Bolsonaro e o ''fascismo eterno''
A liberdade e a libertação são tarefas sem fim
(Umberto Eco)
Na data de 19/11/2009, Carta Maior publicou o admirável ensaio de Umberto Eco
sobre o fascismo intitulado O
Fascismo Eterno, que se tornou posteriormente um livro publicado em 2018
pela Editora Record. O ensaio foi publicado originalmente em inglês sob o
título de “Ur-Fascism” na edição de 22/6/1995 da revista “The New York Review
of Books” a partir de uma conferência na Universidade de Columbia em 24/4/1995.
O ex-deputado Jair Bolsonaro, que atualmente ocupa o Palácio do Planalto como
presidente, foi inúmeras vezes acusado de fascista. Entre os historiadores e
cientistas políticos, não faltou quem protestasse contra esse uso abusivo da
palavra fascismo, que só encontraria sentido na Europa, no período histórico de
1930 a 1945, antes e durante a Segunda Guerra Mundial.
Como as características e atitudes do atual presidente são próximas ao
fascismo, ressalvadas as diferenças históricas, julgamos útil recorrer ao texto
clássico de Umberto Eco sobre o fascismo. O escritor italiano aponta 14
características como típicas do que chamou de “Fascismo Eterno” ou
“Ur-Fascismo”. Passamos a resumi-las com o objetivo de comparar com o fascismo
tropical do atual presidente, recomendando, entretanto, a leitura integral do
magnífico texto de Umberto Eco.
1. A primeira característica de um Fascismo Eterno é o culto da tradição. O
tradicionalismo é mais velho que o fascismo. Não somente foi típico do pensamento
contra reformista católico depois da Revolução Francesa, mas nasceu no final da
idade helenística como uma reação ao racionalismo grego clássico. Em
consequência, não pode existir avanço do saber. A verdade já foi anunciada de
uma vez por todas, e só podemos continuar a interpretar sua obscura mensagem.
Fascismo e fundamentalismo sempre vêm juntos. É suficiente observar o ideário
de qualquer movimento fascista para encontrar os principais pensadores
tradicionalistas.
2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade. O iluminismo, a idade da
Razão, era considerado o início da depravação moderna. Nesse sentido, o
Fascismo pode ser definido como “irracionalismo”. Daí a rejeição a direitos
iguais, mudanças climáticas, luta pelo reconhecimento de identidades oprimidas
etc, vistas como “coisa de comunistas”.
3. O irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela em
si, portanto, deve ser realizada sem nenhuma reflexão. “Pensar é uma forma de
castração”. Por isso, a cultura é suspeita na medida em que é identificada com
atitudes críticas. As universidades são um ninho de “comunistas”, a suspeita em
relação ao mundo intelectual sempre foi um sintoma de Fascismo. Os intelectuais
fascistas oficiais estavam empenhados principalmente em acusar a cultura
moderna e a inteligência liberal de abandono dos valores tradicionais.
4. Nenhuma fé sincrética pode suportar críticas analíticas. O espírito crítico
opera distinções, e distinguir é um sinal de modernidade. Na cultura moderna, a
comunidade científica percebe o desacordo como instrumento de avanço dos
conhecimentos. Para o Fascismo, o desacordo é traição.
5. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade. O Fascismo cresce e
busca o consenso desfrutando e exacerbando o medo da diferença. O primeiro
apelo de um movimento fascista é contra os intrusos. O Fascismo é, portanto,
racista e xenofóbico por definição.
6. O Fascismo provém da frustração individual ou social. O que explica por que
uma das características dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes
médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação
política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos.
7. Para os que se veem privados de qualquer identidade social, o Fascismo
exalta o país onde nasceram. Esta é a origem do nacionalismo vulgar. Os únicos
que podem fornecer uma identidade às nações são os inimigos. Assim, na raiz da
psicologia fascista está a obsessão do complô, possivelmente internacional. Na
falta deste, inventa-se um inimigo interno. Os seguidores têm que se sentir
sitiados. O modo mais fácil de fazer emergir um complô é o apelo à xenofobia.
