Depressão, uma visão de longo prazo por IMMANUEL WALERSTEIN
Estamos nos movendo em direção a um mundo protecionista. Estamos nos movendo para um papel muito maior do governo na produção. Mesmo os EUA e a Grã Bretanha estão nacionalizando parcialmente os bancos e as grandes empresas moribundas. Nos dirigimos a uma distribuição conduzida pelo governo, que pode assumir modos social-democratas à centro-esquerda ou formas autoritárias de extrema direita.
Immanuel Wallerstein - La Jornada - Data: 22/10/2008
A depressão já começou. Alguns jornalistas, um tanto constrangidos, seguem perguntando aos economistas se talvez não estejamos só entrando numa mera recessão. Não creia neles nem por um minuto. Já estamos no começo de uma depressão mundial de grande envergadura com desemprego maciço em quase todas as partes. Pode assumir a forma de uma deflação nominal clássica, com todas as suas conseqüências para as pessoas comuns. É um pouco menos provável que assuma a forma de uma inflação galopante, que é somente uma outra forma de derrubar valores, inclusive pior para as pessoas comuns. É claro que todo mundo se pergunta o que disparou essa depressão. Serão os derivativos, que Warren Buffett chama de "armas financeiras de destruição em massa"? Ou são, por acaso, as hipotecas subprime? Ou os especuladores do petróleo? Julgar culpas não tem importância real. Isso é concentrar-se na poeira, como dizia Fernand Braudel, dos eventos de curta duração. Se quisermos entender o que está ocorrendo necessitamos lançar um olhar amplo para outras temporalidades, que são muito mais reveladoras. Um é o dos vai-e-vens cíclicos de média duração. O outro é aquele das tendências estruturais de longa duração.
A economia-mundo capitalista teve, durante vários séculos, pelo menos duas formas de vai-e-vens cíclicos. Uns são os chamados ciclos de Kondratieff, que historicamente teriam uma duração de 50-60 anos. E outros são os ciclos hegemônicos, que são muito mais longos.
Em termos de ciclos hegemônicos, os EUA foram um adversário dessa hegemonia nos idos de 1873; conseguiu sua hegemonia depois de 1945 e vem declinando desde os anos 70. As loucuras de George W. Bush transformaram esse declínio lento em precipitado. E agora já estamos longe de qualquer retomada da hegemonia estadunidense. Entramos, como acontece normalmente, num mundo multipolar. Os EUA permanecem como potência forte, talvez a mais forte, mas continuará declinando em relação a outras potências, nas próximas décadas. Não há muito o que alguém possa fazer para mudar isso.
Os ciclos de Kondratieff têm uma temporalidade diferente. O mundo saiu da última fase B do ciclo Kondratieff em 1945, e então o retorno mais forte à fase A vem ocorrendo, na história do sistema-mundo moderno. Chegou ao seu clímax por volta de 1967-1973, e começou o seu descenso. Esta fase B foi muito mais longa que as fases B anteriores e seguimos nela.
As características de uma fase B de Kondratieff são bem conhecidas e coincidem com o que a economia-mundo vem experimentado desde os anos 70. As taxas de lucro nas atividades produtivas baixam, especialmente naqueles tipos de produção que tenham sido mais rentáveis. Em conseqüência, os capitalistas que desejem níveis de lucro realmente altos se inclinam para o setor financeiro, e se envolvem no que basicamente é especulação. Para que as atividades produtivas não se tornem tão pouco rentáveis, têm de mudar-se das zonas centrais para outras partes do sistema-mundo, negociando custos menores de transação com mão-de-obra mais barata. É por isso que começam a desaparecer os empregos em Detroit, Essen e Nagoya, e a se expandirem nas fábricas da China, da Índia e do Brasil.
Quanto às bolhas especulativas, algumas pessoas sempre fazem muito dinheiro com elas. Só que cedo ou tarde as bolhas especulativas sempre arrebentam. Se se pergunta por que essa fase B do ciclo Kondratieff durou tanto, é porque os poderes existentes - o Departamento do Tesouro e o Federal Reserve (Banco Central) norte-americanos, o FMI e seus colaboradores na Europa ocidental e Japão - intervieram regularmente no mercado e de maneira importante para ajudar a economia-mundo - em 1987, quando a bolsa despencou; em 1989, no colapso do crédito e das poupanças nos EUA; em 1997, com a queda das bolsas na Ásia oriental; em 1998, pelas mãos dos chamados Long Term Capital Management, um fundo Hedge de capitais de longo prazo; em 2001-2002, com Enron. Com base no que aprenderam com as lições das fases B anteriores de Kondratieff, os poderes existentes pensaram que podiam vencer o sistema. Mas há limites intrínsecos para fazer isto. E agora chegamos neles, como Henry Paulson e Ben Bernanke o estão aprendendo para sua vergonha e talvez assombro. Desta vez não será tão fácil, provavelmente será impossível, evitar o pior.
No passado, uma vez que a depressão dava rédea solta a seus estragos, a economia-mundo se levantava com base nas inovações que podiam ser quase monopolizadas por um tempo. Assim, quando se diz que o mercado financeiro voltará a levantar-se, é isso o que se pensa que ocorrerá, agora como no passado, depois de as populações do mundo sentirem todo o estrago causado. E talvez em alguns poucos anos assim seja.
Há, contudo, algo novo que pode interferir nesse belo padrão cíclico que tem sustentado o sistema capitalista por uns 500 anos. As tendências estruturais podem interferir nas tendências cíclicas. Os traços estruturais básicos do capitalismo como sistema-mundo operam mediante certas regras que podem ser traçadas num gráfico como um equilíbrio em movimento ascendente. O problema, como acontece com todos os equilíbrios estruturais de todos os sistemas, é que com o tempo as curvas se movem para muito além do equilíbrio e se torna impossível regressar ao ponto anterior.
O que se fez para que o sistema tenha se tornado tão distante do equilíbrio? Grosso modo, o que ocorre é que, ao longo de 500 anos, os três custos básicos da produção capitalista - pessoal, insumos e impostos - têm subido constantemente no percentual dos preços possíveis de venda, de tal modo que hoje se tornou impossível obter grandes lucros da produção quase monopolizada que sempre foi a base da acumulação capitalista significativa. Não é porque o capitalismo esteja falhando no que faz melhor. É precisamente porque o está fazendo tão bem que finalmente minou a base para acumulações futuras.
Quando chegamos a esse ponto o sistema se bifurca (na linguagem dos estudos de alta complexidade). As conseqüências imediatas são uma turbulência altamente caótica, que nosso sistema-mundo está experimentando neste momento e que seguirá experimentando por uns 20-50 anos. Como todos apostam na direção que pensam ser a mais imediatamente adequada para sua perspectiva, emergirá uma ordem de caos numa das veredas dos muitos caminhos alternativos diferentes.
Podemos assegurar com confiança que o presente sistema não sobreviverá. O que não podemos predizer é qual nova ordem será escolhida para substituí-lo, porque esta será o resultado de uma infinidade de pressões individuais. Mas cedo ou tarde um novo sistema se instalará. Não será um sistema capitalista, mas pode ser algo muito pior (ainda mais polarizado e hierárquico) ou algo muito melhor (relativamente democrático e relativamente igualitário) que o atual sistema. Decidir um novo sistema é a luta política mundial mais importante de nossos tempos.
E, quanto às perspectivas imediatas de curta duração, ad interim, é claro o que ocorre em todas as partes. Estamos nos movendo em direção a um mundo protecionista (esqueça-se da chamada globalização). Estamos nos movendo para um papel muito maior do governo na produção. Mesmo os EUA e a Grã Bretanha estão nacionalizando parcialmente os bancos e as grandes empresas moribundas. Nos dirigimos a uma distribuição populista conduzida pelo governo, que pode assumir modos social-democratas à centro-esquerda ou formas autoritárias de extrema direita. E nos movemos em direção a conflitos sociais agudos no interior de alguns estados, à medida que todo o passa a competir por uma fatia menor do bolo. No curto prazo, não é, de modo algum, um panorama agradável.
Immanuel Wallerstein, sociólogo norte-americano, um dos teóricos da Teoria do Sistema Mundial (de onde vem a expressão Sistema-Mundo) e pesquisador sênior da Universidade Yale. É autor de Sistema Mundial Moderno, de 1974.
Tradução: Katarina Peixoto
Fonte: Agência Carta Maior
sexta-feira, 24 de outubro de 2008
quinta-feira, 23 de outubro de 2008
ENTREVISTA – ROBERT KURZ À REVISTA IHU ON-LINE
ENTREVISTA – ROBERT KURZ À REVISTA IHU ON-LINE
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, S. Leopoldo, Porto Alegre, Brasil
Em que sentido as teorias de Marx são importantes para se compreender o actual momento de crise no sistema financeiro global?
A importância da crítica da economia política de Marx para explicar a grande crise financeira actual evidencia-se desde logo em dois níveis, sendo um aspecto fundamental a sua derivação da forma do dinheiro [Geldform], no 1º volume de O Capital, e outro a sua análise do crédito, principalmente no 3º volume. Aqui somente posso tratar alguns pontos elementares.
A economia burguesa clássica e neoclássica parte, contra os factos, de uma pura economia de bens e de relações naturais de troca entre sujeitos do mercado. Ela abstrai do dinheiro e fala do “véu do dinheiro” sobre as “verdadeiras” transacções económicas. O dinheiro aparece aí como mero signo sem conteúdo próprio, como constructo jurídico baseado numa convenção social ou num acto estatal. Para que a economia funcione, importa apenas adequar a quantidade de dinheiro à quantidade de bens (teoria da quantidade). Para Marx, pelo contrário, o dinheiro não é o “véu” secundário, mas pressuposto e meio autotélico central da valorização capitalista. Ele é a forma geral da aparência do valor ou da mais-valia [Mehrwert] incorporado/a nas mercadorias, que precisa voltar a se transformar na forma do dinheiro, a qual já constitui o seu ponto de partida. Por isso, o dinheiro não pode ser mero signo, mas precisa ter ele próprio o carácter de mercadoria, e mesmo de mercadoria “rainha”. O dinheiro é “mercadoria geral” à parte, ou “equivalente geral”, cujo “valor de uso [Gebrauchswert]” não consiste em sua utilidade concreta, mas em sua propriedade de representar o valor abstracto ou mais-valia de todo o mundo das mercadorias. Para as transacções quotidianas, é verdade que signos monetários podem tomar o lugar da mercadoria-dinheiro propriamente dita, mas, em última instância e principalmente nas crises, o real conteúdo de valor do dinheiro precisa ser resgatado como “mercadoria régia”. Por isso, para Marx, o dinheiro não pode emancipar-se totalmente dos metais nobres, enquanto mercadoria dinheiro; isto não por causa do carácter metálico natural, mas em função do valor social ali representado de forma “concentrada”.
O crédito emana da subdivisão do capital em capital de produção ou capital-mercadoria, por um lado, e capital monetário ou capital que rende juros, por outro. A duplicação da mercadoria em “mercadoria vulgar” e dinheiro como “mercadoria régia” repete-se ao nível do capital. Na economia burguesa, não existe conexão sistemática entre teoria monetária e teoria do crédito. A noção de dinheiro como “véu” e mero signo encontra-se em contradição com a noção de capital monetário que rende juros, como uma espécie de produção sui generis de mercadorias. Grosso modo, faz-se de conta que a “indústria financeira” seria uma produção de mercadorias tão real quanto, por exemplo, a indústria automóvel. O juro parece ser uma forma independente de mais-valia. Marx, pelo contrário, mostra o carácter ilusório dessa ideia. Ele mostra que o crédito, ou capital que rende juros, é apenas uma forma derivada, sem formação própria de valor. O juro é o preço da função capitalista do crédito, preço este que precisa de ser subtraído da mais-valia social da produção real de mercadorias. Na estatística burguesa, pelo contrário, os “produtos” do capital monetário são somados ao produto social, com o que se distorce as verdadeiras relações de valor.
No século XX, o dinheiro e todo o sistema monetário aparentemente emanciparam-se em definitivo do ouro como mercadoria monetária real, processo concluído com o abandono da convertibilidade do dólar em ouro em 1973. No período subsequente, em correspondência, o capital monetário também se desacoplou cada vez mais da produção real de mercadorias. O inflar do crédito não só gerou formidáveis montanhas de dívidas, que sempre precisavam ser “rodadas”, mas ainda adquiriu a forma de circulação independente de títulos financeiros (acções, imobiliário, derivados), onde se criaram valores fictícios de dimensões astronómicas. Na óptica positivista, tratava-se simplesmente de “factos” que pareciam fundamentar-se a si próprios. Até mesmo teóricos de esquerda abandonaram explícita ou implicitamente a teoria de Marx do dinheiro e do crédito, porque na aparência ela estava refutada empiricamente.
Esse período de 35 anos desde o fim da convertibilidade do dólar em ouro, que é um período histórico breve, encerrou-se, entretanto, em 2008. Agora se mostra o verdadeiro carácter desse desenvolvimento. Num processo secular, o capital, em função dos crescentes custos prévios da produção cientificizada, ficou cada vez mais dependente do crédito, como antecipação de mais-valia real futura. As bolhas financeiras sempre excessivamente infladas nas últimas décadas rebentaram definitivamente a conexão entre “capital fictício” e produção real de mais-valia; a antecipação da mais-valia futura jamais poderá ser resgatada. Essa contradição amadureceu e descarrega-se como crise financeira global. Isto destrói não só a ilusão de um crescimento “financeiramente induzido”, mas também a ilusão do dinheiro como mero signo. O ouro já sofreu uma dramática valorização face a todas as moedas. Mas a remonetarização do ouro não é possível, porque as potências de produção alcançadas historicamente já não podem ser representadas como “riqueza abstracta” (Marx) na forma da mais-valia.
A desvalorização do dinheiro corresponde à desvalorização da massa das mercadorias. Por outras palavras: os recursos materiais e os agregados técnico-científicos, as capacidades e as necessidades humanas já não podem ser comprimidas nas formas básicas do capital. Ou, na expressão de Marx nos Grundrisse, “desaba o modo de produção baseado no valor de troca”; manifesta-se a “desvalorização do valor” enquanto limite histórico da valorização do capital.
Nessa situação, o Estado aparece como lender of last ressort [financiador de último recurso]. Para a teoria burguesa, o Estado não é o outro lado, o lado político da relação de capital, mas uma “instância extra-económica”. Também na esquerda, a ilusão do Estado tem uma longa tradição. Marx não chegou a concluir a formulação da sua teoria do Estado. Mas já nos escritos da sua fase inicial ele criticou a ilusão política-estatal como “falsa comunidade”. Em sua teoria do crédito, no 3º volume de O Capital, o crédito do Estado é definido como forma especial de “capital fictício”, que continua dependente da real valorização do capital. Na verdade, há muito tempo que se envergonhou a ilusão estatal, ilusão esta que esteve em alta após a grande época de crises na primeira metade do século XX. No Ocidente, a regulação estatal keynesiana e o crescimento induzido pela expansão do crédito estatal fracassaram no início dos anos 80, por causa da inflação desmedida. No Leste, o capitalismo de Estado soviético da “modernização atrasada” ficou devedor e entrou em colapso no final dos anos 80. Estas já eram formas de aparência da “desvalorização do valor” histórica. Na viragem neoliberal, a intervenção do Estado, supostamente “extra-económica”, foi responsabilizada pelo dilema e substituída por um radicalismo de mercado. Essa viragem, porém, não suplantou o limite interno da valorização, mas, mediante uma política de desregulação e de excesso de oferta monetária pelos bancos centrais, apenas abriu as comportas para uma expansão sem precedentes do crédito privado e da economia das bolhas financeiras.
Depois de também esta ilusão ter estourado e de o mercado ter falhado grandiosamente, pretende-se de repente que o Estado seja de novo o salvador. Só que o problema não pode mais ser resolvido com novo excesso de oferta monetária dos bancos centrais estatais através duma redução conjugada da taxa de juros. Pois esse tipo de excesso de oferta monetária sempre ainda pressupõe a ficção de uma “cobertura” por processos reais de valorização que já se tornou ilusória. Os bancos comerciais já só conseguem depositar nos bancos centrais “garantias” que deixaram de o ser, porque em grande parte são títulos duvidosos. Isto impede que se inflem novas bolhas financeiras da forma habitual. O colapso dos créditos hipotecários somente foi o catalisador de um processo de desvalorização de todo o capital financeiro, que vai muito além. Por isso, agora, a crise é elevada ao nível da “última instância”, isto é, das próprias finanças do Estado. Só que o Estado não é um demiurgo independente das leis da valorização do capital. Já no ano fiscal passado, ainda antes da recente crise dramática, a dívida pública dos Estados Unidos triplicou; e, no caso de se invocarem as garantias estatais concedidas em todo o mundo, o resultado somente pode ser uma grande crise das finanças estatais. O Estado não pode estancar a desvalorização, mas apenas administrá-la; ou em forma de deflação, se quiser manter seu próprio endividamento limitado, ou em forma de inflação, caso comece a imprimir notas sem qualquer “cobertura”. Nesta situação nova na História, talvez até ocorram processos deflacionários e inflacionários em paralelo.
O que representa, na actual crise, a teoria marxista do trabalho abstracto como substância do capital?
A economia burguesa clássica baseava-se, ainda, numa teoria do “valor do trabalho”. O valor devia, em última instância, ser determinado pelo trabalho humano. Acontece que essa teoria do “valor do trabalho” era acrítica e inconsequente. A teoria de Marx da determinação do valor e da mais-valia pelo trabalho abstracto é fundamentalmente diferente. O conceito de trabalho abstracto é entendido de forma crítica e estritamente negativa, como “abstracção real” da produção concreta de bens. No processo de produção e circulação do capital, a actividade produtiva é reduzida, em sua forma social, à delapidação [Vernutzung] abstracta de energia humana, ou aplicação [Anwendung] de força de trabalho abstracta como “dispêndio [Verausgabung] de nervo, músculo, cérebro” (Marx), com total indiferença perante o conteúdo concreto desse dispêndio. A massa de trabalho abstracto passado surge como massa de valor social e como “objectividade do valor” [Wertgegenständlichkeit] dos produtos. Na “valorização do valor”, o que interessa não é a massa de valor em si, mas apenas a massa de mais-valia, que é distribuída aos diferentes capitais pelo mecanismo da concorrência. A valorização como fim em si mesmo transforma em fim em si mesmo também o trabalho abstracto que lhe dá origem, trabalho esse que, como dispêndio de energia humana abstracta, constitui a substância do capital. A economia neoclássica burguesa abandonou a teoria clássica do “valor do trabalho”. O valor foi reduzido ao preço, sendo entendido não mais como substância comum das mercadorias, mas como mera função na inter-relação das mercadorias. Esta redução corresponde na filosofia burguesa à passagem do “conceito de substância” para o “conceito de função”.
Pretendia-se eliminar o problema da substância, transformando-o numa relação funcional vazia. A “matematização” dos “modelos” neoclássicos baseia-se nessa transformação do valor numa relação estritamente funcional. Com isto, a teoria do valor foi adaptada à teoria do dinheiro como mero “signo”. Essa “teoria da circulação” funcional do valor, no espaço da língua alemã, de certo modo também conseguiu entrar numa assim chamada “nova leitura de Marx”, na qual a teoria crítica de Marx do “valor do trabalho” era rejeitada como “naturalista” ou “substancialista”, negando-se o carácter de mercadoria do dinheiro.
Como na economia burguesa, assim se exclui, por princípio, um limite interno absoluto da valorização. A redução do valor a uma relação funcional torna-o aparentemente atemporal e eternamente regenerável. Marx, pelo contrário, mostrou que o desenvolvimento capitalista contém uma autocontradição elementar. Por um lado, a energia humana abstracta constitui a substância real do capital; por outro lado, a concorrência obriga ao constante desenvolvimento da força produtiva, a qual torna supérflua a força de trabalho humana e solapa a substância do valor. Até à segunda revolução industrial do fordismo, esse processo secular de desvalorização das mercadorias podia ser compensado por meio do mecanismo da “mais-valia relativa”, analisado por Marx: pelo desenvolvimento da força produtiva, o valor da mercadoria “força de trabalho” é reduzido à escala social e a participação relativa da mais-valia na massa total de valor aumenta. Essa participação relativa aumentada da mais-valia, porém, está relacionada com a quantidade de força de trabalho produtivamente utilizável. Marx não chegou a concluir sua teoria da crise, mas implicitamente ela faz inferir que o desenvolvimento da força produtiva chega a um ponto em que a quantidade de força de trabalho produtivamente utilizável se reduz a tal ponto que a massa de mais-valia absoluta cai. Então, mesmo o aumento da mais-valia relativa por força de trabalho de nada serve. Esse ponto é atingido com a 3ª revolução industrial da microeletrónica. O mecanismo histórico de compensação da mais-valia relativa se extingue, a massa real absoluta de mais-valia cai e a “desvalorização do valor” leva à “dessubstancialização do capital”.
Este é o motivo pelo qual, no período anterior, se podia simular mais valorização somente por meio de bolhas financeiras desprovidas de substância. Quando estas estouram, entretanto, não se atinge novo “ponto zero”, a partir do qual a valorização real possa recomeçar. Ao invés, o capitalismo é reduzido às suas reais condições de valorização, cujo standard de produtividade é irreversível. Essa teoria substancial da crise, que fala de um limite interno absoluto do capital, muitas vezes foi criticada como “tecnológica” justamente pela esquerda. Mas não se trata, no caso, do aspecto técnico, mas do efeito da tecnologia sobre as condições da valorização. Marx não formulou uma teoria funcional do valor “atemporal”, mas sim a teoria de um desenvolvimento historicamente dinâmico do capital, como movimento da substância real mediado pela crescente aplicação dos potenciais técnico-científicos e que não pode ser infinitamente prolongado.
Sobre isto ainda cabe fazer duas observações. Em primeiro lugar, as categorias de Marx são categorias reais de uma lógica da sociedade como um todo, que está na base das aparências empíricas, mas não pode ser descrita de forma directamente empírica. Isto não apenas porque o capital se move empiricamente em formas de mediação complexas e contraditórias, mas porque a real agregação da substância de valor social sempre se apresenta apenas em retrospectiva. A estatística burguesa nunca capta a real massa de valor ou mais-valia, mas apenas os fluxos superficiais de mercadoria e dinheiro, os quais produzem uma imagem distorcida. Por isso os crashes também não são previstos, mas apresentam-se de forma eruptiva, quando a lógica de base irrompe a empiria, como parece ser agora o caso. Porém, as curvas caóticas e os saltos descontrolados, por exemplo dos câmbios ou dos índices da bolsa, necessariamente precisam ser atribuídos à natureza não-empírica do capital e à sua evolução substancial. Isto não está ao alcance de uma teoria categorialmente imanente ou afirmativa, que só consegue ficar correndo atrás dos fenómenos imprevisíveis. Em segundo lugar, o limite da valorização é estritamente objectivo. Aquilo que “desaba” por entre as curvas é a capacidade de o capital reproduzir-se socialmente. Mas o que não desaba por si mesmo são as formas de consciência ou “formas de pensamento objectivas” constituídas pelo capital (Marx). Ao se alcançar o limite histórico do capitalismo, surge por isso uma tensão colossal entre a impossibilidade de continuar uma valorização real e a mentalidade generalizada que interiorizou as condições capitalistas de vida e não quer nem consegue imaginar outra coisa senão viver dentro dessas formas. A difícil tarefa está em resolver essa tensão no processo de resistência contra a administração da crise, sob pena de o capitalismo desembocar numa catástrofe mundial. Para isto não está preparada uma esquerda que se adaptou cada vez mais ao desenvolvimento capitalista.
Quais as consequências da crise financeira para o emprego global?
