Multiplicam-se as alianças da oligarquia financeira com os
Trump, Bolsonaro e Orban. Desde a crise de 2008, sistema abandonou os anéis,
para manter objetivo essencial: estender a racionalidade ultracapitalista a
nossa vida e subjetividade
Imagem: James Ensor, The Man & the Mask (1891)
Introdução
O neoliberalismo encontra-se atravessado desde o início por
tensões e divisões internas. Está, pois, caracterizado por sua pluralidade
interna, sua plasticidade e sua capacidade de mutação. E este ponto é
enfatizado fortemente por Wendy Brown: longe de se manter unificado, o
neoliberalismo é caracterizado por “seu caráter irregular, sua falta de
identidade própria, sua variabilidade espacial e temporal e, acima de tudo, sua
propensão à reconfiguração”. Portanto, devemos falar aqui de um neoliberalismo
“antigo” e de um “novo”, a fim de melhor destacar o caráter plural,
multifacetado e plástico desse “novo neoliberalismo” que agora aparece em
várias partes do mundo.
O termo “neoliberalismo” foi cunhado pelo industrial francês
Louis Marlio durante a Conferência Walter Lippmann, em 1938, às vésperas da
Segunda Guerra Mundial. Desde então, assumiu um significado tão frouxo que se
tornou importante apreendê-lo de modo mais preciso. De fato, deve-se evitar que
seja invocado o tempo todo, de maneira indiscriminada e indiferenciada, como um
termo genérico – e não como um conceito. Também não pode ser reduzido a um
registro puramente denunciador, que tem o efeito de “engolir todas as
diferenças” na noite em que todas as vacas são pardas, como diria Hegel. Assim,
tornamo-nos incapazes de determinar em cada situação o que consiste numa
política neoliberal e o que escapa dela.
Pode acontecer que um governo que não seja neoliberal por
sua ideologia ou sua inspiração intelectual, mas que implemente uma ou mais
políticas neoliberais. Isso ocorre às vezes devido à grande restrição global
que ele exerce enquanto um sistema atual de poder.
Há vários anos, vários governos da América Latina (Brasil,
Venezuela, Chile, Bolívia, Equador) foram rotulados, de um modo tão enganoso
quanto autopromocional, de “pós-neoliberalismo”; entretanto, ao mesmo tempo,
eles estavam implementando políticas neoliberais. Hoje temos o caso do governo
de Orban, campeão da “democracia iliberal”, que conseguiu aprovar uma lei de
“trabalho escravo”; esta autoriza os líderes empresariais a impor aos seus
funcionários 400 horas extras de trabalho mediante um pagamento que pode ser
adiado por até três anos. Ora, esse governo é perfeitamente neoliberal em sua
política e em seu espírito. Portanto, é extremamente importante entender a
diversidade do neoliberalismo, bem como sua lógica subjacente.
Fratura interna à racionalidade neoliberal
A divisão que está surgindo no campo do neoliberalismo é de
natureza diferente; eis que aparece agora uma divisão entre “liberais” e
“nacionalistas”. Por um lado, têm-se Macron, Merkel e Junker, por outro, têm-se
Orban, Trump e Salvini; ora, todos eles têm interesse em dramatizar as questões
para fins eleitorais óbvios. De fato, os atuais neoliberais não repetem a
divisão de 1957 entre “constitucionalistas” e “universalistas”: os primeiros,
eram partidários de acordos regionais ou locais bilaterais, em vez de grandes
acordos multilaterais; os segundos eram a favor da integração em grupos
supranacionais e, por isso, tinham um projeto de uma constituição europeia.
Há algo novo na história política do neoliberalismo que não
devemos procurar mitigar, reduzindo-o ao já visto ou conhecido. A hipótese que
proponho é ver nele uma fratura interna da racionalidade neoliberal, uma
fratura que provavelmente comprometerá alguns dos arranjos elaborados na década
de 1990, particularmente no que diz respeito às regras comerciais globais. O
desafio implícito nessa oposição interna ao neoliberalismo é a reorganização da
economia mundial após a crise de 2008, em um contexto de ascensão de novas
potências (como a China).
Mas o que exatamente se entende por “racionalidade”? Nem uma
ideologia nem uma política, mas uma normatividade, isto é, uma lógica das
práticas governamentais ordenadas por padrões, das quais a primeira e mais
importante delas é a da concorrência. Com isso, entendemos que o neoliberalismo
não pode ser reduzido à política de austeridade ou às políticas econômicas
monetaristas, ou ainda à saturação da sociedade por meio de uma pletora de mercadorias
ou mesmo pela ditadura dos mercados financeiros. Na realidade, consiste em uma
extensão da lógica de valorização do capital além da esfera do mercado
entendida em sentido econômico. Essa lógica passa a abranger também o próprio
Estado e mesmo as pessoas; ela conforma assim as nossas vidas e as nossas
subjetividades. Isso vai muito além de uma simples “economia” para chegar a ser
a criação de uma forma de vida.