Mas o complô tem que vir também do interior: os judeus e os comunistas são, em
geral, o melhor objetivo porque oferecem a vantagem de estar, ao mesmo tempo,
dentro e fora.
8. Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do
inimigo. Os inimigos são ora fortes demais, ora fracos demais, conforme a
necessidade da retórica. O fascista é incapaz de analisar a correlação de
forças e avaliar a real força do “inimigo”.
9. Para o Fascismo não há luta pela vida, mas antes “vida para a luta”. Logo, o
pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra
permanente. Os inimigos podem e devem ser derrotados, tem que haver uma batalha
final e, em seguida, o movimento assumirá o controle do mundo. Então, haveria
paz, o que gera uma contradição, porque isso contraria o princípio da guerra
permanente do fascismo eterno.
10. O elitismo é um aspecto típico de qualquer ideologia reacionária, enquanto
fundamentalmente aristocrática. Todos os elitismos aristocráticos e
militaristas mostraram desprezo pelos fracos. O líder, cujo poder em geral não
foi obtido por delegação, mas conquistado pela força, sabe também que sua força
se baseia na debilidade das massas, tão fracas que têm necessidade e merecem um
“dominador”.
11. Nesta perspectiva, cada um é educado para tornar-se um herói. Em qualquer
mitologia, o “herói” é um ser excepcional, mas na ideologia do Fascismo Eterno
o heroísmo é a norma. Este culto do heroísmo é estreitamente ligado ao culto da
morte: não é por acaso que o mote dos falangistas era “Viva la muerte!” O herói
do Fascismo Eterno espera impacientemente pela morte. E sua impaciência consegue
em geral levar os outros à morte.
12. Como a guerra permanente e o heroísmo são jogos difíceis de jogar, o
“Ur-Fascista” transfere sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é a
origem do machismo (que implica desdém pelas mulheres e uma condenação
intolerante de hábitos sexuais não-conformistas, da castidade à
homossexualidade). Como o sexo também é um jogo difícil de jogar, o herói
fascista joga com as armas, que são seu Ersatz fálico.
13. O Fascismo baseia-se em um “populismo seletivo” ou “qualitativo”. Em uma
democracia, os cidadãos gozam de direitos individuais, mas o conjunto de
cidadãos só é dotado de impacto político do ponto de vista quantitativo (as
decisões da maioria são acatadas). Para o Fascismo, os indivíduos enquanto
indivíduos não têm direitos e “o povo” é concebido como uma qualidade abstrata,
uma entidade monolítica que exprime “a vontade comum”. O povo é, assim, apenas
uma ficção teatral.
Encontramos um populismo qualitativo na TV ou Internet, influenciando a
resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos que pode ser apresentado
e aceito como a “voz do povo”. Por causa de seu populismo qualitativo, o
Fascismo Eterno deve ser contra os governos parlamentares, considerados
“podres”. Cada vez que um político põe em dúvida a legitimidade do parlamento
por não representar mais a “voz do povo”, pode-se sentir o cheiro de Fascismo.
14. O Fascismo Eterno fala a “novilíngua”, termo inventado por George Orwell em
seu livro 1984, como língua oficial do Ingsoc, o Socialismo Inglês, mas certos
elementos são comuns a diversas formas de ditadura. Todos os textos escolares
nazistas ou fascistas baseavam-se em um léxico pobre e em uma sintaxe
elementar, com o fim de limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e
crítico.
Se aplicarmos a Bolsonaro os 14 critérios de Umberto Eco para avaliação do
“fascismo eterno”, veremos que a maioria é adequada e ele pode tranquilamente
ser chamado de fascista. Com efeito, os dois primeiros critérios – o
tradicionalismo e o irracionalismo – se aplicam perfeitamente. Bolsonaro
assumiu os valores tradicionais do neopentecostalismo e adotou uma postura pré
moderna e anticientífica. Sua atitude na crise da pandemia é uma triste e
criminosa demonstração de sua negação da ciência, com base no “pensador” que
influenciou o bolsonarismo, aquele astrólogo que mora nos EUA.