Desde o início da 3ª revolução industrial nos anos 80, os novos potenciais de racionalização eliminaram a força de trabalho industrial do processo produtivo numa escala nunca vista antes. Em consequência, de ciclo em ciclo, aumentou em massa o desemprego e o subemprego à escala global. O reverso da medalha foi a simulação da valorização pelo inflar do “capital fictício”. Diferentemente de épocas anteriores do capitalismo, entretanto, não ocorreu uma desvalorização rápida do capital monetário sem substância, para dar lugar a uma nova acumulação real. Em vez disso, por falta de novas possibilidades de valorização real, iniciou-se uma imbricação sem precedentes históricos entre a economia das bolhas financeiras e a conjuntura. Os “valores fictícios” não permaneceram no céu financeiro, mas têm sido transferidos para a aparente economia real há muito tempo e em medida crescente. Assim surgiu o famoso crescimento “financeiramente induzido”, que parecia alavancar as leis económicas do capitalismo e permitiu uma onda de conjunturas em alta baseadas no deficit, que na realidade não tinham base. Embora o desemprego em massa aumentasse, ele era mantido em limites relativos porque, no quadro das conjunturas baseadas no deficit, criaram-se em certa medida “postos de trabalhos fictícios”, que se alimentavam das bolhas financeiras sem substância.
Para se compreender essa evolução, é importante a distinção de Marx entre “trabalho produtivo” e “improdutivo”. Todas as actividades no contexto da forma capitalista são trabalho abstracto, que é representado em dinheiro. Mas nem todo trabalho abstracto é produtivo em termos capitalistas, nem contribui para a massa de mais-valia social real. Certas funções da relação de capital são em si improdutivas e “custos mortos”. Mas também a actividade produtiva industrial pode tornar-se improdutiva em sentido capitalista, quando ela excede a capacidade de produção de mais-valia real (“capacidades excedentárias”). Todos os resultados do trabalho abstracto assumem a forma de mercadoria enquanto “objectividades da circulação” [“Zirkulationsgegenständlichkeit”]. Ao conseguirem um preço, eles assumem uma parte da massa de mais-valia social, independentemente de a sua produção ter contribuído ou não para essa massa. Esse carácter social global [gesamtgesellschaftlich] da produção de valor e de mais-valia não fica muito claro em Marx, razão pela qual surgiu o famoso problema da transformação do valor em preço. Entretanto, esse problema se resolve quando a massa de mais-valia social não se baseia numa soma de valores “individuais” das mercadorias, mas representa uma massa de substancia social total não subsumível a nível empresarial; a sua quantidade só é revelada pela concorrência no nível da circulação. Isto não torna irrelevante o problema da substância, mas nada tem a ver com uma substância de valor da mercadoria individual.
Que significa isto para a era da economia das bolhas financeiras? A queda da massa de mais-valia social real foi aparentemente mascarada pela “mais-valia fictícia” do sistema de crédito inflado. Dessa forma, gerou-se uma ocupação improdutiva que ultrapassava em muito a capacidade de produção de mais-valia real. Em primeiro lugar, junto com o inchar da “indústria financeira”, inchou de forma desproporcionada o emprego nesse sector, emprego esse que não produz valor algum, apenas intermedeia transacções financeiras. Em segundo lugar, criou-se um sector igualmente desproporcionado de serviços pessoais improdutivos em termos capitalistas, de indústria publicitária, indústria da informação e dos media, indústria do desporto e da cultura. Justamente nesses sectores, a ausência de substância fez-se notar, por um lado, como remuneração astronomicamente excessiva de uma pequena elite de estrelas e, por outro, como precarização em forma de freelancers, pseudo-autónomos e empresários da miséria. Em terceiro lugar, a conjuntura do deficit global forçou o emprego de uma “aristocracia operária” nas indústrias de exportação (produção automóvel, máquinas), a qual era igualmente improdutiva porque não se baseava em lucros e salários de produção de mais-valia real, mas era alimentada pelas bolhas financeiras.
Na mesma medida em que o estouro das bolhas financeiras reduz o capitalismo às suas reais condições de valorização, também boa parte do emprego improdutivo terá de cair. A massa de mais-valia real é muito pequena para que a “objectividade de circulação [Zirkulationsgegenständlichkeit]” desses sectores inflados se possa representar como “objectividade de valor [Wertgegenständlichkeit]”. A depressão global que é de esperar levará de roldão não só grande parte dos “senhores do universo” do capitalismo financeiro, mas também boa parte das precárias micro-empresas prestadoras de serviços, dos freelancers, dos assalariados mal pagos e dos trabalhadores temporários daqueles dependentes, assim como empregos na indústria de exportação. O sistema do trabalho abstracto leva a si próprio ao absurdo; e o capitalismo global minoritário sofre o seu Waterloo, mesmo que ninguém queira tomar conhecimento, embora todos o saibam intuitivamente.
Em que consiste o peso do capitalismo na sociedade de hoje, caracterizada por relações virtuais, trabalho imaterial e autonomia?
Os conceitos mencionados provêm todos da ideologia pós-moderna, que desde o começo acompanhou e deu expressão ao capitalismo financeiro neoliberal do “capital fictício” inflado. Já em fins dos anos 1970, em seu livro A troca simbólica e a morte, Baudrillard explicitou a relação com a economia ao estabelecer o “capital fictício” como novo princípio de realidade. Também Derrida, num texto sobre “dinheiro falso”, afirmou a virtualidade do capital. A rejeição radical pós-moderna do “essencialismo” ou “substancialismo” corresponde à tentativa de o capital iludir o seu próprio problema, de certa maneira “aristotélico”, da substância. O culto da “virtualidade” contagiou todos os domínios da vida, até mesmo as relações pessoais. A redução do valor a uma relação funcional levou à paradoxal “absolutização da relatividade”, que no entendimento vulgar se manifestou como “arbitrariedade”. Ao virtualismo económico correspondia o virtualismo tecnológico da internet, que se transformou na “second life” das vidas individualizadas e abstractas de bloggers, incapazes de se organizar e de resistir na realidade.
A esquerda pós-moderna é a órfã desse desenvolvimento. Ela reduziu a luta social a um nível virtual e simbólico. O “pós-operaismo” de Antonio Negri exprime o cerne dessa ideologia. O fetichismo objectivo do capital é negado e dissolvido, crise incluída, em relações subjectivas de vontade. O lugar da crítica radical do trabalho abstracto e da forma abstracta do valor é tomado pela ilusão de uma “autovalorização autónoma” [autovalorisazzione] de freelancers de um “trabalho imaterial”. É um conceito nonsense, porque todo o trabalho abstracto, mesmo que não se manifeste em produtos materiais, é “dispêndio de nervo, músculo, cérebro”. Só que o “trabalho do conhecimento”, improdutivo em termos capitalistas, justamente nada contribui para a massa de mais-valia social real. A “autonomia” dessa forma específica de trabalho abstracto é ilusória, porque continua dependente do mercado mundial. Trata-se da ilusão de uma nova classe média que já não tem qualquer base. Quando o capitalismo é reconduzido às suas reais condições de valorização, extingue-se também a “autovalorização” do trabalho abstracto nos sectores do “conhecimento” e da comunicação mediática. A vergonha da economia das bolhas financeiras é também a vergonha da esquerda pós-moderna e do seu “anti-substancialismo” ideológico, que gostaria de declarar qualquer manifestação da vida como “valorização”. Esta ilusão não tem base económica, mas sim “existencialista”, recorrendo a Heidegger. Ao estourar a economia das bolhas financeiras, a “heideggerização” pós-moderna da esquerda corre o risco de desembocar em sentimentos nacionalistas e anti-semitas.
Original INTERVIEW MIT DER BRASILIANISCHEN INTERNET-ZEITSCHRIFT „IHU ON-LINE“ em www.exit-online.org
Publicado na REVISTA IHU ON-LINE nº 278, 20.10.2008, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, S. Leopoldo, Porto Alegre, Brasil, como o título O vexame da economia da bolha financeira é também o vexame da esquerda pós-moderna
http://obeco.planetaclix.pt/
http://www.exit-online.org/
Universidade do Vale do Rio dos Sinos, S. Leopoldo, Porto Alegre, Brasil
Em que sentido as teorias de Marx são importantes para se compreender o actual momento de crise no sistema financeiro global?
A importância da crítica da economia política de Marx para explicar a grande crise financeira actual evidencia-se desde logo em dois níveis, sendo um aspecto fundamental a sua derivação da forma do dinheiro [Geldform], no 1º volume de O Capital, e outro a sua análise do crédito, principalmente no 3º volume. Aqui somente posso tratar alguns pontos elementares.
A economia burguesa clássica e neoclássica parte, contra os factos, de uma pura economia de bens e de relações naturais de troca entre sujeitos do mercado. Ela abstrai do dinheiro e fala do “véu do dinheiro” sobre as “verdadeiras” transacções económicas. O dinheiro aparece aí como mero signo sem conteúdo próprio, como constructo jurídico baseado numa convenção social ou num acto estatal. Para que a economia funcione, importa apenas adequar a quantidade de dinheiro à quantidade de bens (teoria da quantidade). Para Marx, pelo contrário, o dinheiro não é o “véu” secundário, mas pressuposto e meio autotélico central da valorização capitalista. Ele é a forma geral da aparência do valor ou da mais-valia [Mehrwert] incorporado/a nas mercadorias, que precisa voltar a se transformar na forma do dinheiro, a qual já constitui o seu ponto de partida. Por isso, o dinheiro não pode ser mero signo, mas precisa ter ele próprio o carácter de mercadoria, e mesmo de mercadoria “rainha”. O dinheiro é “mercadoria geral” à parte, ou “equivalente geral”, cujo “valor de uso [Gebrauchswert]” não consiste em sua utilidade concreta, mas em sua propriedade de representar o valor abstracto ou mais-valia de todo o mundo das mercadorias. Para as transacções quotidianas, é verdade que signos monetários podem tomar o lugar da mercadoria-dinheiro propriamente dita, mas, em última instância e principalmente nas crises, o real conteúdo de valor do dinheiro precisa ser resgatado como “mercadoria régia”. Por isso, para Marx, o dinheiro não pode emancipar-se totalmente dos metais nobres, enquanto mercadoria dinheiro; isto não por causa do carácter metálico natural, mas em função do valor social ali representado de forma “concentrada”.
O crédito emana da subdivisão do capital em capital de produção ou capital-mercadoria, por um lado, e capital monetário ou capital que rende juros, por outro. A duplicação da mercadoria em “mercadoria vulgar” e dinheiro como “mercadoria régia” repete-se ao nível do capital. Na economia burguesa, não existe conexão sistemática entre teoria monetária e teoria do crédito. A noção de dinheiro como “véu” e mero signo encontra-se em contradição com a noção de capital monetário que rende juros, como uma espécie de produção sui generis de mercadorias. Grosso modo, faz-se de conta que a “indústria financeira” seria uma produção de mercadorias tão real quanto, por exemplo, a indústria automóvel. O juro parece ser uma forma independente de mais-valia. Marx, pelo contrário, mostra o carácter ilusório dessa ideia. Ele mostra que o crédito, ou capital que rende juros, é apenas uma forma derivada, sem formação própria de valor. O juro é o preço da função capitalista do crédito, preço este que precisa de ser subtraído da mais-valia social da produção real de mercadorias. Na estatística burguesa, pelo contrário, os “produtos” do capital monetário são somados ao produto social, com o que se distorce as verdadeiras relações de valor.
No século XX, o dinheiro e todo o sistema monetário aparentemente emanciparam-se em definitivo do ouro como mercadoria monetária real, processo concluído com o abandono da convertibilidade do dólar em ouro em 1973. No período subsequente, em correspondência, o capital monetário também se desacoplou cada vez mais da produção real de mercadorias. O inflar do crédito não só gerou formidáveis montanhas de dívidas, que sempre precisavam ser “rodadas”, mas ainda adquiriu a forma de circulação independente de títulos financeiros (acções, imobiliário, derivados), onde se criaram valores fictícios de dimensões astronómicas. Na óptica positivista, tratava-se simplesmente de “factos” que pareciam fundamentar-se a si próprios. Até mesmo teóricos de esquerda abandonaram explícita ou implicitamente a teoria de Marx do dinheiro e do crédito, porque na aparência ela estava refutada empiricamente.
Esse período de 35 anos desde o fim da convertibilidade do dólar em ouro, que é um período histórico breve, encerrou-se, entretanto, em 2008. Agora se mostra o verdadeiro carácter desse desenvolvimento. Num processo secular, o capital, em função dos crescentes custos prévios da produção cientificizada, ficou cada vez mais dependente do crédito, como antecipação de mais-valia real futura. As bolhas financeiras sempre excessivamente infladas nas últimas décadas rebentaram definitivamente a conexão entre “capital fictício” e produção real de mais-valia; a antecipação da mais-valia futura jamais poderá ser resgatada. Essa contradição amadureceu e descarrega-se como crise financeira global. Isto destrói não só a ilusão de um crescimento “financeiramente induzido”, mas também a ilusão do dinheiro como mero signo. O ouro já sofreu uma dramática valorização face a todas as moedas. Mas a remonetarização do ouro não é possível, porque as potências de produção alcançadas historicamente já não podem ser representadas como “riqueza abstracta” (Marx) na forma da mais-valia.
A desvalorização do dinheiro corresponde à desvalorização da massa das mercadorias. Por outras palavras: os recursos materiais e os agregados técnico-científicos, as capacidades e as necessidades humanas já não podem ser comprimidas nas formas básicas do capital. Ou, na expressão de Marx nos Grundrisse, “desaba o modo de produção baseado no valor de troca”; manifesta-se a “desvalorização do valor” enquanto limite histórico da valorização do capital.
Nessa situação, o Estado aparece como lender of last ressort [financiador de último recurso]. Para a teoria burguesa, o Estado não é o outro lado, o lado político da relação de capital, mas uma “instância extra-económica”. Também na esquerda, a ilusão do Estado tem uma longa tradição. Marx não chegou a concluir a formulação da sua teoria do Estado. Mas já nos escritos da sua fase inicial ele criticou a ilusão política-estatal como “falsa comunidade”. Em sua teoria do crédito, no 3º volume de O Capital, o crédito do Estado é definido como forma especial de “capital fictício”, que continua dependente da real valorização do capital. Na verdade, há muito tempo que se envergonhou a ilusão estatal, ilusão esta que esteve em alta após a grande época de crises na primeira metade do século XX. No Ocidente, a regulação estatal keynesiana e o crescimento induzido pela expansão do crédito estatal fracassaram no início dos anos 80, por causa da inflação desmedida. No Leste, o capitalismo de Estado soviético da “modernização atrasada” ficou devedor e entrou em colapso no final dos anos 80. Estas já eram formas de aparência da “desvalorização do valor” histórica. Na viragem neoliberal, a intervenção do Estado, supostamente “extra-económica”, foi responsabilizada pelo dilema e substituída por um radicalismo de mercado. Essa viragem, porém, não suplantou o limite interno da valorização, mas, mediante uma política de desregulação e de excesso de oferta monetária pelos bancos centrais, apenas abriu as comportas para uma expansão sem precedentes do crédito privado e da economia das bolhas financeiras.
Depois de também esta ilusão ter estourado e de o mercado ter falhado grandiosamente, pretende-se de repente que o Estado seja de novo o salvador. Só que o problema não pode mais ser resolvido com novo excesso de oferta monetária dos bancos centrais estatais através duma redução conjugada da taxa de juros. Pois esse tipo de excesso de oferta monetária sempre ainda pressupõe a ficção de uma “cobertura” por processos reais de valorização que já se tornou ilusória. Os bancos comerciais já só conseguem depositar nos bancos centrais “garantias” que deixaram de o ser, porque em grande parte são títulos duvidosos. Isto impede que se inflem novas bolhas financeiras da forma habitual. O colapso dos créditos hipotecários somente foi o catalisador de um processo de desvalorização de todo o capital financeiro, que vai muito além. Por isso, agora, a crise é elevada ao nível da “última instância”, isto é, das próprias finanças do Estado. Só que o Estado não é um demiurgo independente das leis da valorização do capital. Já no ano fiscal passado, ainda antes da recente crise dramática, a dívida pública dos Estados Unidos triplicou; e, no caso de se invocarem as garantias estatais concedidas em todo o mundo, o resultado somente pode ser uma grande crise das finanças estatais. O Estado não pode estancar a desvalorização, mas apenas administrá-la; ou em forma de deflação, se quiser manter seu próprio endividamento limitado, ou em forma de inflação, caso comece a imprimir notas sem qualquer “cobertura”. Nesta situação nova na História, talvez até ocorram processos deflacionários e inflacionários em paralelo.
O que representa, na actual crise, a teoria marxista do trabalho abstracto como substância do capital?
A economia burguesa clássica baseava-se, ainda, numa teoria do “valor do trabalho”. O valor devia, em última instância, ser determinado pelo trabalho humano. Acontece que essa teoria do “valor do trabalho” era acrítica e inconsequente. A teoria de Marx da determinação do valor e da mais-valia pelo trabalho abstracto é fundamentalmente diferente. O conceito de trabalho abstracto é entendido de forma crítica e estritamente negativa, como “abstracção real” da produção concreta de bens. No processo de produção e circulação do capital, a actividade produtiva é reduzida, em sua forma social, à delapidação [Vernutzung] abstracta de energia humana, ou aplicação [Anwendung] de força de trabalho abstracta como “dispêndio [Verausgabung] de nervo, músculo, cérebro” (Marx), com total indiferença perante o conteúdo concreto desse dispêndio. A massa de trabalho abstracto passado surge como massa de valor social e como “objectividade do valor” [Wertgegenständlichkeit] dos produtos. Na “valorização do valor”, o que interessa não é a massa de valor em si, mas apenas a massa de mais-valia, que é distribuída aos diferentes capitais pelo mecanismo da concorrência. A valorização como fim em si mesmo transforma em fim em si mesmo também o trabalho abstracto que lhe dá origem, trabalho esse que, como dispêndio de energia humana abstracta, constitui a substância do capital. A economia neoclássica burguesa abandonou a teoria clássica do “valor do trabalho”. O valor foi reduzido ao preço, sendo entendido não mais como substância comum das mercadorias, mas como mera função na inter-relação das mercadorias. Esta redução corresponde na filosofia burguesa à passagem do “conceito de substância” para o “conceito de função”.
Pretendia-se eliminar o problema da substância, transformando-o numa relação funcional vazia. A “matematização” dos “modelos” neoclássicos baseia-se nessa transformação do valor numa relação estritamente funcional. Com isto, a teoria do valor foi adaptada à teoria do dinheiro como mero “signo”. Essa “teoria da circulação” funcional do valor, no espaço da língua alemã, de certo modo também conseguiu entrar numa assim chamada “nova leitura de Marx”, na qual a teoria crítica de Marx do “valor do trabalho” era rejeitada como “naturalista” ou “substancialista”, negando-se o carácter de mercadoria do dinheiro.
Como na economia burguesa, assim se exclui, por princípio, um limite interno absoluto da valorização. A redução do valor a uma relação funcional torna-o aparentemente atemporal e eternamente regenerável. Marx, pelo contrário, mostrou que o desenvolvimento capitalista contém uma autocontradição elementar. Por um lado, a energia humana abstracta constitui a substância real do capital; por outro lado, a concorrência obriga ao constante desenvolvimento da força produtiva, a qual torna supérflua a força de trabalho humana e solapa a substância do valor. Até à segunda revolução industrial do fordismo, esse processo secular de desvalorização das mercadorias podia ser compensado por meio do mecanismo da “mais-valia relativa”, analisado por Marx: pelo desenvolvimento da força produtiva, o valor da mercadoria “força de trabalho” é reduzido à escala social e a participação relativa da mais-valia na massa total de valor aumenta. Essa participação relativa aumentada da mais-valia, porém, está relacionada com a quantidade de força de trabalho produtivamente utilizável. Marx não chegou a concluir sua teoria da crise, mas implicitamente ela faz inferir que o desenvolvimento da força produtiva chega a um ponto em que a quantidade de força de trabalho produtivamente utilizável se reduz a tal ponto que a massa de mais-valia absoluta cai. Então, mesmo o aumento da mais-valia relativa por força de trabalho de nada serve. Esse ponto é atingido com a 3ª revolução industrial da microeletrónica. O mecanismo histórico de compensação da mais-valia relativa se extingue, a massa real absoluta de mais-valia cai e a “desvalorização do valor” leva à “dessubstancialização do capital”.
Este é o motivo pelo qual, no período anterior, se podia simular mais valorização somente por meio de bolhas financeiras desprovidas de substância. Quando estas estouram, entretanto, não se atinge novo “ponto zero”, a partir do qual a valorização real possa recomeçar. Ao invés, o capitalismo é reduzido às suas reais condições de valorização, cujo standard de produtividade é irreversível. Essa teoria substancial da crise, que fala de um limite interno absoluto do capital, muitas vezes foi criticada como “tecnológica” justamente pela esquerda. Mas não se trata, no caso, do aspecto técnico, mas do efeito da tecnologia sobre as condições da valorização. Marx não formulou uma teoria funcional do valor “atemporal”, mas sim a teoria de um desenvolvimento historicamente dinâmico do capital, como movimento da substância real mediado pela crescente aplicação dos potenciais técnico-científicos e que não pode ser infinitamente prolongado.
Sobre isto ainda cabe fazer duas observações. Em primeiro lugar, as categorias de Marx são categorias reais de uma lógica da sociedade como um todo, que está na base das aparências empíricas, mas não pode ser descrita de forma directamente empírica. Isto não apenas porque o capital se move empiricamente em formas de mediação complexas e contraditórias, mas porque a real agregação da substância de valor social sempre se apresenta apenas em retrospectiva. A estatística burguesa nunca capta a real massa de valor ou mais-valia, mas apenas os fluxos superficiais de mercadoria e dinheiro, os quais produzem uma imagem distorcida. Por isso os crashes também não são previstos, mas apresentam-se de forma eruptiva, quando a lógica de base irrompe a empiria, como parece ser agora o caso. Porém, as curvas caóticas e os saltos descontrolados, por exemplo dos câmbios ou dos índices da bolsa, necessariamente precisam ser atribuídos à natureza não-empírica do capital e à sua evolução substancial. Isto não está ao alcance de uma teoria categorialmente imanente ou afirmativa, que só consegue ficar correndo atrás dos fenómenos imprevisíveis. Em segundo lugar, o limite da valorização é estritamente objectivo. Aquilo que “desaba” por entre as curvas é a capacidade de o capital reproduzir-se socialmente. Mas o que não desaba por si mesmo são as formas de consciência ou “formas de pensamento objectivas” constituídas pelo capital (Marx). Ao se alcançar o limite histórico do capitalismo, surge por isso uma tensão colossal entre a impossibilidade de continuar uma valorização real e a mentalidade generalizada que interiorizou as condições capitalistas de vida e não quer nem consegue imaginar outra coisa senão viver dentro dessas formas. A difícil tarefa está em resolver essa tensão no processo de resistência contra a administração da crise, sob pena de o capitalismo desembocar numa catástrofe mundial. Para isto não está preparada uma esquerda que se adaptou cada vez mais ao desenvolvimento capitalista.
Quais as consequências da crise financeira para o emprego global?
Desde o início da 3ª revolução industrial nos anos 80, os novos potenciais de racionalização eliminaram a força de trabalho industrial do processo produtivo numa escala nunca vista antes. Em consequência, de ciclo em ciclo, aumentou em massa o desemprego e o subemprego à escala global. O reverso da medalha foi a simulação da valorização pelo inflar do “capital fictício”. Diferentemente de épocas anteriores do capitalismo, entretanto, não ocorreu uma desvalorização rápida do capital monetário sem substância, para dar lugar a uma nova acumulação real. Em vez disso, por falta de novas possibilidades de valorização real, iniciou-se uma imbricação sem precedentes históricos entre a economia das bolhas financeiras e a conjuntura. Os “valores fictícios” não permaneceram no céu financeiro, mas têm sido transferidos para a aparente economia real há muito tempo e em medida crescente. Assim surgiu o famoso crescimento “financeiramente induzido”, que parecia alavancar as leis económicas do capitalismo e permitiu uma onda de conjunturas em alta baseadas no deficit, que na realidade não tinham base. Embora o desemprego em massa aumentasse, ele era mantido em limites relativos porque, no quadro das conjunturas baseadas no deficit, criaram-se em certa medida “postos de trabalhos fictícios”, que se alimentavam das bolhas financeiras sem substância.
