quinta-feira, 26 de novembro de 2020
terça-feira, 10 de novembro de 2020
Cornel West: Trump está empurrando o país para o fascismo genuíno (UMA ENTREVISTA COM CORNEL WEST)
Cornel West: Trump está empurrando o país para o fascismo genuíno (UMA ENTREVISTA COM CORNEL WEST)
O mais importante filósofo e militante socialista negro hoje
nos EUA fala sobre as eleições presidenciais, o declínio de mais um império, a
relação entre espiritualidade e materialismo e a necessidade de combater o
capitalismo para preservar a humanidade.
Dr. Cornel West em Beverly Hills, Califórnia, 2016. (Frederick M. Brown / Getty Images)
Cornel West é uma das vozes mais eloquentes e provocadoras
da esquerda norte-americana. Professor e pesquisador da Harvard Divinity
School, começou sua vida política nas revoltas dos movimentos pelos Direitos
Civis – passando de cristão radical para um socialista e aliado do Partido dos
Panteras Negras.
Sua carreira vai muito além de sua trilha acadêmica como
filósofo ou vida política na esquerda, esteve também envolvido com
cultura, desde colaborações musicais com Prince e Talib Kweli até uma
aparição na série Matrix. Ele também fez carreira nas rádios, apresentando
distintos programas, atualmente apresenta o podcast The
Tight Rope, com Tricia Rose.
Nesta recente conversa com Grace Blakeley para o
podcast A World to Win,
Cornel West discute a eleição presidencial dos EUA, o movimento Black Lives
Matter – e a importância da espiritualidade para a política radical.
Você disse recentemente
em uma entrevista que para enfrentar “o gângster neofascista na Casa
Branca, precisamos fazer parte de uma coalizão antifascista”. Você acha que uma
frente anti-Trump poderia ter sucesso? E você acredita que a presidência de
Biden pode promover algo que se aproxime da mudança de que os EUA precisam
agora?
Precisamos ser consistentes em nossa crítica ao império, ao
capitalismo, ao patriarcado, à homofobia, à transfobia e à supremacia masculina
e branca. E a maneira como fazemos isso é buscando manter nossa integridade
intelectual e nossa coragem política: contando a verdade sobre Donald Trump, o
neofascista, o gangster, sobre seus colaboradores e facilitadores. Ele está
empurrando o país para o fascismo genuíno: total desrespeito às leis, domínio
das forças armadas, domínio do grande capital de Wall Street e do Vale do
Silício. Ele está esmagando trabalhadores, marginalizando mulheres, usando os
mexicanos, muçulmanos, judeus, negros, pardos e indígenas como verdadeiros
bodes expiatórios.
Agora, acredito que com Biden, o que teremos é alguém que
pode impedir o movimento acelerado em direção ao fascismo norte-americano. Isso
é muito importante – mas seu governo neoliberal ainda estará vinculado a Wall
Street, vinculado ao grande capital, vinculado ao militarismo, vinculado
ao Africom, a políticas profundamente reacionárias no Oriente Médio com
Netanyahu e assim por diante. Não queremos mentir sobre Biden. Não queremos
alimentar nenhuma ilusão simplesmente porque estamos diante de um Frankenstein
feio e fascista como Trump. Então, estamos realmente entre a cruz e a espada,
que é onde a esquerda normalmente esteve nos últimos 50 anos.
Uma pesquisa recente da CNN mostra que o apoio ao
movimento Black Lives Matter caiu desde junho. A maioria, 55%, ainda apoia os
protestos, mas isso diminuiu dos 67% de junho passado. Isso te preocupa? Você
acredita que há alguma maneira de reverter isso, ou é apenas parte da
estratégia de Trump?
Acho que faz parte da estratégia de Trump. Houve um ataque
indiscriminado ao movimento Black Lives Matter para caracterizá-lo como um
movimento terrorista, como um movimento de ódio. Isso é um sinal de sucesso.
Isso significa que você na verdade constitui uma ameaça substantiva ao status
quo, não apenas para a polícia usar seu poder para assassinar pessoas, mas
conectá-lo a uma crítica ao poder de Wall Street e aos crimes de Wall Street.