O terceiro e o quarto critérios caem como uma luva. O irracionalismo e a
negação do espírito crítico são marcas do bolsonarismo. Quem critica é traidor.
O intelectual, o artista, por terem espírito crítico, são vistos como inimigos.
A cultura é repudiada. Deve-se aceitar a verdade da ordem estabelecida. Daí,
“escola sem partido”, sem iniciação ao pensamento crítico e a liberdade de
expressão e ação.
O quinto critério é a negação da diversidade e da diferença que leva a
preconceitos contra a mulher, gay, negro e índio, tantas vezes demonstrados
pelo atual presidente.
O sexto critério é o apelo às classes médias, frustradas pelas crises
econômicas e assustadas com a possível ascensão dos mais pobres, como ocorreu
no governo Lula. O sétimo e o oitavo critérios se baseiam no sentimento de
patriotismo fundado somente no fato de ser brasileiro e se apegar aos símbolos
da nacionalidade como a bandeira e o hino nacionais. Estamos fartos de ver isso
nas manifestações bolsonaristas contra a democracia e contra o inimigo
imaginário que foi inventado para assustar: o comunismo. Os que não se
identificam com isso são inimigos da nação. Portanto, devem ser excluídos. Daí,
o grito de “Vai pra Cuba” ou “Vai pra Venezuela”.
O nono critério é a exaltação da guerra, palavra frequente no vocabulário de
Bolsonaro como, por exemplo, a “guerra contra o marxismo cultural” e a “guerra
contra os governadores e prefeitos”. O décimo é o desprezo das massas que devem
aceitar sem discussão a decisão de seu líder despótico. O décimo primeiro é
sobre o heroísmo e a exaltação da morte. Não creio que o bolsonarista padrão
esteja disposto a morrer, estará provavelmente mais disposto a matar. Mas a
necropolítica está presente no discurso e nas diversas propostas de Bolsonaro,
desde suprimir as medidas de controle do tráfego, armas para todos, a guerra
civil “onde morrerão 30 mil”, até o incentivo à morte pela rejeição do
isolamento social na pandemia.
O décimo segundo critério diz respeito à transferência do poder para questões
sexuais. A arma se torna a projeção do pênis. Daí vem a violência, o machismo,
o desprezo das mulheres (“no quarto filho eu fraquejei e nasceu mulher”) e o
ataque a comportamentos sexuais visto como “anormais” como o LGBT. Não há lugar
para a liberdade de opção sexual e de gênero.
No décimo terceiro, o povo é visto como entidade abstrata, uma ficção teatral,
e os direitos individuais são negados. O líder fala em nome da “maioria” para
negar direitos civis, políticos e sociais e ataca as instituições democráticas
e o poder legislativo, considerado corrupto e podre. Quem representa o povo é o
líder e não o Parlamento. As manifestações estimuladas por Bolsonaro e seu
grupo sempre atacam e pedem o fechamento do Congresso e do STF.
Finalmente, o décimo quarto critério aponta para a linguagem pobre e elementar
que limita a possibilidade de um raciocínio complexo e crítico. Além da pobreza
da linguagem de Bolsonaro, são exemplos grotescos o uso frequente de palavrões
e o famoso “tá Ok”, pronunciado “talquei”.
Com efeito, com um ou outro ponto que talvez não se aplique tendo em vista a
diferença no espaço e no tempo histórico, creio que os critérios de Umberto Eco
para definir o fascismo eterno se aplicam quase integralmente aos bolsonaristas.
Assim, caro leitor, se você, como eu, já chamou Bolsonaro de fascista e já leu
críticas ao uso não rigoroso do termo fascista, pode ficar tranquilo. Temos um
bom fundamento teórico e prático. E, com Umberto Eco, estamos em boa companhia.
Fonte: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Bolsonaro-e-o-fascismo-eterno-/4/47526
terça-feira, 19 de maio de 2020
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