O retorno do zapatismo no México
Após um período de poucas intervenções, o subcomandante Marcos reapareceu com seu verbo e com ação para reinstalar o movimento zapatista no horizonte da agenda política do recém- eleito presidente Enrique Peña Nieto, cuja vitória marcou o retorno do Partido Revolucionário Institucional (PRI) ao poder. Em uma marcha realizada dia 21 de dezembro, da qual participaram cerca de 40 mil pessoas, Marcos divulgou um comunicado dizendo: "Escutaram? É o som de seu mundo desmoronando, é o do nosso ressurgindo".
Cidade do México – Dezembro é o mês dos levantes. Ao término de um largo período de poucas intervenções, o subcomandante Marcos reapareceu com sua prosa e com a ação para instalar o movimento zapatista no horizonte da agenda política do recém- eleito presidente Enrique Peña Nieto, cuja vitória marcou o retorno do Partido Revolucionário Institucional (PRI) ao poder, após 12 anos na oposição.
Já se passaram cerca de duas décadas desde que, logo após a meia noite de 31 de dezembro de 1993, o então presidente mexicano Carlos Salinas de Gortari ingressou no ano de 1994 com um brinde aguado: estava festejando o ano novo e a entrada em vigor do Tratado de Livre Comércio da América do Norte quando o ministro da Defesa da época o informou que um grupo armado acabava de tomar a localidade de San Cristóbal de las Casas e vários pontos de Chiapas, o Estado situado ao sul da península de Yucatã.
O Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) impôs-se na política mexicana junto a seu líder, o subcomandante Marcos. O subcomandante e os zapatistas romperam o modelo dos tradicionais grupos revolucionários latino-americanos: eram majoritariamente indígenas e seu discurso e suas demandas estavam distantes das entonações marxistas, desenhando uma exigência democrática para um México que ainda era governador ininterruptamente pelo PRI. Os combates daquele primeiro levante duraram quase duas semanas ao final das quais houve centenas de mortos. Salinas de Gortari decretou um cessar-fogo e o subcomandante Marcos ganhou a batalha, não com as armas, mas sim com as palavras.
Em um inesquecível comunicado dirigido à imprensa, Marcos respondeu ao suposto “perdão” oferecido pelo governo federal: Do que devemos pedir perdão? Do que vão nos perdoar? De não morrermos de fome? De não nos calarmos em nossa miséria? De não ter aceitado humildemente a gigantesca carga histórica de desprezo e abandono? De termos nos levantado em armas quando encontramos todos os outros caminhos fechados? De não termos observado o Código Penal de Chiapas, o mais absurdo e repressivo do qual se tem memória? De ter demonstrado ao resto do país e ao mundo inteiro que a dignidade humana ainda vive e está presente em seus habitantes mais empobrecidos? De termos nos preparado bem e de forma consciente antes de iniciar? De ter levado fuzis para o combate, no lugar de arcos e flechas. De ter aprendido a lutar antes de fazê-lo? De todos sermos mexicanos? De sermos majoritariamente indígenas? De chamar todo o povo mexicano a lutar de todas as formas possíveis em defesa do que lhes pertence? De lutar pela liberdade, democracia e justiça? De não seguir os padrões das guerrilhas anteriores? De não nos rendermos? De não nos vendermos? De não nos trairmos?
Denso, legítimo, inapagável. Transcorreram quase vinte anos, houve muitos mortos em Chiapas, repressão, matanças como as Acteal (com 45 indígenas assassinados), centenas de páginas da prosa literária com a qual o subcomandante Marcos seduziu o mundo, um enorme terremoto político no México e, sobretudo, o fim do mandato interrompido do PRI e a chegada ao poder de outra força política, o conservador Partido da Ação Nacional (PAN), que governou o México durante dois mandatos consecutivos: Vicente Fox (2000-2006) e Felipe Calderón (2006-2012).