Conectando-o a uma crítica ao poder do Pentágono e aos crimes do Pentágono.
Nesse sentido, a intensidade do ataque é um sinal do grau em que você constitui
uma ameaça ao status quo. E eu acho que é exatamente onde queremos estar. Nós
apenas temos que combater essas mentiras com algumas verdades e criar algum
tipo de movimento de compensação, instituições, periódicos, bem como indivíduos
no local.
Gostaria de saber sua opinião sobre a pandemia. Há uma
pesquisa realizada pela NPR mostrando que a pandemia está aumentando a
distância de riqueza racial: 60% das famílias negras, 72% das famílias latinas
e 55% das famílias nativas nos EUA enfrentaram sérios problemas financeiros
desde o início da pandemia; contra 36% das famílias brancas. Sabemos que a
crise do desemprego, a crise dos despejos e o peso atual da doença também estão
sendo sentidos com mais força pelos negros e latino-americanos. Então, como as
pessoas podem organizar a saída dessa crise profunda e generalizada?
É por isso que precisamos ter uma crítica do sistema e
visões alternativas bem como maneiras de fortalecer nossa resiliência em face
do sistema. Enquanto tivermos questões isoladas, enquanto permanecermos em
nossas torres e em nossos respectivos espaços sem solidariedade, não temos
chance alguma.
Portanto, é fácil fetichizar raça ou gênero como uma
identidade e não conectar essa identidade a uma crítica do predatório sistema
capitalista, o que nos permitiria reconhecer os graus de solidariedade que
devemos ter com os trabalhadores e pobres. Não devemos isolar essas identidades
para que percamos de vista a integridade e a consistência de nossa crítica ao
capitalismo.
Você tem uma vida e uma carreira incrivelmente ampla
como filósofo, ativista, intelectual, artista e figura moral nos EUA.
Obviamente, você passou sua carreira como escritor na academia, estudando e
ensinando filosofia e teologia. O que fez você querer estudar essas grandes
ideias?
Venho de uma família ocidental muito amorosa. A maior honra que
já tive foi ser o segundo filho de Irene e Clifton. Eu nunca serei o ser humano
que meu pai foi; ele morreu há 26 anos. Minha mãe ainda está viva, com 88 anos
de idade, com uma escola primária levando seu nome em sua homenagem. Ela e o
meu pai deram muito amor e apoio. Isso me libertou, porque eu era quase um
gângster na juventude. Eu batia nas pessoas o tempo todo. Fui expulso da escola
por bater em um colega por se recusar a saudar a bandeira. Meu tio-avô foi
linchado e eles o enrolaram na bandeira, então eu associei aquela bandeira a
algo horrível e cruel.
Quando comecei a crescer intelectualmente fui influenciado
pela igreja – sempre me vi como um cristão revolucionário, no legado de Martin
Luther King e Fannie Lou Hamer – e trabalhei em estreita colaboração com
o Partido dos Panteras Negras. Ali eu já tinha uma crítica do capitalismo, do
império, da homofobia e do patriarcado, porque era sobre isso que debatíamos na
sede dos Panteras Negra.
Eu ensinava no Programa de Café da Manhã dos Panteras Negras.
Eu ensinava na prisão Prisão de Norfolk, onde estava Malcolm X. Eu nunca estava
nas festas porque era cristão e eles eram profundamente seculares. E isso foi
bom. Eles tinham fortes críticas à igreja, reconheço várias delas. Mas eu tinha
meu próprio entendimento de Deus e Jesus e da luta e revolução. Ficamos muito
próximos, mas não consegui entrar.
No período em que frequentei a Universidade, fui exposto a
uma magnífica onda de ideias. Eu me apaixonei por muitas dessas figuras
intelectuais importantes. Fosse Karl Marx, William Morris, William Hazlitt,
Virginia Woolf, Raymond Williams e mais tarde Edward Said. Todas essas pessoas
significaram muito para mim.