Deste ponto de vista, a figura de Trump é exemplar: ele
personifica até mesmo em suas práticas de governar o Estado empreendedor e
constantemente aproveita sua experiência como empresário como líder do Estado.
Certamente se opõe à globalização comercial, mas é muito favorável à
globalização financeira. Foi isso que escapou a alguns, como Ignacio Ramonet,
que diagnosticou na vitória eleitoral de Trump uma ruptura com o
neoliberalismo. Eis que confundiu uma ruptura com a “ideologia globalista” e
uma ruptura com a racionalidade neoliberal.
Ao distinguir entre “ideologia” e “racionalidade” é preciso
ter muito cuidado. A própria Wendy Brown corrigiu recentemente a distinção que
havia feito entre neoconservadorismo e neoliberalismo, identificando o primeiro
com a defesa dos valores familiares tradicionais e supondo que se tratava de
uma ideologia estranha à racionalidade neoliberal. Na realidade, o
neoliberalismo combinou desde o início a defesa da moralidade tradicional e a
extensão da lógica de mercado. À medida que seu sucesso avançou, passou a dar
um novo papel à família, qual seja ele, encarregar-se da assistência social em
vez do Estado, juntamente com educação, creche e assistência aos idosos. Este
caráter regressivo agora está se tornando manifesto.
Devemos, portanto, evitar confundir essa apreciação da
família e dos princípios morais tradicionais, constitutivos da racionalidade
neoliberal, com esta ou aquela “ideologia” no sentido de um sistema de crenças
e representações, tal como, por exemplo, esta ou aquela religião (o Islã sunita
para a Turquia de Erdogan, a Igreja Ortodoxa para a Hungria de Orban ou alguma
variedade de protestantismo nos EUA). Isso não impede que o conteúdo dessas
ideologias contribua mais ou menos diretamente para o fortalecimento da lógica
neoliberal. Se considerarmos o caso do Brasil de Bolsonaro, estamos lidando
também com uma forma de religiosidade, a das igrejas evangélicas que defendem a
“teologia da prosperidade”.
A razão normativa e governamental do neoliberalismo foi
estabelecida no final dos anos 1980 e início dos anos 90. Não surgiu
subitamente, mas foi preparada por vários experimentos. Havia, portanto, elementos
de governamentalidade, mas que ainda não formavam realmente um sistema. Se
olharmos mais de perto o caso do Chile de Pinochet, podemos ver que a ditadura
desde muito cedo pôs em prática tais elementos. De fato, uma das medidas mais
significativas da “terapia de choque” após o 11 de setembro de 1975 foi a
privatização das universidades: com ela foi criada uma estrutura legal e
institucional conformadora da conduta dos indivíduos, a qual se tornou duradoura
e profundamente voltada na direção de uma adesão à norma da competição
generalizada. Os efeitos dessa transformação não serão total e abertamente
implantados até depois dos anos 90, mas eles continuam sendo sentidos
atualmente.
Entretanto, falar de uma racionalidade neoliberal de maneira
alguma implica em assimilá-la à ação de um rolo compressor indiferente à
diversidade de situações, contextos culturais e tradições nacionais. A razão
neoliberal pode ser uma razão global, no duplo sentido de “transversal” e
“global”, mas não é uma razão unitária que exerceria uma
homogeneização em escala mundial. Essa visão de que há uma identidade homogênea
se alimenta da vulgata anti-neoliberal do fundamentalismo de mercado e, em
particular, da metáfora da tabula rasa que Naomi Klein usa
extensivamente. Por outro lado, é preciso estar atento à modulação diferenciada
dessa normatividade de acordo com países e situações nacionais.
O governo de Salvini e Di Maio, na Itália, ofereceu um bom
exemplo dessa plasticidade e dessa hibridização interna ao neoliberalismo.
Existiu uma situação complexa em que uma coalizão eleitoral entre um partido
neofascista tradicional (Lega) e uma nova formação (Cinque Stelle) foi montada
para formar um governo. De fato, o que se deu foi que o Lega Nord, um
partido étnico e regionalista que participou de várias coalizões de direita nos
anos 1990 e 2000, antes de retornar ao poder, aliou-se ao movimento Cinque
Stelle, o qual é bastante típico do que chamamos de “novo neoliberalismo”.
Juntando uma política de identidade nacional voltada contra a imigração e uma
política de segurança igualmente violenta, o partido de Salvini pode adotar uma
postura ao mesmo tempo nacionalista e neoliberal.
Por seu lado nacionalista, o Lega ficou contra a União
Monetária, o euro e o livre comércio generalizado; segundo os seus líderes, o
“europeísmo” e o “globalismo” estão prejudicando a economia do país e, assim, o
povo italiano. Por seu lado neoliberal, o Lega ataca qualquer lógica
de redistribuição de impostos e de gastos públicos. Como base na tese de um
imposto igualmente distribuído, pretende apoiar sobretudo as pequenas e médias
empresas, reduzindo os seus custos e os padrões que regem a produção e o
mercado de trabalho.
