quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

O medo das ruas: as mobilizações de 2015 / Uma entrevista com Silvia Viana


O medo das ruas: as mobilizações de 2015 / Uma entrevista com Silvia Viana
A socióloga Silvia Viana, autora de Rituais de sofrimento, discute as mobilizações de rua de 2015 em entrevista especial no Blog da Boitempo. As respostas, elaboradas a partir de uma pauta do jornal El País – Brasil, refletem sobre os diversos atores em cena (e fora de cena) nas manifestações desde 2013. Analisando, em especial, os desdobramentos dos dois atos convocados pelo MPL em São Paulo em resposta ao aumento nas tarifas do transporte público anunciado em 2015, Silvia revira os lugares comuns em torno do papel da mídia, da gestão pública, da ascenção de uma nova direita pós-junho e das estratégias de repressão, novas e antigas, reais e simbólicas, na difícil tarefa de atualizar a crítica da ideologia hoje e reposicionar a luta política na busca por uma alternativa anticapitalista.

1. Por que os primeiros atos do MPL reuniram tanta gente apesar do anúncio do Passe Livre parcial, feito pelo prefeito e pelo governador?
Note que mais do que mobilizar em torno de 20 mil pessoas, os dois primeiros atos levaram às ruas muitos dos próprios beneficiários do passe parcial anunciado pela prefeitura: os estudantes – e em período de férias. Da perspectiva do movimento que encabeça essa nova jornada, a tentativa do governo de esvaziá-la não teria como funcionar, pois o MPL entende que o direito à livre circulação pela cidade deve ser universal, abarcando não apenas os trabalhadores como o tempo e o espaço nos quais, desse modo, poderiam estar livres da circulação enjaulada – trabalho-casa-trabalho –, poderiam estar livres, assim, de seu próprio ser-função. Dessa perspectiva, o passe “livre” e “parcial” simplesmente constitui contradição em termos; apesar de ser, ao mesmo tempo, conquista das jornadas de Junho de 2013, não atinge sua medula: a desmercantilização do transporte público e da vida que esse ora empurra.
Ainda que seja prematuro afirmar o consenso em torno dessa perspectiva por parte daqueles que aderem à nova jornada, certo é que o aumento de R$ 0,50 na tarifa de ônibus é uma medida brutal, ainda mais se levarmos em consideração a mensagem subjacente que a acompanha: o completo desdém por uma vitória popular conquistada, a sangue e fogo, há um ano e meio atrás. O desaforo vem acompanhado da sentença viril que, mais que praxe, já é chavão, de governos de tipo neoliberal: “não somos demagogos”, leia-se: salvaguardemos o lucro, no caso, das empresas de transporte. Como estamos vendo, seria muito difícil que o sopro do tal passe aplacasse a dor dessa porrada dupla. Cabe agora saber se os renovados estoques de bombas, os novos tanques, táticas e fantasias futuristas da polícia podem aumentar o hematoma a ponto de deixá-lo, por ora, e mais uma vez, dormente.