Eu estava na academia estudando com John Rawls, Hilary
Putnam, Stanley Cavell, Martha Nussbaum, Martin Kilson e Preston Williams.
Depois fui para Princeton estudar com Richard Rorty e Sheldon Wolin. Essas eram
figuras imponentes que abriam a minha vida intelectual e destruíam muito do meu
paroquialismo. Sempre fui uma espécie de negro livre, amante de Jesus,
preocupado com os pobres e os trabalhadores. Mas isso me permitiu fazer parte
de uma conversa mais ampla.
Com C. L. R. James, Du Bois, Nkrumah, Nandy, Ambedkar e a
irmã Roy da Índia. Foi um bom momento pra mim. Eu gosto da vida intelectual,
mas sempre tento usá-la como uma arma para capacitar e enobrecer as pessoas
vulneráveis, não importa quem sejam.
Eu acredito que há muitos elementos heterogêneos de
genocídio e patriarcado na Bíblia Hebraica que devemos manter distância. Mas
existe essa noção de “chesed” (misericórdia). A forma mais elevada de ser
humano é espalhar a benevolência e o amor inabalável ao órfão, à viúva, ao
desassistido e ao oprimido. Eu sempre acreditei que se fosse para ser parte do
que buscava Moisés, que na sua essência era a libertação, eu teria que ter uma
crítica profunda não apenas do Faraó, mas do sistema que mantinha o Faraó no
lugar.
É por isso que as pirâmides nunca me inspiraram
profundamente, porque os trabalhadores e os pobres nunca poderiam ser
enterrados lá dentro. Eles podiam construir as pirâmides, mas nunca poderiam
ser enterrados dentro delas. Portanto, tenho uma crítica profunda aos Faraós,
seja qual for a cor em que surjam, seja qual for o gênero. Mesmo quando eles
têm edifícios tecnológicos magníficos, quando você realmente olha para o
sistema, você diz: “Não. Estou com os pobres e os trabalhadores que construíram
as pirâmides.” São eles que sempre destaquei, embora fossem esquecidos e
invisíveis. É a isso que sou solidário.
Aprendi isso seriamente pela primeira vez nas escrituras
hebraicas – ser solidário com os oprimidos. Como aconteceu com Jesus entrando
na cidade e expulsando os cobradores de impostos. Quem são os cobradores no
império norte-americano? Wall Street, Pentágono, Casa Branca, Congresso,
Hollywood, todos eles ocupam o mesmo lugar. Harvard, Yale, Princeton, todos
eles ocupam o mesmo lugar. Jesus expulsaria todos. E é por isso que ele foi
colocado crucificado pelo império mais poderoso da época.
Dessa forma, há o que chamo de centelha profética nas escrituras
hebraicas. De Jesus a Muhammad, com sua maneira profética própria, que leva,
por exemplo, a um Malcolm X. Mesmo muitos dos meus irmãos e irmãs seculares, a
quem amo muito, teriam que reconhecer que sua profunda solidariedade com os
povos oprimidos e sua história, uma vez que derrubem os mitos, vem desse amor,
cuidado, preocupação pelos vulneráveis que foi cultivado dentro dessas
instituições religiosas, mesmo quando essas instituições religiosas tendem a
violar. E foi isso que R. H. Tawney, que sempre foi um dos meus heróis na
tradição britânica, disse em The Acquisitive Society, Equality and
Religion and the Rise of Capitalism.
Isso ressoa em mim até hoje. Eu me considero um cristão e um
socialista. Como um dos meus grandes heróis, Tony Benn. Parece óbvio para mim
que você não consegue uma transformação social coletiva sem alguma forma de
transformação espiritual – qualquer que seja a religião ou forma de
espiritualidade.
Precisamos ser honestos sobre isso porque veja, uma das
formas como o capitalismo se reproduz é a mercantilização de todos e de tudo –
para criar aqueles homens vazios de que TS Eliot falava, para criar essas
criaturas moralmente e espiritualmente vazias, cujo o senso de estar no mundo é
ser excitado pelo bombardeio de mercadorias. Portanto, não há ativos para
valores fora do mercado, como amor, justiça e solidariedade profunda, ou estar
a serviço dos outros, assumir o risco de estar ao serviço dos outros, estar
com, não além nem acima, mas ao lado.
