Leon Trotsky e a arte revolucionária
Pelo 80º aniversário de sua morte
Há oitenta anos, em agosto de 1940, Leon Davidovich Trotsky foi assassinado no
México por Ramon Mercader, um fanático agente da GPU stalinista. Este trágico
acontecimento é amplamente conhecido hoje, muito além das fileiras dos
partidários de Trotsky, graças, entre outras coisas, ao romance O Homem que Amava Cães, do
escritor cubano Leonardo Padura...
Revolucionário de outubro de 1917, fundador do Exército Vermelho, adversário
inflexível do stalinismo, fundador da Quarta Internacional, Leon Davidovich
Bronstein trouxe contribuições essenciais ao pensamento e à estratégia
marxista: a teoria da revolução permanente, o programa de transição, análise de
desenvolvimento desigual e combinado – entre outros. Sua História da
Revolução Russa (1930) se tornou uma referência essencial: apareceu entre
os livros de Che Guevara nas montanhas bolivianas. Muitos de seus escritos
ainda podem ser lidos no século XXI, enquanto os de Stalin e Zhdanov estão
esquecidos nas prateleiras mais empoeiradas das bibliotecas. Podemos criticar
algumas de suas decisões (Kronstadt!) e contestar o autoritarismo de certos
escritos dos anos 1920-21 (como Terrorismo e Comunismo, 1920); mas não
podemos negar seu papel como um dos maiores revolucionários do século XX.
León Trotsky também foi um homem de grande cultura. Seu pequeno livro Literatura
e Revolução (1924) é um exemplo marcante de seu interesse pela poesia,
literatura e arte. Mas há um episódio que ilustra melhor do que qualquer outro
essa dimensão do personagem: a elaboração, com André Breton, de um manifesto
sobre a arte revolucionária. Este é um raro documento de inspiração “marxista
libertária”. Nesta breve homenagem ao aniversário da sua morte, recordemos este
episódio fascinante.
Durante o verão de 1938, Breton e Trotsky se encontraram no México, aos pés dos
vulcões Popocatepetl e Ixtacciuatl. Este histórico encontro foi preparado por
Pierre Naville, ex-surrealista, dirigente do movimento trotskista na França.
Apesar de uma violenta controvérsia com Breton em 1930, Naville escrevera a
Trotsky em 1938, recomendando Breton como um homem valente que não hesitou, ao
contrário de tantos outros intelectuais, em condenar publicamente a infâmia dos
Processos de Moscou. Trotsky tinha, portanto, concordado em receber Breton e
este, com sua companheira Jacqueline Lamba, embarcaram para o México. Trotsky
vivia na época na Casa Azul, que pertencia a Diego Rivera e Frida Kahlo, dois
artistas que compartilharam suas ideias e que o receberam com calorosa
hospitalidade (infelizmente, eles se desentenderiam poucos meses depois). Foi
também nesta enorme casa localizada no distrito de Coyoacán que Breton e seu
companheiro foram hospedados durante a estada.
Foi um encontro surpreendente, entre personalidades aparentemente situadas nos
antípodas: uma, herdeira revolucionária do Iluminismo, a outra, instalada na
cauda do cometa romântico; um, fundador do Exército Vermelho, o outro,
iniciador da Aventura Surrealista. A relação entre eles era bastante desigual:
Breton tinha enorme admiração pelo revolucionário de outubro, enquanto Trotsky,
embora respeitasse a coragem e a lucidez do poeta – um dos raros intelectuais
franceses de esquerda a se opor ao stalinismo – tinha algumas dificuldades para
entender o surrealismo… Ele pedira ao seu secretário, Van Heijenoort, que lhe
fornecesse os principais documentos do movimento e os livros de Breton, mas
esse universo intelectual era estranho a ele. Seus gostos literários o levaram
mais aos grandes clássicos realistas do século 19 do que às experiências
poéticas incomuns dos surrealistas.