2. Qual será a mecânica da mobilização esse ano?
Junho de 2013 conseguiu romper uma permanência que até então se arrastava indefinidamente: a gestão universal, ao mesmo tempo securitária e mercadológica, que encerra a política, por um lado, na participação empreendedora, por outro, na prevenção de riscos, quaisquer riscos – em especial, do risco social que emana das periferias, daí o body count preventivo cotidiano. A força daquele movimento esteve na profanação dos dois princípios.
Em primeiro lugar, os manifestantes se recusaram a compactuar com a formulação participativa de mais um entre os infindáveis projetos “factíveis”, ou seja, previstos pela gestão orçamentária – horizonte máximo do que se acostumou sub-designar a política. Afirmando sua pauta minimalista, os R$ 0,20, ao mesmo tempo, como o mínimo que se possa fazer e um absoluto inegociável, inventaram uma recusa concreta. Além disso, os moços e moças de Junho toparam correr uma infinidade de riscos, do atropelamento, quando trancaram as ruas, ao ódio de uma opinião pública acostumada, há mais de uma década, com a lógica inapelável trabalho/segurança, passando, evidentemente, pelo risco das balas de borracha. Ao fazerem o que fizeram, correram riscos pessoais, mas também os socializaram: o trabalhador que dá entrevista ao Jornal Nacional não mente quando afirma que pode ser demitido por chegar atrasado ao trabalho quando um ato paralisa a cidade… O extraordinário de Junho foi o fato de essa socialização ter sido aceita de bom grado, como mostram as pesquisas de opinião feitas à época.
Contudo, na força de Junho também reside sua fragilidade: o carisma se rotiniza, como diriam alguns sociólogos. Não se pode esperar que, um ano e meio depois, grande mídia, polícia e governo sejam pegos de calças curtas. A primeira já ignora as ruas, contando, nas rebarbas do silêncio, com material forjado em 2013: a necessidade, da ordem da natureza, do aumento da tarifa, os “violentos” contra os “pacíficos”, a reação necessária da polícia contra os “baderneiros” etc. Porém, visto que já não lhe é possível atacar o direito de manifestação em si mesmo, como se acostumara até 2013, é provável que surjam novidades, como já há indícios. Contou-me um amigo que, ao acompanhar a cobertura televisiva do primeiro grande ato, percebeu a recorrência de um termo novo, os manifestantes agora não são tanto “vândalos”, como, principalmente, “aprontam”. O caminho que liga o novo termo às recentes declarações do prefeito de SP, segundo o qual “eles não sabem o que fazem”, não é tortuoso: trata-se de uma anulação do conflito pela infantilização daquele que luta. Pode ser uma pista para o que virá em termos discursivos, a ver…
Já a polícia deu mostras da mesma brutalidade de sempre, mas agora com mais eficiência. Na primeira sexta-feira, a dispersão – com bombas, gás, prisões e pancadas aleatórias – se realizou também pelo meio da manifestação e não apenas a partir de suas pontas. Essa tática, que desmente, sem a necessidade de qualquer mediação reflexiva, o discurso segundo o qual se tratou de reação contra “badernas” pontuais, conseguiu fazer evaporar da rua dezenas de milhares de pessoas em poucos minutos. Ao primeiro choque repressivo seguiu-se uma varredura pelas ruas adjacentes, que impediu os manifestantes de retornarem às grandes avenidas, como ocorria nas primeiras manifestações da jornada passada. Além da dispersão, a caçada realiza sua principal função: incutir medo, fazendo com que cada um dos indivíduos ali presentes sinta nos olhos, ouvidos, pernas, pele e dentro de si, em seus pulmões, a força de um poder do qual não há escapatória.
Por fim, a prefeitura, sem a menor vergonha, tira da cartola uma representação de movimento, formada por um grupo de jovens de seu próprio partido e adjacências, e com ela celebra uma reunião de conto de fadas, claro, a portas fechadas; enquanto o governador do Estado fica na moita, apesar de já ter anunciado seu assalto para trens e metrôs e de ser o mandante dos massacres de manifestações, e lá é deixado pela mídia.
A conjuntura é outra daquela de 2013, mas disso tudo, e também dos limites impostos pela própria permanência, que permanece, o movimento tem clareza. Daí a importância do chamado para as lutas nas periferias. O MPL tem insistido, tanto nas manifestações das últimas semanas como em seus meios de comunicação virtual, para a importância da auto-organização local, o que cimentaria uma luta a contrapelo: da periferia ao centro. Trata-se de unir as pontas de 2013 a 2015 através da substância que deu ao movimento sua vitória: a aceitação popular da recusa e do risco. Caso isso ocorra novamente, não haverá virilidade cínica, silêncio, condescendência, distorção, manobras sacanas e brutalidade pura capazes de dar conta do recado.