Para se compreender essa evolução, é importante a distinção de Marx entre “trabalho produtivo” e “improdutivo”. Todas as actividades no contexto da forma capitalista são trabalho abstracto, que é representado em dinheiro. Mas nem todo trabalho abstracto é produtivo em termos capitalistas, nem contribui para a massa de mais-valia social real. Certas funções da relação de capital são em si improdutivas e “custos mortos”. Mas também a actividade produtiva industrial pode tornar-se improdutiva em sentido capitalista, quando ela excede a capacidade de produção de mais-valia real (“capacidades excedentárias”). Todos os resultados do trabalho abstracto assumem a forma de mercadoria enquanto “objectividades da circulação” [“Zirkulationsgegenständlichkeit”]. Ao conseguirem um preço, eles assumem uma parte da massa de mais-valia social, independentemente de a sua produção ter contribuído ou não para essa massa. Esse carácter social global [gesamtgesellschaftlich] da produção de valor e de mais-valia não fica muito claro em Marx, razão pela qual surgiu o famoso problema da transformação do valor em preço. Entretanto, esse problema se resolve quando a massa de mais-valia social não se baseia numa soma de valores “individuais” das mercadorias, mas representa uma massa de substancia social total não subsumível a nível empresarial; a sua quantidade só é revelada pela concorrência no nível da circulação. Isto não torna irrelevante o problema da substância, mas nada tem a ver com uma substância de valor da mercadoria individual.
Que significa isto para a era da economia das bolhas financeiras? A queda da massa de mais-valia social real foi aparentemente mascarada pela “mais-valia fictícia” do sistema de crédito inflado. Dessa forma, gerou-se uma ocupação improdutiva que ultrapassava em muito a capacidade de produção de mais-valia real. Em primeiro lugar, junto com o inchar da “indústria financeira”, inchou de forma desproporcionada o emprego nesse sector, emprego esse que não produz valor algum, apenas intermedeia transacções financeiras. Em segundo lugar, criou-se um sector igualmente desproporcionado de serviços pessoais improdutivos em termos capitalistas, de indústria publicitária, indústria da informação e dos media, indústria do desporto e da cultura. Justamente nesses sectores, a ausência de substância fez-se notar, por um lado, como remuneração astronomicamente excessiva de uma pequena elite de estrelas e, por outro, como precarização em forma de freelancers, pseudo-autónomos e empresários da miséria. Em terceiro lugar, a conjuntura do deficit global forçou o emprego de uma “aristocracia operária” nas indústrias de exportação (produção automóvel, máquinas), a qual era igualmente improdutiva porque não se baseava em lucros e salários de produção de mais-valia real, mas era alimentada pelas bolhas financeiras.
Na mesma medida em que o estouro das bolhas financeiras reduz o capitalismo às suas reais condições de valorização, também boa parte do emprego improdutivo terá de cair. A massa de mais-valia real é muito pequena para que a “objectividade de circulação [Zirkulationsgegenständlichkeit]” desses sectores inflados se possa representar como “objectividade de valor [Wertgegenständlichkeit]”. A depressão global que é de esperar levará de roldão não só grande parte dos “senhores do universo” do capitalismo financeiro, mas também boa parte das precárias micro-empresas prestadoras de serviços, dos freelancers, dos assalariados mal pagos e dos trabalhadores temporários daqueles dependentes, assim como empregos na indústria de exportação. O sistema do trabalho abstracto leva a si próprio ao absurdo; e o capitalismo global minoritário sofre o seu Waterloo, mesmo que ninguém queira tomar conhecimento, embora todos o saibam intuitivamente.
Em que consiste o peso do capitalismo na sociedade de hoje, caracterizada por relações virtuais, trabalho imaterial e autonomia?
Os conceitos mencionados provêm todos da ideologia pós-moderna, que desde o começo acompanhou e deu expressão ao capitalismo financeiro neoliberal do “capital fictício” inflado. Já em fins dos anos 1970, em seu livro A troca simbólica e a morte, Baudrillard explicitou a relação com a economia ao estabelecer o “capital fictício” como novo princípio de realidade. Também Derrida, num texto sobre “dinheiro falso”, afirmou a virtualidade do capital. A rejeição radical pós-moderna do “essencialismo” ou “substancialismo” corresponde à tentativa de o capital iludir o seu próprio problema, de certa maneira “aristotélico”, da substância. O culto da “virtualidade” contagiou todos os domínios da vida, até mesmo as relações pessoais. A redução do valor a uma relação funcional levou à paradoxal “absolutização da relatividade”, que no entendimento vulgar se manifestou como “arbitrariedade”. Ao virtualismo económico correspondia o virtualismo tecnológico da internet, que se transformou na “second life” das vidas individualizadas e abstractas de bloggers, incapazes de se organizar e de resistir na realidade.
A esquerda pós-moderna é a órfã desse desenvolvimento. Ela reduziu a luta social a um nível virtual e simbólico. O “pós-operaismo” de Antonio Negri exprime o cerne dessa ideologia. O fetichismo objectivo do capital é negado e dissolvido, crise incluída, em relações subjectivas de vontade. O lugar da crítica radical do trabalho abstracto e da forma abstracta do valor é tomado pela ilusão de uma “autovalorização autónoma” [autovalorisazzione] de freelancers de um “trabalho imaterial”. É um conceito nonsense, porque todo o trabalho abstracto, mesmo que não se manifeste em produtos materiais, é “dispêndio de nervo, músculo, cérebro”. Só que o “trabalho do conhecimento”, improdutivo em termos capitalistas, justamente nada contribui para a massa de mais-valia social real. A “autonomia” dessa forma específica de trabalho abstracto é ilusória, porque continua dependente do mercado mundial. Trata-se da ilusão de uma nova classe média que já não tem qualquer base. Quando o capitalismo é reconduzido às suas reais condições de valorização, extingue-se também a “autovalorização” do trabalho abstracto nos sectores do “conhecimento” e da comunicação mediática. A vergonha da economia das bolhas financeiras é também a vergonha da esquerda pós-moderna e do seu “anti-substancialismo” ideológico, que gostaria de declarar qualquer manifestação da vida como “valorização”. Esta ilusão não tem base económica, mas sim “existencialista”, recorrendo a Heidegger. Ao estourar a economia das bolhas financeiras, a “heideggerização” pós-moderna da esquerda corre o risco de desembocar em sentimentos nacionalistas e anti-semitas.
Original INTERVIEW MIT DER BRASILIANISCHEN INTERNET-ZEITSCHRIFT „IHU ON-LINE“ em www.exit-online.org
Publicado na REVISTA IHU ON-LINE nº 278, 20.10.2008, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, S. Leopoldo, Porto Alegre, Brasil, como o título O vexame da economia da bolha financeira é também o vexame da esquerda pós-moderna
http://obeco.planetaclix.pt/
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quarta-feira, 15 de outubro de 2008
A cara antidemocrática do capitalismo - Noam Chomsky
A cara antidemocrática do capitalismo
A liberalização financeira teve efeitos para muito além da economia. Há muito que se compreendeu que era uma arma poderosa contra a democracia. O movimento livre dos capitais cria o que alguns chamaram um “parlamento virtual” de investidores e credores que controlam de perto os programas governamentais e “votam” contra eles, se os consideram “irracionais”, quer dizer, se são em benefício do povo e não do poder privado concentrado.
Noam Chomsky - Sin Permiso
O desenvolvimento de uma campanha presidencial norte-americana simultaneamente ao desenlace da crise dos mercados financeiros oferece uma dessas ocasiões em que os sistemas político e econômico revelam vigorosamente sua natureza.
Pode ser que a paixão pela campanha não seja uma coisa universalmente compartilhada, mas quase todo mundo pode perceber a ansiedade desencadeada pela execução hipotecária de um milhão de residências, assim como a preocupação com os riscos que correm os postos de trabalho, as poupanças e os serviços de saúde.
As propostas iniciais de Bush para lidar com a crise fediam a tal ponto a totalitarismo que não tardaram a ser modificadas. Sob intensa pressão dos lobbies, foram reformuladas “para o claro benefício das maiores instituições do sistema...uma forma de desfazer-se dos ativos sem necessidade de fracassar ou quase”, segundo descreveu James Rickards, que negociou o resgate federal por parte do fundo de cobertura de derivativos financeiros Long Term Capital Management em 1998, lembrando-nos de que estamos caminhando em terreno conhecido.
As origens imediatas do desmoronamento atual estão no colapso da bolha imobiliária supervisionada pelo presidente do Federal Reserve, Alan Greenspan, que foi quem sustentou a coitada da economia dos anos Bush, misturando o gasto de consumo fundado na dívida com a tomada de empréstimos do exterior. Mas as razões são mais profundas. Em parte, fala-se no triunfo da liberalização financeira dos últimos 30 anos, quer dizer, nas políticas consistentes em liberar o máximo possível os mercados da regulação estatal.
Como era previsível, as medidas tomadas a esse respeito incrementaram a frequência e a profundidade dos grandes reveses econômicos, e agora estamos diante da ameaça de que se desencadeie a pior crise desde a Grande Depressão.
Também era previsível que os poucos setores que cresceram com os enormes lucros oriundos da liberalização demandariam uma intervenção maciça do estado, a fim de resgatar as instituições financeiras colapsadas.
Esse tipo de intervencionismo é um traço característico do capitalismo de estado, ainda que na escala atual seja inesperado. Um estudo dos pesquisadores em economia internacional Winfried Ruigrok e Rob van Tulder descobriu, há 15 anos, que pelo menos 20 companhias entre as100 primeiras do ranking da revista Fortune, não teriam sobrevivido se não tivessem sido salvas por seus respectivos governos, e que muitas, entre as 80 restantes, obtiveram ganhos substanciais através das demandas aos governos para que “socializassem suas perdas”, como hoje o é o resgate financiado pelo contribuinte. Tal intervenção pública “foi a regra, mais que a exceção, nos dois últimos séculos”, concluíram.
Numa sociedade democrática efetiva, uma campanha política teria de abordar esses assuntos fundamentais, observar as causas e os remédios para essas causas, e propor os meios através dos quais o povo que sofre as conseqüências pudesse chegar a exercer um controle efetivo.
O mercado financeiro “despreza o risco” e é “sistematicamente ineficiente”, como escreveram há uma década os economistas John Eatwell e Lance Taylor, alertando sobre os gravísimos perigos que a liberalização financeira engendrava, e mostrando os custos em que já se tinha incorrido.
Ademais, propuseram soluções que, deve-se dizer, foram ignoradas. Um fator de peso é a incapacidade de calcular os custos por parte daqueles que não participam dessas transações. Essas "externalidades" podem ser enormes. A ignorância do risco sistêmico leva a uma maior aceitação de riscos do que se daria numa economia eficiente, e isso adotando, inclusive, os critérios menos exigentes.
A tarefa das instituições financeiras é arriscar-se e, se são bem gestionadas, assegurar que as potenciais perdas em que elas mesmas podem incorrer serão cobertas. A ênfase há que pôr-se “nelas mesmas”. Segundo as regras do capitalismo de estado, levar em conta os custos que para os outros possam ter – as “externalidades” de uma sobrevivência decente – umas práticas que levem, como espectro, a crises financeiras é algo que não lhes diz respeito.
A liberalização financeira teve efeitos para muito além da economia. Há muito que se compreendeu que era uma arma poderosa contra a democracia. O movimento livre dos capitais cria o que alguns chamaram um “parlamento virtual” de investidores e credores que controlam de perto os programas governamentais e “votam” contra eles, se os consideram “irracionais”, quer dizer, se são em benefício do povo e não do poder privado concentrado. Os investidores e credores podem “votar” com a fuga de capitais, com ataques às divisas e com outros instrumentos que a liberalização financeira lhes serve de bandeja. Essa é uma das razões pelas quais o sistema de Bretton Woods, estabelecido pelos EUA e pela Grã Bretanha depois da II Guerra Mundial, instituiu controle de capitais e regulou o mercado de divisas (1).
A Grande Depressão e a Guerra puseram em marcha poderosas correntes democráticas radicais que iam desde a resistência antifascita até as organizações da classe trabalhadora. Essas pressões tornaram possível que se tolerassem políticas sociais democráticas. O sistema Bretton Woods foi, em parte, concebido para criar um espaço no qual a ação governamental pudesse responder à vontade pública cidadã, quer dizer, para permitir certa democracia. John Maynard Keynes, o negociador britânico, considerou o direito dos governos a restringir os movimentos de capitais a mais importante conquista estabelecida em Bretton Woods. Num contraste espetacular, na fase neoliberal que se seguiu ao desmonte do sistema de Bretton Woods nos anos 70, o Tesouro norte-americano passa a considerar a livre circulalação de capitais um “direito fundamental”. À diferença, nem precisa dizer, dos pretensos “direitos” garantidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos: direito à saúde, à educação, ao emprego decente, à segurança e outros direitos que as administrações de Reagan e de Bush chamaram com desprezo de “cartas a Papai Noel”, “ridículos” ou meros “mitos”.Nos primeiros anos, as pessoas não tiveram maiores problemas com o assunto. As razões disso Barry Eichengreen estudou em sua história, impecavelmente acadêmica, do sistema monetário. Nessa obra se explica que, no século XIX, os governos “ainda não estavam politizados pelo sufrágio universal masculino, o sindicalismo e os partidos trabalhistas parlamentares. Por conseguinte, os graves custos impostos pelo parlamento virtual podiam se transferidos para toda a população.Porém, com a radicalização da população e da opinião pública que se seguiu à Grande Depressão e à guerra antifascista, o poder e a riqueza privados privaram-se desse luxo. Daí que no sistema Bretton Woods “os limites da democracia como fonte de resistência às pressões do mercado foram substituídos por limites à circulação de capitais.” O corolário óbvio é que no rastro do desmantelamento do sistema do pós-guerra a democracia tenha sido restringida. Fez-se necessário controlar e marginalizar de algum modo a população e a opinião pública, processos particularmente evidentes nas sociedades mais avançadas no mundo dos negócios, como os EUA. A gestão das extravagâncias eleitorais por parte da indústria de relações públicas constitui uma boa ilustração. “A política é a sombra da grande empresa sobre a sociedade”, concluiu em seus dias o maior filósofo norte-americano do século XX, John Dewey, e assim seguirá sendo, enquanto o poder consista “nos negócios para benefício privado através do controle da banca, do território e da indústria que agora se vê reforçada pelo controle da imprensa, dos jornalistas e sobretudo dos meios de publicidade e propaganda.”Os EUA tem efetivamente um sistema de um só partido, o partido dos negócios, com duas facções, republicanos e democratas. Há diferenças entre eles. Em seu estudo sobre A Democracia Desigual: a economia política da nova Era da Cobiça, Larry Bartels mostra que durante as últimas seis décadas “a renda real das famílias de classe média cresceu duas vezes mais rápido sob administração democrata que republicana, enquanto a renda real das famílias pobres da classe trabalhadora cresceu seis vezes mais rápido sob os democratas que sob os republicanos”.Essas diferenças também podem ser vistas nestas eleições. Os eleitores deveriam tê-las em conta, mas sem ter ilusões sobre os partidos políticos, e reconhecendo o padrão regular que, nos últimos séculos, vem revelando que a legislação progressista e de bem-estar social sempre foram conquistas das lutas populares, nunca presentes dos de cima. Essas lutas seguem ciclos de êxitos e de retrocessos. Hão de ser travadas a cada dia, não só a cada quatro anos, e sempre visando à criação de uma sociedade genuinamente democrática, capaz de resposta em toda parte, nas urnas não menos do que no posto de trabalho.
* Noam Chomsky, professor emérito de linguística no MIT – Massachussets Institute of Technology
(1) O sistema de Bretton Woods de gestão financeira global foi criado por 730 delegados de 44 nações aliadas na II Guerra Mundial, que compareceram a uma Conferência Monetária e Financeira organizada pela ONU no hotel Mont Washington, em Bretton Woods, New Hampshire, em 1944. Bretton Woods, que colapsou em 1971, era o sistema de normas, instituições e procedimentos que regulavam o sistema monetário internacional e sob cujos auspícios se criou o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) – agora uma das cinco instituições que compõem o Grupo do Banco Mundial— e o Fundo Monetário Internacional (FMI), que passaram a funcionar em 1945.
O traço principal de Bretton Woods era a obrigação de todos os paísses de adotar uma política monetária que mantivesse dentro de valores fixos a taxa de câmbio de sua moeda. O sistema colapsou quando os EUA suspenderam a convertibilidade do padrão ouro do dólar. Isso criou a insólita situação na qual o dólar chegou a converter-se em “moeda de reserva” para os outros países que estavam no Bretton Woods.
Tradução: Katarina Peixoto
Fonte: Agência Carta Maior
A liberalização financeira teve efeitos para muito além da economia. Há muito que se compreendeu que era uma arma poderosa contra a democracia. O movimento livre dos capitais cria o que alguns chamaram um “parlamento virtual” de investidores e credores que controlam de perto os programas governamentais e “votam” contra eles, se os consideram “irracionais”, quer dizer, se são em benefício do povo e não do poder privado concentrado.
Noam Chomsky - Sin Permiso
O desenvolvimento de uma campanha presidencial norte-americana simultaneamente ao desenlace da crise dos mercados financeiros oferece uma dessas ocasiões em que os sistemas político e econômico revelam vigorosamente sua natureza.
Pode ser que a paixão pela campanha não seja uma coisa universalmente compartilhada, mas quase todo mundo pode perceber a ansiedade desencadeada pela execução hipotecária de um milhão de residências, assim como a preocupação com os riscos que correm os postos de trabalho, as poupanças e os serviços de saúde.
As propostas iniciais de Bush para lidar com a crise fediam a tal ponto a totalitarismo que não tardaram a ser modificadas. Sob intensa pressão dos lobbies, foram reformuladas “para o claro benefício das maiores instituições do sistema...uma forma de desfazer-se dos ativos sem necessidade de fracassar ou quase”, segundo descreveu James Rickards, que negociou o resgate federal por parte do fundo de cobertura de derivativos financeiros Long Term Capital Management em 1998, lembrando-nos de que estamos caminhando em terreno conhecido.
As origens imediatas do desmoronamento atual estão no colapso da bolha imobiliária supervisionada pelo presidente do Federal Reserve, Alan Greenspan, que foi quem sustentou a coitada da economia dos anos Bush, misturando o gasto de consumo fundado na dívida com a tomada de empréstimos do exterior. Mas as razões são mais profundas. Em parte, fala-se no triunfo da liberalização financeira dos últimos 30 anos, quer dizer, nas políticas consistentes em liberar o máximo possível os mercados da regulação estatal.
Como era previsível, as medidas tomadas a esse respeito incrementaram a frequência e a profundidade dos grandes reveses econômicos, e agora estamos diante da ameaça de que se desencadeie a pior crise desde a Grande Depressão.
Também era previsível que os poucos setores que cresceram com os enormes lucros oriundos da liberalização demandariam uma intervenção maciça do estado, a fim de resgatar as instituições financeiras colapsadas.
Esse tipo de intervencionismo é um traço característico do capitalismo de estado, ainda que na escala atual seja inesperado. Um estudo dos pesquisadores em economia internacional Winfried Ruigrok e Rob van Tulder descobriu, há 15 anos, que pelo menos 20 companhias entre as100 primeiras do ranking da revista Fortune, não teriam sobrevivido se não tivessem sido salvas por seus respectivos governos, e que muitas, entre as 80 restantes, obtiveram ganhos substanciais através das demandas aos governos para que “socializassem suas perdas”, como hoje o é o resgate financiado pelo contribuinte. Tal intervenção pública “foi a regra, mais que a exceção, nos dois últimos séculos”, concluíram.
Numa sociedade democrática efetiva, uma campanha política teria de abordar esses assuntos fundamentais, observar as causas e os remédios para essas causas, e propor os meios através dos quais o povo que sofre as conseqüências pudesse chegar a exercer um controle efetivo.
O mercado financeiro “despreza o risco” e é “sistematicamente ineficiente”, como escreveram há uma década os economistas John Eatwell e Lance Taylor, alertando sobre os gravísimos perigos que a liberalização financeira engendrava, e mostrando os custos em que já se tinha incorrido.
Ademais, propuseram soluções que, deve-se dizer, foram ignoradas. Um fator de peso é a incapacidade de calcular os custos por parte daqueles que não participam dessas transações. Essas "externalidades" podem ser enormes. A ignorância do risco sistêmico leva a uma maior aceitação de riscos do que se daria numa economia eficiente, e isso adotando, inclusive, os critérios menos exigentes.
A tarefa das instituições financeiras é arriscar-se e, se são bem gestionadas, assegurar que as potenciais perdas em que elas mesmas podem incorrer serão cobertas. A ênfase há que pôr-se “nelas mesmas”. Segundo as regras do capitalismo de estado, levar em conta os custos que para os outros possam ter – as “externalidades” de uma sobrevivência decente – umas práticas que levem, como espectro, a crises financeiras é algo que não lhes diz respeito.
A liberalização financeira teve efeitos para muito além da economia. Há muito que se compreendeu que era uma arma poderosa contra a democracia. O movimento livre dos capitais cria o que alguns chamaram um “parlamento virtual” de investidores e credores que controlam de perto os programas governamentais e “votam” contra eles, se os consideram “irracionais”, quer dizer, se são em benefício do povo e não do poder privado concentrado. Os investidores e credores podem “votar” com a fuga de capitais, com ataques às divisas e com outros instrumentos que a liberalização financeira lhes serve de bandeja. Essa é uma das razões pelas quais o sistema de Bretton Woods, estabelecido pelos EUA e pela Grã Bretanha depois da II Guerra Mundial, instituiu controle de capitais e regulou o mercado de divisas (1).
