Bufão e desastrado,
presidente é apenas um sintoma. Poder geopolítico de Washington declina,
sistema político está em frangalhos e democratas investem em tola perseguição
aos russos…
Depois de 18 meses com
Trump na Casa Branca, a política norte-americana encontra-se numa encruzilhada.
Os Estados Unidos adotaram, inequivocamente, uma nova forma de fascismo que
serve aos militares e aos interesses corporativos, enquanto promovem, ao mesmo
tempo, uma agenda social altamente reacionária, impregnada de conotações nacionalistas
violentas e religiosas, tudo com um sinistro toque de encenação política. Nesta
entrevista exclusiva à Truthout, o intelectual e linguista mundialmente
renomado Noam Comsky analisa alguns dos últimos acontecimentos nos EUA e suas
consequências para a democracia e a ordem mundial.
Gostaria de começar
perguntando qual é a sua leitura do que aconteceu no encontro entre Trump e Kim
Jong-Un, em Singapura, e o modo como esse evento foi coberto pela mídia dos EUA
Faz lembrar Sherlock
Holmes e o cachorro que não latia. O importante foi o que não aconteceu. Ao
contrário de seus antecessores, Trump não minou as perspectivas de avançar.
Especificamente, não interrompeu o processo iniciado pelas duas Coreias em sua
histórica Declaração de 27 de abril [Panmunjom], na qual elas “afirmaram o
princípio de determinação do destino da nação coreana conforme seu próprio
acordo” (repito: conforme seu próprio acordo), e pela primeira vez apresentaram
um programa detalhado sobre como proceder. Trump tem um crédito por não minar
esses esforços, e na verdade ele fez um movimento para facilitá-los ao cancelar
as manobras militares EUA-Coreia do Sul, as quais, como disse ele com razão,
são “muito provocadoras”. Nós com certeza não toleraríamos nada semelhante em
nossas fronteiras – e em lugar algum do planeta – mesmo que eles não fossem
feitos por uma superpotência que há não muito tempo tivesse devastado
completamente nosso país com os pretextos mais frágeis, depois da guerra já ter
efetivamente terminado, orgulhando-se dos grandes crimes de guerra que cometeu,
como o bombardeio de grandes barragens, quando que não havia mais nada para
bombardear.
Além do mérito de deixar
as coisas prosseguirem, que não foi pequeno, nenhuma “habilidade diplomática”
esteve envolvida no triunfo de Trump. A cobertura foi bastante instrutiva, em
parte por causa dos esforços do Partido Democratas, para atacar Trump pela
direita.
Depois de meses de
retórica dura contra as práticas comerciais chinesas, Trump decidiu impor
tarifas de 50 bilhões de dólares nas importações da China, levando Pequim a
declarar que os EUA embarcaram numa guerra comercial e a anunciar que fará uma
retaliação contra as importações norte-americanas. Primeiro, não é verdade que
a China está hoje meramente praticando o mesmo tipo de políticas mercantis que
os EUA e a Grã Bretanha praticaram no passado, no seu caminho para a
ascendência global? Segundo, há expectativa de que mirar nas tarifas terá algum
impacto na economia chinesa ou no tamanho do déficit comercial dos EUA?
Finalmente, se uma nova era de protecionismo está para começar, quais poderiam
ser as consequências desse fato para o reino do neoliberalismo global?
Quanto às políticas
econômicas da China, sim, elas são semelhantes àquelas que foram usadas pelas
sociedades desenvolvidas em geral, a começar pela Grã Bretanha e depois por sua
ex-colônia norte-americana. Semelhante, porém mais limitada. A China não tem
disponíveis os meios de seus predecessores. A Grã Bretanha roubou tecnologia superior
à sua da Índia, Países Baixos, Irlanda e, por força de severo protecionismo,
minou a economia indiana — então, a mais avançada do mundo, junto com a da
China. Os Estados Unidos, sob o sistema hamiltoniano,
recorreram a altas tarifas para barrar os produtos britânicos, e também
apropriaram-se de tecnologia britânica de formas proibidas pelo atual sistema
de comércio global liderado pelos EUA. O historiador de economia Paul Bairoch
descreve os EUA como “o país-mãe e bastião do protecionismo” nos anos 1920 —
bem depois de se tornarem, de longe, o país mais rico do mundo.
