A construção em abismo da história
[Carlos Alberto Augusto, ex-agente do Dops, posa para fotos
em manifestação de 15.03.2015]
[Em depoimento à TV Trip, o delegado apelidado de “Carlinhos Metralha” afirmou que conheceu pessoalmente “muitos dos delinquentes que estão aí hoje… não metralhei porque não tive essa oportunidade. Se tivesse, o faria com o maior prazer.”
[Em depoimento à TV Trip, o delegado apelidado de “Carlinhos Metralha” afirmou que conheceu pessoalmente “muitos dos delinquentes que estão aí hoje… não metralhei porque não tive essa oportunidade. Se tivesse, o faria com o maior prazer.”
Cinco décadas após o Golpe Militar de 1964, duas de ditadura
e três de democracia, o país vive a publicização dos trabalhos de apuração do
período ditatorial. São os relatórios das comissões da verdade em suas várias
instâncias. No último dia 12 de março foi lançado o Relatório da Comissão da
Verdade Rubens Paiva, do Estado de São Paulo. Em pouco mais de dois anos de
trabalhos, especialmente focados nos casos de mortos e desaparecidos, a Comissão
teve como método principal de reconstituição da história a audição das pessoas
que viveram o período.
No material
publicado constam narrativas de sobreviventes, testemunhas,
militantes, ex-presos políticos, familiares de vítimas, pessoas que eram
crianças e adolescentes na época. Centenas de documentos, publicação aberta de
livros e a biografia dos mortos e desaparecidos na ditadura estão entre os
principais conteúdos do Relatório. O primeiro capítulo se dedica a elencar
recomendações para as instituições do Estado de Direito, seja para as políticas
de memória, seja para cobrar a ausência de atos de justiça, com a
reinterpretação da Lei de Anistia e a punição dos torturadores.
Uma característica forte deste documento é a relação feita
entre a repressão e a violência do período ditatorial e a repetição de certa
estrutura autoritária na democracia. Os mecanismos de repressão policial, de
acobertamento destas ações por parte de outras instituições e a presença de um
discurso legitimador da violência do Estado são identificados como estruturas
que permanecem em democracia, tendo como alvo principal a população pobre da
periferia. No ato de lançamento do Relatório estavam lado a lado familiares das
vítimas da ditadura e familiares das vítimas do estado democrático. À Comissão
de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos juntou-se o movimento Mães de
Maio para denunciar a presença de um projeto político autoritário presente e
forte no país.
Apesar do tom de vitória, afinal são estes os anos em que
apuramos minimamente o que foi a ditadura militar, percebe-se naquilo que não
foi dito a ausência do alívio e da conclusão da elaboração de um luto.
Constata-se que o Estado brasileiro não abriu seus arquivos
e que as informações das Forças Armadas continuam sonegadas no debate público.
Navegando pelas biografias das vítimas fatais da ditadura percebe-se que há
versões diferentes para um mesmo indivíduo, ou mesmo dúvidas sobre as
circunstâncias de suas mortes. No caso dos desaparecidos políticos, muito
continua ainda em aberto em função da ausência de seus corpos, de suas
histórias… Os poucos que foram resgatados das valas clandestinas nas quais a
ditadura os lançou tiveram esta sorte única e exclusivamente por conta do
esforço e da ação individual dos seus familiares. O Estado até agora não
localizou ou identificou um único desaparecido. Em 2015, não temos um único
torturador condenado em juízo penal. Poucos são os processos. A história
contada hoje é aquela sem vida, sem presença no fluxo de nossas existências.
Correm o sério risco de ficarem empoeiradas nos museus e nas teses acadêmicas.
Os trabalhos das comissões da verdade, as várias instaladas
no país desde 2012, configuram-se como construções em abismo. É como se todo o
esforço de apuração tivesse chegado à constatação do vazio da experimentação
deste passado recente. Abismo porque quanto mais se lança em direção à chamada
verdade, mais se confirma que nada será desvelado. A memória que se constrói é
a do irrealizável acesso às informações determinantes dos acontecimentos. É
aquela que a “correlação de forças permitiu”. A avaliação que se extrai é a de
que certo projeto político autoritário permanece atuante e segue ainda mais
fortalecido. Aos familiares de vítimas da ditadura a construção em abismo vem a
corroborar a sensação de que vivem a impossibilidade do luto e de que sua luta
terminará apenas com a própria morte de suas existências.
Quanto mais se deslocam no tempo, menos potência temos para
fazer daqueles eventos uma experiência. O abismo seria a cena do anjo de Paul
Klee, como observou Walter Benjamin, que sofre o sopro do progresso impedindo a
compreensão das ruínas da história.
Este vazio da experiência torna-se ainda mais concreto nas
manifestações alienadas e conservadores dos últimos dias. Assistir à encenação
do discurso de polarização da luta política é, de certo modo, a vitória dos
golpes contra a democracia. Não há golpismo a caminho, nós já fomos atingidos.
Quando a história se apresenta fria, sintetizada pelos pactos políticos, sem a
pulsação das ruas é porque a potência da ação política de criar novos caminhos
foi golpeada. Assistir jovens serem espancados e presos pela polícia em
manifestações contra aumento da tarifa do transporte, neste contexto de
ocultação da experiência vivida pela geração desaparecida na ditadura, é o
sinal de que não há o que comemorar. Estes relatórios servem como ferramentas
para a repetição de velhos questionamentos, para os quais mesmo que não se
tenha respostas, precisam ser feitos e refeitos:
Onde está André Grabois?*
Onde está Amarildo?
Onde estão?
Neste abismo entre o passado e o futuro é sempre bom lembrar
de Hannah Arendt, para quem os “tempos sombrios” podem ser a abertura para
processos criativos.
* André Grabois é meu tio, desaparecido na Guerrilha do
Araguaia, provavelmente no final do ano de 1973. Conferir a parte conhecida de
sua história no portal desaparecidospoliticos.org.br.
***
Edson Teles é doutor em filosofia pela Universidade de São
Paulo (USP), é professor de filosofia política na Universidade Federal de São
Paulo (Unifesp).
Fonte: http://blogdaboitempo.com.br/2015/03/18/a-construcao-em-abismo-da-historia/
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