A Grande Depressão e a Guerra puseram em marcha poderosas correntes democráticas radicais que iam desde a resistência antifascita até as organizações da classe trabalhadora. Essas pressões tornaram possível que se tolerassem políticas sociais democráticas. O sistema Bretton Woods foi, em parte, concebido para criar um espaço no qual a ação governamental pudesse responder à vontade pública cidadã, quer dizer, para permitir certa democracia. John Maynard Keynes, o negociador britânico, considerou o direito dos governos a restringir os movimentos de capitais a mais importante conquista estabelecida em Bretton Woods. Num contraste espetacular, na fase neoliberal que se seguiu ao desmonte do sistema de Bretton Woods nos anos 70, o Tesouro norte-americano passa a considerar a livre circulalação de capitais um “direito fundamental”. À diferença, nem precisa dizer, dos pretensos “direitos” garantidos pela Declaração Universal dos Direitos Humanos: direito à saúde, à educação, ao emprego decente, à segurança e outros direitos que as administrações de Reagan e de Bush chamaram com desprezo de “cartas a Papai Noel”, “ridículos” ou meros “mitos”.Nos primeiros anos, as pessoas não tiveram maiores problemas com o assunto. As razões disso Barry Eichengreen estudou em sua história, impecavelmente acadêmica, do sistema monetário. Nessa obra se explica que, no século XIX, os governos “ainda não estavam politizados pelo sufrágio universal masculino, o sindicalismo e os partidos trabalhistas parlamentares. Por conseguinte, os graves custos impostos pelo parlamento virtual podiam se transferidos para toda a população.Porém, com a radicalização da população e da opinião pública que se seguiu à Grande Depressão e à guerra antifascista, o poder e a riqueza privados privaram-se desse luxo. Daí que no sistema Bretton Woods “os limites da democracia como fonte de resistência às pressões do mercado foram substituídos por limites à circulação de capitais.” O corolário óbvio é que no rastro do desmantelamento do sistema do pós-guerra a democracia tenha sido restringida. Fez-se necessário controlar e marginalizar de algum modo a população e a opinião pública, processos particularmente evidentes nas sociedades mais avançadas no mundo dos negócios, como os EUA. A gestão das extravagâncias eleitorais por parte da indústria de relações públicas constitui uma boa ilustração. “A política é a sombra da grande empresa sobre a sociedade”, concluiu em seus dias o maior filósofo norte-americano do século XX, John Dewey, e assim seguirá sendo, enquanto o poder consista “nos negócios para benefício privado através do controle da banca, do território e da indústria que agora se vê reforçada pelo controle da imprensa, dos jornalistas e sobretudo dos meios de publicidade e propaganda.”Os EUA tem efetivamente um sistema de um só partido, o partido dos negócios, com duas facções, republicanos e democratas. Há diferenças entre eles. Em seu estudo sobre A Democracia Desigual: a economia política da nova Era da Cobiça, Larry Bartels mostra que durante as últimas seis décadas “a renda real das famílias de classe média cresceu duas vezes mais rápido sob administração democrata que republicana, enquanto a renda real das famílias pobres da classe trabalhadora cresceu seis vezes mais rápido sob os democratas que sob os republicanos”.Essas diferenças também podem ser vistas nestas eleições. Os eleitores deveriam tê-las em conta, mas sem ter ilusões sobre os partidos políticos, e reconhecendo o padrão regular que, nos últimos séculos, vem revelando que a legislação progressista e de bem-estar social sempre foram conquistas das lutas populares, nunca presentes dos de cima. Essas lutas seguem ciclos de êxitos e de retrocessos. Hão de ser travadas a cada dia, não só a cada quatro anos, e sempre visando à criação de uma sociedade genuinamente democrática, capaz de resposta em toda parte, nas urnas não menos do que no posto de trabalho.
* Noam Chomsky, professor emérito de linguística no MIT – Massachussets Institute of Technology
(1) O sistema de Bretton Woods de gestão financeira global foi criado por 730 delegados de 44 nações aliadas na II Guerra Mundial, que compareceram a uma Conferência Monetária e Financeira organizada pela ONU no hotel Mont Washington, em Bretton Woods, New Hampshire, em 1944. Bretton Woods, que colapsou em 1971, era o sistema de normas, instituições e procedimentos que regulavam o sistema monetário internacional e sob cujos auspícios se criou o Banco Internacional para a Reconstrução e Desenvolvimento (BIRD) – agora uma das cinco instituições que compõem o Grupo do Banco Mundial— e o Fundo Monetário Internacional (FMI), que passaram a funcionar em 1945.
O traço principal de Bretton Woods era a obrigação de todos os paísses de adotar uma política monetária que mantivesse dentro de valores fixos a taxa de câmbio de sua moeda. O sistema colapsou quando os EUA suspenderam a convertibilidade do padrão ouro do dólar. Isso criou a insólita situação na qual o dólar chegou a converter-se em “moeda de reserva” para os outros países que estavam no Bretton Woods.
Tradução: Katarina Peixoto
Fonte: Agência Carta Maior
O mito do colapso americano - José Luis Fiori
O mito do colapso americano
Apesar da violência desta crise financeira, não deverá haver um vácuo nem uma 'sucessão' na liderança política e militar do sistema mundial. E, do ponto de vista econômico, o mais provável é que ocorra uma fusão financeira cada vez maior entre a China e os Estados Unidos.
Data: 08/10/2008 “Como é meu intento escrever coisa útil para os que se interessarem, pareceu-me mais conveniente procurar a verdade pelo efeito das coisas, do que pelo que delas se possa imaginar”.N. Maquiavel, O Príncipe, 1513Na segunda feira, 6 de outubro de 2008, a crise financeira americana desembarcou na Europa, e repercutiu em todo mundo, de forma violenta. As principais Bolsas de Valor do mundo tiveram quedas expressivas, e governos e Bancos Centrais tiveram que intervir para manter a liquidez e o crédito de seus sistemas bancários. Neste momento, não cabem mais dúvidas: a crise financeira que começou pelo mercado imobiliário de alto risco dos EUA já se transformou numa crise profunda e global, destruiu uma quantidade fabulosa de riqueza, e deverá atingir de forma mais ou menos extensa, desigual e prolongada, a economia real dos EUA, e de todos os países do mundo.Muitos bancos e empresas seguirão quebrando, nascerão rapidamente novas regras e instituições, e haverá nos próximos meses, uma gigantesca centralização do capital financeiro, sobretudo nos EUA e na Europa. Os bancos e organismos multinacionais seguem paralisados e impotentes e se aprofunda, por todo lado, a tendência à estatização de empresas, à regulação dos mercados, e ao aumento do protecionismo e do nacionalismo econômico.De todos os pontos de vista, acabou a “era Tatcher/Reagan” e foi para o balaio da história o “modelo neoliberal” anglo-americano, junto com as idéias econômicas hegemônicas nos últimos 30 anos. Como contrapartida, mesmo sem fazer proselitismo explícito, deverá ganhar pontos, nos próximos meses e anos, em todas as latitudes, o “modelo chinês” nacional-estatista, centralizante e planejador. No meio do tiroteio, é difícil de pensar. Talvez por isto, multiplicam-se, imprensa e na academia, os adjetivos, as exclamações e as profecias apocalípticas, anunciando o fim da supremacia mundial do dólar e do poder global dos EUA, ou, do próprio capitalismo americano. Na mesma hora em que os governos e investidores de todo mundo estão se refugiando no próprio dólar, e nos títulos do Tesouro americano, apesar de sua baixíssima rentabilidade, e apesar de que o epicentro da crise esteja nos EUA. E o que é mais interessante, é que são os governos dos estados que estariam ameaçando a supremacia americana, os primeiros a se refugiarem na moeda e nos títulos americanos. Para explicar este comportamento aparentemente paradoxal, é preciso deixar de lado as teorias econômicas convencionais sobre o “padrão ouro”e o “padrão-dólar”, e também, as teorias políticas convencionais sobre as crises e “sucessões hegemônicas”, dentro do sistema mundial. Comecemos pelo paradoxo da “fuga para o dólar”, em resposta à crise do próprio dólar. Aqui é preciso entender algumas características específicas e fundamentais do sistema “dólar-flexível”. Desde a década de 1970, os EUA se transformaram no “mercado financeiro do mundo”, e o seu Banco Central (FED), passou a emitir uma moeda nacional de circulação internacional, sem base metálica, administrada através das taxas de juros do próprio FED, e dos títulos emitidos pelo Tesouro americano, que atuam em todo mundo, como lastro do sistema “dólar-flexível”. Por isto “a quase totalidade dos passivos externos americanos é denominada em dólares e praticamente todas as importações de bens e serviços dos EUA são pagas exclusivamente em dólar. Uma situação única que gera enorme assimetria entre o ajuste externo dos EUA e dos demais países [...]. Por isto, também, a remuneração em dólares dos passivos externos financeiros americanos que são todos denominados em dólar, segue de perto a trajetória das taxas de juros determinadas pela própria política monetária americana, configurando um caso único em que um país devedor determina a taxa de juros de sua própria “dívida externa” (1). Uma mágica poderosa e uma circularidade imbatível, porque se sustenta de forma exclusiva, no poder político e econômico norte-americano.Agora mesmo, por exemplo, para enfrentar a crise, o Tesouro americano emitirá novos títulos que serão comprados, pelos governos e investidores de todo mundo, como justifica o influente economista chinês, Yuan Gangming, ao garantir que “é bom para a China investir muito nos EUA; porque não há muitas outras opções para suas reservas internacionais de quase US$ 2 trilhões, e as economias da China e dos EUA são interdependentes”. (FSP, 24/11). Mas além disto, do ponto de vista da hierarquia mundial, se esta crise for administrada de forma estratégica, pelo governo americano, ela poderá reforçar em vez de enfraquecer a posição futura dos EUA, dentro do sistema mundial. Para entender este segundo paradoxo, entretanto, é necessário ir um pouco além da economia e das finanças, e analisar com cuidado a origem e os desdobramentos das crises e da competição entre os estados nacionais.Em primeiro lugar, quase todas as grandes crises do sistema mundial foram provocadas até hoje, pela própria potência hegemônica. Em segundo lugar, estas crises são provocadas quase sempre pela expansão vitoriosa (e não pelo declínio) das potências capazes de atropelar as regras e instituições que eles mesmos criaram, num momento anterior, e que depois se transformam num obstáculo no caminho da sua própria expansão. Em terceiro lugar, o sucesso econômico e a expansão do poder da potência líder é um elemento fundamental para o fortalecimento de todos os demais estados e economias que se proponham concorrer ou “substituir” a potência hegemônica. Por isto, finalmente, as crises provocadas pela “exuberância expansiva” da potência líder, afetam, em geral, de forma mais perversa e destrutiva aos “concorrentes” do que ao próprio hegemon, que costuma se recuperar de forma mais rápida e poderosa do que os demais. Resumindo: “apesar da violência desta crise financeira, não deverá haver um vácuo nem uma 'sucessão' na liderança política e militar do sistema mundial. E, do ponto de vista econômico, o mais provável é que ocorra uma fusão financeira cada maior entre a China e os Estados Unidos” (2).
(1) Serrano, F. (2008) “A economia Americana, o padrão 'dólar-flexível' e a expansão mundial nos anos 2000”, in J.L Fiori, F. Serrano e C. Medeiros, O MITO DO COLAPSO AMERICANO,Editora Record, Rio de Janeiro, P : 83 (Prelo)
(2) Fiori, J.L. (2008) “O sistema mundial, no início do século XXI”, in J.L Fiori, F. Serrano e C. Medeiros, O MITO DO COLAPSO AMERICANO, Editora Record, Rio de janeiro, p: 65 ( NO PRELO).
Fonte: Agência Carta Maior
Apesar da violência desta crise financeira, não deverá haver um vácuo nem uma 'sucessão' na liderança política e militar do sistema mundial. E, do ponto de vista econômico, o mais provável é que ocorra uma fusão financeira cada vez maior entre a China e os Estados Unidos.
Data: 08/10/2008 “Como é meu intento escrever coisa útil para os que se interessarem, pareceu-me mais conveniente procurar a verdade pelo efeito das coisas, do que pelo que delas se possa imaginar”.N. Maquiavel, O Príncipe, 1513Na segunda feira, 6 de outubro de 2008, a crise financeira americana desembarcou na Europa, e repercutiu em todo mundo, de forma violenta. As principais Bolsas de Valor do mundo tiveram quedas expressivas, e governos e Bancos Centrais tiveram que intervir para manter a liquidez e o crédito de seus sistemas bancários. Neste momento, não cabem mais dúvidas: a crise financeira que começou pelo mercado imobiliário de alto risco dos EUA já se transformou numa crise profunda e global, destruiu uma quantidade fabulosa de riqueza, e deverá atingir de forma mais ou menos extensa, desigual e prolongada, a economia real dos EUA, e de todos os países do mundo.Muitos bancos e empresas seguirão quebrando, nascerão rapidamente novas regras e instituições, e haverá nos próximos meses, uma gigantesca centralização do capital financeiro, sobretudo nos EUA e na Europa. Os bancos e organismos multinacionais seguem paralisados e impotentes e se aprofunda, por todo lado, a tendência à estatização de empresas, à regulação dos mercados, e ao aumento do protecionismo e do nacionalismo econômico.De todos os pontos de vista, acabou a “era Tatcher/Reagan” e foi para o balaio da história o “modelo neoliberal” anglo-americano, junto com as idéias econômicas hegemônicas nos últimos 30 anos. Como contrapartida, mesmo sem fazer proselitismo explícito, deverá ganhar pontos, nos próximos meses e anos, em todas as latitudes, o “modelo chinês” nacional-estatista, centralizante e planejador. No meio do tiroteio, é difícil de pensar. Talvez por isto, multiplicam-se, imprensa e na academia, os adjetivos, as exclamações e as profecias apocalípticas, anunciando o fim da supremacia mundial do dólar e do poder global dos EUA, ou, do próprio capitalismo americano. Na mesma hora em que os governos e investidores de todo mundo estão se refugiando no próprio dólar, e nos títulos do Tesouro americano, apesar de sua baixíssima rentabilidade, e apesar de que o epicentro da crise esteja nos EUA. E o que é mais interessante, é que são os governos dos estados que estariam ameaçando a supremacia americana, os primeiros a se refugiarem na moeda e nos títulos americanos. Para explicar este comportamento aparentemente paradoxal, é preciso deixar de lado as teorias econômicas convencionais sobre o “padrão ouro”e o “padrão-dólar”, e também, as teorias políticas convencionais sobre as crises e “sucessões hegemônicas”, dentro do sistema mundial. Comecemos pelo paradoxo da “fuga para o dólar”, em resposta à crise do próprio dólar. Aqui é preciso entender algumas características específicas e fundamentais do sistema “dólar-flexível”. Desde a década de 1970, os EUA se transformaram no “mercado financeiro do mundo”, e o seu Banco Central (FED), passou a emitir uma moeda nacional de circulação internacional, sem base metálica, administrada através das taxas de juros do próprio FED, e dos títulos emitidos pelo Tesouro americano, que atuam em todo mundo, como lastro do sistema “dólar-flexível”. Por isto “a quase totalidade dos passivos externos americanos é denominada em dólares e praticamente todas as importações de bens e serviços dos EUA são pagas exclusivamente em dólar. Uma situação única que gera enorme assimetria entre o ajuste externo dos EUA e dos demais países [...]. Por isto, também, a remuneração em dólares dos passivos externos financeiros americanos que são todos denominados em dólar, segue de perto a trajetória das taxas de juros determinadas pela própria política monetária americana, configurando um caso único em que um país devedor determina a taxa de juros de sua própria “dívida externa” (1). Uma mágica poderosa e uma circularidade imbatível, porque se sustenta de forma exclusiva, no poder político e econômico norte-americano.Agora mesmo, por exemplo, para enfrentar a crise, o Tesouro americano emitirá novos títulos que serão comprados, pelos governos e investidores de todo mundo, como justifica o influente economista chinês, Yuan Gangming, ao garantir que “é bom para a China investir muito nos EUA; porque não há muitas outras opções para suas reservas internacionais de quase US$ 2 trilhões, e as economias da China e dos EUA são interdependentes”. (FSP, 24/11). Mas além disto, do ponto de vista da hierarquia mundial, se esta crise for administrada de forma estratégica, pelo governo americano, ela poderá reforçar em vez de enfraquecer a posição futura dos EUA, dentro do sistema mundial. Para entender este segundo paradoxo, entretanto, é necessário ir um pouco além da economia e das finanças, e analisar com cuidado a origem e os desdobramentos das crises e da competição entre os estados nacionais.Em primeiro lugar, quase todas as grandes crises do sistema mundial foram provocadas até hoje, pela própria potência hegemônica. Em segundo lugar, estas crises são provocadas quase sempre pela expansão vitoriosa (e não pelo declínio) das potências capazes de atropelar as regras e instituições que eles mesmos criaram, num momento anterior, e que depois se transformam num obstáculo no caminho da sua própria expansão. Em terceiro lugar, o sucesso econômico e a expansão do poder da potência líder é um elemento fundamental para o fortalecimento de todos os demais estados e economias que se proponham concorrer ou “substituir” a potência hegemônica. Por isto, finalmente, as crises provocadas pela “exuberância expansiva” da potência líder, afetam, em geral, de forma mais perversa e destrutiva aos “concorrentes” do que ao próprio hegemon, que costuma se recuperar de forma mais rápida e poderosa do que os demais. Resumindo: “apesar da violência desta crise financeira, não deverá haver um vácuo nem uma 'sucessão' na liderança política e militar do sistema mundial. E, do ponto de vista econômico, o mais provável é que ocorra uma fusão financeira cada maior entre a China e os Estados Unidos” (2).
(1) Serrano, F. (2008) “A economia Americana, o padrão 'dólar-flexível' e a expansão mundial nos anos 2000”, in J.L Fiori, F. Serrano e C. Medeiros, O MITO DO COLAPSO AMERICANO,Editora Record, Rio de Janeiro, P : 83 (Prelo)
(2) Fiori, J.L. (2008) “O sistema mundial, no início do século XXI”, in J.L Fiori, F. Serrano e C. Medeiros, O MITO DO COLAPSO AMERICANO, Editora Record, Rio de janeiro, p: 65 ( NO PRELO).
Fonte: Agência Carta Maior
Onde está à esquerda? Por José Saramago
Onde está à esquerda? Por José Saramago
No dia 1° de outubro, o escritor português provocou: "Imaginei, quando há um ano rebentou a burla cancerosa das hipotecas nos Estados Unidos, que a esquerda, onde quer que estivesse, se ainda era viva, iria abrir enfim a boca para dizer o que pensava do caso. Passou-se o que se passou depois, até hoje, e a esquerda, covardemente, continua a não pensar, a não agir, a não arriscar um passo". Segue aguardando resposta.
José Saramago
Texto publicado pelo escritor português em seu site, O Caderno de Saramago, no dia 1° de outubro de 2008.
"Ausento-me deste espaço por vinte e quatro horas, não por necessidade de descanso ou falta de assunto, somente para que a última crónica se mantenha um dia mais no lugar em que está. Não tenho a certeza de que o mereça pela forma como disse o que pretendia, mas para lhe dar um pouco mais de tempo enquanto espero que alguém me informe onde está a esquerda…
Vai para três ou quatro anos, numa entrevista a um jornal sul-americano, creio que argentino, saiu-me na sucessão das perguntas e respostas uma declaração que depois imaginei iria causar agitação, debate, escândalo (a este ponto chegava a minha ingenuidade), começando pelas hostes locais da esquerda e logo, quem sabe, como uma onda que em círculos se expandisse, nos meios internacionais, fossem eles políticos, sindicais ou culturais que da dita esquerda são tributários. Em toda a sua crueza, não recuando perante a própria obscenidade, a frase, pontualmente reproduzida pelo jornal, foi a seguinte: “A esquerda não tem nem uma puta ideia do mundo em que vive”.
À minha intenção, deliberadamente provocadora, a esquerda, assim interpelada, respondeu com o mais gélido dos silêncios. Nenhum partido comunista, por exemplo, a principiar por aquele de que sou membro, saiu à estacada para rebater ou simplesmente argumentar sobre a propriedade ou a falta de propriedade das palavras que proferi. Por maioria de razão, também nenhum dos partidos socialistas que se encontram no governo dos seus respectivos países, penso, sobretudo, nos de Portugal e Espanha, considerou necessário exigir uma aclaração ao atrevido escritor que tinha ousado lançar uma pedra ao putrefacto charco da indiferença.
Nada de nada, silêncio total, como se nos túmulos ideológicos onde se refugiaram nada mais houvesse que pó e aranhas, quando muito um osso arcaico que já nem para relíquia servia. Durante alguns dias senti-me excluído da sociedade humana como se fosse um pestífero, vítima de uma espécie de cirrose mental que já não dissesse coisa com coisa. Cheguei até a pensar que a frase compassiva que andaria circulando entre os que assim calavam seria mais ou menos esta: “Coitado, que se poderia esperar com aquela idade?” Estava claro que não me achavam opinante à altura.
O tempo foi passando, passando, a situação do mundo complicando-se cada vez mais, e a esquerda, impávida, continuava a desempenhar os papéis que, no poder ou na oposição, lhes haviam sido distribuídos. Eu, que entretanto tinha feito outra descoberta, a de que Marx nunca havia tido tanta razão como hoje, imaginei, quando há um ano rebentou a burla cancerosa das hipotecas nos Estados Unidos, que a esquerda, onde quer que estivesse, se ainda era viva, iria abrir enfim a boca para dizer o que pensava do caso.
Já tenho a explicação: a esquerda não pensa, não age, não arrisca um passo. Passou-se o que se passou depois, até hoje, e a esquerda, cobardemente, continua a não pensar, a não agir, a não arriscar um passo. Por isso não se estranhe a insolente pergunta do título: “Onde está a esquerda?” Não dou alvíssaras, já paguei demasiado caras as minhas ilusões.
No dia 1° de outubro, o escritor português provocou: "Imaginei, quando há um ano rebentou a burla cancerosa das hipotecas nos Estados Unidos, que a esquerda, onde quer que estivesse, se ainda era viva, iria abrir enfim a boca para dizer o que pensava do caso. Passou-se o que se passou depois, até hoje, e a esquerda, covardemente, continua a não pensar, a não agir, a não arriscar um passo". Segue aguardando resposta.
José Saramago
Texto publicado pelo escritor português em seu site, O Caderno de Saramago, no dia 1° de outubro de 2008.
"Ausento-me deste espaço por vinte e quatro horas, não por necessidade de descanso ou falta de assunto, somente para que a última crónica se mantenha um dia mais no lugar em que está. Não tenho a certeza de que o mereça pela forma como disse o que pretendia, mas para lhe dar um pouco mais de tempo enquanto espero que alguém me informe onde está a esquerda…
Vai para três ou quatro anos, numa entrevista a um jornal sul-americano, creio que argentino, saiu-me na sucessão das perguntas e respostas uma declaração que depois imaginei iria causar agitação, debate, escândalo (a este ponto chegava a minha ingenuidade), começando pelas hostes locais da esquerda e logo, quem sabe, como uma onda que em círculos se expandisse, nos meios internacionais, fossem eles políticos, sindicais ou culturais que da dita esquerda são tributários. Em toda a sua crueza, não recuando perante a própria obscenidade, a frase, pontualmente reproduzida pelo jornal, foi a seguinte: “A esquerda não tem nem uma puta ideia do mundo em que vive”.
À minha intenção, deliberadamente provocadora, a esquerda, assim interpelada, respondeu com o mais gélido dos silêncios. Nenhum partido comunista, por exemplo, a principiar por aquele de que sou membro, saiu à estacada para rebater ou simplesmente argumentar sobre a propriedade ou a falta de propriedade das palavras que proferi. Por maioria de razão, também nenhum dos partidos socialistas que se encontram no governo dos seus respectivos países, penso, sobretudo, nos de Portugal e Espanha, considerou necessário exigir uma aclaração ao atrevido escritor que tinha ousado lançar uma pedra ao putrefacto charco da indiferença.
Nada de nada, silêncio total, como se nos túmulos ideológicos onde se refugiaram nada mais houvesse que pó e aranhas, quando muito um osso arcaico que já nem para relíquia servia. Durante alguns dias senti-me excluído da sociedade humana como se fosse um pestífero, vítima de uma espécie de cirrose mental que já não dissesse coisa com coisa. Cheguei até a pensar que a frase compassiva que andaria circulando entre os que assim calavam seria mais ou menos esta: “Coitado, que se poderia esperar com aquela idade?” Estava claro que não me achavam opinante à altura.
O tempo foi passando, passando, a situação do mundo complicando-se cada vez mais, e a esquerda, impávida, continuava a desempenhar os papéis que, no poder ou na oposição, lhes haviam sido distribuídos. Eu, que entretanto tinha feito outra descoberta, a de que Marx nunca havia tido tanta razão como hoje, imaginei, quando há um ano rebentou a burla cancerosa das hipotecas nos Estados Unidos, que a esquerda, onde quer que estivesse, se ainda era viva, iria abrir enfim a boca para dizer o que pensava do caso.
Já tenho a explicação: a esquerda não pensa, não age, não arrisca um passo. Passou-se o que se passou depois, até hoje, e a esquerda, cobardemente, continua a não pensar, a não agir, a não arriscar um passo. Por isso não se estranhe a insolente pergunta do título: “Onde está a esquerda?” Não dou alvíssaras, já paguei demasiado caras as minhas ilusões.