Outro grande exemplo é o Dr. Martin Luther King, ele próprio
um socialista democrático. São tantos. O primeiro foi Reinhold Niebuhr, que
escreveu Moral Man and Immoral Society, era um socialista democrático. Nós
vivemos uma onda de pessoas que desempenharam um papel tão importante na
tentativa de manter vivo algum senso profundo de amor e justiça. Sem contar o
amor pela beleza.
Porque venho de um povo, que depois de 244 anos da forma
mais bárbara de escravidão moderna, onde não se podia aprender a ler ou escrever,
nem adorar a Deus sem supervisão branca, onde a expectativa de vida era de 26
anos de idade, tinha como formas dominantes de espiritualidade o amor pelo
belo. Você erguia sua voz, fugia à noite de mãos dadas. E você cantava essas
belas canções, Swing Low, Sweet Chariot e Wade in the Water, God
Go Trouble the Water.
Não era apenas o ilógico; foi artístico. Era uma forma de se
agarrar a algo belo diante do terror e do trauma. O tipo de coisa que Rainer
Maria Rilke nos lembra em seus poemas, como a beleza se torna fonte de
resiliência diante do terror e do trauma sendo institucionalizada década após
década após década, para que a música se torne fundamental em nossas vida. As
artes em geral tornam-se fundamentais na vida. E assim a conexão entre o amor à
verdade e o amor à beleza e o amor à justiça, e para mim, o amor a Deus, estão
todos entrelaçados.
Você fala sobre a ideia de que inerente a qualquer
conceito ou formação, existe a semente de seu oposto. Você vê isso, obviamente,
em muitas religiões. Definitivamente no início do cristianismo. Mas também no
socialismo e nas suas análises do capitalismo, que postulam que o capitalismo
está cheio de contradições que acabarão por levar à sua própria destruição.
Karl Marx tornou-se um dos grandes profetas seculares do
século XIX porque não tinha apenas uma preocupação com o sofrimento do povo,
mas porque analisava em a Crítica da Economia Política de que as
estruturas no local de trabalho criam relações assimétricas de poder, entre
patrões e trabalhadores, de capital e trabalho; criando a fricção da luta de
classes na tensão entre as classes.
Aqui, Marx está muito próximo do melhor dos românticos, ele
quer que a individualidade se desenvolva e floresça. Pense em sua descrição
maravilhosa em A Ideologia Alemã. Não suporta especialização,
burocratização, domínio sobre os trabalhadores comuns. Ele acredita que suas
vidas são tão valiosas quanto a vida de qualquer outra pessoa. É uma
sensibilidade democrática radical que vai contra a corrente.
Marx e Engels estavam fugindo das classes dominantes que os
perseguiam. Agora vivemos um momento de contradições: a catástrofe ecológica,
as catástrofes econômicas. As contradições podem ser regionais, como na União
Europeia. Ou estar vinculado a um estado-nação. Podem ser regiões dentro do
mesmo estado-nação. Todas são formas de dominação do capital sobre o trabalho.
E são atravessados por várias formas de práticas patriarcais e de supremacia
branca.
Em The Age of Empire, o irmão Eric Hobsbawm nos lembrou
o que é o imperialismo. Os impérios norte-americano e soviético surgiram depois
de 1945 com a descentralização e ao longo do tempo, a destruição completa do
Império Britânico, o império em que o sol nunca se punha. Quem poderia imaginar
que o império acabaria? Todos pensaram que continuaria indefinidamente. Os
portugueses e os espanhóis também pensaram isso.
Bem, agora o império norte-americano está entrando em
declínio. Precisamos ser capazes de acompanhar as maneiras pelas quais o
capitalismo predatório passa de unidades imperiais e Estados-nação a esses
regimes e organizações regionais, e também como ele se infiltra em cada canto
de nossos corações, mentes e almas. Como ele cria a forma mercantilizada de ver
o mundo com manipulação, dominação, colocando a economia na frente da vida
comum. É quase Martin Buber, eu-ser versus eu-coisa.
