Sou todo ouvidos...
Ainda abrigado no aeroporto de Sheremetyevo, em Moscou, o procurado americano de 29 anos, ex-CIA, delator do esquema orwelliano de vigilância, voltou à imprensa internacional pela primeira vez nessa sexta-feira com uma carta. Começava assim: “Olá. Meu nome é Ed Snowden. Há um mês, eu tinha uma família, uma casa no paraíso. Também tinha a capacidade de, sem nenhuma permissão, vasculhar, ler e apreender suas comunicações. A comunicação de qualquer um, a qualquer hora. Esse é o poder de mudar o destino das pessoas”.
Publicada no WikiLeaks, a carta foi lida ao lado de ativistas da Anistia Internacional e do Human Rights Watch. Trazia também um pedido às autoridades russas. Acossado num jogo de espiões, Edward Snowden quer asilo político temporário na terra de Putin. Após a saga mirabolante Havaí-Hong Kong-Moscou, o ex-técnico do Serviço Secreto americano tropeçou na impossibilidade de cruzar os céus europeus para desembarcar num dos países latino-americanos que lhe ofereceram refúgio diplomático, como Bolívia e Venezuela.
Desde junho, quando Snowden revelou as traquinagens da agência americana NSA no monitoramento – os bons e velhos grampos, mas também o upgrade no xeretar de e-mails, perfis de Facebook e afins – de milhões de cidadãos no mundo, uma atmosfera quase paranoica dominou a rede. Além dos diplomatas europeus e outros políticos furiosos com a bisbilhotice, uns arriscaram humor, como mostram os cartazes da capa do Aliás. Outros partiram para alternativas inusitadas: um bureau do Serviço Secreto russo decidiu trocar os computadores por antigas máquinas de escrever; uma ministra venezuelana fez um apelo aos compatriotas para saírem do Facebook. No Brasil, que nessa semana também se descobriu alvo da espionagem, a presidente Dilma Rousseff reagiu: “Isso é violação de soberania”.
“A internet é uma das mais importantes ferramentas para garantir a liberdade e o livre fluxo de informação. Mas vivemos numa atmosfera política de control freaks. Os governos controlam não só o território físico, mas a própria informação”, critica o hacker alemão Andy Müller-Maguhn, porta-voz da associação hackativista Chaos Computer Club. “Na ética hacker, a ideia é divulgar informações públicas e proteger informações particulares”, diz, sobre a questão da vigilância.
Com Julian Assange, Müller-Maguhn assina Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet (Boitempo, 2013), livro elaborado a partir de reflexões com os companheiros rebeldes Jacob Appelbaum e Jérémie Zimmermann no programa The World Tomorrow. Ele também faz parte da Wau Holland Foundation, a principal coletora de fundos do WikiLeaks. De Berlim, após uma viagem a Londres para visitar Assange na embaixada equatoriana, Müller-Maguhn deu esta entrevista ao Aliás.
Nessa semana, vimos que o Brasil também era um dos alvos da NSA. Para muitos, foi uma surpresa. É surpreendente para o sr.?
A NSA está basicamente tentando interceptar o máximo de países possíveis, então não é surpreendente que o Brasil tenha se tornado um alvo. Além disso, devido a sua posição econômica significativa na América Latina, era esperado que o país se tornasse alvo preferencial.
Especialistas dizem que as leis brasileiras não estão prontas (ou não são sofisticadas o bastante) para garantir e lidar com os direitos na internet. Há um país que poderia nos oferecer um modelo nesse quesito?
