Para desempatar o jogo
Saldo das mobilizações de junho ainda é ambíguo. É hora de impulsionar novas pautas e enfrentar manipulação da mídia
Junho de 2013 não será esquecido tão cedo. Pela primeira vez desde a campanha pelo impeachment do ex-presidente Fernando Collor, centenas de milhares de pessoas foram (e algumas continuam indo) às ruas gritar por direitos, por projetos, protestar contra uma infinidade de fatos e apoiar causas das quais muitas vezes não têm a mínima informação. Os grupos que iniciaram esses protestos, como o Movimento Passe Livre (MPL), perderam rapidamente o controle e o rumo das massas.
Percebendo a chance de aproveitar as passeatas para desgastar o governo federal, a grande mídia muda radicalmente seu discurso (literalmente do dia para a noite) e propagandeia bandeiras mais do que suspeitas, de modo a contemplar interesses específicos e diluir tudo o mais numa pauta infinita de reivindicações abstratas. Jornais, revistas e TVs usam todo o seu conhecimento sobre o funcionamento da indústria cultural, construído ao longo de mais de cem anos, para introduzir como gritos de guerra slogans vazios retirados de propagandas comerciais como “o gigante acordou” (Johnny Walker – “estranhamente” semelhante a palavras de ordem evocadas na fatídica Marcha da Família com Deus pela Liberdadede 1964) e “vem pra rua” (Fiat).
Ato contínuo, policiais à paisana e grupos de extrema direita, como skinheads, infiltram-se nas manifestações incitando atos de vandalismo de jovens pobres sedentos por adrenalina e expulsando com grande violência ativistas de partidos de esquerda que nunca dormiram ou saíram das ruas. As bases para um golpe jurídico/midiático no estilo dos realizados recentemente no Paraguai e Honduras, estão lançadas, sob os aplausos de uma oposição sem projeto, apelo ou apoio popular. Mas, num gesto de argúcia política, a presidenta Dilma vira o jogo em dois discursos e uma série de reuniões com movimentos e partidos, usando a vontade de participação direta da população na política para impulsionar projetos discutidos sem resultado há décadas no Congresso.
A volta do debate
Uma coisa não se pode negar aos meninos do MPL: eles trouxeram de volta às ruas e às redes o ato de discutir política, um tema quase tabu até ontem, mesmo nas mesas de bar. E, ainda mais incrível, no meio de um torneio mundial de futebol vencido por um bom time brasileiro, como há décadas não se via.
Isso não é pouco se pensarmos que a moçada, especialmente da “nova classe média”, cresceu ouvindo dizer que somente carnaval e futebol unem o Brasil, que todo político é ladrão e que não existe mais esquerda e direita. Por isso vídeos simples e diretos, como o do PC Siqueira são fundamentais para explicar conceitos básicos que a maioria não aprendeu na escola e que muitos não discutem nas universidades privadas que preparam “para o trabalho” e não para a cidadania.
Os memes de internet, como o vídeo citado, sátiras, cartuns e outras formas de expressão de ideias na rede, fazem parte da cultura dessa juventude e a impulsionou para além das telas, alcançando as praças e avenidas. Obviamente, a indústria do marketing descobriu seu potencial de mobilização (pela vertente do consumo) antes dos cientistas políticos. Um exemplo do ativismo que saiu do Facebook e influiu decisivamente na política real foi o evento Amor Sim, Russomano Não, que ajudou a desmascarar uma candidatura de direita apoiada pela igreja evangélica, que queria transformar cidadãos em “consumidores de serviços públicos”. As festas na Praça Roosevelt, rebatizada Praça Rosa, com mais de 20 mil pessoas, apesar de “apartidárias”, empurraram o candidato do PT, Fernando Haddad, à vitória nas eleições para prefeito de São Paulo. As tentativas do PSDB em criar seus próprios eventos nos mesmos moldes não conseguiram juntar mais do que 200 apoiadores na praça. Assim, o território virtual segue numa imensa disputa pelos corações e mentes das novas gerações.
A captura pela grande mídia
A tomada das ruas por centenas de milhares de pessoas, contudo, não pode ser atribuída exclusivamente às redes sociais. O conhecido e longamente estudado papel dos oligopólios dos meios de comunicação de massa no imaginário e nas ações das populações tem se destacado mais uma vez. O claro ponto de inflexão foi a semana de 10 de junho, quando a Veja São Paulo trazia que “a cidade” “pagava o pato” pelas manifestações, Arnaldo Jabor chamava os manifestantes de criminosos na Globo e Folha e Estadão trouxeram editoriais exigindo da polícia e dos governos “medidas enérgicas” para devolver aos cidadãos de bem o “direito de ir e vir” com seus carros. Seu enclave simbólico era a avenida Paulista, que não podia ter o tráfego interrompido devido aos diversos hospitais na região. Depois de segunda, 17 de junho, a via tem sido fechada praticamente todas as noites, sem que saiba notícia de um único paciente em ambulância que tenha morrido por causa disso.