Aquele eu-indiciduo com o qual Marx estava preocupado nos manuscritos
de 1844. Como você transcende essas formas de alienação no local de trabalho,
alienação do dinheiro, alienação individual? São noções ricas e indispensáveis
para qualquer discurso sério sobre a emancipação das pessoas comuns em uma
época em que a ganância só enlouquece em suas formas institucionais e
estruturais.
Você mencionou o império norte-americano. Quero saber
o que você acha que são as implicações do papel imperialista dos EUA no sistema
capitalista para a estrutura da sociedade.
Bem, o reverendo Martin Luther King costumava dizer: “Quando
você joga bombas no Vietnã, elas também caem nos guetos da América”. Elas
também caem sobre os brancos pobres nos Apalaches. Elas caem nos bairros de
nossos irmãos e irmãs de língua espanhola. Elas caem nas reservas de nossos
preciosos irmãos e irmãs indígenas. Há uma conexão direta entre o militarismo
no exterior e a falta de recursos para empregos, moradia, saúde, educação e com
a militarização do contexto doméstico.
É com isso que estamos lidando agora com esses policiais. A
polícia sempre foi uma grande ameaça contra os povos vulneráveis, especialmente
os negros, mas a militarização em massa ocorreu sob o regime neoliberal, onde
os departamentos de polícia começaram a se parecer cada vez mais com unidades
militares em Bagdá. Você comete uma contravenção e obtém uma resposta
militarista.
Pense em Breonna Taylor: no meio da noite, eles entram
batendo na porta dela como se ela fosse mafiosa e tivesse cometido um crime,
como se na verdade tivesse matado alguém. Eles começam procurando por um pacote
de drogas e acabam matando-a sem motivo. Há uma conexão direta entre a política
externa, que é uma dinâmica imperialista e a política interna, que é liderada
por multinacionais.
O resultado, é claro, é uma classe trabalhadora altamente
empobrecida. O ponto culminante é o bombardeio espiritual que afeta os
trabalhadores e seus filhos porque eles aderem a valores que não são do
mercado, como intimidade e vulnerabilidade. Você deve estar sempre duro e
disposto a assumir uma postura como se estivesse pronto para lutar a cada
segundo, pois, o objetivo é a sobrevivência do mais inteligente.
É quase pior do que o darwinismo social, no qual a
sobrevivência do mais apto é teorizada nas palavras de Herbert Spencer, porque
a sobrevivência do mais esperto é na verdade a amplificação de Trasímaco na
República de Platão. Tudo se resolve com a ideia de que “poder é certo”. Essa
“ganância é boa para você”. Tudo é “dominação e manipulação”. Isso tem a ver
com a tristeza do nosso mundo. É parte da escuridão congelante que Max Weber
viu em seus escritos. Ele olhou para fora, não viu apenas desencanto. Ele
descreveu uma escuridão gelada que se expandiu com a combinação de
mercantilização, burocratização, objetificação e dominação, que juntas criam
esta gaiola de ferro para os homens.
Perguntei a Noam Chomsky outro dia – tivemos um diálogo
maravilhoso na Progressive International – “O que nos faz pensar que
nós, como humanos, temos a capacidade de evitar a autodestruição? O que nos faz
pensar que as pessoas comuns têm a capacidade de determinar seu próprio
destino, em uma visão democrática radical?” Essas são perguntas especulativas,
mas são nossos esqueletos no armário. A conclusão foi: “Bem, nós realmente não
sabemos.” Veja os precedentes históricos. É uma história de crime, loucura e
ganância, mas também é uma história de resistência a tudo isso. Precisamente
porque podemos fazer essas perguntas, nos tornamos mais fortes, nos tornamos
mais dedicados, nos tornamos mais preparados para garantir que nós, como
espécie, possamos evitar a autodestruição.
Como seres humanos, podemos nos governar no local de
trabalho. Não precisamos de mestres. Podemos ter conselhos de trabalhadores.