O fim de uma era do capitalismo financeiro – Por Ignácio Ramonet
O fim de uma era do capitalismo financeiro – Por Ignácio Ramonet
A arquitetura financeira internacional cambaleou. E o risco sistêmico permanece. Nada voltará a ser como antes. E essa crise ocorre num momento de vazio teórico das esquerdas, que não têm um “plano B” para tirar proveito do descalabro. Em particular as da Europa, asfixiadas pelo choque da crise, quando seria tempo de refundação e de audácia.
Ignacio Ramonet
Os terremotos que sacudiram as bolsas no “setembro negro” que passou precipitaram o fim de uma era do capitalismo. A arquitetura financeira internacional cambaleou. E o risco sistêmico permanece. Nada voltará a ser como antes. O Estado retorna.
O desmoronamento de Wall Street é comparável, no âmbito financeiro, ao que representou, no geopolítico, a queda do muro de Berlim. Uma mudança de mundo e um giro copernicano. Quem o afirma é o Nobel de Economia, Paul Samuelson: “Esta débâcle é para o capitalismo o que a queda da URSS foi para o comunismo”. Termina o período aberto em 1981 com a fórmula de Ronald Reagan: “O estado não é a solução, é o problema.” Durante trinta anos, os fundamentalistas do mecado repitiram que este tinha razão, que a globalização era sinônimo de felicidade, e que o capitalismo financeiro edificava o paraíso terreno para todos.
Equivocaram-se. A “idade de ouro” de Wall Street acabou. E também acabou um período de exuberância e esbanjamento representada por uma aristocracia de banqueiros de investimento, “amos do universo” denunciados por Tom Wolfe em “A Fogueira das Vaidades” (1987). Possuídos pela lógica da rentabilidade de curto prazo. Pela busca dos lucros exorbitantes.
Dispostos a tudo para obter mais lucros: vendas abusivas no curto prazo, manipulações, invenção de instrumentos opacos, titulação de ativos, contratos de cobertura de riscos, fundos Hedge. A febre do proveito fácil contagiou a todo o planeta. Os mercados se sobreaqueceram, alimentados pelo excesso de de financeirização que facilitou a alta dos preços.A globalização conduziu a economia mundial a tomar a forma de uma economia de papel, virtual, imaterial. A esfera financeira chegou a representar mais de 250 trilhões de euros, ou seja, seis vezes o montante de riqueza real mundial. E, de chofre, essa gigantesca “bolha” explodiu. O desastre é de proporções apocalípticas. Mais de 200 bilhões de euros derreteram. A banca de investimento foi varrida do mapa. As cinco maiores entidades desmoronaram: Lehman Brothers na bancarrota; Bear Stears foi comprado com a ajuda do Federal Reserve, por Morgan Chase; Merril Lynch foi adquirido pelo Bank of America; e dois dos últimos, Goldman Sachs e Morgan Stanley (em parte comprado pelo japonês Mitsubishi UFJ), reconvertidos em bancos comerciais.
Toda a cadeia de funcionamento do aparato financeiro colapsou. Não só a banca de investimento, mas os bancos centrais, os sistemas de regulação, os bancos comerciais, as caixas econômicas, as companhias de seguros, as agências de qualificação de risco (Standard&Poors, Moody's, Fitch) e até as auditorias contábeis (Deloitte, Ernst&Young, PwC).
O naufrágio não pode surpreender a ninguém. O escândalo das “hipotecas lixo” era conhecido de todos. Assim como o excesso de liquidez orientado para a especulação, e a explosão delirante dos preços do custo de vida. Tudos isso foi denunciado – nestas colunas – há tempo. Sem que ninguém se mexesse. Porque o crime beneficiava a muitos. E se seguiu afirmando que a empresa privada e o mercado solucionavam tudo.
A administração do presidente George W. Bush teve de renegar esse princípio e recorrer, maciçamente, à intervenção do Estado. As principais entidades de crédito imobiliário, Fannie Mae y Freddy Mac, foram nacionalizadas. Também o foi o American International Group (AIG), a maior companhia de seguros do mundo. E o secretário do tesouro, Henry Paulson (ex-presidente do banco Goldman Sachs) propôs um plano de resgate de ações “tóxicas” procedentes das “hipotecas lixo” (subprime) por um valor de uns 500 bilhões de euros, que o Estado também adiantará, quer dizer, os contribuintes.
Prova do fracasso do sistema, essas intervenções do Estado – as maiores, em volume, da história econômica – demonstram que os mercados não são capazes de se regularem por si mesmos. Se autodestruíram por sua própria voracidade. Ademais, confirma-se uma lei do cinismo neoliberal: privatizaram os lucros mas se socializaram as perdas. Os pobres têm de arcar com as excentricidades irracionais dos banqueiros, e se lhes ameaça, em caso de não quererem pagar, com o seu maior empobrecimento.
As autoridades norte-americanas dedicam-se ao resgate dos “banksters” (“banqueiro gângster”), às expensas dos cidadãos. Há algums meses o presidente Bush se negou a assinar uma lei que oferecia uma cobertura médica a nove milhões de crianças pobres por um custo de 4 bilhões de euros. Considerou um gasto inútil. Agora, para salvar aos rufiões de Wall Street, nada lhe parece suficiente. Socialismo para os ricos e capitalismo selvagem para os pobres. Este desastre ocorre num momento de vazio teórico das esquerdas, que não têm um “plano B” para tirar proveito do descalabro. Em particular as da Europa, asfixiadas pelo choque da crise, quando seria tempo de refundação e de audácia.
Quanto durará a crise? “Vinte anos se tivermos sorte, ou menos de dez se as autoridades agirem com mão firme”, vaticina o editorialista neoliberal Martin Wolf (1). Se houvesse alguma lógica política, este contexto deveria favorecer a eleição do democrata Barack Obama (em não sendo assassinado) para a presidência dos Estados Unidos no 4 de novembro próximo. É provável que, como D. Roosevelt, em 1930, o jovem presidente lance um novo “New Deal”, baseado no neokeynesianismo que confirmará o retorno do Estado à esfera econômica. E que trará, por fim, mais justiça social aos cidadãos. Vai se caminhar para um novo Bretton Woods. A etapa mais selvagem e irracional da globalização terá terminado. (1) Financial Times, Londres, 23 de setembro de 2008
Tradução: Katarina Peixoto
Ignacio Ramonet é jornalista.
Fonte: Carta Maior
A arquitetura financeira internacional cambaleou. E o risco sistêmico permanece. Nada voltará a ser como antes. E essa crise ocorre num momento de vazio teórico das esquerdas, que não têm um “plano B” para tirar proveito do descalabro. Em particular as da Europa, asfixiadas pelo choque da crise, quando seria tempo de refundação e de audácia.
Ignacio Ramonet
Os terremotos que sacudiram as bolsas no “setembro negro” que passou precipitaram o fim de uma era do capitalismo. A arquitetura financeira internacional cambaleou. E o risco sistêmico permanece. Nada voltará a ser como antes. O Estado retorna.
O desmoronamento de Wall Street é comparável, no âmbito financeiro, ao que representou, no geopolítico, a queda do muro de Berlim. Uma mudança de mundo e um giro copernicano. Quem o afirma é o Nobel de Economia, Paul Samuelson: “Esta débâcle é para o capitalismo o que a queda da URSS foi para o comunismo”. Termina o período aberto em 1981 com a fórmula de Ronald Reagan: “O estado não é a solução, é o problema.” Durante trinta anos, os fundamentalistas do mecado repitiram que este tinha razão, que a globalização era sinônimo de felicidade, e que o capitalismo financeiro edificava o paraíso terreno para todos.
Equivocaram-se. A “idade de ouro” de Wall Street acabou. E também acabou um período de exuberância e esbanjamento representada por uma aristocracia de banqueiros de investimento, “amos do universo” denunciados por Tom Wolfe em “A Fogueira das Vaidades” (1987). Possuídos pela lógica da rentabilidade de curto prazo. Pela busca dos lucros exorbitantes.
Dispostos a tudo para obter mais lucros: vendas abusivas no curto prazo, manipulações, invenção de instrumentos opacos, titulação de ativos, contratos de cobertura de riscos, fundos Hedge. A febre do proveito fácil contagiou a todo o planeta. Os mercados se sobreaqueceram, alimentados pelo excesso de de financeirização que facilitou a alta dos preços.A globalização conduziu a economia mundial a tomar a forma de uma economia de papel, virtual, imaterial. A esfera financeira chegou a representar mais de 250 trilhões de euros, ou seja, seis vezes o montante de riqueza real mundial. E, de chofre, essa gigantesca “bolha” explodiu. O desastre é de proporções apocalípticas. Mais de 200 bilhões de euros derreteram. A banca de investimento foi varrida do mapa. As cinco maiores entidades desmoronaram: Lehman Brothers na bancarrota; Bear Stears foi comprado com a ajuda do Federal Reserve, por Morgan Chase; Merril Lynch foi adquirido pelo Bank of America; e dois dos últimos, Goldman Sachs e Morgan Stanley (em parte comprado pelo japonês Mitsubishi UFJ), reconvertidos em bancos comerciais.
Toda a cadeia de funcionamento do aparato financeiro colapsou. Não só a banca de investimento, mas os bancos centrais, os sistemas de regulação, os bancos comerciais, as caixas econômicas, as companhias de seguros, as agências de qualificação de risco (Standard&Poors, Moody's, Fitch) e até as auditorias contábeis (Deloitte, Ernst&Young, PwC).
O naufrágio não pode surpreender a ninguém. O escândalo das “hipotecas lixo” era conhecido de todos. Assim como o excesso de liquidez orientado para a especulação, e a explosão delirante dos preços do custo de vida. Tudos isso foi denunciado – nestas colunas – há tempo. Sem que ninguém se mexesse. Porque o crime beneficiava a muitos. E se seguiu afirmando que a empresa privada e o mercado solucionavam tudo.
A administração do presidente George W. Bush teve de renegar esse princípio e recorrer, maciçamente, à intervenção do Estado. As principais entidades de crédito imobiliário, Fannie Mae y Freddy Mac, foram nacionalizadas. Também o foi o American International Group (AIG), a maior companhia de seguros do mundo. E o secretário do tesouro, Henry Paulson (ex-presidente do banco Goldman Sachs) propôs um plano de resgate de ações “tóxicas” procedentes das “hipotecas lixo” (subprime) por um valor de uns 500 bilhões de euros, que o Estado também adiantará, quer dizer, os contribuintes.
Prova do fracasso do sistema, essas intervenções do Estado – as maiores, em volume, da história econômica – demonstram que os mercados não são capazes de se regularem por si mesmos. Se autodestruíram por sua própria voracidade. Ademais, confirma-se uma lei do cinismo neoliberal: privatizaram os lucros mas se socializaram as perdas. Os pobres têm de arcar com as excentricidades irracionais dos banqueiros, e se lhes ameaça, em caso de não quererem pagar, com o seu maior empobrecimento.
As autoridades norte-americanas dedicam-se ao resgate dos “banksters” (“banqueiro gângster”), às expensas dos cidadãos. Há algums meses o presidente Bush se negou a assinar uma lei que oferecia uma cobertura médica a nove milhões de crianças pobres por um custo de 4 bilhões de euros. Considerou um gasto inútil. Agora, para salvar aos rufiões de Wall Street, nada lhe parece suficiente. Socialismo para os ricos e capitalismo selvagem para os pobres. Este desastre ocorre num momento de vazio teórico das esquerdas, que não têm um “plano B” para tirar proveito do descalabro. Em particular as da Europa, asfixiadas pelo choque da crise, quando seria tempo de refundação e de audácia.
Quanto durará a crise? “Vinte anos se tivermos sorte, ou menos de dez se as autoridades agirem com mão firme”, vaticina o editorialista neoliberal Martin Wolf (1). Se houvesse alguma lógica política, este contexto deveria favorecer a eleição do democrata Barack Obama (em não sendo assassinado) para a presidência dos Estados Unidos no 4 de novembro próximo. É provável que, como D. Roosevelt, em 1930, o jovem presidente lance um novo “New Deal”, baseado no neokeynesianismo que confirmará o retorno do Estado à esfera econômica. E que trará, por fim, mais justiça social aos cidadãos. Vai se caminhar para um novo Bretton Woods. A etapa mais selvagem e irracional da globalização terá terminado. (1) Financial Times, Londres, 23 de setembro de 2008
Tradução: Katarina Peixoto
Ignacio Ramonet é jornalista.
Fonte: Carta Maior
quarta-feira, 8 de outubro de 2008
Suprema Corte americana rejeita recurso de Mumia Abu-Jamal
Suprema Corte americana rejeita recurso de Mumia Abu-Jamal
A Suprema Corte dos Estados Unidos recusou-se nesta segunda-feira, 06 de outubro, a examinar o recurso apresentado por Mumia Abu-Jamal, pela realização de um novo julgamento.
O advogado desse ex-jornalista de rádio e militante dos "black panthers", hoje com 54 anos e que clama sua inocência no caso da morte em 1981 do policial Daniel Faulkner, já anunciou que impetraria um segundo recurso na Suprema Corte, por racismo.
"Não descansarei enquanto Mumia não for colocado em liberdade. Mantê-lo na prisão e no corredor da morte é uma paródia da justiça e uma afronta às normas civilizadas", reiterou em setembro Robert Bryan.
Seu recurso impetrado em julho na mais alta jurisdição do país pede aos nove juízes que um novo processo seja autorizado "quando existem provas de que a Polícia convenceu uma testemunha de identificar a pessoa errada como autor do assassinato de um policial".
No final de março, por 2 votos a 1, a Corte de Apelação Federal da Filadélfia anulou a sua condenação à morte, mas reafirmou sua culpabilidade.
A condenação à morte será comutada automaticamente por prisão perpétua, a menos que a acusação se apresente novamente diante de um júri para tentar obter a pena de morte.
Mumia Abu-Jamal contestava principalmente o fato de dez dos 15 jurados potenciais terem sido recusados pela acusação serem negros. O Código Penal proíbe que um jurado potencial seja recusado em razão da cor da sua pele. O júri final teve dez brancos e dois negros.
Para a Corte de Apelação, a defesa não tinha apresentado elementos suficientes que levassem a crer que as recusas deveram-se à raça dos jurados potenciais.
Mumia Abu-Jamal é jornalista há anos dedicado à luta pelos direitos civis. Na prisão escreveu o livro Live from Death Row (Ao vivo do corredor da morte), cujo texto, traduzido para várias línguas e em vários países, se transformou num libelo anti-racista. Em texto de 1995, Jamal reafirmou sua combatividade: "Continuo escrevendo. Continuo lutando. Continuo combatendo o sistema com a verdade. Continuo me rebelando contra o sistema que quis me matar há 13 anos e que ainda quer fazê-lo hoje." Quando estudante secundarista, Jamal foi assessor de imprensa do Partido Panteras Negras. Trabalhou em rádio, dirigiu seu próprio programa na WUHY-FM, na Filadélfia, e aos 26 anos foi eleito presidente da Associação dos Jornalistas Negros da Filadélfia. É militante do Move, uma organização de negros radicais utópicos da Filadélfia que rechaça os valores da sociedade capitalista, desafia abertamente o poder oficial e promulga que o sistema é totalmente corrupto e destrói a vida no planeta. O Move vem sendo perseguido pela polícia norte-americana de forma brutal desde 1977.
Mais infos: www.mumia.org ou www.freemumia.org
Fonte: France Press
A Suprema Corte dos Estados Unidos recusou-se nesta segunda-feira, 06 de outubro, a examinar o recurso apresentado por Mumia Abu-Jamal, pela realização de um novo julgamento.
O advogado desse ex-jornalista de rádio e militante dos "black panthers", hoje com 54 anos e que clama sua inocência no caso da morte em 1981 do policial Daniel Faulkner, já anunciou que impetraria um segundo recurso na Suprema Corte, por racismo.
"Não descansarei enquanto Mumia não for colocado em liberdade. Mantê-lo na prisão e no corredor da morte é uma paródia da justiça e uma afronta às normas civilizadas", reiterou em setembro Robert Bryan.
Seu recurso impetrado em julho na mais alta jurisdição do país pede aos nove juízes que um novo processo seja autorizado "quando existem provas de que a Polícia convenceu uma testemunha de identificar a pessoa errada como autor do assassinato de um policial".
No final de março, por 2 votos a 1, a Corte de Apelação Federal da Filadélfia anulou a sua condenação à morte, mas reafirmou sua culpabilidade.
A condenação à morte será comutada automaticamente por prisão perpétua, a menos que a acusação se apresente novamente diante de um júri para tentar obter a pena de morte.
Mumia Abu-Jamal contestava principalmente o fato de dez dos 15 jurados potenciais terem sido recusados pela acusação serem negros. O Código Penal proíbe que um jurado potencial seja recusado em razão da cor da sua pele. O júri final teve dez brancos e dois negros.
Para a Corte de Apelação, a defesa não tinha apresentado elementos suficientes que levassem a crer que as recusas deveram-se à raça dos jurados potenciais.
Mumia Abu-Jamal é jornalista há anos dedicado à luta pelos direitos civis. Na prisão escreveu o livro Live from Death Row (Ao vivo do corredor da morte), cujo texto, traduzido para várias línguas e em vários países, se transformou num libelo anti-racista. Em texto de 1995, Jamal reafirmou sua combatividade: "Continuo escrevendo. Continuo lutando. Continuo combatendo o sistema com a verdade. Continuo me rebelando contra o sistema que quis me matar há 13 anos e que ainda quer fazê-lo hoje." Quando estudante secundarista, Jamal foi assessor de imprensa do Partido Panteras Negras. Trabalhou em rádio, dirigiu seu próprio programa na WUHY-FM, na Filadélfia, e aos 26 anos foi eleito presidente da Associação dos Jornalistas Negros da Filadélfia. É militante do Move, uma organização de negros radicais utópicos da Filadélfia que rechaça os valores da sociedade capitalista, desafia abertamente o poder oficial e promulga que o sistema é totalmente corrupto e destrói a vida no planeta. O Move vem sendo perseguido pela polícia norte-americana de forma brutal desde 1977.
Mais infos: www.mumia.org ou www.freemumia.org
Fonte: France Press
A FARRA FINANCEIRA CONSENSUADA PELAS ELITES
A FARRA FINANCEIRA CONSENSUADA PELAS ELITES
Enquanto a mídia corporativa brasileira fala em crise, há décadas ativistas e intelectuais denunciam o caráter explorador do sistema financeiro. De um lado, especuladores e banqueiros alimentam-se da desordem mundial da globalização financeira. Do outro, trabalhadores em todo o planeta arcam com custos da “economia de cassino” dos EUA...
Por Gustavo Barreto, da redação
Como resultado de um intenso bombardeio midiático, me peguei diversas vezes classificando os recentes acontecimentos no sistema financeiro global como uma “crise”. Trata-se, no entanto – de forma muito evidente, inclusive –, de um conhecido processo estudado e identificado há décadas por gente como o economista brasileiro Celso Furtado.
O noticiário econômico acerca deste processo de falências e estatizações que ora ocorre nos EUA segue um padrão jornalístico já há algum tempo observado. As estatísticas são lançadas em função de uma dominação das elites sobre o aparelho de Estado, realidade que é presente no Brasil, de fato, porém de forma muito mais evidente nos Estados Unidos, como veremos a seguir.
Conforme destacou o jornalista Bernardo Kucinski [01] analisando o cenário brasileiro, “divulgam quanto cresceu o PIB (Produto Interno Bruto), porque esse dado é importante para o empresariado. Mas a participação do salário na renda nacional parou de ser divulgada há anos, desde que caiu abaixo de níveis civilizados (...) Divulgam-se detalhadamente os itens de pauta das exportações, mas não os detalhes de gastos com royalties e patentes. Seu conhecimento geraria uma atitude crítica em relação à renumeração dos capitais financeiros”. E alerta: “Quase tudo pode ser provado em economia, manipulando-se estatísticas”. O sociólogo Luiz Gonzaga Belluzzo tratou de lembrar que o neoliberalismo, ao contrário do que diz a propaganda oficial, nunca desejou o “Estado mínimo”, pois precisa de Estados nacionais fortes para utilizar o poder político e fiscal destes, com o objetivo de fortalecer os respectivos sistemas empresariais (incluindo os mercados financeiros e de capitais). O propósito é o de ganhar espaço na arena global. “Nessa toada, as reformas [ditas neoliberais, dos anos 70] atropelaram as instituições destinadas a garantir a segurança econômica e social da maioria assalariada ou dependente”,avalia Belluzzo. E conclui: “O Estado não saiu de cena, apenas mudou de agenda” [02]. Até mesmo no Brasil, durante a onda de privatizações e entreguismo dos oito anos do Governo FHC, foi observado durante o seminário da Rede de Economia Global (REGGEN) de 2003 que, ao contrário do que muitos propunham, os dados mostravam que o investimento público cresceu, porém foi – conforme denuncia Belluzzo – direcionado para a “iniciativa privada” [03]. O próprio termo “iniciativa privada” é contraditório, pois, como veremos, muitas vezes a iniciativa é do Estado, com dinheiro público, e o setor privado se apropria destes recursos por meio de ações fraudulentas e lesivas aos cofres públicos. Vide, entre outros inúmeros casos, a privatização da ex-estatal brasileira Vale do Rio Doce, que opera no setor de extração de recursos naturais, centralmente estratégico para o país.
Contradições negligenciadas
O noticiário da mídia corporativa procura fixar os atuais acontecimentos a poucos tópicos, sem discutir a seriedade e complexidade do problema, como, por exemplo, a falta de controle do sistema financeiro. O analista político Noam Chomsky aponta há décadas as contradições de um sistema fadado ao fracasso: “Uma instituição privada tem um objetivo: maximizar os lucros e minimizar as condições humanas. Porque isso maximiza os lucros. Isso é o que eles perseguem. Eles não poderiam perseguir nada além disso. Se o sistema é minimamente competitivo, eles precisam fazer isso. É a natureza do sistema (...) Haverá bastante dinheiro do contribuinte entrando nos fundos para não deixar que seus lucros caiam” [04]. É preciso um esforço para não considerar como custos apenas os gastos feitos diretamente pelo governo num contexto de “crise” – tal como a proposta de gastar US$ 700 bilhões na compra de títulos “podres”. Há muitos outros custos que são vendidos como grandes benefícios do capitalismo moderno. Um dos exemplos utilizados por Chomsky é comum a todos os brasileiros: “Digamos que você telefone para conseguir uma passagem aérea [ou outro serviço que dependa desta forma de atendimento]. As empresas aéreas são automatizadas, o que lhes economiza um monte de dinheiro. Os economistas podem constatar que isto é muito eficiente. Por outro lado, quando você dá o telefonema. Isso está lhe custando dinheiro, você fica sentado lá, por meia hora, enquanto você fica ouvindo aquelas mensagens, ‘Obrigado por nos ligar’, ‘Agradecemos sua ligação’, ‘Nós o amamos’, ‘Espere um momento’, ‘O próximo operador lhe atenderá em seguida’... e aí entra a música. Todo esse tempo tem um custo para você. Mas não é um custo que alguém meça”. Até o momento, nem um único economista distinto ou jornalista venerável, com espaço e destaque na televisão, questionou qual é o custo de não gastar este dinheiro – R$ 700 bilhões! – no sistema de saúde ou educacional.
Ressalta-se que os “custos” são gerados por decisões tomadas e por decisões não tomadas – a inércia política. O caos no sistema de saúde americano – conforme denunciou o documentarista Michael Moore – ou o aumento da fome no mundo entre 2006 e 2007 – denunciado há poucos dias pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) – não geram manchetes de “crise”. Chomsky conclui, ainda dentro do exemplo acima referido: “O custo é multiplicado pelo número de usuários. É uma grande soma. Pegue o custo do indivíduo, multiplique pelo número de pessoas usando o serviço, compare isso com a eficiência da automação e você talvez venha a descobrir que a automação é uma total perda para a economia. Mas é um ganho da maneira como é calculada”.
