Enquanto a ideologia ameaçar as comunidades marginalizadas,
grupos de esquerda reagem com força
Eluard Luchell McDaniels atravessou o Atlântico em 1937 para
enfrentar fascistas na Guerra Civil Espanhola, onde ficou conhecido como “El
Fantastico” por conta de sua habilidade com uma granada. Como sargento de
pelotão junto ao Batalhão Mackenzie-Papineau das Brigadas Internacionais, o
afro-americano de 25 anos, oriundo do Mississippi, comandou tropas brancas e as
liderou numa batalha contra as forças do General Franco, homens que o viam como
menos que humano. Pode parecer estranho para um negro ir a tais limites pela
chance de lutar numa guerra de homem branco, tão longe de casa – já não havia
bastante racismo para confrontar nos Estados Unidos? – mas McDaniels estava
convencido de que antifascismo e antirracismo eram uma coisa só. “Vi que os
invasores da Espanha eram as mesmas pessoas contra as quais lutei em toda minha
vida”, disse McDaniels, em citação reproduzida pelo historiador Peter Carroll.
“Vi linchamento e fome, e eu conheço os inimigos de meu povo”.
McDaniels não estava sozinho ao ver o antifascismo e o
antirracismo como intrinsecamente conectados; os antifascistas de hoje são
herdeiros de quase um século de luta contra o racismo. Embora os métodos do
Antifa tenham se tornado objeto de muito discurso político acalorado, as
ideologias do grupo, particularmente sua insistência na ação física direta para
evitar a opressão violenta, são muito melhor compreendidas quando vistas no
quadro de uma luta iniciada há quase um século contra a discriminação violenta
e a perseguição.
Em Anatomy of Fascism [edição em português: “A
Anatomia do Fascismo”] – um dos trabalhos definitivos sobre o tema – o
historiador Robert Paxton expõe as paixões motivacionais do fascismo, que
incluem “o direito de um grupo escolhido dominar os outros, sem restrição de
qualquer lei humana ou divina”. Em sua essência, o fascismo busca estabelecer
como premissa as necessidades de um grupo – frequentemente definido pela raça
ou etnicidade – sobre o resto da humanidade; antifascistas sempre se opuseram a
isso.
O antifascismo começou onde o fascismo começou, na Itália. O
grupo Arditi del Popolo – “Os Corajosos do Povo” – foi fundado em
1921, sendo assim chamado em homenagem às tropas de choque do exército italiano
na Primeira Guerra que nadavam através do Rio Piave com punhais nos dentes. Eles
se comprometeram a lutar contra a facção cada vez mais violenta dos camisas-pretas,
forças encorajadas por Benito Mussolini, que estava prestes a se tornar ditador
fascista na Itália. Os Arditi del Popolo reuniram sindicalistas,
anarquistas, socialistas, republicanos e ex-oficiais do exército. Desde o
início, os antifascistas começaram a construir pontes onde os grupos políticos
tradicionais enxergavam muros.
Essas pontes se estenderiam rapidamente às raças perseguidas
pelos fascistas.
Uma vez no governo, Mussolini deu início a uma política de
“italianização” que levou ao genocídio cultural de eslovenos e croatas que
viviam na parte nordeste do país. Mussolini baniu seus idiomas, fechou suas
escolas e até os fez mudarem seus nomes para que soassem mais italianos. Como
resultado, eslovenos e croatas foram forçados a se organizar fora do Estado
para se protegerem da italianização, e se aliaram às forças antifascistas em
1927. O Estado respondeu formando uma polícia secreta, a Organizzazione
per la Vigilanza e la Repressione dell’Antifascismo (OVRA), que vigiou
cidadãos italianos, atacou organizações oposicionistas, assassinou suspeitos de
antifascismo e até mesmo espionou e chantageou a Igreja Católica. Os
antifascistas enfrentariam a OVRA por 18 anos, até que um militante
antifascista, que usava o codinome Colonnello Valerio, fuzilou Mussolini e sua
amante com uma submetralhadora em 1945.
Dinâmicas semelhantes se apresentaram quando o fascismo se
espalhava pela Europa do pré-Guerra.
