) e à marginalização social que envolve o círculo vicioso
criminalidade-estigmatização/exclusão-cadeia.
A cota é para
proporcionar a convivência racial e, através da convivência, reduzir o
preconceito. A melhoria da escola básica é uma política que evidentemente não
deve ser deixada de lado mas, se buscamos combater o preconceito no sentido de
diminuí-lo, a política de cotas é o melhor caminho por contribuir para isso
mais rapidamente. Essa foi uma política que deu certo nos Estados Unidos nos
anos 1960 e 1970 e aqui também várias pesquisas têm mostrado resultados
positivos.
Aqueles que falam
em vitimismo dos negros ou chamam cota de privilégio, em geral apenas
reproduzem o discurso de que o negro deve concorrer nas mesmas condições que o
branco. Estes ignoram ou desprezam os problemas históricos que envolvem o negro
e o excluem da boa escola e da universidade e a discriminação que envolve sua
exclusão. Ainda estamos longe de eliminar o preconceito. Por isso, como
política de integração racial, a cota é necessária, importante, deve ser
mantida e valorizada. (O leitor pode ler mais sobre isso no texto “A
importância das políticas de ação afirmativas”, cujo link está ao final).
3. Cotas raciais
e bolsa família ferem o princípio da meritocracia.
Meritocracia é algo
importante, mas quando existe igualdade de oportunidades. O Brasil é um país
historicamente marcado por abismos sociais e regionais enormes; um país formado
sob a égide do latifúndio, do patrimonialismo, da escravidão e o distanciamento
das elites brancas e bem-nascidas do restante da população. Todas essas mazelas
ainda ecoam no presente, por isso qualquer discurso de meritocracia serve apenas
a uma poderosa ideologia de exclusão.
Acredita-se que o
mérito estaria no esforço e na capacidade criativa que garantiria a ascensão
social. Desse modo, os mais pobres seriam os únicos responsáveis por sua
condição. Mas não, o que se esconde nesse discurso não é o mérito do esforço,
mas do nascimento, que em grande parte garante a reprodução das desigualdades
sociais oceânicas que historicamente sempre marcaram o Brasil. Os mais
ricos habituaram-se a viver como castas, em espaços urbanos habitacionais, educacionais
e de sociabilidades quase completamente separados dos grupos sociais de baixa
renda. As políticas sociais dos últimos anos criaram algumas fendas nessa
barreira promovendo inclusão social, seja através da redistribuição direta de
renda (Bolsa Família) ou de políticas para inclusão de minorias (como cotas
para negros e índios nas universidades).
Mesmo com a atual
crise e o aumento do desemprego essas conquistas podem ficar parcialmente
comprometidas, embora não perdidas. De todo modo, houve uma redução visível da
extrema pobreza e da fome no país e ainda uma aproximação de convivência entre
as classes em espaços que antes eram exclusividade dos grupos mais
privilegiados. Além disso, a expansão dos Institutos e Universidades Federais
proporcionou a possibilidade de acesso ao ensino superior e ascensão social a
muitas pessoas que não podem se deslocar para as grandes cidades para estudar.
Isso, é claro, não
agradou a muita gente. Um caso emblemático disso foi um artigo de Danuza Leão,
quando era colunista da Folha de SP, em que ela reclamava que agora tinha que
ver o porteiro do prédio em Paris ou Nova York. Assistimos à ascensão de uma
direita ultraconservadora, nacionalista, anti-petista e anti-marxista, cujas
ações conseguem facilmente cooptar as classes médias altas para a polarização
política que ela vem promovendo. Aqueles que defendem meritocracia no Brasil na
verdade defendem privilégios, uma vez que não existe igualdade de
oportunidades.
4. A ideologia
de gênero visa impor o homossexualismo nas escolas.
Ideologia é um
termo que já foi definido de diferentes maneiras por diferentes autores, desde
seu aparecimento, no início do século 19. A rigor, é muito utilizada para se
referir à visão de mundo de determinado grupo ou de uma classe social. Nesse
passo, pode se tornar um instrumento de controle do comportamento dos
indivíduos em determinado contexto. Uma visão de mundo ou uma crença se
transforma em ideologia quando passa a exercer esse poder regulatório para
universalizar uma narrativa sobre o mundo, desacreditando ou denegando as
demais.
Nesse sentido, o
termo “ideologia de gênero” é uma expressão capciosa, muito mencionada por
conservadores e/ou fundamentalistas religiosos para denunciar uma suposta
conspiração anti-cristã que quer impor o homossexualismo como norma. Nada
disso, é claro, tem fundamento. Aqueles que lançam mão desse discurso nunca
estudaram gênero e o fazem para promover uma guerra cultural entre
cristãos/conservadores e homossexuais/esquerda.