Caça aos “culpados”
O discurso oficial da mídia (TV Globo, GloboNews, Record, Bandeirantes e grandes jornais do Rio e São Paulo, avaliados nesta segunda 22) tenta sutilmente culpar um punhado de CEOs [chief executive officer], os diretores de grandes transnacionais financeiras, pela debandada do sistema financeiro americano. A âncora da GloboNews chegou a perguntar a um ex-ministro da Fazenda se eles [os CEOs] não deveriam ser penalizados. O “comentarista” disse que sim, que eles deveriam ser punidos. “Os executivos deveriam não receber seus benefícios e até mesmo devolver alguns que já receberam”, disse. O falso debate – com esta gravíssima punição sugerida, destaca-se! – está formado. É preciso ser muito astuto para imaginar que, por conta de erros pessoais, individuais, o Banco Central americano (FED) tenha decidido injetar outros 95 bilhões de dólares nos bancos em chamadas “operações de refinanciamento de rotina”. Prestem atenção: esta medida foi anunciada nesta segunda (22), para além da proposta da Casa Branca enviada ao Congresso e dos 315 bilhões da semana passada. Não coube a esta emissora questionar se não estaria havendo uma falência deste sistema, proclamado por especialistas de plantão como liberal, o mesmo sistema que agora se vê obrigado a recorrer ao dinheiro do contribuinte para supostamente não afundar. Como estão envergonhados, digamos objetivamente aqui o que está se salvando: a barra dos “investidores”, os acionistas, gente que tem dinheiro o suficiente para injetar milhares de dólares nesses bancos. A população, conforme denunciaram parlamentares nos EUA, não vão receber nenhum apoio, segundo a proposta do governo. Apesar manter suas crescentes dívidas no “crédito” imobiliário que, no final das contas, era mais uma bolha. Alguns congressistas, a despeito da pressão política do sistema financeiro, pediram no “ato” administrativo proposto pela Casa Branca o mais básico de todos os principais governamentais: regras! É curioso que nenhum telejornal tenha citado alguns dos trechos do pequenino documento (de apenas 3 páginas) que a secretaria do Tesouro dos EUA criou para abocanhar 700 bilhões de dólares. A Casa Branca determina, por exemplo, que “a secretaria está autorizada a tomar tais ações à medida que a secretaria considerar necessárias para realizar os poderes deste ato, inclusive, sem limitação (...)”. Em outro trecho define: “Quaisquer verbas usadas para ações autorizadas por este ato, incluindo o pagamento de despesas administrativas, devem ser consideradas apropriadas no momento de tais gastos” [05]. A imprensa manteve o velho estilo parcial de sempre – o secretário de Tesouro dos EUA era o único que aparecia durante a primeira semana de crise. “Os investidores do mundo inteiro estão com a atenção voltada para o Congresso americano”, repetia a GloboNews na própria segunda-feira (22). “A Globalização não deve ser responsabilizada”, ecoa outro correspondente da Globo, reproduzindo – é claro – voz oficial. Para falarem da ‘crise’, convocaram apenas ex-diretores do Banco Central e banqueiros.
“Cadê a tal independência?”
A jornalista e apresentadora Lilian White Fibe, no último programa ‘Roda Viva’ (TV Cultura) da segunda (22), fez uma pergunta franca e direta ao entrevistado, o economista Ilan Goldfajn, que já foi diretor de política econômica do Banco Central (BC) brasileiro e atualmente é pesquisador da PUC Rio. Ela questionou firmemente: “Então, professor, cadê a tal independência do Banco Central americano, o tal Banco Central mais independente do mundo?” A resposta não poderia ter sido mais risível, porém esclarecedora. Ilan disse que o FED – o BC americano – continuava independente, na opinião dele, e que o fato de o anúncio ter sido eminentemente político não mudava esta posição. O governo americano, argumentou Ilan, foi até o FED e este, por sua vez, colocou as opções mais “razoáveis” na mesa. O governo americano, então, acatou... Em suma: quem manda nas finanças do mundo – o que inclui deter a chave dos cofres do governo mais rico do mundo – são os financistas de Wall Street. Ou seja, os responsáveis pelo caos que a presidente argentina classificou como “economia de cassino dos EUA”. Já Giuliano Guandalini, editor de economia da revista Veja, procurou – a serviço do tipo de imprensa mais vendida que existe no Brasil – defender os “mercados”, que estão inevitavelmente sofrendo ataques até mesmo de grupos conservadores. Giuliano argumentou – em formato de “pergunta” para Ilan – que o sistema não era falho, já que havia proporcionado ganhos consideráveis durante muitos anos. Aqui, novamente, faz-se uma observação risível e reveladora. Se os investidores se beneficiaram enormemente deste sistema que, como muitos agora lembram, privatiza os lucros e socializa os prejuízos, por que o governo não utiliza parte destes lucros e paga a “conta” da farra? Por que, afinal, o dinheiro tem que vir do bolso do contribuinte, e não destas empresas de “investimento de risco”? A resposta é simples. A saída, para o esquema neoliberal, não admite outra coisa senão socializar os prejuízos. Fazer os capitalistas pagarem a conta – até Arnaldo Jabor anda falando mal deles! – é muito perigoso. Seria como, digamos, “confiscar bens”! Confiscar bens de capitalistas não é permitido.
Farra com dinheiro (do) público
Os meios de comunicação evitam passear por este debate e, inclusive, se negam a falar em estatização. Até porque estatizar é coisa de gente como Hugo Chávez, Rafael Correa e Evo Morales. Trata-se, no linguajar da mídia corporativa, de uma “intervenção” – mesmo que o governo tenha confiscado, por meio de cláusula contratual, 80% das ações da AIG, por exemplo. Emir Sader, num artigo de 2004, explica como funciona um dos instrumentos correntes de privatização dos lucros e socialização dos riscos: “Entre em um banco e deposite 100 reais em uma caderneta de poupança. O funcionário lhe dirá para retornar daqui a um mês, para receber seus polpudos dividendos, algo como R$ 100,60. Em seguida, ao mesmo funcionário, no mesmo balcão, você pede 100 reais emprestados. Receberá a resposta de que – além de todos os trâmites de cadastro, garantia, ficha pregressa etc. –, deverá pagar, daqui a um mês, algo como 109 reais. Essa ‘pequena’ diferença - algo como 15 vezes mais - é o que os bancos e os economistas, ministros, presidentes de bancos centrais, e todos os que funcionam como seus ventríloquos, chamam de spread. Em inglês, para melhor disfarçar, como convêm ao economês”. Mas o que é o spread? “Os dicionários falam sempre de algo como ''extensão'', ''propagação'', ''expansão'', no máximo ''pasta para passar no pão''. Nada que possa esclarecer essa estranha mágica de pagar 0,6% e cobrar 9% ao mês e que faz a felicidade dos bancos e propicia os recordes de lucratividade do sistema financeiro – batidos novamente esta semana – à custa de quem não vive da especulação. Os dicionários de economia esclarecem que spread é a diferença entre o quanto os bancos pagam e o quanto recebem; em outras palavras, o lucro dos bancos. Nenhum investimento permite ganhar tanto, em prazo tão curto, com tanta liquidez e pouco ou nada de imposto - recordemos que investimentos estrangeiros na Bovespa não pagam imposto, ao contrário da cesta básica, de livros etc” [06] [leia mais sobre este mecanismo brutal de exploração do trabalhador na referência do artigo]. O Jornal Nacional da quarta-feira (17), ainda assustado com a derrocada de um projeto que defende diariamente, abriu falando sobre “a maior intervenção dos EUA” no setor privado. Já naquele dia, o governo havia comprometido mais de 300 bilhões de dólares nas empresas falidas. E, como sempre, deram voz ao Ser Supremo, Vossa Divindade: “Mesmo assim, o mercado não se acalmou”. O apresentador William Bonner falou em “crise de confiança que atinge o mercado financeiro”. Não pretende explicar que a crise não é de confiança, porque seria muito perigoso que o telespectador que o vê e o ouve – aquele que é metade Homer Simpson metade Lineu, lembra? [07] – fique sabendo que não são apenas os títulos que o governo comprará que são podres, e sim o próprio sistema de jogatina que diversos ativistas denunciam há décadas. Insistem no discurso vazio: “E mais um sinal da crise de confiança que atinge o mercado financeiro: um outro banco americano, o Washington Mutual, anunciou que está à venda. Procura um comprador para salvá-lo da crise” [08].
Lula faz discurso duro sobre crise e é ignorado pela mídia
O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva fez, na abertura do debate geral da 63ª Assembléia Geral das Nações Unidas, um dos discursos mais importantes de seu mandato, agregando elementos como conhecimento histórico, síntese política, momento oportuno e amplitude de temas. Destaca-se que o Brasil sempre abre os debates, por tradição, o que se configura em um importante aspecto de prestígio. O Jornal da Globo (TV Globo) desta terça-feira (23), dia do discurso, procurou esconder a fala de Lula, ao citar apenas um trecho insignificante e, ainda por cima, dizer que o “discurso mais esperado” era o do presidente Bush. Como sempre, o mandatário estadunidense teve uma participação pífia, ordinária e mentirosa, que nem sequer vale nota de rodapé. Lula, no entanto, sem nenhum sentimento de nacionalismo ou partidarismo, falou o que poucos têm condição ou coragem de pôr em pauta. Logo no início, o brasileiro registra: “A euforia dos especuladores transformou-se em angústia dos povos após a sucessão de naufrágios financeiros que ameaçam a economia mundial.
As indispensáveis intervenções do Estado, contrariando os fundamentalistas do mercado, mostram que é chegada a hora da política”. Evidentemente que o povo brasileiro não terá acesso, nos jornais e telejornais populares, a uma explicação detalhada sobre o que Lula quis dizer com “fundamentalistas de mercado”. “A ausência de regras”, completa o presidente, favorece os “aventureiros e oportunistas” (sic), em prejuízo das verdadeiras empresas e dos trabalhadores. “É inadmissível, dizia o grande economista brasileiro Celso Furtado, que os lucros dos especuladores sejam sempre privatizados e suas perdas, invariavelmente socializadas. O ônus da cobiça desenfreada de alguns não pode recair impunemente sobre os ombros de todos. A economia é séria demais para ficar nas mãos dos especuladores”. Novamente, seria perigoso demais que os Willians da TV Globo (Bonner ou Waack) retomassem o pensamento de Celso Furtado. Seria perigoso, pois poderia desencadear questionamentos sobre o funcionamento da própria lógica de privatização dos lucros e socialização dos riscos que ora ocorre no Brasil, tal como a lógica que permite o spread bancário. Eles poderiam explicar, por exemplo, que a globalização financeira alimenta-se da desordem monetária causada pelo fim das paridades fixas entre moedas fortes. As regras, neste caso, são parecidas com as regras de um grande cassino em Las Vegas. O pano de fundo, comenta o jornalista Bernardo Kucinski [09], é a lenta agonia da cultura monetária baseada no dólar. Enquanto o Japão acumula, por exemplo, grandes saldos em seu comércio exterior, os Estados Unidos tentam manter a hegemonia do dólar, numa espécie de “fuga para o futuro”, na expressão de Furtado. Nesta tentativa, arrastaram para uma crise estrutural nos anos 90 países que têm dívidas em dólar – incluindo o Brasil. Kucinski demonstra como funciona este “novo sistema de dominação” baseado no endividamento, igualmente registrado no balanço de pagamentos e consolidado em grandes tábuas mundiais da dívida externa, compiladas pelo Banco Mundial: “Essas tábuas mostram que, entre 1980 e 1991, os países da periferia pagaram US$ 607 bilhões de juros, mais do que o valor original da dívida, que, no entanto, nesse mesmo período saltou de US$ 573 bilhões para US$ 1281 bilhões”. Em outras palavras: quantas mais estes países pagam, mais devem. No Brasil, o pagamento dos juros é a rubrica que consome a maior quantidade de recursos públicos. Só nos primeiros meses de 2008, o governo gastou com juros R$ 106,8 bilhões, ou 6,7% do PIB. É possível imaginar, diante de tão obscuros números, que nem todo o dinheiro da “ajuda” financeira que os EUA deram e pretendem dar às instituições financeiras são de contribuintes americanos. Há também brasileiros, argentinos, bolivianos, venezuelanos, chilenos... [10]
“Fuga para o futuro”
Esta mesma lógica especulativa de fuga para o futuro, com a política de redução da taxa de juros sem controle sobre o crédito, é um fator essencial para o estouro da bolha especulativa nos mercados de hipotecas. Agora, os neoliberais de plantão, com amplo suporte dos amigos jornalistas da mídia corporativa, tratam de tentar transferir os riscos para os indivíduos dispersos.
Em vez de abordar estes temas, a TV Globo preferiu exibir uma charge em que sugere Lula e seus assessores vão à ONU, na verdade, para vender biocombustíveis ele próprio, como se fosse um mercador querendo vender a matéria prima de seu país. Este é o “humor” praticado na Rede Globo [11]. Lula defendeu o papel da ONU na criação de “mecanismos de prevenção e controle, e total transparência das atividades financeiras” contra o que classificou como “anarquia especulativa”.
Muros da globalização
Mantendo a coesão entre os temas, em um dos mais importantes trechos, Lula criticou duramente o caráter totalitário da globalização financeira: “O Muro de Berlim caiu. Sua queda foi entendida como a possibilidade de construir um mundo de paz, livre dos estigmas da Guerra Fria. Mas é triste constatar que outros muros foram se construindo, e com enorme velocidade. Muitos dos que pregam a livre circulação de mercadorias e capitais são os mesmos que impedem a livre circulação de homens e mulheres, com argumentos nacionalistas, e até fascistas, que nos fazem evocar, temerosos, tempos que pensávamos superados”. E partiu objetivamente para a defesa de governos como o da Venezuela e da Bolívia: “Um suposto ‘nacionalismo populista’, que alguns pretendem identificar e criticar no Sul do mundo, é praticado sem constrangimento em países ricos”, complementando com algumas considerações sobre a importância da aliança dos países do sul, em particular da América Latina. “Em meu continente, a Unasul, criada em maio deste ano, é o primeiro tratado – em 200 anos de vida independente – que congrega todos os países sul-americanos. Com essa nova união política vamos articular os países da região em termos de infra-estrutura, energia, políticas sociais, complementaridade produtiva, finanças e defesa” [12]. Na mídia corporativa brasileira, ao que tudo indica, a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) nem sequer existe – apesar dos seus inúmeros êxitos políticos. O motivo dos neoliberais da mídia brasileira (hoje envergonhados) para esconder esta iniciativa é justamente o seu sucesso.
E um outro detalhe: a sede da União será localizada em Quito, capital do Equador, o Banco do Sul será na capital da Venezuela, Caracas, e o seu parlamento será localizado em Cochabamba, na Bolívia.
REFERÊNCIAS
01 Kucinski, Bernardo. Jornalismo Econômico. SP: EDUSP, 2000.
02 Belluzo, Luiz Gonzaga. “A turma do ‘Veja Bem’...”. Revista Carta Capital. 17 set. 2008. No 513.
03 A Revista Consciência.Net realizou a cobertura do REGGEN 2003. Disponível em http://www.consciencia.net/reggen/reggen2003.html0
4 Chomsky, Noam; Barsamian, David. Propaganda e consciência popular. Bauru, SP: EDUSC, 2003. Págs 166-167.
05 “Leia o projeto de socorro do Tesouro”. Folha de S. Paulo. 22 set. 2008.
06 Sader, Emir. 'Spread' ou a farra especulativa. Jornal do Brasil. 22 fev. 2004.
07 “William Bonner: meio Homer, meio Lineu”. Revista Consciência.Net. Dez. 2005.
08 “Crise de confiança na economia dos EUA se acentua”. Jornal Nacional (TV Globo). 17 set. 2008.
09 Kucinski, Bernardo. Jornalismo Econômico. SP: Edusp, 2000.
10 Para dados recentes, visitar http://www.jubileubrasil.org.br/
11 Charge animada do Jornal da Globo, TV Globo. 23 set. 2008.
12 Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na abertura do debate geral da 63ª Assembléia Geral das Nações Unidas (Nova Iorque - EUA). Presidência da República. 23 set. 2008. – 03.10.2008
Fonte: http://www.fazendomedia.com/
Enquanto a mídia corporativa brasileira fala em crise, há décadas ativistas e intelectuais denunciam o caráter explorador do sistema financeiro. De um lado, especuladores e banqueiros alimentam-se da desordem mundial da globalização financeira. Do outro, trabalhadores em todo o planeta arcam com custos da “economia de cassino” dos EUA...
Por Gustavo Barreto, da redação
Como resultado de um intenso bombardeio midiático, me peguei diversas vezes classificando os recentes acontecimentos no sistema financeiro global como uma “crise”. Trata-se, no entanto – de forma muito evidente, inclusive –, de um conhecido processo estudado e identificado há décadas por gente como o economista brasileiro Celso Furtado.
O noticiário econômico acerca deste processo de falências e estatizações que ora ocorre nos EUA segue um padrão jornalístico já há algum tempo observado. As estatísticas são lançadas em função de uma dominação das elites sobre o aparelho de Estado, realidade que é presente no Brasil, de fato, porém de forma muito mais evidente nos Estados Unidos, como veremos a seguir.
Conforme destacou o jornalista Bernardo Kucinski [01] analisando o cenário brasileiro, “divulgam quanto cresceu o PIB (Produto Interno Bruto), porque esse dado é importante para o empresariado. Mas a participação do salário na renda nacional parou de ser divulgada há anos, desde que caiu abaixo de níveis civilizados (...) Divulgam-se detalhadamente os itens de pauta das exportações, mas não os detalhes de gastos com royalties e patentes. Seu conhecimento geraria uma atitude crítica em relação à renumeração dos capitais financeiros”. E alerta: “Quase tudo pode ser provado em economia, manipulando-se estatísticas”. O sociólogo Luiz Gonzaga Belluzzo tratou de lembrar que o neoliberalismo, ao contrário do que diz a propaganda oficial, nunca desejou o “Estado mínimo”, pois precisa de Estados nacionais fortes para utilizar o poder político e fiscal destes, com o objetivo de fortalecer os respectivos sistemas empresariais (incluindo os mercados financeiros e de capitais). O propósito é o de ganhar espaço na arena global. “Nessa toada, as reformas [ditas neoliberais, dos anos 70] atropelaram as instituições destinadas a garantir a segurança econômica e social da maioria assalariada ou dependente”,avalia Belluzzo. E conclui: “O Estado não saiu de cena, apenas mudou de agenda” [02]. Até mesmo no Brasil, durante a onda de privatizações e entreguismo dos oito anos do Governo FHC, foi observado durante o seminário da Rede de Economia Global (REGGEN) de 2003 que, ao contrário do que muitos propunham, os dados mostravam que o investimento público cresceu, porém foi – conforme denuncia Belluzzo – direcionado para a “iniciativa privada” [03]. O próprio termo “iniciativa privada” é contraditório, pois, como veremos, muitas vezes a iniciativa é do Estado, com dinheiro público, e o setor privado se apropria destes recursos por meio de ações fraudulentas e lesivas aos cofres públicos. Vide, entre outros inúmeros casos, a privatização da ex-estatal brasileira Vale do Rio Doce, que opera no setor de extração de recursos naturais, centralmente estratégico para o país.
Contradições negligenciadas
O noticiário da mídia corporativa procura fixar os atuais acontecimentos a poucos tópicos, sem discutir a seriedade e complexidade do problema, como, por exemplo, a falta de controle do sistema financeiro. O analista político Noam Chomsky aponta há décadas as contradições de um sistema fadado ao fracasso: “Uma instituição privada tem um objetivo: maximizar os lucros e minimizar as condições humanas. Porque isso maximiza os lucros. Isso é o que eles perseguem. Eles não poderiam perseguir nada além disso. Se o sistema é minimamente competitivo, eles precisam fazer isso. É a natureza do sistema (...) Haverá bastante dinheiro do contribuinte entrando nos fundos para não deixar que seus lucros caiam” [04]. É preciso um esforço para não considerar como custos apenas os gastos feitos diretamente pelo governo num contexto de “crise” – tal como a proposta de gastar US$ 700 bilhões na compra de títulos “podres”. Há muitos outros custos que são vendidos como grandes benefícios do capitalismo moderno. Um dos exemplos utilizados por Chomsky é comum a todos os brasileiros: “Digamos que você telefone para conseguir uma passagem aérea [ou outro serviço que dependa desta forma de atendimento]. As empresas aéreas são automatizadas, o que lhes economiza um monte de dinheiro. Os economistas podem constatar que isto é muito eficiente. Por outro lado, quando você dá o telefonema. Isso está lhe custando dinheiro, você fica sentado lá, por meia hora, enquanto você fica ouvindo aquelas mensagens, ‘Obrigado por nos ligar’, ‘Agradecemos sua ligação’, ‘Nós o amamos’, ‘Espere um momento’, ‘O próximo operador lhe atenderá em seguida’... e aí entra a música. Todo esse tempo tem um custo para você. Mas não é um custo que alguém meça”. Até o momento, nem um único economista distinto ou jornalista venerável, com espaço e destaque na televisão, questionou qual é o custo de não gastar este dinheiro – R$ 700 bilhões! – no sistema de saúde ou educacional.
Ressalta-se que os “custos” são gerados por decisões tomadas e por decisões não tomadas – a inércia política. O caos no sistema de saúde americano – conforme denunciou o documentarista Michael Moore – ou o aumento da fome no mundo entre 2006 e 2007 – denunciado há poucos dias pela Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) – não geram manchetes de “crise”. Chomsky conclui, ainda dentro do exemplo acima referido: “O custo é multiplicado pelo número de usuários. É uma grande soma. Pegue o custo do indivíduo, multiplique pelo número de pessoas usando o serviço, compare isso com a eficiência da automação e você talvez venha a descobrir que a automação é uma total perda para a economia. Mas é um ganho da maneira como é calculada”.
Caça aos “culpados”
O discurso oficial da mídia (TV Globo, GloboNews, Record, Bandeirantes e grandes jornais do Rio e São Paulo, avaliados nesta segunda 22) tenta sutilmente culpar um punhado de CEOs [chief executive officer], os diretores de grandes transnacionais financeiras, pela debandada do sistema financeiro americano. A âncora da GloboNews chegou a perguntar a um ex-ministro da Fazenda se eles [os CEOs] não deveriam ser penalizados. O “comentarista” disse que sim, que eles deveriam ser punidos. “Os executivos deveriam não receber seus benefícios e até mesmo devolver alguns que já receberam”, disse. O falso debate – com esta gravíssima punição sugerida, destaca-se! – está formado. É preciso ser muito astuto para imaginar que, por conta de erros pessoais, individuais, o Banco Central americano (FED) tenha decidido injetar outros 95 bilhões de dólares nos bancos em chamadas “operações de refinanciamento de rotina”. Prestem atenção: esta medida foi anunciada nesta segunda (22), para além da proposta da Casa Branca enviada ao Congresso e dos 315 bilhões da semana passada. Não coube a esta emissora questionar se não estaria havendo uma falência deste sistema, proclamado por especialistas de plantão como liberal, o mesmo sistema que agora se vê obrigado a recorrer ao dinheiro do contribuinte para supostamente não afundar. Como estão envergonhados, digamos objetivamente aqui o que está se salvando: a barra dos “investidores”, os acionistas, gente que tem dinheiro o suficiente para injetar milhares de dólares nesses bancos. A população, conforme denunciaram parlamentares nos EUA, não vão receber nenhum apoio, segundo a proposta do governo. Apesar manter suas crescentes dívidas no “crédito” imobiliário que, no final das contas, era mais uma bolha. Alguns congressistas, a despeito da pressão política do sistema financeiro, pediram no “ato” administrativo proposto pela Casa Branca o mais básico de todos os principais governamentais: regras! É curioso que nenhum telejornal tenha citado alguns dos trechos do pequenino documento (de apenas 3 páginas) que a secretaria do Tesouro dos EUA criou para abocanhar 700 bilhões de dólares. A Casa Branca determina, por exemplo, que “a secretaria está autorizada a tomar tais ações à medida que a secretaria considerar necessárias para realizar os poderes deste ato, inclusive, sem limitação (...)”. Em outro trecho define: “Quaisquer verbas usadas para ações autorizadas por este ato, incluindo o pagamento de despesas administrativas, devem ser consideradas apropriadas no momento de tais gastos” [05]. A imprensa manteve o velho estilo parcial de sempre – o secretário de Tesouro dos EUA era o único que aparecia durante a primeira semana de crise. “Os investidores do mundo inteiro estão com a atenção voltada para o Congresso americano”, repetia a GloboNews na própria segunda-feira (22). “A Globalização não deve ser responsabilizada”, ecoa outro correspondente da Globo, reproduzindo – é claro – voz oficial. Para falarem da ‘crise’, convocaram apenas ex-diretores do Banco Central e banqueiros.