A prática é em geral
chamada “chutar a escada” pelos historiadores de economia. Primeiro, os países
usam ceras práticas para desenvolver-se; depois, impedem que os outros façam o
mesmo.
(…)
Como fez, antes deles, a
Grã Bretanha, os EUA passaram a reivindicar “livre comércio”, mais tarde,
quando observaram que a tendência natural era tornarem-se predominantes. Depois
da Segunda Guerra Mundial, quando os EUA tinham um poder incomparável, eles
promoveram a “ordem mundial liberal”, a qual tem sido de enorme vantagem para o
sistema corporativo dos EUA, que agora possui cerca de metade da economia
global – um sucesso político espantoso.
De novo seguindo o modelo
britânico, os EUA firmaram seu compromisso com o “livre comércio” em favor do
poder privado doméstico. O “livre comércio” dominado pela Grã Bretanha manteve
a Índia como um protetorado em grande parte fechado. Os sistema dominado pelos
EUA impõe um mecanismo de patentes radical (“propriedade intelectual”), que
proporciona um poder virtualmente monopolista às maiores empresas
norte-americanas. O governo dos EUA fornece também enormes subsídios a
indústrias de energia, ao agronegócio e a instituições financeiras. Embora os
EUA reclamem da política industrial chinesa, foi crucial para a indústria
moderna de alta tecnologia contar com pesquisa e desenvolvimento feitos com
subsídios públicos, a tal ponto que a economia pode ser considerada como um
sistema de subsídios públicos e lucros privados. E há muitos outros mecanismos
para subsidiar a indústria. As compras governamentais, por exemplo, têm se
mostrado poderosas. Na verdade, só o enorme sistema militar, através de
aquisições, oferece um gigantesco subsídio estatal à indústria. Esses
comentários apenas tocam a superfície do problema.
(…)
O governo Trump está
agindo muito rápido para reprimir a imigração não autorizada no país, ao
separar crianças imigrantes de seus pais. Mais de duas mil crianças viveram
este drama nas últimas sete semanas, e o Procurador Geral Jeff Sessions tentou
justificar esta política citando um verso da Bíblia. O que se pode dizer de uma
sociedade ocidental avançada em que a religião continua a banir a razão na
construção de políticas e atitudes públicas? E não é verdade que os nazistas,
embora não fossem crentes, também usaram o cristianismo para justificar seus
atos criminosos e imorais?
A política migratória dos
EUA, sempre grotesca, desceu a níveis tão revoltantes que até mesmo muitos
daqueles que promovem e exploram a xenofobia estão correndo para se proteger –
como Trump, que está tentando desesperadamente culpar os democratas por ela, e
a primeira-dama, que está apelando para que “ambos os lados” se unam para
acabar com a obscenidade. Não deveríamos, contudo, negligenciar o fato de que a
Europa está rastejando na mesma sarjeta.
Pode-se citar as
escrituras para quase qualquer coisa que se queira. Sabe-se, sem dúvida, que
“toda a lei” se baseia em dois mandamentos: amar a Deus e “amar ao próximo como
a si mesmo”. Mas esse não é o pensamento apropriado à ocasião. É verdade,
contudo, que, desde que os puritanos desembarcaram, os EUA são únicos, entre as
sociedades desenvolvidas, no papel desempenhado pela religião na vida social.
Embora esteja claro que
os EUA estão a caminho de se tornar uma nação pária, os democratas continuam a
concentrar sua atenção principalmente no suposto conluio de Trump com a Rússia
e comportamento antiético. Ao mesmo tempo, tentam ultrapassar o presidente na
agenda chauvinista, adotando novas restrições para as eleições de 2020 de modo
a sabotar o apoio a Bernie Sanders. Diante disso, como você descreveria a
natureza da política contemporânea dos EUA?