Foi isso o que
fizeram com o material didático apelidado pejorativamente de “Kit gay”. O
material atendia aos requisitos dos Parâmetros Curriculares Nacionais para a
educação básica. Alguns vídeos que o acompanhava foram postados na internet e
tinham o claro objetivo de desconstruir o preconceito entre os jovens acerca da
homossexualidade. Lamentavelmente, graças ao lobby da bancada evangélica no
Congresso, o material não foi utilizado nas escolas.
Gênero não diz
respeito apenas à homossexualidade, nem a sexo, mas a identidade social, a uma
construção identitária. Foi a ignorância em relação a isso que gerou celeuma em
torno da prova do ENEM de 2015 que trazia uma citação de Simone de
Beauvoir que dizia que “não se nasce mulher, torna-se mulher”.
A discussão de
gênero nas escolas, que os conservadores tanto se descabelam para banir,
objetiva trazer para o jovem discussões pautadas em conhecimentos
especializados no sentido de promover esclarecimentos e também a redução do
preconceito. Numa era em que o jovem tem acesso a muita informação e nem sempre
tem clareza para distinguir entre o que é importante e fundamentado e o que não
é, cumpre à escola trazer para a sala de aula esses temas e lhe fornecer
instrumentos conceituais e teóricos para pensar essas questões fora do senso
comum.
Não existe “ideologia
de gênero”, não se busca universalizar um discurso mas, ao contrário, combater
o preconceito pelo debate qualificado. Aqueles que falam em ideologia em geral
são os mesmos que também tratam o feminismo e a homossexualidade como doenças,
com tratamento e cura, através da mistura espúria de ciência e religião ou de
uma leitura literal da Bíblia.
5. Paulo Freire
é o responsável pela decadência da educação no Brasil.
Essa é certamente
uma das mais idiotas de todas as bobagens que a direita tem repetido no Brasil.
Recentemente, todos os principais meios de comunicação noticiaram que Paulo
Freire é o único autor brasileiro entre os cem mais requisitados pelas
universidades de língua inglesa, com o livro “Pedagogia do oprimido”.
Paulo Freire se
tornou um dos bodes expiatórios que a direita escolheu pra demonizar no Brasil,
acusando-o de ser responsável pela ineficiência de nosso sistema educacional e
pela “doutrinação marxista” que ela pensa existir em nossas escolas. Então,
como é possível que um autor que causou tanto estrago na educação de seu país
esteja entre os mais pedidos e lidos pelas melhores universidades do mundo?
Aqueles que falam
isso na verdade nunca leram PF e, se alguns leram, nunca entenderam. Como disse
o historiador José Eustáquio Romão em entrevista à BBC, PF
“nunca foi aplicado no Brasil”. Na verdade, tudo o que a direita fala sobre ele
são estereótipos, frases reducionistas sem nenhuma preocupação com a veracidade
do que está sendo dito, como já é corriqueiro nesse segmento.
PF dialoga com o
marxismo mas sua concepção de educação não se limita a uma só linha de
pensamento. Crítico da ideologia, do autoritarismo e do discurso que fala em
neutralidade do ensino, ele mostra nesse livro que educar não é somente
transferir conhecimentos mas deve ser um ato voltado para a liberdade, sem com
isso se abrir mão da autoridade, do conhecimento e da competência profissional.
Nunca aplicamos
Paulo Freire como nunca aplicamos praticamente nenhum teórico da educação
porque educação nunca foi prioridade no Brasil, não apenas dos governos mas
também e principalmente da sociedade, inclusive daqueles que criticam PF. Seu
método de alfabetização parte da vivência cultural do grupo a ser alfabetizado,
a partir de palavras que fazem parte de seu cotidiano. Esse método foi usado em
países como Finlândia, Coreia do Sul e tem sido aplicado também no Japão,
Hungria, Armênia e País Basco.
Conclusão
Graças ao poder de
alcance da internet, todas essas mentiras e preconceitos têm se espalhado na
velocidade da luz e pega até gente que aparentemente deveria estar bem
preparada para identificar esses erros.
A direita no Brasil
resolveu sair do armário mas saiu furibunda e criticando assuntos que não
compreende e autores que não lê. Seu debate de baixo nível não fomenta nenhuma
possibilidade de diálogo. Tudo o que fala está eivado de ódio proto-fascista,
mágoa e maniqueísmo político. Mas também podemos usar a internet para levar
esclarecimentos e desconstruir essas narrativas.
Fonte: https://bertonesousa.wordpress.com/2016/02/26/cinco-mentiras-que-a-direita-quer-que-voce-acredite/
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