“Cadê a tal independência?”
A jornalista e apresentadora Lilian White Fibe, no último programa ‘Roda Viva’ (TV Cultura) da segunda (22), fez uma pergunta franca e direta ao entrevistado, o economista Ilan Goldfajn, que já foi diretor de política econômica do Banco Central (BC) brasileiro e atualmente é pesquisador da PUC Rio. Ela questionou firmemente: “Então, professor, cadê a tal independência do Banco Central americano, o tal Banco Central mais independente do mundo?” A resposta não poderia ter sido mais risível, porém esclarecedora. Ilan disse que o FED – o BC americano – continuava independente, na opinião dele, e que o fato de o anúncio ter sido eminentemente político não mudava esta posição. O governo americano, argumentou Ilan, foi até o FED e este, por sua vez, colocou as opções mais “razoáveis” na mesa. O governo americano, então, acatou... Em suma: quem manda nas finanças do mundo – o que inclui deter a chave dos cofres do governo mais rico do mundo – são os financistas de Wall Street. Ou seja, os responsáveis pelo caos que a presidente argentina classificou como “economia de cassino dos EUA”. Já Giuliano Guandalini, editor de economia da revista Veja, procurou – a serviço do tipo de imprensa mais vendida que existe no Brasil – defender os “mercados”, que estão inevitavelmente sofrendo ataques até mesmo de grupos conservadores. Giuliano argumentou – em formato de “pergunta” para Ilan – que o sistema não era falho, já que havia proporcionado ganhos consideráveis durante muitos anos. Aqui, novamente, faz-se uma observação risível e reveladora. Se os investidores se beneficiaram enormemente deste sistema que, como muitos agora lembram, privatiza os lucros e socializa os prejuízos, por que o governo não utiliza parte destes lucros e paga a “conta” da farra? Por que, afinal, o dinheiro tem que vir do bolso do contribuinte, e não destas empresas de “investimento de risco”? A resposta é simples. A saída, para o esquema neoliberal, não admite outra coisa senão socializar os prejuízos. Fazer os capitalistas pagarem a conta – até Arnaldo Jabor anda falando mal deles! – é muito perigoso. Seria como, digamos, “confiscar bens”! Confiscar bens de capitalistas não é permitido.
Farra com dinheiro (do) público
Os meios de comunicação evitam passear por este debate e, inclusive, se negam a falar em estatização. Até porque estatizar é coisa de gente como Hugo Chávez, Rafael Correa e Evo Morales. Trata-se, no linguajar da mídia corporativa, de uma “intervenção” – mesmo que o governo tenha confiscado, por meio de cláusula contratual, 80% das ações da AIG, por exemplo. Emir Sader, num artigo de 2004, explica como funciona um dos instrumentos correntes de privatização dos lucros e socialização dos riscos: “Entre em um banco e deposite 100 reais em uma caderneta de poupança. O funcionário lhe dirá para retornar daqui a um mês, para receber seus polpudos dividendos, algo como R$ 100,60. Em seguida, ao mesmo funcionário, no mesmo balcão, você pede 100 reais emprestados. Receberá a resposta de que – além de todos os trâmites de cadastro, garantia, ficha pregressa etc. –, deverá pagar, daqui a um mês, algo como 109 reais. Essa ‘pequena’ diferença - algo como 15 vezes mais - é o que os bancos e os economistas, ministros, presidentes de bancos centrais, e todos os que funcionam como seus ventríloquos, chamam de spread. Em inglês, para melhor disfarçar, como convêm ao economês”. Mas o que é o spread? “Os dicionários falam sempre de algo como ''extensão'', ''propagação'', ''expansão'', no máximo ''pasta para passar no pão''. Nada que possa esclarecer essa estranha mágica de pagar 0,6% e cobrar 9% ao mês e que faz a felicidade dos bancos e propicia os recordes de lucratividade do sistema financeiro – batidos novamente esta semana – à custa de quem não vive da especulação. Os dicionários de economia esclarecem que spread é a diferença entre o quanto os bancos pagam e o quanto recebem; em outras palavras, o lucro dos bancos. Nenhum investimento permite ganhar tanto, em prazo tão curto, com tanta liquidez e pouco ou nada de imposto - recordemos que investimentos estrangeiros na Bovespa não pagam imposto, ao contrário da cesta básica, de livros etc” [06] [leia mais sobre este mecanismo brutal de exploração do trabalhador na referência do artigo]. O Jornal Nacional da quarta-feira (17), ainda assustado com a derrocada de um projeto que defende diariamente, abriu falando sobre “a maior intervenção dos EUA” no setor privado. Já naquele dia, o governo havia comprometido mais de 300 bilhões de dólares nas empresas falidas. E, como sempre, deram voz ao Ser Supremo, Vossa Divindade: “Mesmo assim, o mercado não se acalmou”. O apresentador William Bonner falou em “crise de confiança que atinge o mercado financeiro”. Não pretende explicar que a crise não é de confiança, porque seria muito perigoso que o telespectador que o vê e o ouve – aquele que é metade Homer Simpson metade Lineu, lembra? [07] – fique sabendo que não são apenas os títulos que o governo comprará que são podres, e sim o próprio sistema de jogatina que diversos ativistas denunciam há décadas. Insistem no discurso vazio: “E mais um sinal da crise de confiança que atinge o mercado financeiro: um outro banco americano, o Washington Mutual, anunciou que está à venda. Procura um comprador para salvá-lo da crise” [08].
Lula faz discurso duro sobre crise e é ignorado pela mídia
O presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva fez, na abertura do debate geral da 63ª Assembléia Geral das Nações Unidas, um dos discursos mais importantes de seu mandato, agregando elementos como conhecimento histórico, síntese política, momento oportuno e amplitude de temas. Destaca-se que o Brasil sempre abre os debates, por tradição, o que se configura em um importante aspecto de prestígio. O Jornal da Globo (TV Globo) desta terça-feira (23), dia do discurso, procurou esconder a fala de Lula, ao citar apenas um trecho insignificante e, ainda por cima, dizer que o “discurso mais esperado” era o do presidente Bush. Como sempre, o mandatário estadunidense teve uma participação pífia, ordinária e mentirosa, que nem sequer vale nota de rodapé. Lula, no entanto, sem nenhum sentimento de nacionalismo ou partidarismo, falou o que poucos têm condição ou coragem de pôr em pauta. Logo no início, o brasileiro registra: “A euforia dos especuladores transformou-se em angústia dos povos após a sucessão de naufrágios financeiros que ameaçam a economia mundial.
As indispensáveis intervenções do Estado, contrariando os fundamentalistas do mercado, mostram que é chegada a hora da política”. Evidentemente que o povo brasileiro não terá acesso, nos jornais e telejornais populares, a uma explicação detalhada sobre o que Lula quis dizer com “fundamentalistas de mercado”. “A ausência de regras”, completa o presidente, favorece os “aventureiros e oportunistas” (sic), em prejuízo das verdadeiras empresas e dos trabalhadores. “É inadmissível, dizia o grande economista brasileiro Celso Furtado, que os lucros dos especuladores sejam sempre privatizados e suas perdas, invariavelmente socializadas. O ônus da cobiça desenfreada de alguns não pode recair impunemente sobre os ombros de todos. A economia é séria demais para ficar nas mãos dos especuladores”. Novamente, seria perigoso demais que os Willians da TV Globo (Bonner ou Waack) retomassem o pensamento de Celso Furtado. Seria perigoso, pois poderia desencadear questionamentos sobre o funcionamento da própria lógica de privatização dos lucros e socialização dos riscos que ora ocorre no Brasil, tal como a lógica que permite o spread bancário. Eles poderiam explicar, por exemplo, que a globalização financeira alimenta-se da desordem monetária causada pelo fim das paridades fixas entre moedas fortes. As regras, neste caso, são parecidas com as regras de um grande cassino em Las Vegas. O pano de fundo, comenta o jornalista Bernardo Kucinski [09], é a lenta agonia da cultura monetária baseada no dólar. Enquanto o Japão acumula, por exemplo, grandes saldos em seu comércio exterior, os Estados Unidos tentam manter a hegemonia do dólar, numa espécie de “fuga para o futuro”, na expressão de Furtado. Nesta tentativa, arrastaram para uma crise estrutural nos anos 90 países que têm dívidas em dólar – incluindo o Brasil. Kucinski demonstra como funciona este “novo sistema de dominação” baseado no endividamento, igualmente registrado no balanço de pagamentos e consolidado em grandes tábuas mundiais da dívida externa, compiladas pelo Banco Mundial: “Essas tábuas mostram que, entre 1980 e 1991, os países da periferia pagaram US$ 607 bilhões de juros, mais do que o valor original da dívida, que, no entanto, nesse mesmo período saltou de US$ 573 bilhões para US$ 1281 bilhões”. Em outras palavras: quantas mais estes países pagam, mais devem. No Brasil, o pagamento dos juros é a rubrica que consome a maior quantidade de recursos públicos. Só nos primeiros meses de 2008, o governo gastou com juros R$ 106,8 bilhões, ou 6,7% do PIB. É possível imaginar, diante de tão obscuros números, que nem todo o dinheiro da “ajuda” financeira que os EUA deram e pretendem dar às instituições financeiras são de contribuintes americanos. Há também brasileiros, argentinos, bolivianos, venezuelanos, chilenos... [10]
“Fuga para o futuro”
Esta mesma lógica especulativa de fuga para o futuro, com a política de redução da taxa de juros sem controle sobre o crédito, é um fator essencial para o estouro da bolha especulativa nos mercados de hipotecas. Agora, os neoliberais de plantão, com amplo suporte dos amigos jornalistas da mídia corporativa, tratam de tentar transferir os riscos para os indivíduos dispersos.
Em vez de abordar estes temas, a TV Globo preferiu exibir uma charge em que sugere Lula e seus assessores vão à ONU, na verdade, para vender biocombustíveis ele próprio, como se fosse um mercador querendo vender a matéria prima de seu país. Este é o “humor” praticado na Rede Globo [11]. Lula defendeu o papel da ONU na criação de “mecanismos de prevenção e controle, e total transparência das atividades financeiras” contra o que classificou como “anarquia especulativa”.
Muros da globalização
Mantendo a coesão entre os temas, em um dos mais importantes trechos, Lula criticou duramente o caráter totalitário da globalização financeira: “O Muro de Berlim caiu. Sua queda foi entendida como a possibilidade de construir um mundo de paz, livre dos estigmas da Guerra Fria. Mas é triste constatar que outros muros foram se construindo, e com enorme velocidade. Muitos dos que pregam a livre circulação de mercadorias e capitais são os mesmos que impedem a livre circulação de homens e mulheres, com argumentos nacionalistas, e até fascistas, que nos fazem evocar, temerosos, tempos que pensávamos superados”. E partiu objetivamente para a defesa de governos como o da Venezuela e da Bolívia: “Um suposto ‘nacionalismo populista’, que alguns pretendem identificar e criticar no Sul do mundo, é praticado sem constrangimento em países ricos”, complementando com algumas considerações sobre a importância da aliança dos países do sul, em particular da América Latina. “Em meu continente, a Unasul, criada em maio deste ano, é o primeiro tratado – em 200 anos de vida independente – que congrega todos os países sul-americanos. Com essa nova união política vamos articular os países da região em termos de infra-estrutura, energia, políticas sociais, complementaridade produtiva, finanças e defesa” [12]. Na mídia corporativa brasileira, ao que tudo indica, a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) nem sequer existe – apesar dos seus inúmeros êxitos políticos. O motivo dos neoliberais da mídia brasileira (hoje envergonhados) para esconder esta iniciativa é justamente o seu sucesso.
E um outro detalhe: a sede da União será localizada em Quito, capital do Equador, o Banco do Sul será na capital da Venezuela, Caracas, e o seu parlamento será localizado em Cochabamba, na Bolívia.
REFERÊNCIAS
01 Kucinski, Bernardo. Jornalismo Econômico. SP: EDUSP, 2000.
02 Belluzo, Luiz Gonzaga. “A turma do ‘Veja Bem’...”. Revista Carta Capital. 17 set. 2008. No 513.
03 A Revista Consciência.Net realizou a cobertura do REGGEN 2003. Disponível em http://www.consciencia.net/reggen/reggen2003.html0
4 Chomsky, Noam; Barsamian, David. Propaganda e consciência popular. Bauru, SP: EDUSC, 2003. Págs 166-167.
05 “Leia o projeto de socorro do Tesouro”. Folha de S. Paulo. 22 set. 2008.
06 Sader, Emir. 'Spread' ou a farra especulativa. Jornal do Brasil. 22 fev. 2004.
07 “William Bonner: meio Homer, meio Lineu”. Revista Consciência.Net. Dez. 2005.
08 “Crise de confiança na economia dos EUA se acentua”. Jornal Nacional (TV Globo). 17 set. 2008.
09 Kucinski, Bernardo. Jornalismo Econômico. SP: Edusp, 2000.
10 Para dados recentes, visitar http://www.jubileubrasil.org.br/
11 Charge animada do Jornal da Globo, TV Globo. 23 set. 2008.
12 Discurso do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, na abertura do debate geral da 63ª Assembléia Geral das Nações Unidas (Nova Iorque - EUA). Presidência da República. 23 set. 2008. – 03.10.2008
Fonte: http://www.fazendomedia.com/
terça-feira, 7 de outubro de 2008
África do Sul: a libertação traída
África do Sul: a libertação traída
por John Pilger [*]
A ruptura política na África do Sul está a ser apresentada ao mundo exterior como a tragédia pessoal e a humilhação de um homem, Thabo Mbeki . Isto lembra a beatificação de Nelson Mandela no momento da morte do apartheid. Não se trata de reduzir o poder das personalidades, mas a importância das mesmas muitas vezes serve desviar a atenção das forças históricas que elas servem e administram. Frantz Fanon tinha isto em mente quando, em Os condenados da Terra, descreveu a "missão histórica" de grande parte da classe dominante pós colonial como "a de intermediário [cuja] missão nada tem a ver com a transformação da nação: ela consiste, prosaicamente, de ser a linha de transmissão entre a nação e um capitalismo, desenfreado embora camuflado".
A queda de Mbeki e o colapso da Wall Street são acontecimentos concorrentes e relacionados, assim como previsíveis. Remontemos a 1985 quando o mercado de acções de Johannesburg entrou em crash, o regime do apartheid incumpriu sua dívida crescente e os chefes do capital sul-africano ganharam medo. Em Setembro daquele ano um grupo conduzido por Gavin Relly, presidente da Anglo American Corporation, encontrou-se com Oliver Tambo , o presidente do ANC, e outros responsáveis da resistência, na Zâmbia. A sua mensagem urgente era ser possível uma "transição" do apartheid para uma democracia liberal governada por negros apenas se a "ordem" e a "estabilidade" fossem garantidas. Tratava-se de eufemismos para um estado de "mercado livre" em que a justiça social não seria prioritária.
Reuniões secretas entre o ANC e membros eminentes da elite afrikaner seguiram-se numa mansão, Mells Park House, na Inglaterra. As motivações primárias eram daqueles que haviam apoiado e lucrado com o apartheid – tais como o gigante mineiro britânico Consolidated Goldfields, o qual pagou a conta dos vinhos finos e do malt whisky deglutido junto à lareira da Mells Park House. Seu objectivo era que o regime de Pretória – para dividir o ANC entre os "moderados", na maior parte exilados, com quem podiam "negociar" (Tambo, Mbeki e Mandela) e a maioria que consistia naqueles que resistiam nas cidades, conhecidos como os UDF.
O assunto era urgente. Quando F.W. De Klerk chegou ao poder em 1989, o capital estava numa tal hemorragia que as reservas externas do país mal cobririam cinco semanas de importações. Ficheiros desclassificados que vi em Washington deixavam pouca dúvida de que De Klerk estava em vias de salvar o capitalismo na África do Sul. Ele não poderia conseguir isto sem um ANC acomodatício.
Nelson Mandela criticou isto. Tendo apoiado a promessa do ANC de assumir o comando das minas e outras indústrias monopolistas – "uma mudança ou modificação das nossas opiniões a este respeito é inconcebível" – Mandela falou com uma voz diferente nas sua primeiras viagens triunfais ao exterior. "O ANC", disse ele em Nova York, "reintroduzirá o mercado na África do Sul". O acordo, com efeito, era que brancos retivessem o controle económico em troca do governo da maioria negra: a "coroa do poder político" para a "jóia da economia sul africana", como disse Ali Mazrui . Quando, em 1997, contei a Mbeki que um homem de negócios negro descrevera-se como "o fiambre num sanduíche branco", ele riu em concordância, chamando a isto o "compromisso histórico", que outros consideraram traição. Contudo, De Klerk é que foi mais directamente ao ponto. Eu lhe disse que ele e os seus amigos brancos haviam obtido o que queriam e que para a maioria a pobreza não havia mudado. "Não será isto a continuação do apartheid por outros meios?", perguntei. A sorrir através de uma nuvem de fumo do cigarro, ele respondeu: "Você deve entender, já alcançámos um vasto consenso sobre muitas coisas".
A queda de Thabo Mbeki não é senão a queda de um sistema económico fracassado que enriqueceu os poucos e rejeitou os pobres. Os "neoliberais" do ANC por vezes pareciam envergonhados de que a África do Sul, sob muitos aspectos, fosse um país do terceiro mundo. "Procuramos estabelecer", disse Trevor Manuel , "um ambiente no qual floresçam vencedores". Jactando-se de um défice tão baixo que havia caído ao nível de economias europeias, ele e seus amigos "moderados" distanciaram-se da economia pública que a maioria dos sul africanos queria e necessitava desesperadamente. Eles aspiraram o ar quente do discurso corporativo. Ouviram o Banco Mundial e o FMI, e logo estavam a ser convidados para a mesa principal do Fórum Económico de Davos e para reuniões do G-8, onde as "proezas macroeconómicas" eram louvadas como um modelo. Em 2001, George Soros colocou isto um tanto mais directamente. "A África do Sul", disse ele, "agora está nas mãos do capital internacional".
Serviços públicos caíram atrás das privatizações, e a baixa inflação predominou sobre os baixos salários e o alto desemprego, conhecido como "flexibilidade laboral". Segundo o ANC, a riqueza gerada por uma nova classe negra de negócios "gotejaria" para baixo. Aconteceu o oposto. Conhecidos sardonicamentes como os wabenzi porque os seus veículos preferidos são Mercedes Benz cor de prata, os capitalistas negros demonstraram que podiam ser tão brutais quanto os seus antigos mestres brancos nas relações laborais, no compadrio e na busca do lucro. Centenas de milhares de empregos foram perdidos em fusões e "reestruturações" e pessoas comuns repelidas para a "economia informal". Entre 1995 e 2000, a maioria dos sul africanos caiu ainda mais profundamente na pobreza. Quando o fosso entre brancos ricos e negros recém enriquecidos começou a fechar, o abismo entre a "classe média" negra e a maioria aprofundou-se mais do que nunca.
Em 1996, o gabinete do Programa de Reconstrução e Desenvolvimento (RDP) foi tranquilamente encerrado, marcando o fim dos "compromisso solene" do ANC e da "promessa inquebrantável" de colocar a maioria em primeiro lugar. Dois anos depois, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento descreveu o substitutivo, GEAR, basicamente como "não diferente" da estratégia económica do regime do apartheid na década de 1980.
Isto parecia surrealista. Seria a África do Sul um país de tecnocratas treinados em Harvard a abrir os espumantes diante das mais recentes classificações de crédito da Duff & Phelps em Nova York? Ou era um país de homens, mulheres e crianças profundamente empobrecidos sem água limpa e saneamento básico, cujos recursos infinitos estavam a ser reprimidos e desperdiçados, mais uma vez? As perguntas constituíam um embaraço quando o governo do NAC endossou o acordo do regime do apartheid para aderir ao General Agreement on Tariffs and Trade (GATT), o qual efectivamente submeteu a sua independência económica, reembolsou os US$25 mil milhões de dívida externa herdada da era do apartheid. Incrivelmente, Manuel permitiu mesmo que as maiores companhias da África do Sul transferissem suas finanças para fora e se estabelecessem em Londres.
Thabo Mbeki certamente acelerou a sua morte política com suas estranhas censuras sobre o HIV/Sida, sua famosa indiferença e isolamento e os negócios corruptos que pareciam nunca dele se afastar. Foi a premeditada catástrofe económica e social do ANC que ele viu incorrectamente. Para mais provas, vejam-se os Estados Unidos de hoje e os fumos ruinosos do modelo "neoliberal" tão acarinhado pelos líderes do ANC. E cuidado com aqueles sucessores de Mbeki agora a afirmar que, ao contrário dele, eles têm os interesses do povo no coração enquanto continuam as mesmas políticas desagregadoras. A África do Sul merece melhor.
02/Outubro/2008
Primeira publicação no Mail & Guardian, de Johannesburg. O original encontra-se em http://www.johnpilger.com/page.asp?partid=505 Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
06/Out/08
por John Pilger [*]
A ruptura política na África do Sul está a ser apresentada ao mundo exterior como a tragédia pessoal e a humilhação de um homem, Thabo Mbeki . Isto lembra a beatificação de Nelson Mandela no momento da morte do apartheid. Não se trata de reduzir o poder das personalidades, mas a importância das mesmas muitas vezes serve desviar a atenção das forças históricas que elas servem e administram. Frantz Fanon tinha isto em mente quando, em Os condenados da Terra, descreveu a "missão histórica" de grande parte da classe dominante pós colonial como "a de intermediário [cuja] missão nada tem a ver com a transformação da nação: ela consiste, prosaicamente, de ser a linha de transmissão entre a nação e um capitalismo, desenfreado embora camuflado".
A queda de Mbeki e o colapso da Wall Street são acontecimentos concorrentes e relacionados, assim como previsíveis. Remontemos a 1985 quando o mercado de acções de Johannesburg entrou em crash, o regime do apartheid incumpriu sua dívida crescente e os chefes do capital sul-africano ganharam medo. Em Setembro daquele ano um grupo conduzido por Gavin Relly, presidente da Anglo American Corporation, encontrou-se com Oliver Tambo , o presidente do ANC, e outros responsáveis da resistência, na Zâmbia. A sua mensagem urgente era ser possível uma "transição" do apartheid para uma democracia liberal governada por negros apenas se a "ordem" e a "estabilidade" fossem garantidas. Tratava-se de eufemismos para um estado de "mercado livre" em que a justiça social não seria prioritária.
Reuniões secretas entre o ANC e membros eminentes da elite afrikaner seguiram-se numa mansão, Mells Park House, na Inglaterra. As motivações primárias eram daqueles que haviam apoiado e lucrado com o apartheid – tais como o gigante mineiro britânico Consolidated Goldfields, o qual pagou a conta dos vinhos finos e do malt whisky deglutido junto à lareira da Mells Park House. Seu objectivo era que o regime de Pretória – para dividir o ANC entre os "moderados", na maior parte exilados, com quem podiam "negociar" (Tambo, Mbeki e Mandela) e a maioria que consistia naqueles que resistiam nas cidades, conhecidos como os UDF.