A esquerda organizada sempre esteve presente nos movimentos sociais e nas ruas, sem no entanto conseguir contagiar as “massas” depois da redemocratização. E quando conseguia números expressivos de participação popular em marchas que cortaram o país, normalmente era reprimida e jamais devidamente representada nos telejornais. Vereadores e deputados do PT, por exemplo, sofreram o mesmo peso da PM e da Guarda Civil Metropolitana, com bombas de gás e balas de borracha, ombro a ombro com integrantes do MPL quando o ex-prefeito Gilberto Kassab (sucessor de José Serra) aumentou as tarifas de ônibus acima da inflação em 2011. Obviamente isso não saiu no Jornal Nacional.
Mas quando o governador Geraldo Alckmin, do PSDB, manda no dia 13 a cavalaria, a Tropa de Choque e os batalhões do Tático Móvel e Rocam lançarem sua violência indistintamente contra manifestantes, transeuntes e até a grande mídia, ferindo vários jornalistas da Folha de S. Paulo, a coisa muda de figura. É impagável a cena do âncora da Band, Boris Casoy, que teria pertencido no final dos anos 1960 ao Comando de Caça aos Comunistas da Universidade Mackenzie, tendo de admitir, com voz trêmula, que a polícia atirou primeiro e usou força excessiva.
Sem condição de segurar a torrente de vídeos e fotos da violência policial, a imprensa muda de estratégia. As manifestações passam a ser retratadas como grandes contingentes cívicos, pintados de verde e amarelo, tentando segurar pequenos grupos de vândalos desordeiros, esses sim merecedores de gás lacrimogêneo e balas de borracha. Ao mesmo tempo, a pauta muda. Já não se trata mais dos preços das passagens e da repressão oficial que continua a matar nas periferias, mas “contra tudo o que está aí”, “tanta coisa que não cabe num cartaz”, brasileiros patriotas contra os “desmandos” e a “corrupção” do governo, especialmente o Federal. Arnaldo Jabor pede desculpas na CBN por chamar os manifestantes de criminosos para emendar que a causa “real” dos protestos é a insatisfação geral com os governantes e, veja só, a “inflação”.
As pautas oportunistas
Entre todas as pautas oportunistas, no entanto, a escolhida como primeira grande meta é a derrubada no Congresso da Proposta de Emenda Constitucional número 37, a PEC37, que regulamentaria as atividades do Ministério Público.
Chamada maliciosamente de “PEC da Imunidade”, era apresentada como o fim das investigações sobre políticos corruptos. Nenhum grande meio de comunicação disse à população que os partidos contrários à proposta, especialmente DEM e PSDB, estavam entre os três (junto com o PMDB) que tiveram mais parlamentares cassados por corrupção nesse século. Não houve qualquer tipo de discussão ou debate mais profundo sobre o tema, mas em questão de horas dezenas de milhares de cartazes bem feitos, laminados em plástico, e grandes faixas plotadas em material nobre foram distribuídos entre os manifestantes de norte a sul do Brasil. Ninguém disse quem pagou por isso, mas as TVs fizeram questão de mostrar a “reivindicação cívica da população” em seus noticiários e nas bocas dos comentaristas. Pressionado pela mídia, o Congresso votou em peso contra a proposta.
Com o apoio da imprensa, protestos isolados tornam-se catárticos, arregimentando centenas de milhares de pessoas que gritam contra os partidos e levantam bandeiras fascistas que incluem a volta dos militares ao poder, a diminuição da maioridade penal, a pena de morte, a criminalização do aborto…
A eles se somam cartazes contra a importação de médicos estrangeiros, por hospitais com “padrão FIFA”, contra o “ato médico”, por mais saúde e educação, contra o pastor/deputado Marcos Feliciano, pela liberação da maconha, contra a Copa do Mundo, pela prisão dos “mensaleiros”, contra a Usina de Belo Monte, pelo impeachment da presidenta, e uma infinidade de outras. É importante notar, contudo, que os oligopólios midiáticos, assim como a esquerda, não têm controle sobre temas, tamanho ou impacto real das manifestações. Diferente do mundo em que os meios de comunicação de massa unidirecionais produziam um “efeito manada” a seu bel prazer, na sociedade em redes de comunicação em que vivemos, o melhor termo para o que ocorre é o swarming, ou, em português, enxameamento. As ideias se reúnem em grupos como enxames de abelhas, que apesar de terem comportamento semelhantes agem separadamente, com objetivos próprios.
Assim, entender o funcionamento e as dinâmicas de uma população conectada via Internet e usar as mesmas ferramentas é fundamental. Nesse sentido é temeroso o pouco e burocrático uso de canais como o Blog do Planalto e o Twitter da Dilma, que poderiam ter servido de boa ponte direta com a população e com coletivos que iniciaram os protestos. Pior, só a falta de regulamentação dos meios de comunicação, cujas propostas objetivas, sistematizadas nos principais municípios e todos os estados brasileiros no processo da Confecom, em 2009, seguem na gaveta do Ministro Paulo Bernardo. O político, aliás, bem no meio de junho, concedeu longa entrevista à revista Veja, baluarte da imprensa de extrema direita, em que é chamado de “bom petista” ao afirmar que o PT tem “obsessão de censurar a imprensa” e ao endossar a visão de que “os manifestantes estão protestando contra tudo”.