Uma deliberação democrática. Podemos ter culturas democráticas nas quais
aprendemos uns com os outros como se tivéssemos jazz e hip hop de um lado, flamenco
e rebetiko do outro; ou as canções folclóricas que moveram William Wordsworth
em seus primeiros anos radicais e Robert Burns na Escócia. Ainda nem chegamos
ao irlandês. Mas precisamos ter aquele tipo de encontro humano profundo que não
homogeneíze nossas especificidades, mas use nossas diferenças como uma forma de
aprofundar a comunhão e a comunidade, ao invés de aprofundar a dominação e a
subordinação.
Nos é oferecida uma ideia de democracia representativa
que está sempre ao lado do capitalismo. Você tem democracia no reino da
política, mas você deve ter mercados livres no reino da economia: são coisas
separadas e nunca se encontrarão?
E aí você vê a hipocrisia. Porque os liberais vêm e dizem:
“Estamos muito preocupados com a concentração de poder na esfera política.
Tivemos monarcas, reis e rainhas. Devemos ter direitos e liberdades. Devemos
ter igualdade perante a lei”.
Bem, e quanto à concentração de poder na economia? Com os
oligarcas, os monopólios, os oligopólios? Eles são igualmente ditatoriais.
Então, sim, estamos com os liberais no sentido de que nos certificamos de que
não temos reis e rainhas e um poder incontrolável na arena política. Mas
ficamos com entidades semelhantes a reis na economia global, nacional e
regional.
Portanto, podemos dizer aos liberais: “Oh, você não fala
sério sobre a liberdade. Você quer liberdade para poucos. Achei que você
realmente acreditava na universalidade dessa liberdade. Você quer liberdade
apenas para uma classe”. Também seria verdade em termos de gênero e raça. Marx
e os outros que fizeram essa crítica são vozes indispensáveis.
Você acha que a democracia pode ser uma arma contra o
capitalismo? Você acha que aprofundando da democracia, quer estejamos falando
sobre partidos políticos ou nossas instituições sociais e econômicas, nossos
locais de trabalho, nossas comunidades, podemos realmente começar a erodir o
poder sobre nossas vidas desses monopólios, oligopólios, banqueiros, políticos
e a classe dominante?
Venho de um povo negro cujo hino é “Levante sua voz”. Vamos
levantar nossas vozes. E se pudéssemos levantar as vozes do que Sly Stone chama
de “pessoas do dia-a-dia” pesarem em todos os processos de tomada de
decisão e instituições que orientam e regulam suas vidas, essas vozes não
escolheriam a pobreza. Eles não escolheriam escolas decrépitas. Eles não
escolheriam a falta de cuidados de saúde. Eles não escolheriam casas infestadas
de ratos.
A democracia vinda de baixo leva a sério essas vozes
enquanto elas lutam contra a miséria e o sofrimento social, e permite que
moldem seus destinos de tal forma que seus filhos possam frequentar escolas de
qualidade como os filhos da classe dominante. Que suas mães e pais tenham
cuidados de saúde como as elites do poder. A democracia vinda de baixo é uma
ameaça a qualquer poder hierárquico, tanto na esfera política quanto na
econômica.
É aí que o jogo fica sério, entra em cena a grande acusação
de Eugene O’Neill contra a civilização capitalista norte-americana, na maior
comédia já escrita nos EUA, The Iceman Cometh. Ele era um anarquista como
meu querido irmão Noam Chomsky. Mas ele argumentou, como Dostoiévski, que a
maioria dos seres humanos teria preferido a ganância à liberdade, que também
teria escolhido a opção de se juntar aos gananciosos no poder, em vez de correr
o risco de simpatizar com os pobres, porque parece muito difícil. É mais fácil
pensar que de alguma forma você pode se tornar o próximo Bill Gates ou
Rockefeller.