No início o encontro foi muito caloroso: segundo Jaqueline Lamba – companheira
de Breton, que o acompanhou ao México, entrevistada por Arturo Schwarz: “Todos
ficamos muito emocionados, até Lev Davidovich. Sentimo-nos imediatamente
bem-vindos de braços abertos. L.D. ficou muito feliz em ver o André. Ficou
muito interessado”. No entanto, essa primeira conversa quase deu errado…
Segundo o testemunho de Van Heijenoort: “O velho rapidamente começou a discutir
a palavra surrealismo, para defender o realismo contra o surrealismo. Ele
entendeu por realismo o significado preciso que Zola deu a esta palavra. Ele
começou a falar sobre Zola. Breton a princípio ficou um tanto surpreso. No
entanto, ele ouviu com atenção e soube encontrar as palavras para destacar
certos traços poéticos na obra de Zola.” (Entrevista de Van Heijenoort com
Arturo Schwarz). Outros assuntos polêmicos surgiram, notadamente sobre o tema
do “hasard objectif”, caro aos surrealistas. Foi um mal-entendido curioso:
enquanto para Breton era uma fonte de inspiração poética, Trotsky a via como um
questionamento do materialismo…
E, no entanto, a corrente passou, o russo e o francês encontraram uma linguagem
comum: internacionalismo, revolução, liberdade. Jacqueline Lamba fala com razão
de uma afinidade eletiva entre os dois. As conversas ocorreram em
francês, que Lev Davidovich falava fluentemente. Eles viajarão juntos pelo
México, visitando os lugares mágicos das civilizações pré-hispânicas e
praticando, imersos nos rios, a pesca à mão. Nós os vemos conversando
amigavelmente em uma foto famosa, sentados próximos uns dos outros em um
matagal, descalços, após uma dessas pescarias.
Deste encontro, da fricção dessas duas pedras vulcânicas, surgiu uma fagulha
que ainda brilha: o Manifesto por uma Arte Revolucionária Independente. De
acordo com Van Heijenoort, Breton apresentou uma primeira versão e Trotsky
recortou esse texto colando sua própria contribuição (em russo). É um texto
comunista libertário, antifascista e alérgico ao stalinismo, que proclama a
vocação revolucionária da arte e sua necessária independência em relação aos
Estados e aos aparatos políticos. Ele pedia a criação de uma Federação
Internacional de Arte Revolucionária Independente (FIARI).
A ideia do documento partiu de Leon Trotsky, que foi imediatamente aceita por
André Breton. Foi um dos poucos, senão o único documento a quatro mãos, escrito
pelo fundador do Exército Vermelho. Produto de longas conversas, discussões, trocas
e, sem dúvida, alguns desentendimentos, foi assinado por André Breton e Diego
Rivera, o grande pintor mural mexicano, na época fervoroso defensor de Trotsky
(eles se desentenderão logo depois). Essa pequena mentira inofensiva se devia à
crença do velho bolchevique de que um Manifesto sobre a arte deveria ser
assinado apenas por artistas. O texto teve forte tom libertário, notadamente na
fórmula, proposta por Trotsky, proclamando que, em uma sociedade
revolucionária, o regime dos artistas deveria ser anarquista, ou seja,
baseado na liberdade ilimitada. Em outra passagem famosa do documento, é
proclamada “toda licença na arte”. Breton propôs acrescentar “exceto contra a
revolução proletária”, mas Trotsky propôs eliminar este acréscimo! Conhecemos a
simpatia de André Breton pelo anarquismo, mas curiosamente, neste Manifesto, é
Trotsky quem escreveu as passagens mais “libertárias”.
O Manifesto afirma o destino revolucionário da arte autêntica, isto é, aquela
que “opõe os poderes do mundo interior” contra “a realidade presente e
insuportável”. Foi Breton ou Trotsky quem formulou essa ideia, sem dúvida
extraída do repertório freudiano? Pouco importa, já que os dois
revolucionários, o poeta e o lutador, conseguiram chegar a um acordo no mesmo
texto.
O documento guarda, em seus princípios fundamentais, uma atualidade
surpreendente, mas não sofre menos de certas limitações, talvez devido à
conjuntura histórica de sua redação. Por exemplo, os autores denunciam, com
grande acuidade, as restrições à liberdade dos artistas, impostas pelos
Estados, em particular (mas não apenas) pelos Estados totalitários. Mas,
curiosamente, perde uma discussão, e uma crítica, dos obstáculos que resultam
do mercado capitalista e do fetichismo da mercadoria… O documento cita uma
passagem do jovem Marx, afirmando que o escritor “não deve em caso algum viver
e escrever só para ganhar dinheiro”; no entanto, em seu comentário sobre essa
passagem, em vez de analisar o papel do dinheiro na corrupção da arte, os dois
autores se limitam a denunciar as “restrições” e “disciplinas” que se tenta
impor aos artistas em nome da “razão de Estado”. É ainda mais surpreendente que
não se possa duvidar do anti-capitalismo visceral dos dois: não teria Breton
qualificado Salvador Dali, que se tornou um mercenário, como um “Avida
Dollars”?[
i] Encontramos a mesma lacuna no prospecto da revisão da FIARI (Clé),
que clama pelo combate ao fascismo, ao stalinismo e … à religião: o capitalismo
está ausente.