O Governo contra-ataca
Vendo o perigo para o país e para o seu governo, a presidenta Dilma, por outro lado, decide falar diretamente com a população em um pronunciamento em rede nacional na noite de 21 de junho. Ela tenta contemporizar com os mais diversos setores e até certo ponto aceita a pauta “contra tudo” ditada pela mídia, citando a corrupção, as necessidades de melhorias na educação e na saúde e as “minorias truculentas”. Não deixa de falar, contudo, da história de luta pela democracia no país “para que a voz das ruas fosse ouvida”. E aí ela dá os informes essenciais: o anúncio de um pacto pela mobilidade urbana (para atacar a primeira e mais objetiva reivindicação dos protestos); a pressão para a aprovação no Congresso de 100% dos royalties do petróleo para a educação; a importação de médicos para atender melhor a população; e a disponibilidade de receber pessoalmente os representantes dos movimentos organizados, sindicalistas e políticos.
De fato, na segunda 24, ela recebe todos os governadores e prefeitos das capitais para lançar na mesa uma proposta que pode realmente mudar o Brasil: um plebiscito sobre a reforma política que o Congresso, por seus interesses corporativos, não conseguiu votar nos últimos 30 anos. É um gesto político digno de uma grande estadista e que, segundo o especialista em sociedades em rede Manuel Castells, a separa de outros governantes por ser “a primeira líder mundial que presta atenção, que ouve as demandas de pessoas nas ruas”. E ainda, a presidenta levou a oposição, que não poderia dar o braço a torcer, a dizer que consulta popular é antidemocrático. Depois de sentar com representantes do MPL e outros movimentos sociais, de receber os líderes das centrais sindicais e dos partidos aliados, Dilma viu, ainda, a oposição “tão democrática” se recusar a dialogar alegando que o convite foi feito muito em cima da hora.
Melhor do que isso, só se também estivessem na pauta mais visível as questões da violência policial e da democratização dos meios de comunicação. Ambas afetam diariamente a vida de milhões de brasileiros fora da elite econômica. A segunda, no entanto, seria de enorme ajuda nos próximos meses, para desfazer as mentiras disseminadas pela Grande Mídia. A disputa pela narrativa em torno da reforma política e da situação do Brasil e dos brasileiros será brutal. Um aperitivo da batalha midiática que está por vir pode ser visto na virada de junho para julho, com os jornais e revistas de circulação nacional decretando o fim do mandato de Dilma e imensas quedas na sua popularidade, ameaçando a reeleição em 2014.
Os dados, contudo, continuam rolando. Se o plebiscito (praticamente descartado no Congresso) de fato ocorrer ainda esse ano — e para isso temos de ir às ruas e às redes para pressionar o Legislativo e o Judiciário –, será uma oportunidade ímpar de atacar a principal fonte de corrupção política: o financiamento privado de campanhas. A partir daí haverá uma nova correlação de forças dentro do Congresso, com políticos, de todos os partidos, menos atrelados aos poderes econômicos. Com isso, todas as outras pautas tradicionais da esquerda brasileira, como a reforma agrária, a democratização dos meios de comunicação, os orçamentos participativos, a melhor distribuição de renda, a questão da violência policial, a reforma urbana, o direito ao transporte, saúde e educação gratuitos, a igualdade de gêneros, a memória histórica e punição dos crimes da ditadura, entre outras, poderão ser debatidas com muito mais transparência e democracia.
Junho acabou com o embate político empatado. O início de julho esfriou os ânimos e o Congresso decretou recesso “branco” dia 17. Não houve um golpe rápido como no Paraguai, mas sua possibilidade ainda não pode ser ignorada.
Sem dúvida, a imagem da presidenta, e de todos os outros políticos, sofreu algum arranhão. Se bem que é cedo para a oposição cantar vitória e Dilma já havia demonstrado que responde melhor sob pressão. No Rio de Janeiro, a polícia continua batendo na Zona Sul e matando nas favelas. Os médicos mostram todo o seu corporativismo na Paulista. E a nave segue.
O MPL entornou a garrafa e já não importa chorar sobre o leite derramado. É hora dos verdadeiros democratas buscarem, nas ruas e nas redes, ouvir e falar com a massa dos brasileiros para impulsionar, também nas ruas e nas redes, as pautas que verdadeiramente interessam à maior parte da população. Para isso, temos de ser mais ágeis e criativos do que os detentores dos grandes veículos de comunicação, usando melhor do que eles os meios que nos restam: os digitais e o bom e velho boca a boca.
Este texto foi publicado originalmente no jornal Ideias em Revista, do SISEJUFE-RJ (www.sisejufe.org.br)
Fonte: http://outraspalavras.net/
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