Esse foi o projeto norte-americano, sua forma de
individualismo. Mas ele e Dostoiévski, é claro, criticam a espécie humana. Eles
acreditam, de fato, que nós, seres humanos, preferiríamos escolher a autoridade
em vez da liberdade. Que preferimos seguir o Pied Piper em vez de organizar e
gerenciar nossos locais de trabalho pessoalmente. Parte do projeto democrático
radical é mostrar que estão errados. Mas não há dúvida de que é uma batalha
difícil.
Tradução: Aline Klein
SOBRE OS AUTORES
Cornel
West é filósofo na Harvard Divinity School e ativista político.
Seus trabalhos incluem Race Matters e Democracy Matters, e aatualmente é o
co-apresentador do podcast The Tight Rope.
Grace
Blakeley pesquisadora do Instituto de Pesquisa de Políticas
Públicas (IPPR).
Fonte: https://jacobin.com.br/2020/11/cornel-west-trump-esta-empurrando-o-pais-para-o-fascismo-genuino/
Relembrar David Graeber, Pesquisador, Desordeiro e Amigo - por Eric Laursen (A.N.A.)
Relembrar David Graeber, Pesquisador, Desordeiro e Amigo
Possivelmente, a última coisa que David Graeber escreveu
para publicação foi uma introdução de sua coautoria, com seu amigo de longa
data e camarada intelectual Andrej Grubacic, para a Mutual Aid (“Ajuda
Mútua”), o clássico trabalho sobre a história da cooperação humana (e animal)
pelo anarquista russo do século 19 Peter Kropotkin. Discutindo o impacto do
livro de Kropotkin, que desafiou a moralidade do “cada um por si” que o
capitalismo adotou por meio de uma leitura errada da teoria da evolução de
Darwin, David e Andrej disseram o seguinte: “Tais intervenções… revelam
aspectos da realidade que eram consideravelmente invisíveis, mas uma vez
revelados, parecem tão óbvios que eles nunca mais poderão ser ignorados.”
Qualquer um que o conheceu imediatamente reconhece isto como
puro David, traçando sua busca ao longo da vida para descobrir padrões e
tendências no comportamento humano que nossos governantes — as autoridades, o
Estado, a religião organizada, capitalistas e o resto — se esforçam tanto para
esconder. Descobrindo estes padrões, como Kropotkin fez em seu livro, não é
apenas divertido e esclarecedor — que atraiu o lado travesso de David — mas um
salva-vidas, nos oferecendo caminhos alternativos em um mundo marcado pelo
medo, exploração, pobreza, guerra, assassinato em massa e a destruição de
qualquer cultura fora do mercado.
Em nossas duas décadas de amizade e colaboração ocasional,
eu nunca vi David mais feliz do que quando ele começava uma frase, “Bem, a
parte engraçada é que…” sempre seguida por uma observação paradoxal sobre
alguma instituição, pessoa famosa ou aspecto da história e desenvolvimento
humano. Ele tornou o aprendizado e o entendimento genuinamente estimulantes,
mas também foi intensamente sério sobre isso, pois para ele, assim como para os
maiores pensadores, tudo — o mundo, a vida humana — dependia disso.
David e eu nos tornamos amigos no início dos anos 2000 como
membros do New York City Direct Action Network (“Rede de Ação Direta de Nova
York”), que reunia anarquistas e ativistas anarco tolerantes, inicialmente em
torno dos protestos em massa que seguiram o fechamento da reunião de 1999 da
Organização Mundial do Comércio em Seattle: o mesmo cenário que deu origem
ao The Indypendent. Assim como eu, ele foi ativo politicamente e um
anarquista durante anos, mas a sua estreia literária só veio em 2004 com a
publicação de um “livrinho” (como ele o chamou), Fragments of an Anarchist
Anthropology (“Fragmentos de uma Antropologia Anarquista” em tradução livre).
Ainda é o meu favorito dos seus escritos, ele identificou uma tendência
anarquista na antropologia que retoma alguns de seus primeiros praticantes e
apresentou uma série de projetos para o movimento anarquista que são tão
interessantes de se considerar hoje, incluindo:
• uma teoria do Estado,
• uma teoria das entidades políticas que não são os Estados,
• uma nova teoria do capitalismo,
• uma ecologia de organizações voluntárias,
• uma teoria da felicidade política,
• uma análise da privatização do desejo, e
• uma ou muitas teorias da alienação.