Os esquerdistas da Roter Frontkämpferbund (RFB) da
Alemanha usaram pela primeira vez a famosa saudação do punho cerrado como
símbolo de sua luta contra a intolerância; quando, em 1932, eles se
tornaram Antifaschistische Aktion – ou “antifa”, por abreviação –
eles combateram o antissemitismo e a homofobia nazistas sob bandeiras com o
logotipo vermelho-e-preto, como o fazem os grupos antifa da atualidade. Aquele
punho foi erguido pela primeira vez por trabalhadores alemães, mas continuaria
a ser levantado pelos Panteras Negras; pelos velocistas estadunidenses Tommy
Smith e John Carlos nas Olimpíadas de 1968; por Nelson Mandela, entre muitos
outros.
Na Espanha, as táticas antifascistas e a solidariedade foram
testadas em 1936, quando um golpe militar pôs à prova a solidariedade entre trabalhadores
e grupos de classe média, que se organizaram como um conselho baseado numa
frente popular contra o fascismo. Os antifascistas se mantiveram fortes e se
tornaram um exemplo do poder do povo unido contra a opressão. Nos primeiros
dias da Guerra Civil Espanhola, a milícia popular republicana foi organizada de
modo muito semelhante aos modernos grupos antifa: eles votavam sobre decisões
importantes, permitiam que mulheres lutassem ao lado dos homens e ficaram ombro
a ombro com adversários políticos para enfrentar um inimigo comum.
Negros norte-americanos como McDaniels, ainda excluídos de
um tratamento igualitário no exército dos EUA, serviram como oficiais nas
brigadas estadunidenses que chegaram à Espanha, prontas para lutar contra
fascistas. No total, 40 mil voluntários da Europa, África, Américas e China
ficaram lado a lado como camaradas antifascistas contra o golpe de Franco na
Espanha. Em 1936 não havia pilotos de caça negros nos Estados Unidos; contudo,
três pilotos negros – James Peck, Patrick Roosevelt e Paul Williams –
apresentaram-se como voluntários para enfrentar os fascistas nos céus da
Espanha. Em seu país, a segregação os impedira de alcançar seus objetivos no
combate aéreo, mas na Espanha eles encontraram igualdade nas fileiras antifascistas.
Canute Frankson, um negro americano voluntário que serviu como mecânico-chefe
na Garagem Internacional em Albacete, onde ele trabalhou, resumiu suas razões
para lutar numa carta para casa:
Nós não somos mais um grupo minoritário isolado, lutando sem
esperança contra um gigante imenso. Porque, minha querida, nos juntamos e nos
tornamos parte ativa de uma grande força progressista, em cujos ombros repousa
a responsabilidade de salvar a civilização humana da destruição planejada por
um pequeno grupo de degenerados, enlouquecidos por seu desejo de poder. Porque
se nós esmagarmos o fascismo aqui, salvaremos nosso povo na América e em outras
partes do mundo da perseguição cruel, do aprisionamento em massa e do genocídio
que o povo judeu sofreu e está sofrendo sob os calcanhares fascistas de Hitler.
No Reino Unido, os antifascistas se tornaram um importante
movimento na medida em que o antissemitismo emergia como uma força de destaque.
Em outubro de 1936, Oswald Mosley e a British Union of Fascists tentaram
marchar pelos bairros judeus de Londres. Os 3 mil fascistas de Mosley e os 6
mil policiais que os acompanharam viram-se superados numericamente pelos
antifascistas londrinos, que conseguiram detê-los. Estimativas sobre a multidão
variam de 20 mil a 100 mil pessoas. Crianças locais foram recrutadas para jogar
suas bolinhas de gude sob os cascos dos cavalos da polícia, enquanto que
estivadores irlandeses, judeus da Europa Oriental e trabalhadores de esquerda
ficaram lado a lado para bloquear o avanço da marcha. Eles ergueram seus punhos
– assim como os antifascistas alemães – e entoaram “No pasarán” (slogan da
milícia espanhola), e cantaram em italiano, alemão e polonês. Eles tiveram
sucesso: os fascistas não passaram e a Cable Street se tornou um símbolo de uma
ampla aliança antifascista calando a boca do discurso de ódio fascista nas
ruas.