Assim como na Europa, nos
Estados Unidos as políticas de centro, que predominam há muito, estão em
decadência. As razões não são obscuras. As pessoas que enfrentaram os rigores
do assalto neoliberal – austeridade, na recente versão europeia – percebem que
as instituições estão trabalhando para poucos, não para si. Nos EUA, as pessoas
não precisam ler ciência política acadêmica para saber que uma grande maioria,
aqueles que não estão próximos do alto da pirâmide de renda, estão efetivamente
marginalizados, no sentido de que seus próprios representantes prestam pouca
atenção às suas opiniões, dando ouvidos, ao contrário, às vozes dos ricos, à
classe dos doadores. Na Europa, qualquer um pode ver que as decisões básicas
são tomadas pela não eleita Troika, em Bruxelas, com os bancos do Norte espreitando
por cima de seus ombros.
Nos EUA, há muito tempo o
respeito pelo Congresso está num só dígito. Nas recentes primárias
republicanas, quando os candidatos emergiram da base, o establishment conseguiu
derrotá-los e nomear seu próprio candidato. Em 2016, isso falhou pela primeira
vez. É verdade que não escapa muito da norma um bilionário com enorme apoio da
mídia e fundos de campanha de quase um bilhão de dólares vencer uma eleição,
mas Trump dificilmente seria a escolha das elites republicanas. O resultado
mais espetacular dessas eleições não foi o fenômeno Trump. Foi, sim, o
extraordinário sucesso de Bernie Sanders, rompendo drasticamente com a história
política dos EUA. Sem o apoio das grandes corporações ou da mídia, Sanders bem
poderia ter vencido a nomeação democrata, não fosse pelas maquinações dos
dirigentes do partido de Obama-Clinton. Processos similares são visíveis nas
recentes eleições europeias.
Goste-se ou não, Trump
está indo bastante bem. Tem o apoio de 83% dos republicanos, algo sem
precedentes a não ser em raros momentos. Quaisquer que sejam seus sentimentos,
os republicanos não ousam contrariá-lo abertamente. Seu apoio geral de
aproximadamente 40% não está longe da norma, mais ou menos como o de Obama em
seu primeiro mandato. Ele tem sido pródigo em presentear o mundo dos negócios e
os super-ricos, o autêntico eleitorado republicano (a liderança democrata não
fica muito atrás). Jogou migalhas suficientes para manter os evangélicos
felizes e tocou os acordes certos para os partidários do supremacismo branco.
Até agora tem conseguido convencer os mineiros do carvão e os trabalhadores do
aço de que é um deles. Na verdade, seu apoio entre trabalhadores sindicalizados
aumentou para 51%.
Quase não há dúvidas de
que Trump não dá a mínima importância ao destino do país ou do mundo. “O que
importa sou eu”. Isso fica suficientemente claro por sua atitude em relação ao
aquecimento global. Ele está perfeitamente consciente da terrível ameaça – às
suas propriedades. Seu pedido de um paredão para proteger seu campo de golfe
irlandês baseia-se explicitamente na ameaça do aquecimento global. Mas a busca
pelo poder o impele a conduzir a corrida à destruição, bastante feliz, como
fica evidente em suas aparições. O mesmo acontece com outras ameaças sérias,
embora menores, entre elas a de que o país possa ficar isolado, desprezado,
decadente – com dívidas a pagar que não serão mais de sua conta.
Os democratas estão agora
divididos entre uma base popular de maioria social democrata e uma liderança
dos Novos Democratas, que cede à classe dos doadores. Sob Obama, o partido foi
reduzido a ruínas nos níveis local e estadual, uma questão particularmente
séria porque as eleições de 2020 determinarão o redistritamento, oferecendo
oportunidade ainda além da escandalosa situação de hoje para manipulações.
A falência da elite
democrata é bem ilustrada pela obsessão com a suposta intromissão russa em
nossas sagradas eleições. Qualquer que tenha sido – aparentemente muito pequena
–, ela não pode ser comparada a “intromissão” dos fundos de campanha, que
determinam os resultados eleitorais amplamente, de modo tão extenso quanto
demonstraram as pesquisas, particularmente o cuidadoso trabalho de Thomas
Ferguson – que ele e seus colegas estenderam agora para as eleições de 2016.
