terça-feira, 19 de maio de 2020

Bolsonaro e o ''fascismo eterno'' - Por Liszt Vieira

Bolsonaro e o ''fascismo eterno''
A liberdade e a libertação são tarefas sem fim
(Umberto Eco)

Na data de 19/11/2009, Carta Maior publicou o admirável ensaio de Umberto Eco sobre o fascismo intitulado O Fascismo Eterno, que se tornou posteriormente um livro publicado em 2018 pela Editora Record. O ensaio foi publicado originalmente em inglês sob o título de “Ur-Fascism” na edição de 22/6/1995 da revista “The New York Review of Books” a partir de uma conferência na Universidade de Columbia em 24/4/1995.

O ex-deputado Jair Bolsonaro, que atualmente ocupa o Palácio do Planalto como presidente, foi inúmeras vezes acusado de fascista. Entre os historiadores e cientistas políticos, não faltou quem protestasse contra esse uso abusivo da palavra fascismo, que só encontraria sentido na Europa, no período histórico de 1930 a 1945, antes e durante a Segunda Guerra Mundial.

Como as características e atitudes do atual presidente são próximas ao fascismo, ressalvadas as diferenças históricas, julgamos útil recorrer ao texto clássico de Umberto Eco sobre o fascismo. O escritor italiano aponta 14 características como típicas do que chamou de “Fascismo Eterno” ou “Ur-Fascismo”. Passamos a resumi-las com o objetivo de comparar com o fascismo tropical do atual presidente, recomendando, entretanto, a leitura integral do magnífico texto de Umberto Eco.

1. A primeira característica de um Fascismo Eterno é o culto da tradição. O tradicionalismo é mais velho que o fascismo. Não somente foi típico do pensamento contra reformista católico depois da Revolução Francesa, mas nasceu no final da idade helenística como uma reação ao racionalismo grego clássico. Em consequência, não pode existir avanço do saber. A verdade já foi anunciada de uma vez por todas, e só podemos continuar a interpretar sua obscura mensagem. Fascismo e fundamentalismo sempre vêm juntos. É suficiente observar o ideário de qualquer movimento fascista para encontrar os principais pensadores tradicionalistas.

2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade. O iluminismo, a idade da Razão, era considerado o início da depravação moderna. Nesse sentido, o Fascismo pode ser definido como “irracionalismo”. Daí a rejeição a direitos iguais, mudanças climáticas, luta pelo reconhecimento de identidades oprimidas etc, vistas como “coisa de comunistas”.

3. O irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si, portanto, deve ser realizada sem nenhuma reflexão. “Pensar é uma forma de castração”. Por isso, a cultura é suspeita na medida em que é identificada com atitudes críticas. As universidades são um ninho de “comunistas”, a suspeita em relação ao mundo intelectual sempre foi um sintoma de Fascismo. Os intelectuais fascistas oficiais estavam empenhados principalmente em acusar a cultura moderna e a inteligência liberal de abandono dos valores tradicionais.

4. Nenhuma fé sincrética pode suportar críticas analíticas. O espírito crítico opera distinções, e distinguir é um sinal de modernidade. Na cultura moderna, a comunidade científica percebe o desacordo como instrumento de avanço dos conhecimentos. Para o Fascismo, o desacordo é traição.

5. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade. O Fascismo cresce e busca o consenso desfrutando e exacerbando o medo da diferença. O primeiro apelo de um movimento fascista é contra os intrusos. O Fascismo é, portanto, racista e xenofóbico por definição.

6. O Fascismo provém da frustração individual ou social. O que explica por que uma das características dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela pressão dos grupos sociais subalternos.