A Alemanha tem um monte de leis relacionadas às questões da internet, mas muitas delas foram revisadas e reescritas. Para compreender essa questão, a chave é que muitos políticos nasceram num tempo em que o rádio e a TV eram as mídias primárias – e esses políticos ainda têm dificuldade para entender uma sociedade que literalmente “vive” na internet. Quando discutimos a internet, esses conceitos simplesmente não funcionam. Passamos a ter expectativas sobre a transparência dos governos, que deveriam proporcionar as informações necessárias para os cidadãos de uma, afinal, sociedade da informação. Como a internet se tornou o locus primário para os processos sociais, econômicos e culturais no mundo moderno, é preciso ter um entendimento não só da própria internet, mas sobre as limitações, as possibilidades e as questões tecnológicas que precisam de uma legislação especial. A legislação alemã está caminhando na linha tentativa e erro nessa área. Em parte, porque os alemães tentaram aplicar conceitos das antigas mídias à internet – e falharam. Eu não diria para não “copiar” esse modelo. É possivelmente um bom caso de estudo, para descobrir quais erros foram cometidos e como aprender com esses erros.
Delator do monitoramento da NSA, Edward Snowden deu um belo drible nos EUA…
Snowden está se expondo a muitos riscos, mas acredito que tenha dedicado muito tempo a pensar direitinho o que ia fazer, o que é muito bom. Mas, como neste momento sua situação ainda é uma incógnita, não sei como avançará e se avançará com segurança, prefiro não comentá-la.
A ‘caçada’ a Snowden respingou na diplomacia internacional, após a parada aérea de Evo Morales. François Hollande, por exemplo, criticou os grampos americanos e exigiu providências – mas a França foi um dos países que barraram o presidente boliviano. Como compreender isso?
Fechar o espaço aéreo europeu para o avião de Morales, sob óbvias pressões dos EUA, foi uma das atitudes mais bizarras que vi nos últimos tempos. De fato, por suas relações, os EUA são capazes de mexer os pauzinhos na realidade administrativa de muitos, para não dizer a maioria, dos países europeus – e essas manobras se tornaram muito óbvias. Fico especialmente envergonhado pelos políticos alemães, que também parecem estar mais preocupados com o bem-estar dos aliados americanos que com os interesses dos cidadãos europeus, que, aliás, deveriam ser protegidos dessas espionagens. Elas violam os direitos humanos garantidos nas Constituições europeias. Além disso, a Alemanha recusou o pedido de asilo político de Snowden. Políticos alemães disseram publicamente que não viam Snowden como uma cidadão caçado por “razões políticas”, desculpa tão bizarra quanto fechar o espaço aéreo sob a suspeita de que Snowden estivesse no avião de Morales.
Entre outros tópicos, Cypherpunks, de sua autoria, aborda a questão da comunicação e da vigilância. Com o progresso da tecnologia da comunicação, seremos todos vigiados?
O protocolo básico da internet e a maioria dos serviços construídos nessa plataforma estão ancorados no envio de informações não criptografadas, quer dizer, de pacotes de dados “limpos” ao redor do mundo. Isso basicamente significa que, quando processos sociais, econômicos e culturais são operados na rede, eles se tornam facilmente acessíveis por terceiros. Para impedir essas intercepções, seria muito importante criptografar e minimizar o fluxo de informações.
No primeiro momento do escândalo, Barack Obama disse: é impossível ter 100% de segurança e 100% de privacidade. Ainda assim, os EUA se dizem grandes defensores da ideia de liberdade. É possível ter liberdade numa sociedade orwelliana?
No primeiro momento do escândalo, Barack Obama disse: é impossível ter 100% de segurança e 100% de privacidade. Ainda assim, os EUA se dizem grandes defensores da ideia de liberdade. É possível ter liberdade numa sociedade orwelliana?
Não tenho ideia do que a atual definição de “liberdade” possa significar nos EUA. Eles se dão a liberdade de interceptar e interferir na comunicação de quase todos no planeta Terra. Seria um passo importante restabelecer alguma razão no campo da segurança, mas sem usar a propaganda da “liberdade” – e sem abusar de outros termos, como “terrorismo”. Também seria importante não cair no esquema simplista de uma struggle strategy, isto é, uma estratégia da tensão em que as agências de inteligência se permitem cometer atos de terrorismo e violência para organizar uma sociedade que pede por vigilância de instituições que falham na transparência e no controle democrático.