Durante a Segunda Guerra Mundial, o antifascismo passou para
o segundo estágio, saindo das ruas para ficar ao lado dos que estavam nos
lugares de poder. Winston Churchill e outros imperialistas se colocaram contra
o fascismo, mesmo enquanto mantinham o colonialismo que deixava o povo indiano
passar fome para apoiar seu esforço de guerra. Uma aliança entre antifascistas
comprometidos e antinazistas de ocasião foi formada. Tornou-se um tipo de meme
de rede social que aqueles que lutaram na Segunda Guerra Mundial eram
antifascistas, mas há tensões no cerne da crença antifascista. As Forças
Armadas dos EUA que derrotaram os nazis ao lado dos Aliados eram segregadas,
tropas de negros eram relegadas a papéis de segunda classe e não podiam servir
ao lado de tropas brancas na mesma unidade. O antifascismo se opôs à primazia
de qualquer grupo; soldados antifascistas na Espanha estiveram ao lado de
camaradas negros como iguais, mas isso não aconteceu nas tropas americanas da
Segunda Guerra.
Depois da guerra, o antifascismo saiu dos corredores do
poder e retornou às ruas. Os britânicos confrontaram o fascismo, mas jamais
exorcizaram seu ódio interno e rapidamente libertaram os simpatizantes
fascistas detidos depois da guerra. Ex-militares judeus britânicos, que
combateram o fascismo nos campos de batalha da Europa, retornaram para casa e
viram homens como Mosley continuando a despejar nos espaços públicos uma
retórica antissemita e anti-imigrante. Por meio de novas organizações que
fundaram, eles se infiltrariam nos discursos de Mosley e, literalmente, o
jogariam para fora do palco.
A mesma lógica anti-imigrante que sustentava o fascismo de
Mosley no Reino Unido apareceu mais tarde na Alemanha, nos anos 1980, e
novamente os antifascistas se reinventaram para enfrentar o ódio e o racismo
encarnados pelos nazis skinheads, que estavam começando a se infiltrar na
cena punk. Esta chamada terceira onda de antifascismo incorporou táticas
como a das ocupações, ao mesmo tempo em que reviviam o punho erguido e os logos
em preto-e-vermelho usados por seus avôs nos anos 1930.
Os mais radicais e numerosos squats foram fundados
em Hamburgo, onde diversos grupos de jovens ocupavam prédios vazios como parte
de uma contracultura urbana que rejeitava tanto a Guerra Fria quanto o legado
do fascismo. Quando o clube alemão de futebol FC St Pauli mudou seu estádio
para as proximidades, a cultura antirracista e antifascista dos squats tornou-se
o princípio orientador do time. Mesmo com o retorno do entusiasmo
anti-imigrante na política alemã dos anos 80, e com a cultura dos fãs de
futebol se tornando racista e violenta, alguns alemães apreciadores do esporte
– notadamente aqueles do clube St. Pauli – puseram-se de pé contra o racismo.
Essa cultura de fã tornou-se lendária entre a esquerda global e o próprio clube
adotou isso: hoje, o estádio do St. Pauli é pintado com slogans como
“sem futebol para fascistas”, “futebol não tem gênero” e “nenhum ser humano é
ilegal”. Eles até formaram uma equipe para refugiados.
O time, com seu logotipo de caveira e ossos cruzados –
tomados de empréstimo do herói pirata antiautoritário Niolaus Stoertebeker, da
Hamburgo do século 14 – talvez represente o antifascismo mais bacana visto até
hoje. Vi seus adesivos nos banheiros imundos de shows punk em três
continentes e identifiquei aquela bandeira de caveira e ossos cruzados num
comício do Black Lives Matter esta semana.
Mas o antifascismo hoje não se trata de agitar bandeiras em
partidas de futebol; trata-se de enfrentar, por meio da ação direta, racistas e
genocidas onde quer que eles possam ser encontrados. Voluntários antifascistas,
inspirados na experiência de seus predecessores na Espanha, têm silenciosamente
deslizado pelos cordões internacionais até o nordeste da Síria, desde 2015,
para lutar contra o Isis [Estado Islâmico] e recrutas turcos. Na região da
Síria conhecida como Rojava, exatamente como na Espanha Republicana, homens e
mulheres lutam lado a lado, levantam seus punhos para fotografias e
orgulhosamente exibem a bandeira com o logo preto-e-vermelho enquanto defendem
o povo curdo abandonado pelo mundo.