7. Para os que se veem privados de qualquer identidade social, o Fascismo exalta o país onde nasceram. Esta é a origem do nacionalismo vulgar. Os únicos que podem fornecer uma identidade às nações são os inimigos. Assim, na raiz da psicologia fascista está a obsessão do complô, possivelmente internacional. Na falta deste, inventa-se um inimigo interno. Os seguidores têm que se sentir sitiados. O modo mais fácil de fazer emergir um complô é o apelo à xenofobia. Mas o complô tem que vir também do interior: os judeus e os comunistas são, em geral, o melhor objetivo porque oferecem a vantagem de estar, ao mesmo tempo, dentro e fora.

8. Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo. Os inimigos são ora fortes demais, ora fracos demais, conforme a necessidade da retórica. O fascista é incapaz de analisar a correlação de forças e avaliar a real força do “inimigo”.

9. Para o Fascismo não há luta pela vida, mas antes “vida para a luta”. Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente. Os inimigos podem e devem ser derrotados, tem que haver uma batalha final e, em seguida, o movimento assumirá o controle do mundo. Então, haveria paz, o que gera uma contradição, porque isso contraria o princípio da guerra permanente do fascismo eterno.

10. O elitismo é um aspecto típico de qualquer ideologia reacionária, enquanto fundamentalmente aristocrática. Todos os elitismos aristocráticos e militaristas mostraram desprezo pelos fracos. O líder, cujo poder em geral não foi obtido por delegação, mas conquistado pela força, sabe também que sua força se baseia na debilidade das massas, tão fracas que têm necessidade e merecem um “dominador”.

11. Nesta perspectiva, cada um é educado para tornar-se um herói. Em qualquer mitologia, o “herói” é um ser excepcional, mas na ideologia do Fascismo Eterno o heroísmo é a norma. Este culto do heroísmo é estreitamente ligado ao culto da morte: não é por acaso que o mote dos falangistas era “Viva la muerte!” O herói do Fascismo Eterno espera impacientemente pela morte. E sua impaciência consegue em geral levar os outros à morte.

12. Como a guerra permanente e o heroísmo são jogos difíceis de jogar, o “Ur-Fascista” transfere sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é a origem do machismo (que implica desdém pelas mulheres e uma condenação intolerante de hábitos sexuais não-conformistas, da castidade à homossexualidade). Como o sexo também é um jogo difícil de jogar, o herói fascista joga com as armas, que são seu Ersatz fálico.

13. O Fascismo baseia-se em um “populismo seletivo” ou “qualitativo”. Em uma democracia, os cidadãos gozam de direitos individuais, mas o conjunto de cidadãos só é dotado de impacto político do ponto de vista quantitativo (as decisões da maioria são acatadas). Para o Fascismo, os indivíduos enquanto indivíduos não têm direitos e “o povo” é concebido como uma qualidade abstrata, uma entidade monolítica que exprime “a vontade comum”. O povo é, assim, apenas uma ficção teatral.

Encontramos um populismo qualitativo na TV ou Internet, influenciando a resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos que pode ser apresentado e aceito como a “voz do povo”. Por causa de seu populismo qualitativo, o Fascismo Eterno deve ser contra os governos parlamentares, considerados “podres”. Cada vez que um político põe em dúvida a legitimidade do parlamento por não representar mais a “voz do povo”, pode-se sentir o cheiro de Fascismo.

14. O Fascismo Eterno fala a “novilíngua”, termo inventado por George Orwell em seu livro 1984, como língua oficial do Ingsoc, o Socialismo Inglês, mas certos elementos são comuns a diversas formas de ditadura. Todos os textos escolares nazistas ou fascistas baseavam-se em um léxico pobre e em uma sintaxe elementar, com o fim de limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico.

Se aplicarmos a Bolsonaro os 14 critérios de Umberto Eco para avaliação do “fascismo eterno”, veremos que a maioria é adequada e ele pode tranquilamente ser chamado de fascista. Com efeito, os dois primeiros critérios – o tradicionalismo e o irracionalismo – se aplicam perfeitamente. Bolsonaro assumiu os valores tradicionais do neopentecostalismo e adotou uma postura pré moderna e anticientífica. Sua atitude na crise da pandemia é uma triste e criminosa demonstração de sua negação da ciência, com base no “pensador” que influenciou o bolsonarismo, aquele astrólogo que mora nos EUA.