O PRI retornou ao poder em dezembro de 2012, após seu candidato, Enrique Peña Nieto, ganhar as eleições presidenciais de julho do ano passado. E com o PRI voltou também o zapatismo, com a ação e a palavra. Após um longo período de recesso, o Exército Zapatista de Libertação Nacional irrompeu no espaço público em dois tempos: primeiro, no dia 21 de dezembro com uma mobilização silenciosa da qual participaram 40 mil pessoas com o rosto coberto com o gorro popularizado pelo subcomandante. Marcos divulgou um comunicado nesta marcha zapatista que percorreu várias comunidades dizendo: Escutaram? É o som de seu mundo desmoronando, e o do nosso ressurgindo. A marcha do dia 21 foi a maior mobilização protagonizada pelos zapatistas desde que pegaram em armas no dia 1º de janeiro de 1994.
A escolha da data não foi casual: coincidiu com o décimo-quinto aniversário do massacre de Acteal perpetrado por paramilitares e no qual morreram 45 indígenas, em sua grande maioria mulheres e crianças. O governo mexicano atribuiu à matança a um conflito étnico e condenou 20 indígenas. Após 11 anos de prisão, os acusados recuperaram a liberdade devido a irregularidades no processo.
O segundo tempo da instalação do zapatismo na agenda política foi assumido pelo subcomandante Marcos mediante duas cartas e um copioso comunicado nos quais, com sua verve habitual, entre crítico, poético e guerreiro, interpela e despedaça a classe política em seu conjunto, esquerda e direita, os meios de comunicação e o presidente Enrique Peña Nieto, a quem exige que cumpra com os acordos de San Andrés (Acordos de San Andrés sobre Direitos e Cultura Indígena firmados em 16 de fevereiro de 1996 pelo governo mexicano do presidente Ernesto Zedillo e pelo EZLN).
Estes textos que figuram nas cartas do Comitê Clandestino Revolucionário Indígena são os primeiros em extensão que, nos últimos dois anos, levam a assinatura do subcomandante Marcos. O líder mexicano anuncia uma série de ações cívicas e, desde o princípio, assinala o caminho que será seguido: “A nossa mensagem não é de resignação, não é de guerra, morte ou destruição. Nossa mensagem é de luta e de resistência”.
O subcomandante arremete contra o atual presidente, acusando-o de ter chegado ao poder mediante um “golpe midiático” e destaca que “estamos aqui presentes para que eles saibam que se eles nunca se forem, nós tampouco”. O insurgente zapatista não livrou ninguém: critica a esquerda de Manuel López Obrador, os governos passados e presentes e a imprensa por ter pretendido sentenciar a desaparição do zapatismo. “Nos atacaram militar, política, social e ideologicamente. Os grandes meios de comunicação tentaram fazer com que desaparecêssemos, com a calúnia servir e oportunista em um primeiro momento, com o silêncio e cumplicidade, depois”.
Marcos celebra o nível de vida que gozam os indígenas da região, muito superior, escreve, “ao das comunidades indígenas simpáticas aos governos de plantão, que recebem as esmolas e as gastam em álcool e artigos inúteis. Nossas casas melhoraram sem danificar a natureza, impondo a ela caminhos que lhe são alheios. Em nossas comunidades, a terra que antes era usada para engordar o gado de latifundiários, agora é para cultivar o milho, o feijão e as verduras que iluminam nossas mesas”.
Este comunicado constitui um aparato crítico e um programa de ação que compreende “iniciativas de caráter civil e pacífico”, uma tentativa de “construir as pontes necessárias na direção dos movimentos sociais que surgiram e surgirão”, e, sobretudo, a preservação irredutível de uma “distância crítica frente à classe política mexicana”. O subcomandante Marcos coloca o governo ante o desafio de demonstrar “se continua a estratégia desonesta de seu antecessor, que além de corrupto e mentiroso, tomou dinheiro do povo de Chiapas para o enriquecimento próprio e de seus cúmplices”. Sem piedade ante o novo Executivo, Marcos dedica extensos parágrafos a lembrar o passado de alguns membros do atual governo.