O Manifesto concluiu, como vimos, com um apelo à criação de um amplo movimento,
uma espécie de Internacional dos Artistas, a Federação Internacional para uma
Arte Revolucionária Independente (FIARI), incluindo todos aqueles que se
reconhecem no espírito geral de documento. Em tal movimento, escrevem Breton e
Trotsky, “os marxistas podem andar aqui de mãos dadas com os anarquistas (…)
desde que ambos rompam implacavelmente com o espírito policial reacionário,
seja representado por Joseph Stalin ou por seu vassalo Garcia Oliver”. Esse
apelo à unidade entre marxistas e anarquistas é um dos aspectos mais
interessantes do documento e um dos mais atuais, um século depois.
Entre parênteses: a denúncia de Stalin, qualificada pelo Manifesto como “o mais
pérfido e perigoso inimigo” do comunismo, era essencial, mas seria preciso
tratar o anarquista espanhol García Oliver, companheiro de Durruti, o dirigente
histórico da CNT-FAI, o herói da resistência antifascista vitoriosa em
Barcelona em 1936, de seu “vassalo”? É certo que foi ministro (renunciou em
1937) do primeiro governo da Frente Popular (Largo Caballero); e seu papel em
maio de 1937, durante a luta em Barcelona entre stalinistas e anarquistas
(apoiados pelo POUM), negociando uma trégua entre os dois campos, era muito
questionável. Mas isso não o torna um capanga do Bonaparte soviético…
A FIARI foi fundada logo após a publicação do Manifesto; conseguiu reunir não
apenas os partidários de Trotsky e os amigos de Breton, mas também anarquistas
e escritores ou artistas independentes. A Federação tinha uma publicação, a
revista Clé, editada por Maurice Nadeau, na época um jovem militante
trotskista com grande interesse pelo surrealismo (tornou-se autor, em 1946, da
primeira Histoire du Surréalisme). O gestor foi Léo Malet e o Comité
Nacional era composto por: Yves Allégret, André Breton, Michel Collinet, Jean
Giono, Maurice Heine, Pierre Mabille, Marcel Martinet, André Masson, Henry
Poulaille, Gérard Rosenthal, Maurice Wullens. Entre os participantes
encontramos: Yves Allégret, Gaston Bachelard, André Breton, Jean Giono, Maurice
Heine, Georges Henein, Michel Leiris, Pierre Mabille, Roger Martin du Gard,
André Masson, Albert Paraz, Henri Pastoureau, Benjamin Péret, Herbert Read,
Diego Rivera, Léon Trotsky… Esses nomes dão uma ideia da capacidade da FIARI de
associar personalidades políticas, culturais e artísticas bastante diversas.
A revista Clé só teve 2 edições: o nº 1 apareceu em janeiro de 1939 e
o nº 2 em fevereiro de 1939. O editorial do nº 1 intitulava-se “Pas de
patrie!”, e denunciava a repressão e internamento de imigrantes estrangeiros pelo
governo Daladier: uma questão muito atual em 2018! A FIARI foi uma bela
experiência “marxista libertária”, mas de curta duração: em setembro de 1939, o
início da Segunda Guerra Mundial pôs fim, de fato, à Federação.
Post-scriptum: em 1965, nosso amigo Michel Lequenne, na época um dos dirigentes
do PCI, o Partido Comunista Internacionalista, seção francesa da Quarta
Internacional, propôs ao Grupo Surrealista uma refundação da FIARI. Parece que
a ideia não desagradou André Breton, mas acabou por ser rejeitada por uma
declaração coletiva, datada de 19 de abril de 1966 e assinada por Philippe
Audoin, Vincent Bounoure, André Breton, Gérard Legrand, José Pierre, Jean
Schuster – pelo Movimento Surrealista.
Nota bibliográfica: o livro de Arturo Schwarz, André Breton, Trotsky et
anarchie (Paris, 18/10/1974) contém não apenas o texto do Manifesto FIARI,
mas também todos os escritos de Breton sobre Trotsky, bem como uma introdução
histórica substancial de 100 páginas pelo autor, que foi capaz de entrevistar o
próprio Breton, Jacqueline Lamba, Van Heijenoort e Pierre Naville. Um dos
documentos mais comoventes desta coleção é o discurso feito por Breton no
funeral em Paris em 1962 para Natalia Sedova Trotsky. Depois de prestar
homenagem a esta mulher cujos olhos viveram “as batalhas mais dramáticas entre
a sombra e a luz”, concluiu com esta esperança obstinada: chegará o dia em que
não só se fará justiça a Trotsky, mas também “às ideias pelas quais deu sua
vida “.
Michael Löwy é diretor de pesquisas do Centre National de la Recherche
Scientifique.
Tradução de Artur Scavone publicada originalmente em 'A Terra é Redonda'
[
i] NT – Na comunidade artística Dalí recebeu esse apelido por sua
suposta ganância. Foi chamado de “Avida Dollars”, um trocadilho com seu nome.
Fonte: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Memoria/Leon-Trotsky-e-a-arte-revolucionaria/51/48409
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