3. As manifestações ocorrem essencialmente pela tarifa?
Evidente que sim! É essa a pauta amplamente divulgada pelo movimento, debatida nas assembleias dos atos e gritada nas ruas. Sua pergunta só faz sentido quando à luz da dispersão de bandeiras ocorrida em um segundo momento de Junho de 2013, concomitante à massificação do dia 17. Deixando de lado as inúmeras hipóteses a respeito de tal passagem, seria esdrúxulo descartar o pavio que fez a permanência explodir: os famigerados vinte centavos. Esdrúxula, no entanto, não teme ser a narrativa que se busca construir hoje, segundo a qual “o problema não era exatamente a tarifa”, mas a corrupção, a violência, ou seja lá o que se tenha formulado quando a casa já havia caído, ou seja, quando a legitimidade da luta já havia sido conferida pela maioria da população – não pela mídia, que nada mais fez que correr atrás do prejuízo.
O “não são apenas vinte centavos” foi e é uma mentira, cega que é ao significado dessa mixaria para quem sabe não ser mixaria. Há alguns anos, em conversa com uma aluna da periferia de Guarulhos, dei mostra de minha ignorância de classe quando, a um argumento elevado qualquer, ela retrucou: “quer saber o que é ser pobre? É saber, a cada dia, exatamente quantas moedas você tem no bolso e qual o valor de cada uma delas”. Coisa impensável para mim, impensável para quem repete o tal “apenas”. Pois o que essas moedas, não lidas, mas contadas no tato, compram, é um transporte odioso, do qual dá uma pequena mostra o pequeno documentário “Terminal Grajaú: humilhação coletiva”, disponível na internet. Negar a explosão política dessa humilhação coletiva é, ainda outra vez, uma violência.
Mas as ideologias têm seu momento de verdade, o “apenas” sabe do nexo de humilhações entrecortadas pelas longas e apertadas horas dentro dos ônibus e vagões. Se sua decodificação, em termos de mercadorias políticas – cujo princípio da troca é exposto todas as vezes que se apresenta a tese/ameaça do “cobertor curto”: “se dou transporte devo tirar da educação…” –, é fácil e funcional para o mundo filhote de mais de uma década de despolitização, não é a única possível. O MPL não é um movimento de contenção, ou seja, sabe que não basta minimizar os terríveis danos gerados a cada reajuste dos transportes. Como o próprio nome afirma, seu objetivo é o passe livre, mais que gratuito, livre do princípio da troca. A luta, para além do reajuste, obedece a outra lógica, não a que enfileira demandas sociais como se fossem produtos em supermercado, mas que aponta para a impossibilidade da própria realização de direitos, em sua integralidade concreta e universal, no capitalismo. A repressão milionária ao pedido mínimo é mais uma prova da contradição então exposta. Dessa perspectiva, a bandeira que acusa os centavos é, como foi, mais que suficiente para alterar o campo da disputa: da gestão para a política.

4. Outros atores podem se juntar com outras reivindicações diante de um cenário político ainda mais conturbado do que o de 2013?
Quando as ruas estão abertas, tudo pode acontecer, até porque a cidade dos cinquenta centavos é, agora, a mesma localizada à beira do abismo da falta d’água. Caso essa nova humilhação, ainda mais elementar, encontre o caminho, ao mesmo tempo óbvio e espantoso, que liga a sede ao ultra capitalismo…
Já os assim chamados “coxinhas”, aquela massa amorfa que baixou nas ruas de 2013, esses tiveram seu tempo na frigideira para delimitar um pouco melhor o lado em que devem sambar. No segundo momento das jornadas de Junho, nem todos os que usavam verde-e-amarelo achavam justo que se espancasse membros de partidos e movimentos; tantos outros pediam paz por uma espécie de compaixão pré-política e não por entenderem que a luta é ilegítima ou por não passarem de papagaios de mídia; alguns ainda tiraram selfies em uma espécie de inércia das formas vazias de sociabilidade hoje acessíveis.
Na jornada de agora, ao menos em seus primeiros atos, aqueles cujo ódio não é capaz de ultrapassar o ressentimento pequeno burguês não deram as caras, afinal, o caráter anti-sistêmico do movimento já está bastante claro. A nova direita inventou seu próprio espaço, passeando pela Paulista, entoando o hino nacional, bajulando a polícia, rezando o padre nosso e, eventualmente, atacando algum desavisado que ande pela calçada trajando cores consideradas inaceitáveis (nota: no primeiro grande ato de 2015, foi visto um único e solitário rapaz coberto por uma bandeira verde-e-amarela, calçando coturno, careca, sua presença foi ignorada. Não seria exercício fútil imaginar a mesma situação em cores invertidas e o que decorreria disso). Muitos outros, por outro lado, puderam, nesse meio tempo, se apropriar, com maior conhecimento de causa, da pauta e das táticas do movimento pelo transporte livre. Imagino eu que tantos outros tenham simplesmente voltado para seu circuito sem fim ou, como esperam governador e prefeito, gozem suas férias. Seja como for, como afirmei antes, quando as ruas estão abertas…