Com o PRI no poder o zapatismo voltou a ocupar espaço na agenda nacional como soube fazer com tanto êxito em anos anteriores. Os analistas, partidários e adversários de Marcos, estão divididos acerca da capacidade que o subcomandante ainda possui para mobilizar um país açoitado pela violência gerada por esse novo ator decisivo que é o narcotráfico.
Tradução: Katarina Peixoto
Já se passaram cerca de duas décadas desde que, logo após a meia noite de 31 de dezembro de 1993, o então presidente mexicano Carlos Salinas de Gortari ingressou no ano de 1994 com um brinde aguado: estava festejando o ano novo e a entrada em vigor do Tratado de Livre Comércio da América do Norte quando o ministro da Defesa da época o informou que um grupo armado acabava de tomar a localidade de San Cristóbal de las Casas e vários pontos de Chiapas, o Estado situado ao sul da península de Yucatã.
O Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) impôs-se na política mexicana junto a seu líder, o subcomandante Marcos. O subcomandante e os zapatistas romperam o modelo dos tradicionais grupos revolucionários latino-americanos: eram majoritariamente indígenas e seu discurso e suas demandas estavam distantes das entonações marxistas, desenhando uma exigência democrática para um México que ainda era governador ininterruptamente pelo PRI. Os combates daquele primeiro levante duraram quase duas semanas ao final das quais houve centenas de mortos. Salinas de Gortari decretou um cessar-fogo e o subcomandante Marcos ganhou a batalha, não com as armas, mas sim com as palavras.
Em um inesquecível comunicado dirigido à imprensa, Marcos respondeu ao suposto “perdão” oferecido pelo governo federal: Do que devemos pedir perdão? Do que vão nos perdoar? De não morrermos de fome? De não nos calarmos em nossa miséria? De não ter aceitado humildemente a gigantesca carga histórica de desprezo e abandono? De termos nos levantado em armas quando encontramos todos os outros caminhos fechados? De não termos observado o Código Penal de Chiapas, o mais absurdo e repressivo do qual se tem memória? De ter demonstrado ao resto do país e ao mundo inteiro que a dignidade humana ainda vive e está presente em seus habitantes mais empobrecidos? De termos nos preparado bem e de forma consciente antes de iniciar? De ter levado fuzis para o combate, no lugar de arcos e flechas. De ter aprendido a lutar antes de fazê-lo? De todos sermos mexicanos? De sermos majoritariamente indígenas? De chamar todo o povo mexicano a lutar de todas as formas possíveis em defesa do que lhes pertence? De lutar pela liberdade, democracia e justiça? De não seguir os padrões das guerrilhas anteriores? De não nos rendermos? De não nos vendermos? De não nos trairmos?
Denso, legítimo, inapagável. Transcorreram quase vinte anos, houve muitos mortos em Chiapas, repressão, matanças como as Acteal (com 45 indígenas assassinados), centenas de páginas da prosa literária com a qual o subcomandante Marcos seduziu o mundo, um enorme terremoto político no México e, sobretudo, o fim do mandato interrompido do PRI e a chegada ao poder de outra força política, o conservador Partido da Ação Nacional (PAN), que governou o México durante dois mandatos consecutivos: Vicente Fox (2000-2006) e Felipe Calderón (2006-2012).
O PRI retornou ao poder em dezembro de 2012, após seu candidato, Enrique Peña Nieto, ganhar as eleições presidenciais de julho do ano passado. E com o PRI voltou também o zapatismo, com a ação e a palavra. Após um longo período de recesso, o Exército Zapatista de Libertação Nacional irrompeu no espaço público em dois tempos: primeiro, no dia 21 de dezembro com uma mobilização silenciosa da qual participaram 40 mil pessoas com o rosto coberto com o gorro popularizado pelo subcomandante. Marcos divulgou um comunicado nesta marcha zapatista que percorreu várias comunidades dizendo: Escutaram? É o som de seu mundo desmoronando, e o do nosso ressurgindo. A marcha do dia 21 foi a maior mobilização protagonizada pelos zapatistas desde que pegaram em armas no dia 1º de janeiro de 1994.