Mas é possível garantir privacidade para os fracos e exigir transparência para os poderosos?
Penso que é absolutamente possível vislumbrar uma sociedade em que o equilíbrio entre transparência e privacidade se torne uma realidade. A visão de Wau Holland, o fundador do Chaos Computer Club, era ter um esquema de governo “legível” por máquinas – ao contrário de uma sociedade civil “legível” por máquinas. Precisamos de políticas ajustadas para proporcionar transparência nesses processos, que afetam tanto a sociedade e precisam estar sujeitos a processos de controle democrático. Sem transparência, não é possível termos decisões bem fundamentadas. O esquema de política básica, tal como definimos na ética hacker, é “divulgar informações públicas, proteger informações particulares”.
Como analisa os leaks do Anonymous? Revelar informações pessoais dos poderosos também não é uma violação de privacidade?
Sim. De fato, a revelação de informações pessoais (para revelar crimes, expor subornos e divulgar operações de espionagem de agências, entre outros contextos) às vezes afeta a privacidade das pessoas envolvidas. Mas penso que é importante analisar cuidadosamente as informações, para julgar se são de interesse público e se realmente merecem ser reveladas. Infelizmente, o âmbito das ações do Anonymous não se limita às atividades com as quais eu concordaria. Por exemplo, eles extrapolam com atividades de espiões governamentais atuando como “provocadores” para contaminar protestos políticos. Às vezes, também estão entre os Anonymous apenas uns adolescentes que ainda não têm um senso de humor “inteligente”.
E a vigilância de impérios midiáticos, como o News of the World de Rupert Murdoch? É diferente ser vigiado por governo ou mídia?
Certamente, é muito importante compreender que os perigos da vigilância não advêm apenas das instituições governamentais. O uso de informações interceptadas (no contexto de espionagem econômica, nas oscilações de ações no mercado financeiro e a habilidade de usar informações em campanhas difamatórias, midiáticas e políticas, por exemplo) acontece com os grandes conglomerados midiáticos, inclusive com a cooperação de agências de inteligência e informantes específicos dessas companhias. De fato, se você observar a Fox News e outros business, o império de Murdoch é um excelente exemplo do uso de informações, obtidas por oficiais de inteligência, por uma companhia midiática. É importante notar que Murdoch em parte assumiu o papel de Robert Maxwell, cujo império midiático foi quase inteiramente construído reciclando informações de agências de inteligência.
Que futuro o sr. imagina para a internet?
A internet é uma das mais importantes ferramentas para garantir a liberdade de informação (o acesso) e o livre fluxo de informação (a possibilidade de se comunicar com os outros livremente, além das fronteiras geográficas). Mas, muitas vezes, os governos não parecem ter um papel muito útil nem no garantir a liberdade, nem no livre fluxo. Vivemos atualmente numa atmosfera política composta por neuróticos que estão acostumados a ter tudo supervisionado por uma central de controle. Muitos governos tentam controlar não apenas o território físico de sua responsabilidade, mas a própria informação e a atmosfera comunicativa em que os cidadãos estão. São “control freaks”.
* Publicado originalmente no suplemento Aliás do jornal
O Estado de S. Paulo, em 13 de julho de 2013.
O Estado de S. Paulo, em 13 de julho de 2013.
Andy Müller-Maguhn é veterano do Chaos Computer Club, cofundador da European Digital Rights (Edri) e representante europeu eleito do Icann, responsável pela elaboração de políticas internacionais para a determinação de “nomes e números” na internet. Trabalha atualmente com a criptografia nas telecomunicações e a investigação sobre a indústria da vigilância. Escreveu, em conjunto com Julian Assange, Jacob Appelbaum e Jérémie Zimmermann, Cypherpunks: liberdade e o futuro da internet (Boitepmpo, 2013).
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