O livro foi uma espécie de manifesto, e o denominador comum
em todos os itens acima era o mesmo que seria ao longo da vida de David como
estudioso e ativista: nos fazer ver nosso mundo e nós mesmos de maneira
diferente, como promissores, como ilimitado. Alguns desses projetos que ele
mesmo abordou antes de sua morte, outros são um desafio e uma inspiração para o
resto de nós do movimento.
Indiscutivelmente, o melhor momento de David como um
ativista e autor foi a fortuita publicação de Debt: The First 5,000 Years
(“Dívida: os primeiros 5.000 anos” em tradução livre) assim como a raiva
pública sobre o desastre econômico de 2008 estava se aglutinando no Occupy Wall
Street e na onda de democracia direta e autônoma em torno dele. Como um dos
primeiros organizadores do OWS (Occupy Wall Street), David sempre será
associado ao slogan, “Nós somos os 99%!” (embora ele não reivindicasse o
crédito exclusivo por isso). Sua verdadeira conquista foi nos fazer ver a
dívida pelo que ela realmente é: um sistema de dominação que privilegia aqueles
que são considerados como tendo um “bom crédito” e prejudica aqueles que se
considera que não possuem. Muitas pessoas tinham algum entendimento disse após
a quebra de 2008, mas David — em seu livro e através do seu trabalho com a OWS
— ajudou a cristalizar essa ideia e fazer disso um foco para a organização.
David sempre estava nos bombardeando com ideias e
perspectivas novas, do Rolling Jubilee Fund que compra e apaga dívidas com a
praga dos “bullshit jobs” (trabalhos absurdos), com as “alegrias secretas da
burocracia” para seu maravilhoso ensaio sobre “The People as Nurse-maids to the
King” (“O povo como babá do rei” em tradução livre) (leia e descubra). Muitos
de nós nos lembramos de quando, a polícia, em Washington, cercou centenas de
ativistas, incluindo David, e ele virou o jogo ao pedir dezenas de pizzas para
serem entregues às massas ali presas. (Como Emma Goldman, David veio para a
revolução para dançar.) Nunca houve um problema ou situação, na opinião de
David, que não pudesse ser ajustado para significar algo diferente do que nos
disseram que significava, e provavelmente seria algo libertador. Podia ser na
forma de palavra escrita ou ação direta, mas de qualquer forma, sempre trazia a
marca de sua mente única.
David faleceu aos 59 anos, a tragédia é que haveria muito
mais. Nós ainda podemos esperar ansiosos pelo seu último livro, The Dawn
of Everything: A New History of Humanity (“O Amanhecer de Tudo: Uma Nova
História da Humanidade”), que foi escrito com David Wengrow e ataca muitas
suposições falsas que reforçam a desigualdade como uma parte inevitável do
desenvolvimento humano, que será lançado no próximo ano. Mas ele não estará por
perto para dar a forma lúdica de pensamento que ele sempre trouxe para nossa teoria
e prática enquanto ativistas. Pessoalmente, eu irei me lembrar de muitas vezes
que trocamos ideias, frustrações e planos quando nós dois morávamos em Nova
York — frequentemente na frente de um laptop no chão do apartamento dele no
complexo Penn South patrocinado pelo sindicato (David era um nova iorquino
orgulhoso, orgulhoso de suas raízes de classe trabalhadora) ou em um pequeno
restaurante na West 32nd Street onde David poderia satisfazer seu desejo
implacável por comida coreana. Lamento nunca mais fazer isso.
O que ainda temos são os livros – seus “filhos”, como ele os
chamava — e a oportunidade que eles nos dão de estudar o seu método, absorver
sua fé na auto-organização e na ajuda mútua, e tentar aplicar nós mesmos. E
assim eu condenso isso:
Observação. Paradoxo. Análise. Comunicação. Ação. E
ocasionalmente, tudo ao mesmo tempo.
Tradução > Brulego
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zen.
Yeda Prates Bernis
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