O terceiro e o quarto critérios caem como uma luva. O irracionalismo e a negação do espírito crítico são marcas do bolsonarismo. Quem critica é traidor. O intelectual, o artista, por terem espírito crítico, são vistos como inimigos. A cultura é repudiada. Deve-se aceitar a verdade da ordem estabelecida. Daí, “escola sem partido”, sem iniciação ao pensamento crítico e a liberdade de expressão e ação.

O quinto critério é a negação da diversidade e da diferença que leva a preconceitos contra a mulher, gay, negro e índio, tantas vezes demonstrados pelo atual presidente.

O sexto critério é o apelo às classes médias, frustradas pelas crises econômicas e assustadas com a possível ascensão dos mais pobres, como ocorreu no governo Lula. O sétimo e o oitavo critérios se baseiam no sentimento de patriotismo fundado somente no fato de ser brasileiro e se apegar aos símbolos da nacionalidade como a bandeira e o hino nacionais. Estamos fartos de ver isso nas manifestações bolsonaristas contra a democracia e contra o inimigo imaginário que foi inventado para assustar: o comunismo. Os que não se identificam com isso são inimigos da nação. Portanto, devem ser excluídos. Daí, o grito de “Vai pra Cuba” ou “Vai pra Venezuela”.

O nono critério é a exaltação da guerra, palavra frequente no vocabulário de Bolsonaro como, por exemplo, a “guerra contra o marxismo cultural” e a “guerra contra os governadores e prefeitos”. O décimo é o desprezo das massas que devem aceitar sem discussão a decisão de seu líder despótico. O décimo primeiro é sobre o heroísmo e a exaltação da morte. Não creio que o bolsonarista padrão esteja disposto a morrer, estará provavelmente mais disposto a matar. Mas a necropolítica está presente no discurso e nas diversas propostas de Bolsonaro, desde suprimir as medidas de controle do tráfego, armas para todos, a guerra civil “onde morrerão 30 mil”, até o incentivo à morte pela rejeição do isolamento social na pandemia.

O décimo segundo critério diz respeito à transferência do poder para questões sexuais. A arma se torna a projeção do pênis. Daí vem a violência, o machismo, o desprezo das mulheres (“no quarto filho eu fraquejei e nasceu mulher”) e o ataque a comportamentos sexuais visto como “anormais” como o LGBT. Não há lugar para a liberdade de opção sexual e de gênero.

No décimo terceiro, o povo é visto como entidade abstrata, uma ficção teatral, e os direitos individuais são negados. O líder fala em nome da “maioria” para negar direitos civis, políticos e sociais e ataca as instituições democráticas e o poder legislativo, considerado corrupto e podre. Quem representa o povo é o líder e não o Parlamento. As manifestações estimuladas por Bolsonaro e seu grupo sempre atacam e pedem o fechamento do Congresso e do STF.

Finalmente, o décimo quarto critério aponta para a linguagem pobre e elementar que limita a possibilidade de um raciocínio complexo e crítico. Além da pobreza da linguagem de Bolsonaro, são exemplos grotescos o uso frequente de palavrões e o famoso “tá Ok”, pronunciado “talquei”.

Com efeito, com um ou outro ponto que talvez não se aplique tendo em vista a diferença no espaço e no tempo histórico, creio que os critérios de Umberto Eco para definir o fascismo eterno se aplicam quase integralmente aos bolsonaristas.

Assim, caro leitor, se você, como eu, já chamou Bolsonaro de fascista e já leu críticas ao uso não rigoroso do termo fascista, pode ficar tranquilo. Temos um bom fundamento teórico e prático. E, com Umberto Eco, estamos em boa companhia.

Fonte: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Bolsonaro-e-o-fascismo-eterno-/4/47526

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