O assunto era urgente. Quando F.W. De Klerk chegou ao poder em 1989, o capital estava numa tal hemorragia que as reservas externas do país mal cobririam cinco semanas de importações. Ficheiros desclassificados que vi em Washington deixavam pouca dúvida de que De Klerk estava em vias de salvar o capitalismo na África do Sul. Ele não poderia conseguir isto sem um ANC acomodatício.
Nelson Mandela criticou isto. Tendo apoiado a promessa do ANC de assumir o comando das minas e outras indústrias monopolistas – "uma mudança ou modificação das nossas opiniões a este respeito é inconcebível" – Mandela falou com uma voz diferente nas sua primeiras viagens triunfais ao exterior. "O ANC", disse ele em Nova York, "reintroduzirá o mercado na África do Sul". O acordo, com efeito, era que brancos retivessem o controle económico em troca do governo da maioria negra: a "coroa do poder político" para a "jóia da economia sul africana", como disse Ali Mazrui . Quando, em 1997, contei a Mbeki que um homem de negócios negro descrevera-se como "o fiambre num sanduíche branco", ele riu em concordância, chamando a isto o "compromisso histórico", que outros consideraram traição. Contudo, De Klerk é que foi mais directamente ao ponto. Eu lhe disse que ele e os seus amigos brancos haviam obtido o que queriam e que para a maioria a pobreza não havia mudado. "Não será isto a continuação do apartheid por outros meios?", perguntei. A sorrir através de uma nuvem de fumo do cigarro, ele respondeu: "Você deve entender, já alcançámos um vasto consenso sobre muitas coisas".
A queda de Thabo Mbeki não é senão a queda de um sistema económico fracassado que enriqueceu os poucos e rejeitou os pobres. Os "neoliberais" do ANC por vezes pareciam envergonhados de que a África do Sul, sob muitos aspectos, fosse um país do terceiro mundo. "Procuramos estabelecer", disse Trevor Manuel , "um ambiente no qual floresçam vencedores". Jactando-se de um défice tão baixo que havia caído ao nível de economias europeias, ele e seus amigos "moderados" distanciaram-se da economia pública que a maioria dos sul africanos queria e necessitava desesperadamente. Eles aspiraram o ar quente do discurso corporativo. Ouviram o Banco Mundial e o FMI, e logo estavam a ser convidados para a mesa principal do Fórum Económico de Davos e para reuniões do G-8, onde as "proezas macroeconómicas" eram louvadas como um modelo. Em 2001, George Soros colocou isto um tanto mais directamente. "A África do Sul", disse ele, "agora está nas mãos do capital internacional".
Serviços públicos caíram atrás das privatizações, e a baixa inflação predominou sobre os baixos salários e o alto desemprego, conhecido como "flexibilidade laboral". Segundo o ANC, a riqueza gerada por uma nova classe negra de negócios "gotejaria" para baixo. Aconteceu o oposto. Conhecidos sardonicamentes como os wabenzi porque os seus veículos preferidos são Mercedes Benz cor de prata, os capitalistas negros demonstraram que podiam ser tão brutais quanto os seus antigos mestres brancos nas relações laborais, no compadrio e na busca do lucro. Centenas de milhares de empregos foram perdidos em fusões e "reestruturações" e pessoas comuns repelidas para a "economia informal". Entre 1995 e 2000, a maioria dos sul africanos caiu ainda mais profundamente na pobreza. Quando o fosso entre brancos ricos e negros recém enriquecidos começou a fechar, o abismo entre a "classe média" negra e a maioria aprofundou-se mais do que nunca.
Em 1996, o gabinete do Programa de Reconstrução e Desenvolvimento (RDP) foi tranquilamente encerrado, marcando o fim dos "compromisso solene" do ANC e da "promessa inquebrantável" de colocar a maioria em primeiro lugar. Dois anos depois, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento descreveu o substitutivo, GEAR, basicamente como "não diferente" da estratégia económica do regime do apartheid na década de 1980.
Isto parecia surrealista. Seria a África do Sul um país de tecnocratas treinados em Harvard a abrir os espumantes diante das mais recentes classificações de crédito da Duff & Phelps em Nova York? Ou era um país de homens, mulheres e crianças profundamente empobrecidos sem água limpa e saneamento básico, cujos recursos infinitos estavam a ser reprimidos e desperdiçados, mais uma vez? As perguntas constituíam um embaraço quando o governo do NAC endossou o acordo do regime do apartheid para aderir ao General Agreement on Tariffs and Trade (GATT), o qual efectivamente submeteu a sua independência económica, reembolsou os US$25 mil milhões de dívida externa herdada da era do apartheid. Incrivelmente, Manuel permitiu mesmo que as maiores companhias da África do Sul transferissem suas finanças para fora e se estabelecessem em Londres.
Thabo Mbeki certamente acelerou a sua morte política com suas estranhas censuras sobre o HIV/Sida, sua famosa indiferença e isolamento e os negócios corruptos que pareciam nunca dele se afastar. Foi a premeditada catástrofe económica e social do ANC que ele viu incorrectamente. Para mais provas, vejam-se os Estados Unidos de hoje e os fumos ruinosos do modelo "neoliberal" tão acarinhado pelos líderes do ANC. E cuidado com aqueles sucessores de Mbeki agora a afirmar que, ao contrário dele, eles têm os interesses do povo no coração enquanto continuam as mesmas políticas desagregadoras. A África do Sul merece melhor.
02/Outubro/2008
Primeira publicação no Mail & Guardian, de Johannesburg. O original encontra-se em http://www.johnpilger.com/page.asp?partid=505 Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
06/Out/08
sexta-feira, 3 de outubro de 2008
Doutrina do Choque por Naomi Klein
DOUTRINA DO CHOQUE por Naomi Klein
Capitalismo de desastre: estado de extorsão
Invadir países para apoderar-se de seus recursos naturais é ilegal, segundo a Convenção de Genebra. Isto significa que a gigantesca tarefa de reconstruir a infra-estrutura do Iraque é responsabilidade financeira dos invasores. Em vez disso, o Iraque está obrigado a vender 75% de seu patrimônio nacional para pagar as contas de sua própria invasão e ocupação ilegais. Os capitalistas do desastre têm estado ocupados. A análise é da Naomi Klein.
Desde que o barril de petróleo ultrapassou os 140 dólares, até os interlocutores de direita mais furibundos são forçados a demonstrar seu credo populista dedicando uma parte de seus programas a massacrar as companhias petrolíferas. Alguns foram tão longe a ponto de convidar-me para uma conversa amigável sobre um insidioso novo fenômeno: “o capitalismo do desastre”. A coisa marcha bem... até que começa a se torcer. Por exemplo, o interlocutor “conservador independente” Jerry Doyle e eu mantínhamos uma conversa perfeitamente amigável sobre as turvas companhias seguradoras e a inépcia dos políticos, quando ocorreu o seguinte: “Acho que há um sistema para baratear rapidamente os preços”, anunciou Doyle. “Investimos 650 bilhões de dólares para libertar uma nação de 25 milhões de pessoas. Será que já não é hora de reclamarmos um pouco de petróleo em troca? Deveria haver uma fila de caminhões-tanque, um atrás do outro, formando um congestionamento em direção ao Túnel Lincoln, o malcheiroso Túnel Lincoln, bem na hora do rush, cada um deles com um bilhete de agradecimento do governo iraquiano... Por que não vamos e simplesmente pegamos o petróleo? Nós o ganhamos libertando um país. Posso resolver o problema do preço do petróleo em dez dias em vez de em dez anos.” O plano de Doyle tinha alguns problemas, é claro. O primeiro é que estava descrevendo o maior latrocínio da história mundial. O segundo é que chegava tarde demais: “nós” já estamos roubando o petróleo do Iraque, ou pelo menos estamos na iminência de fazê-lo. Já se passaram dez meses da publicação do meu livro, Doutrina do Choque: a ascensão do capitalismo de desastre, no qual argumento que o método preferido para reformar o mundo de acordo com os interesses das corporações multinacionais é, atualmente, o de explorar sistematicamente o estado de medo e desorientação que acompanha a população em momentos de choque e crise. Agora que o mundo está sendo sacudido por múltiplos choques, parece um bom momento para ver como está sendo aplicada essa estratégia. Os capitalistas do desastre têm estado ocupados: dos bombeiros privados que atuaram nos incêndios do norte da Califórnia, passando pelos grileiros após o ciclone Burma, à nova lei sobre moradia abrindo caminho no Congresso. A lei diz pouco no que se refere às moradias acessíveis, desloca o peso do pagamento das hipotecas para os contribuintes e garante que os bancos que fizeram maus empréstimos recebam alguma coisa por eles. Não é de admirar que nos corredores do Congresso seja conhecida como “plano Credit Suisse”, em homenagem a um dos bancos que, generosamente, propôs essa lei.
Capitalismo de desastre: estado de extorsão
Invadir países para apoderar-se de seus recursos naturais é ilegal, segundo a Convenção de Genebra. Isto significa que a gigantesca tarefa de reconstruir a infra-estrutura do Iraque é responsabilidade financeira dos invasores. Em vez disso, o Iraque está obrigado a vender 75% de seu patrimônio nacional para pagar as contas de sua própria invasão e ocupação ilegais. Os capitalistas do desastre têm estado ocupados. A análise é da Naomi Klein.
Desde que o barril de petróleo ultrapassou os 140 dólares, até os interlocutores de direita mais furibundos são forçados a demonstrar seu credo populista dedicando uma parte de seus programas a massacrar as companhias petrolíferas. Alguns foram tão longe a ponto de convidar-me para uma conversa amigável sobre um insidioso novo fenômeno: “o capitalismo do desastre”. A coisa marcha bem... até que começa a se torcer. Por exemplo, o interlocutor “conservador independente” Jerry Doyle e eu mantínhamos uma conversa perfeitamente amigável sobre as turvas companhias seguradoras e a inépcia dos políticos, quando ocorreu o seguinte: “Acho que há um sistema para baratear rapidamente os preços”, anunciou Doyle. “Investimos 650 bilhões de dólares para libertar uma nação de 25 milhões de pessoas. Será que já não é hora de reclamarmos um pouco de petróleo em troca? Deveria haver uma fila de caminhões-tanque, um atrás do outro, formando um congestionamento em direção ao Túnel Lincoln, o malcheiroso Túnel Lincoln, bem na hora do rush, cada um deles com um bilhete de agradecimento do governo iraquiano... Por que não vamos e simplesmente pegamos o petróleo? Nós o ganhamos libertando um país. Posso resolver o problema do preço do petróleo em dez dias em vez de em dez anos.” O plano de Doyle tinha alguns problemas, é claro. O primeiro é que estava descrevendo o maior latrocínio da história mundial. O segundo é que chegava tarde demais: “nós” já estamos roubando o petróleo do Iraque, ou pelo menos estamos na iminência de fazê-lo. Já se passaram dez meses da publicação do meu livro, Doutrina do Choque: a ascensão do capitalismo de desastre, no qual argumento que o método preferido para reformar o mundo de acordo com os interesses das corporações multinacionais é, atualmente, o de explorar sistematicamente o estado de medo e desorientação que acompanha a população em momentos de choque e crise. Agora que o mundo está sendo sacudido por múltiplos choques, parece um bom momento para ver como está sendo aplicada essa estratégia. Os capitalistas do desastre têm estado ocupados: dos bombeiros privados que atuaram nos incêndios do norte da Califórnia, passando pelos grileiros após o ciclone Burma, à nova lei sobre moradia abrindo caminho no Congresso. A lei diz pouco no que se refere às moradias acessíveis, desloca o peso do pagamento das hipotecas para os contribuintes e garante que os bancos que fizeram maus empréstimos recebam alguma coisa por eles. Não é de admirar que nos corredores do Congresso seja conhecida como “plano Credit Suisse”, em homenagem a um dos bancos que, generosamente, propôs essa lei.
O desastre do Iraque: “se quebrar, paga”
Mas estes casos de capitalismo do desastre são bastante amadores se comparados ao que está sendo feito no Ministério do Petróleo iraquiano. Começou com a adjudicação de contratos fora de leilão à ExxonMobil, Chevron, Shell, BP e Total (ainda não foram assinados, mas já estão valendo). Pagar às multinacionais pela sua bagagem técnica não é algo raro. O que é estranho é que tais contratos quase invariavelmente sejam destinados às empresas petrolíferas de serviço e não às grandes empresas petrolíferas cujo trabalho é a exploração e destes recursos combustíveis e liberadores de dióxido de carbono. Como aponta o especialista em petróleo londrino Greg Muttitt, os contratos só têm sentido no contexto das informações de que as grandes companhias petrolíferas insistiram no direito de poder recusar contratos subseqüentes outorgados para gerenciar e produzir nos campos de petróleo iraquianos. Em outras palavras, embora outras companhias poderão fazer lances pelos contratos futuros, aquelas sempre vão vencer. Uma semana depois que os acordos de serviços fora de leilão foram anunciados, o mundo pôde ver o preço real do petróleo. Depois de anos pressionando o Iraque pelas costas da opinião pública, o país repentinamente abriu aos investidores seis de seus maiores campos petrolíferos, que reúnem em conjunto quase metade de suas reservas. De acordo com o ministro do Petróleo iraquiano, contratos a longo prazo começarão a ser assinados durante este ano. Apesar de que ostensivamente estarão sob controle da Companhia Nacional de Petróleo Iraquiana (CNPI), as empresas estrangeiras manterão 75% do valor dos contratos, deixando os 25% restantes para seus sócios iraquianos. Este tipo de porcentagem não tem precedentes nos estados árabes e persas ricos em petróleo, nos quais o controle majoritariamente nacional do petróleo foi uma vitória decisiva nas lutas anticolonialistas. Segundo Muttitt, a suposição até agora era que as multinacionais estrangeiras trariam desenvolvimento aos novos campos petrolíferos do Iraque, e não que tomariam para si aqueles cuja produção já está em marcha e, conseqüentemente, requerem um suporte técnico mínimo. “A política era a de destinar esses campos em sua totalidade à Companhia Nacional de Petróleo Iraquiana”, explicou-me. Esta mudança supõe uma inversão daquela política, uma vez que dá à CNPI apenas 25%, em vez dos 100% planejados. Assim, o que faz com que contratos péssimos como esses sejam possíveis no Iraque, um país que tanto sofreu? Ironicamente, o sofrimento do Iraque —sua crise sem fim— é a base para um acordo que ameaça drenar de seu tesouro nacional sua principal fonte de recursos. A lógica é como segue: a indústria petrolífera do Iraque precisa de especialistas estrangeiros porque os anos de sanções punitivas privaram-na de nova tecnologia e a invasão, assim como a violência que a seguiu, degradaram-na ainda mais. E o Iraque precisa com urgência produzir mais petróleo. Por que? Por causa da guerra, mais uma vez.
O país está em ruínas e os milhares de milhões repartidos em contratos fora de leilão entre as companhias ocidentais não conseguiram reconstruir o país. Aí é onde entram os novos contratos fora de leilão: por essa via conseguirão arrecadar mais dinheiro, mas o Iraque tornou-se um lugar tão traiçoeiro que as grande companhias petrolíferas precisam ser induzidas a assumir o risco de investir. Assim, a invasão do Iraque cria, limpamente, o argumento para o seu saque subseqüente. Muitos dos arquitetos da guerra do Iraque nem sequer se preocupam mais em negar que o petróleo foi o motivo principal da invasão. No programa To the Point, da National Public Radio (Radio Nacional Pública), Fadhil Chalabi, um dos principais conselheiros iraquianos da administração Bush antes da invasão, descreveu recentemente a guerra como um “movimento estratégico dos EUA e do Reino Unido para ter uma presença militar no Golfo com a qual possam garantir, no futuro, as reservas (de petróleo).” Chalabi, que exerceu como vice-ministro do Petróleo e reuniu-se com as companhias petrolíferas antes da invasão, descreveu este movimento como “um objetivo fundamental.” Invadir países para apoderar-se de seus recursos naturais é ilegal, segundo a Convenção de Genebra. Isto significa que a gigantesca tarefa de reconstruir a infra-estrutura do Iraque —incluindo sua infra-estrutura petrolífera— é responsabilidade financeira dos invasores. São eles que deveriam ser forçados a pagar pelos consertos. (É preciso lembrar que o regime de Saddam Hussein pagou 9 bilhões de dólares ao Kuwait como reparações pela invasão do país em 1990.) Em vez disso, o Iraque está obrigado a vender 75% de seu patrimônio nacional para pagar as contas de sua própria invasão e ocupação ilegais.
O choque do preço do petróleo: ou vocês nos dão o Ártico ou nunca voltarão a dirigir.
O Iraque não é o único país envolvido em um assalto petrolífero. A administração Bush está atarefada no trabalho de usar uma crise relacionada —a do aumento do preço do combustível— para reavivar seu velho sonho de perfurar o Refúgio Natural Ártico (Arit. National Wildlife Refuge, ANWR em suas iniciais em inglês). E de perfurar a costa. E também de explorar as reservas de petróleo de esquisto bituminoso da bacia de Green River. “O Congresso tem que enfrentar a dura realidade”, disse George W. Bush em 18 de junho. “A menos que os membros do Congresso estejam dispostos a aceitar os dolorosos preços atuais do combustível, ou talvez ainda mais altos, nossa nação precisa produzir mais petróleo.” Fala o Presidente como Extorquidor-em-Chefe, apontando a cabeça de seu refém (nada menos que o país inteiro) com a bomba de gasolina: ou vocês me dão a ANWR ou todo o mundo terá que passar suas férias no pátio traseiro de casa. O último roubo do presidente-cowboy. Apesar dos adesivos de “Perfure aqui e agora e pague menos”, perfurar na ANWR teria um impacto apenas perceptível nas atuais reservas petrolíferas mundiais, como seus defensores bem sabem. O argumento de que poderia provocar uma redução dos preços do petróleo não está baseado na economia pura e dura, mas na psicanálise de mercado: perfurar “enviaria uma mensagem” aos empresários do petróleo de que ainda resta mais petróleo, e isto faria com que os preços começassem a cair. Seguem dois pontos deste raciocínio. O primeiro é a tentativa de mentalizar os hiperativos empresários sobre o que ocorre realmente no governo da era Bush, inclusive no meio de uma emergência nacional. O segundo, é que nunca vai funcionar. Se há alguma coisa que podemos predizer do recente comportamento do mercado petrolífero é que o preço vai continuar subindo, não importa quantas novas reservas forem anunciadas. Tomem, por exemplo, o enorme boom que está ocorrendo com as famosas reservas de petróleo de esquisto bituminoso de Alberta. Com essas reservas de petróleo bituminoso, conhecidas também como “areias petrolíferas”, ocorre a mesma coisa que com as outras áreas propostas por Bush para perfuração: são próximas e seguras, pois o Tratado para o Livre Comércio na América do Norte (NAFTA) contém uma cláusula que impede o Canadá de cortar o fornecimento para os Estados Unidos. Sem fazer muito barulho, o petróleo destas fontes em grande medida sem explorar tem estado fluindo para o mercado em tal quantidade que agora o Canadá é o maior provedor de petróleo dos Estados Unidos, acima da Arábia Saudita. Entre 2005 e 2007, o Canadá aumentou suas exportações para os Estados Unidos em quase 100 milhões de barris. Apesar do significativo crescimento destas reservas seguras, os preços do petróleo aumentaram durante todo este tempo. O que se esconde por trás da campanha de perfuração da ANWR não é, de fato, senão pura estratégia do choque: a crise do petróleo criou as condições que tornam possível vender uma política antes invendável, mas, evidentemente, altamente lucrativa.
O choque do preço dos alimentos: ou modificação genética ou fome
Estreitamente ligada ao preço do petróleo encontramos a crise alimentar global. Não são apenas os altos preços do petróleo que fazem subir os preços dos alimentos, senão que o boom dos biocombustíveis tornou difusa a fronteira entre comida e combustível, expulsou os agricultores de suas terras e alentou uma especulação desatada. Muitos países latino-americanos têm insistindo em que seja reexaminada a importância dos biocombustíveis como alternativa aos combustíveis fósseis e em que os alimentos sejam reconhecidos como um direito humano e não como uma mercadoria. O subsecretário de Estado dos Estados Unidos, John Negroponte, tem, contudo, outras idéias a esse respeito. No mesmo discurso em que tentava vender o compromisso dos EUA para uma ajuda alimentar de emergência pediu aos países que baixassem suas “restrições à exportação e suas altas tarifas” e que eliminassem “as barreiras para o uso das inovações tecnológicas na produção animal e vegetal, incluindo a biotecnologia.” É preciso reconhecer que esta ameaça era mais sutil que as anteriores, mas a mensagem era clara: os países pobres fariam bem em abrir seus mercados agrícolas aos produtos norte-americanos e às suas sementes geneticamente modificadas. Caso contrário, arriscam-se a perder sua ajuda.
Os cultivos geneticamente modificados apareceram de repente como a panacéia para a crise alimentar, pelo menos segundo o Banco Mundial, o presidente da Comissão Européia —“coragem e vamos ao touro”, disse— e o Primeiro Ministro britânico, Gordon Brown. E, é claro, segundo as empresas do agrobusiness. “Não é possível alimentar o mundo, hoje, sem organismos geneticamente modificados”, declarou recentemente Peter Brabec, presidente da Nestlé, ao Financial Times. O problema com este argumento, pelo menos por enquanto, é que não há provas de que os organismos geneticamente modificados vão aumentar a produção dos cultivos, pelo contrário, parece que a diminuem. Mas se houvesse uma varinha mágica com a qual resolver a crise alimentar global, iríamos querer que estivesse em mãos das Nestlés e Monsantos? Qual seria o preço a pagar para que a usassem? Nos últimos meses, Monsanto, Syngenta e BASF estiveram comprando freneticamente patentes das chamadas sementes “todo-terreno”, um tipo de plantas que podem crescer inclusive na terra castigada pela seca ou salgada pelas inundações. Em outras palavras: plantas modificadas para sobreviver a um futuro de caos climático. Já sabemos até que ponto está disposta a chegar a Monsanto na hora de proteger sua propriedade intelectual, espionando e processando os granjeiros que ousem guardar suas sementes de um ano para o outro. Temos visto como os medicamentos patenteados contra o HIV impedem salvar milhões de pessoas na África subsaariana. Por que os cultivos “todo-terreno” patenteados seriam diferentes? Enquanto isso, entre tanta charlatanice excitante sobre novas tecnologias perfuradoras e genéticas, a administração Bush anunciou uma moratória de até dois anos nos projetos federais de pesquisa em energia solar, devido a, aparentemente, preocupações com o meio ambiente. Estamos chegando perto da fronteira final do capitalismo de desastre. Nossos dirigentes não investem em tecnologias que nos previnam de maneira efetiva de um futuro climaticamente caótico e, em vez disso, decidem trabalhar ombro com ombro justamente com aqueles que maquinam planos cada vez mais endiabrados para aproveitar-se das desgraças alheias. A privatização do petróleo iraquiano, a garantia de um domínio global para plantações modificadas geneticamente, a redução das últimas barreiras comerciais e a abertura das últimas reservas naturais... não faz muito tempo que estes objetivos eram conseguidos um atrás do outro por meio de cordiais acordos comerciais apresentados com o pseudônimo de “globalização”. Agora, essa agenda completamente desacreditada está obrigada a cavalgar sobre as costas de crises cíclicas, vendendo a si mesma como a medicina que curará, de uma vez por todas, a dor do mundo.
* Naomi Klein é autora de numerosos livros, sendo o mais recente The Shock Doctrine: The Rise of Disaster Capitalism. Tradução: Naila Freitas / Verso Tradutores
Fonte: Carta Maior
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