Quando o voluntário italiano Lorenzo Orzetti foi morto pelo
Isis em 2019, os homens e mulheres de Rojava cantaram “Bella Ciao”, uma cantiga
antifascista da Itália dos anos 1920. A canção se tornou popular nas montanhas
da Síria quase 90 anos depois, e hoje há dezenas de gravações curdas
disponíveis. Assim como o antifascismo protegeu eslovenos e croatas
perseguidos, ele levanta as armas hoje para defender a autonomia curda. De
volta à Alemanha, o St. Pauli acompanha as notícias de seus confederados na
Síria e seus torcedores frequentemente seguram cartões coloridos para formar a
bandeira de Rojava nos jogos.
E, claro, o antifascismo ressurgiu nos Estados Unidos. Em
1988 foi formada a Anti-Racist Action, com base no fato de que
antirracismo e antifascismo são a mesma coisa, e que o nome ARR pode ser mais
óbvio às pessoas nos EUA. Na Califórnia, Portland, Pensilvânia, Filadélfia, Nova
Iorque e por todo o país, grupos autônomos surgem para lutar contra a ascensão
do discurso de ódio, apoiar pessoas LGBTQIA e BIPOC [Black, Indigenous, and
People of Color] e combater crimes de ódio. Em Virgínia, o clero local confiou
no Antifa para manter as pessoas em segurança durante a manifestação “Untie the
Right”, em 2017. Usando o logo antifa alemão dos anos 1930, o punho erguido do
RFB e o slogan ‘No pasarán’, estes grupos têm se colocado à frente de
racistas e fascistas em Los Angeles, Milwaukee e Nova Iorque – assim como seus
predecessores fizeram na Cable Street. Embora acusações tenham sido levantadas
contra o Antifa, por tornar violentos os recentes protestos, há poucas
evidências de que os partidários da causa antifascista estivessem por trás de
qualquer violência.
O antifascismo mudou muito desde 1921. Os ativistas
antifascistas da atualidade investem seu tempo tanto usando inteligência de
código-aberto para expor supremacistas brancos na internet quanto construindo
barricadas nas ruas. Da mesma forma que seus antecessores na Europa, os
antifascistas usam violência para combater violência. Isso lhes rendeu a fama
de “bandidos de rua” em algumas partes da mídia, exatamente como foi no caso da
Cable Street. O Daily Mail publicou a manchete “Vermelhos atacam os
camisas-pretas, garotas entre os feridos” no dia depois da batalha, que agora é
amplamente vista como um símbolo de identidade interseccional compartilhada
entre a classe trabalhadora de Londres.
Quando Eluard McDaniels retornou da Espanha, ele foi barrado
de seu emprego de marinheiro mercante, e seus colegas foram rotulados como
“antifascistas prematuros” pelo FBI, mesmo que os Estados Unidos acabassem
lutando contra os mesmos pilotos nazistas apenas três anos depois. O último
americano voluntário da Guerra Civil Espanhola, um judeu branco chamado Delmer
Berg, morreu em 2016, aos 100 anos. Berg, que foi perseguido pelo FBI e posto
na lista negra durante a Era McCarthy, foi vice-presidente da filial da NAACP [National
Association for the Advancement of Colored People] em seu condado, organizado
com a United Farm Workers e Mexican-American Political
Association, e considerou seu ativismo interseccional como a chave para sua
longevidade.
Por ocasião da morte de Berg, o senador John McCain escreveu
um artigo saudando esse bravo “comunista inveterado”. Politicamente, Mccain e
Berg teriam concordado muito pouco, e McCain claramente evitou falar sobre a
perseguição sofrida por Berg e seus camaradas quando eles retornaram à América;
mas Mccain citou um poema de John Donne – o mesmo poema que deu título ao
romance de Hemingway sobre a Guerra Civil Espanhola [1]. Ao citar Donne, McCain
sugere que o antifascismo é um impulso humano básico; e o poema de Donne
captura a ampla visão humanitária que motivaria os antifascistas 300 anos
depois:
Each man’s death diminishes me,
For I am involved in mankind.
Therefore, send not to know
For whom the bell tolls,
It tolls for thee. [2]
Notas do tradutor:
[1] “For Whom the Bell Tolls” (“Por Quem os Sinos Dobram”),
publicado em 1940.
[2] “…a morte de um único homem me diminui,
porque Eu pertenço à Humanidade. Portanto, nunca procures saber por quem
os sinos dobram. Eles dobram por ti.” (assim traduzido na edição da
Betrand Brasil de “Por quem os sinos dobram”, 2013).
Tradução > Erico Liberatti
agência de notícias anarquistas-ana
depois de horas
nenhum instante
como agora
Alexandre Brito
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