5. Qual o papel da polícia e como ela pode influenciar na mobilização?
Até agora, além de ferir para amedrontar, seu objetivo tem sido não deixar nenhum ato alcançar seu destino. Sexta-feira passada tal finalidade estava clara como o céu de Janeiro. Descendo a Consolação, a manifestação se via cercada, não pelo “envelopamento” de costume, que acompanha os manifestantes de perto, mas por policiais-robocops – cuja armadura, por si só, é capaz de desmentir a já clássica mistificação que reza a comensurabilidade de duas violências –, prostrados em cada uma das esquinas seguintes às da avenida principal. A distância relativa confere maior concretude à ratoeira que o envelopamento, pois indica que não haverá paralela para a qual correr quando as bombas estourarem; além disso, a quadra que separa o ato de sua negação amplifica a inumanidade daqueles que apenas esperam uma ordem. A coreografia da dispersão se iniciou quando, no fim da avenida, a passagem dos manifestantes foi dificultada pela polícia; três quadras acima, a mão que leva do centro à Rebouças foi fechada para os carros que, até então, acompanhavam a descida das pessoas em contramão. Então aconteceu o que era, de um lado, pressentido, do outro, planejado: resistência, explosões e névoa. Aqueles que correram encontraram os que esperavam. Dessa vez, contudo, a manifestação, machucada, seguiu, e chegou até o fim, onde nova arapuca estava armada.
Seria irônico, não fosse funesto, que absolutamente todos os desfiles verde-amarelos do ano passado tenham completado seus trajetos, não obstante tomarem a mesma Av. Paulista que, para o ato contra o aumento da tarifa, estava trancada por fileiras de policiais robôs; não obstante suas bandeiras e discursos pró-golpe militar; não obstante a truculência, vastamente documentada, de seus membros contra transeuntes (nota: alguns participantes da chacrinha chegaram a hostilizar, no começo do Dezembro passado, um pequeno ato que chamava a atenção para a luta dos deficientes físicos por acessibilidade, e que teve o azar de dividir com eles o mesmo vão de museu: “Petralhas!”, gritavam, para cadeirantes, os mais exaltados entre os exaltados). Nenhum desses “revoltados” foi revistado em nenhum de seus atos, mesmo após um de seus líderes ter sido fotografado portando uma arma – não uma garrafa de vinagre, não uma máscara, não um Pinho Sol, um revólver mesmo; já na manifestação da sexta-feira última, pelo transporte livre, todos os que chegaram até as 16h40 tiveram suas mochilas vasculhadas pela polícia, que, ao mesmo tempo, enfileirava ônibus atrás de ônibus, carregados com mais soldados, preparados para prisões. Nos tristes domingos da direita ninguém foi preso, ninguém tossiu ou vomitou gás, ninguém teve um osso quebrado, ninguém teve que correr – se o fizeram foi por vontade própria, para perseguir algum repórter aos berros de “viado”. Apesar de aterradora, a situação não chega a ser surpreendente, afinal, a onda só bate no peito de quem nada contra a corrente.  

São Paulo, 17 de Janeiro de 2015
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Silvia Viana é professora de sociologia da FGV-SP. Graduada em ciências sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), possui mestrado e doutorado pela mesma instituição.

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