Relembrar David Graeber, Pesquisador, Desordeiro e Amigo
Possivelmente, a última coisa que David Graeber escreveu
para publicação foi uma introdução de sua coautoria, com seu amigo de longa
data e camarada intelectual Andrej Grubacic, para a Mutual Aid (“Ajuda
Mútua”), o clássico trabalho sobre a história da cooperação humana (e animal)
pelo anarquista russo do século 19 Peter Kropotkin. Discutindo o impacto do
livro de Kropotkin, que desafiou a moralidade do “cada um por si” que o
capitalismo adotou por meio de uma leitura errada da teoria da evolução de
Darwin, David e Andrej disseram o seguinte: “Tais intervenções… revelam
aspectos da realidade que eram consideravelmente invisíveis, mas uma vez
revelados, parecem tão óbvios que eles nunca mais poderão ser ignorados.”
Qualquer um que o conheceu imediatamente reconhece isto como
puro David, traçando sua busca ao longo da vida para descobrir padrões e
tendências no comportamento humano que nossos governantes — as autoridades, o
Estado, a religião organizada, capitalistas e o resto — se esforçam tanto para
esconder. Descobrindo estes padrões, como Kropotkin fez em seu livro, não é
apenas divertido e esclarecedor — que atraiu o lado travesso de David — mas um
salva-vidas, nos oferecendo caminhos alternativos em um mundo marcado pelo
medo, exploração, pobreza, guerra, assassinato em massa e a destruição de
qualquer cultura fora do mercado.
Em nossas duas décadas de amizade e colaboração ocasional,
eu nunca vi David mais feliz do que quando ele começava uma frase, “Bem, a
parte engraçada é que…” sempre seguida por uma observação paradoxal sobre
alguma instituição, pessoa famosa ou aspecto da história e desenvolvimento
humano. Ele tornou o aprendizado e o entendimento genuinamente estimulantes,
mas também foi intensamente sério sobre isso, pois para ele, assim como para os
maiores pensadores, tudo — o mundo, a vida humana — dependia disso.
David e eu nos tornamos amigos no início dos anos 2000 como
membros do New York City Direct Action Network (“Rede de Ação Direta de Nova
York”), que reunia anarquistas e ativistas anarco tolerantes, inicialmente em
torno dos protestos em massa que seguiram o fechamento da reunião de 1999 da
Organização Mundial do Comércio em Seattle: o mesmo cenário que deu origem
ao The Indypendent. Assim como eu, ele foi ativo politicamente e um
anarquista durante anos, mas a sua estreia literária só veio em 2004 com a
publicação de um “livrinho” (como ele o chamou), Fragments of an Anarchist
Anthropology (“Fragmentos de uma Antropologia Anarquista” em tradução livre).
Ainda é o meu favorito dos seus escritos, ele identificou uma tendência
anarquista na antropologia que retoma alguns de seus primeiros praticantes e
apresentou uma série de projetos para o movimento anarquista que são tão
interessantes de se considerar hoje, incluindo:
• uma teoria do Estado,
• uma teoria das entidades políticas que não são os Estados,
• uma nova teoria do capitalismo,
• uma ecologia de organizações voluntárias,
• uma teoria da felicidade política,
• uma análise da privatização do desejo, e
• uma ou muitas teorias da alienação.
O livro foi uma espécie de manifesto, e o denominador comum
em todos os itens acima era o mesmo que seria ao longo da vida de David como
estudioso e ativista: nos fazer ver nosso mundo e nós mesmos de maneira
diferente, como promissores, como ilimitado. Alguns desses projetos que ele
mesmo abordou antes de sua morte, outros são um desafio e uma inspiração para o
resto de nós do movimento.
Indiscutivelmente, o melhor momento de David como um
ativista e autor foi a fortuita publicação de Debt: The First 5,000 Years
(“Dívida: os primeiros 5.000 anos” em tradução livre) assim como a raiva
pública sobre o desastre econômico de 2008 estava se aglutinando no Occupy Wall
Street e na onda de democracia direta e autônoma em torno dele. Como um dos
primeiros organizadores do OWS (Occupy Wall Street), David sempre será
associado ao slogan, “Nós somos os 99%!” (embora ele não reivindicasse o
crédito exclusivo por isso). Sua verdadeira conquista foi nos fazer ver a
dívida pelo que ela realmente é: um sistema de dominação que privilegia aqueles
que são considerados como tendo um “bom crédito” e prejudica aqueles que se
considera que não possuem. Muitas pessoas tinham algum entendimento disse após
a quebra de 2008, mas David — em seu livro e através do seu trabalho com a OWS
— ajudou a cristalizar essa ideia e fazer disso um foco para a organização.
David sempre estava nos bombardeando com ideias e
perspectivas novas, do Rolling Jubilee Fund que compra e apaga dívidas com a
praga dos “bullshit jobs” (trabalhos absurdos), com as “alegrias secretas da
burocracia” para seu maravilhoso ensaio sobre “The People as Nurse-maids to the
King” (“O povo como babá do rei” em tradução livre) (leia e descubra). Muitos
de nós nos lembramos de quando, a polícia, em Washington, cercou centenas de
ativistas, incluindo David, e ele virou o jogo ao pedir dezenas de pizzas para
serem entregues às massas ali presas. (Como Emma Goldman, David veio para a
revolução para dançar.) Nunca houve um problema ou situação, na opinião de
David, que não pudesse ser ajustado para significar algo diferente do que nos
disseram que significava, e provavelmente seria algo libertador. Podia ser na
forma de palavra escrita ou ação direta, mas de qualquer forma, sempre trazia a
marca de sua mente única.
David faleceu aos 59 anos, a tragédia é que haveria muito
mais. Nós ainda podemos esperar ansiosos pelo seu último livro, The Dawn
of Everything: A New History of Humanity (“O Amanhecer de Tudo: Uma Nova
História da Humanidade”), que foi escrito com David Wengrow e ataca muitas
suposições falsas que reforçam a desigualdade como uma parte inevitável do
desenvolvimento humano, que será lançado no próximo ano. Mas ele não estará por
perto para dar a forma lúdica de pensamento que ele sempre trouxe para nossa teoria
e prática enquanto ativistas. Pessoalmente, eu irei me lembrar de muitas vezes
que trocamos ideias, frustrações e planos quando nós dois morávamos em Nova
York — frequentemente na frente de um laptop no chão do apartamento dele no
complexo Penn South patrocinado pelo sindicato (David era um nova iorquino
orgulhoso, orgulhoso de suas raízes de classe trabalhadora) ou em um pequeno
restaurante na West 32nd Street onde David poderia satisfazer seu desejo
implacável por comida coreana. Lamento nunca mais fazer isso.
O que ainda temos são os livros – seus “filhos”, como ele os
chamava — e a oportunidade que eles nos dão de estudar o seu método, absorver
sua fé na auto-organização e na ajuda mútua, e tentar aplicar nós mesmos. E
assim eu condenso isso:
Observação. Paradoxo. Análise. Comunicação. Ação. E
ocasionalmente, tudo ao mesmo tempo.
Tradução > Brulego
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Yeda Prates Bernis
Fonte: https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2020/10/22/eua-relembrar-david-graeber-pesquisador-desordeiro-e-amigo/
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