A escolha da data não foi casual: coincidiu com o décimo-quinto aniversário do massacre de Acteal perpetrado por paramilitares e no qual morreram 45 indígenas, em sua grande maioria mulheres e crianças. O governo mexicano atribuiu à matança a um conflito étnico e condenou 20 indígenas. Após 11 anos de prisão, os acusados recuperaram a liberdade devido a irregularidades no processo.
O segundo tempo da instalação do zapatismo na agenda política foi assumido pelo subcomandante Marcos mediante duas cartas e um copioso comunicado nos quais, com sua verve habitual, entre crítico, poético e guerreiro, interpela e despedaça a classe política em seu conjunto, esquerda e direita, os meios de comunicação e o presidente Enrique Peña Nieto, a quem exige que cumpra com os acordos de San Andrés (Acordos de San Andrés sobre Direitos e Cultura Indígena firmados em 16 de fevereiro de 1996 pelo governo mexicano do presidente Ernesto Zedillo e pelo EZLN).
Estes textos que figuram nas cartas do Comitê Clandestino Revolucionário Indígena são os primeiros em extensão que, nos últimos dois anos, levam a assinatura do subcomandante Marcos. O líder mexicano anuncia uma série de ações cívicas e, desde o princípio, assinala o caminho que será seguido: “A nossa mensagem não é de resignação, não é de guerra, morte ou destruição. Nossa mensagem é de luta e de resistência”.
O subcomandante arremete contra o atual presidente, acusando-o de ter chegado ao poder mediante um “golpe midiático” e destaca que “estamos aqui presentes para que eles saibam que se eles nunca se forem, nós tampouco”. O insurgente zapatista não livrou ninguém: critica a esquerda de Manuel López Obrador, os governos passados e presentes e a imprensa por ter pretendido sentenciar a desaparição do zapatismo. “Nos atacaram militar, política, social e ideologicamente. Os grandes meios de comunicação tentaram fazer com que desaparecêssemos, com a calúnia servir e oportunista em um primeiro momento, com o silêncio e cumplicidade, depois”.
Marcos celebra o nível de vida que gozam os indígenas da região, muito superior, escreve, “ao das comunidades indígenas simpáticas aos governos de plantão, que recebem as esmolas e as gastam em álcool e artigos inúteis. Nossas casas melhoraram sem danificar a natureza, impondo a ela caminhos que lhe são alheios. Em nossas comunidades, a terra que antes era usada para engordar o gado de latifundiários, agora é para cultivar o milho, o feijão e as verduras que iluminam nossas mesas”.
Este comunicado constitui um aparato crítico e um programa de ação que compreende “iniciativas de caráter civil e pacífico”, uma tentativa de “construir as pontes necessárias na direção dos movimentos sociais que surgiram e surgirão”, e, sobretudo, a preservação irredutível de uma “distância crítica frente à classe política mexicana”. O subcomandante Marcos coloca o governo ante o desafio de demonstrar “se continua a estratégia desonesta de seu antecessor, que além de corrupto e mentiroso, tomou dinheiro do povo de Chiapas para o enriquecimento próprio e de seus cúmplices”. Sem piedade ante o novo Executivo, Marcos dedica extensos parágrafos a lembrar o passado de alguns membros do atual governo.
Com o PRI no poder o zapatismo voltou a ocupar espaço na agenda nacional como soube fazer com tanto êxito em anos anteriores. Os analistas, partidários e adversários de Marcos, estão divididos acerca da capacidade que o subcomandante ainda possui para mobilizar um país açoitado pela violência gerada por esse novo ator decisivo que é o narcotráfico.
Tradução: Katarina Peixoto
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