Tal como Trump, trata-se de reafirmar a soberania comercial
e, especialmente, monetária, enquanto liberaliza o mercado interno para o
benefício de empresários erigidos como heróis nacionais. Mas o que, no contexto
italiano específico, talvez melhor caracterize o Lega é sua estratégia de
reorganização interna do Estado italiano a longo prazo: trata-se de fortalecer
a autonomia das regiões, aumentando as suas capacidades e os seus recursos
fiscais, contra qualquer desejo de igualdade dos cidadãos perante os serviços
públicos mais básicos.
Quanto à “renda da cidadania” adotada pela coalizão, foi uma
tentativa de agradar ao eleitorado de Cinque Stelle, que defende um
“neoliberalismo paternalista”: bem longe de promover a participação ativa da
cidadania, ela vem acompanhada por restrições drásticas (a renda é creditada
pelas agências de emprego temporário e não beneficia os estrangeiros – exceto
os residentes no país há 5 ou 10 anos). Envolve um controle do uso do dinheiro que
visa impedir despesas “imorais” etc. que o conformam como um instrumento para
moralizar os pobres e disciplinar a força de trabalho em benefício das
empresas.
Portanto, temos nacionalismo identitário, anti-UE e
anti-migrante na relação externa combinado com um
enfraquecimento em sentido quase federalista da estrutura do Estado italiano,
renovando assim as dificuldades históricas ligadas à unificação da Itália.
Diferentemente da posição adotada na França pelo Front Nacional, o nacionalismo
identitário não implica, portanto, a promoção de um Estado unitário
centralizado, o que de forma alguma impede que uma lógica hiper autoritária se
afirme na ação do governo que esteve na cabeça do Estado.
Outro exemplo é o da AfD na Alemanha. Esse partido foi
formado a partir de uma plataforma ordoliberal centrada na demanda por
estabilidade monetária e na recusa de qualquer solidariedade com os países do
sul da UE. Ela joga com a imaginação da “economia social de mercado”,
característica do ordoliberalismo desde a década de 1950. Novamente, esse
nacionalismo é, antes de tudo, anti-imigrante e anti-UE, sem que o Estado
fortemente defendido implique numa centralização às custas da estrutura
federal.
O que é surpreendente é que, apesar da diversidade de
caminhos adotados, seja legalização ou modificações constitucionais, o
neoliberalismo atual não sente a necessidade de recorrer ao arsenal do “estado
de exceção” teorizado por Agamben no início dos anos 2000. Assim, no Brasil,
após as modificações constitucionais iniciadas por Temer para impor um teto aos
gastos públicos, a reforma previdenciária planejada pelo governo Bolsonaro
modificou a Constituição sem a necessidade de revoga-la ou suspendê-la.
Como explica Tatiana Roque em “Democracia no Brasil:
uma crise em três atos”, é essa constitucionalização da política econômica que
possibilita entender melhor o papel desempenhado por Paulo Guedes no governo de
Bolsonaro. É errôneo pensar que esse economista, um Chicago-boy, fornece a esse
governo um vago tom neoliberal na forma de uma ideologia. O fato da guerra
contra a democracia ser travada pelo recurso cada vez mais sistemático à
constitucionalização, ao Judiciário e à legalidade não impede, no entanto, que
seja uma guerra real, obedecendo a uma lógica implacável que justifica a
perseguição de minorias, a prática de assassinatos e a imposição de uma ordem
moral.
Conclusão
A história do neoliberalismo mostra uma diversidade interna
que muitas vezes se aproxima de divisões ou cisões, tal como a oposição entre
“universalistas” e “constitucionalistas” no que se refere à Europa. Isso não é
novidade. O que há de novo no “novo neoliberalismo” não é o fato da divisão do
campo neoliberal em correntes opostas. O novo é que essa divisão opera na
questão de como ampliar essa racionalidade do capital no contexto da crise
pós-2008. Ou continuando e intensificando a constitucionalização das regras do
direito privado em escala global ou de blocos regionais tal como a União
Europeia (os “globalistas”); ou exacerbando a competição entre Estados por um
nacionalismo que não é apenas econômico, mas também e talvez até acima de tudo,
identitário (os “nacionalistas”). Mas, qualquer que seja o caminho escolhido, o
que não se pode duvidar, é que esse novo neoliberalismo, com todas as correntes
nele incluídos, globalistas ou nacionalistas, esteja trazendo ao seu clímax a
antidemocracia inerente ao antigo neoliberalismo.
1 Autor,
junto com Christian Laval, de A nova razão do mundo – ensaio sobre a
sociedade neoliberal e Comum – Ensaio sobre a revolução no século XXI,
Boitempo, 2016 e 2017.
Tradução: Eleutério Prado