Como aponta Ferguson, quando as elites republicanas se deram conta de que ia
dar Trump ou Hillary, elas responderam com uma enorme onda de dinheiro de
última hora, o que não só levou Hillary a cair no fim de outubro como teve
também o mesmo efeito nos candidatos democratas para o Senado, numa “manobra de
bloqueio”, virtualmente. É “estranho”, observa Ferguson, que o ex-diretor do
FBI James Comey ou os russos “pudessem ser responsabilizados por ambos os
colapsos” nos estágios finais da campanha: “Pela primeira vez em toda a
história dos Estados Unidos, o resultado partidário das eleições para o Senado
coincidiu perfeitamente com os resultados da votação presidencial em todos os
estados.” O resultado está exatamente conforme a bem fundamentada “teoria do
investimento da competição partidária” de Ferguson.
Mas fatos e lógica pouco
importam. Os democratas estão empenhados em vingar-se pela derrota de 2016,
tendo executado uma campanha tão podre que uma vitória que parecia “certa”
escorreu entre os dedos. Evidentemente, o implacável ataque de Trump contra o
bem comum é de interesse secundário, ao menos para a elite do partido.
Às vezes observa-se que
os EUA não somente se intrometem, com regularidade, em eleições estrangeiras,
inclusive russas, como também agem para subverter, e às vezes derrubar governos
de que não gostam. Não faltam até agora consequências terríveis, da América
Central ao Oriente Médio. A Guatemala tem sido uma história de horror desde que
o golpe apoiado pelos EUA derrubou um governo reformista eleito em 1954. Gaza,
mergulhada na miséria, pode tornar-se inviável para viver em 2020, prevê a ONU
— e não pela mão de Deus.. Em 2006, os palestinos cometeram um crime grave:
promoveram as primeiras eleições livres no mundo árabe, e fizeram a escolha
“errada”, entregando o poder ao Hamas. Israel reagiu com a escalada da
violência e um cerco brutal. Os EUA retrocederam a uma operação de
procedimentos padão e prepararam um golpe militar, programado para derrubar o
Hamas. Em punição por mais este crime, aumentou muito a tortura de Gaza
perpetrada por Israel-EUA, não apenas pelo estrangulamento como também pelos
assassinatos regulares e invasões destruidoras feitas por Israel com o apoio
dos EUA, sob pretextos que não resistem a qualquer exame. Eleições com
resultado errado não podem obviamente ser toleradas sob nossa política de
“promoção da democracia”.
Nas recentes eleições
europeias houve muita preocupação com a possível intromissão russa. Isso foi particularmente
verdadeiro nas eleições alemãs de 2017, quando o partido de extrema direita
Alternative für Deutschland (AfD) saiu-se surpreendemente bem, ao conquistar,
pela primeira vez na História 94 assentos no Parlamento (Bundestag). Pode-se
imaginar facilmente a reação, no caso de descobrir-se intromissão russa por
trás desses resultados assustadores. Ocorre que foi, sim, descoberta
intromissão estrangeira, mas não da Rússia. A AfD contratou uma empresa de
mídia texana (Harris Media), conhecida pelo apoio a candidatos nacionalistas de
direita (Trump, Le Pen, Netanyahu). A empresa está entre as que cooperam com o
escritório de Berlim do Facebook, oferecendo informação detalhada sobre
eleitores potenciais para uso em microabordagem daqueles que poderiam ser
receptivos à mensagem da AfD. Pode ter funcionado. A história parece ter sido
ignorada fora da imprensa econômica.
Se o Partido Democrata não puder superar seus profundos problemas internos e a lenta expansão da economia sob os governos Obama e Trump continuar sem interrupção ou desastre, um bola de demolição republicana pode estar balançando as fundações de uma sociedade decente, e as perspectivas de sobrevivência, por um longo tempo.
Se o Partido Democrata não puder superar seus profundos problemas internos e a lenta expansão da economia sob os governos Obama e Trump continuar sem interrupção ou desastre, um bola de demolição republicana pode estar balançando as fundações de uma sociedade decente, e as perspectivas de sobrevivência, por um longo tempo.
Entrevista a C.J.
Polychroniou, no Truthout | Tradução: Inês Castilho
Fonte: https://outraspalavras.net/capa/chomsky-ve-a-decadencia-dos-eua-alem-de-trump/
Nenhum comentário:
Postar um comentário