O medo das ruas: as mobilizações de 2015 / Uma entrevista com Silvia Viana
A socióloga Silvia Viana, autora de Rituais
de sofrimento, discute as mobilizações de rua de 2015 em entrevista
especial no Blog da Boitempo. As
respostas, elaboradas a partir de uma pauta do jornal El País – Brasil,
refletem sobre os diversos atores em cena (e fora de cena) nas manifestações
desde 2013. Analisando, em especial, os desdobramentos dos dois atos
convocados pelo MPL em São Paulo em resposta ao aumento nas tarifas do
transporte público anunciado em 2015, Silvia revira os lugares comuns em
torno do papel da mídia, da gestão pública, da ascenção de uma nova
direita pós-junho e das estratégias de repressão, novas e antigas, reais e
simbólicas, na difícil tarefa de atualizar a crítica da ideologia
hoje e reposicionar a luta política na busca por uma alternativa anticapitalista.
1. Por que os primeiros atos do MPL reuniram tanta gente
apesar do anúncio do Passe Livre parcial, feito pelo prefeito e pelo
governador?
Note que mais do que mobilizar em torno de 20 mil pessoas,
os dois primeiros atos levaram às ruas muitos dos próprios beneficiários do
passe parcial anunciado pela prefeitura: os estudantes – e em período de
férias. Da perspectiva do movimento que encabeça essa nova jornada, a tentativa
do governo de esvaziá-la não teria como funcionar, pois o MPL entende que o
direito à livre circulação pela cidade deve ser universal, abarcando não apenas
os trabalhadores como o tempo e o espaço nos quais, desse modo, poderiam estar
livres da circulação enjaulada – trabalho-casa-trabalho –, poderiam estar
livres, assim, de seu próprio ser-função. Dessa perspectiva, o passe “livre” e
“parcial” simplesmente constitui contradição em termos; apesar de ser, ao mesmo
tempo, conquista das jornadas de Junho de 2013, não atinge sua medula: a
desmercantilização do transporte público e da vida que esse ora empurra.
Ainda que seja prematuro afirmar o consenso em torno dessa
perspectiva por parte daqueles que aderem à nova jornada, certo é que o aumento
de R$ 0,50 na tarifa de ônibus é uma medida brutal, ainda mais se levarmos em
consideração a mensagem subjacente que a acompanha: o completo desdém por uma
vitória popular conquistada, a sangue e fogo, há um ano e meio atrás. O
desaforo vem acompanhado da sentença viril que, mais que praxe, já é chavão, de
governos de tipo neoliberal: “não somos demagogos”, leia-se: salvaguardemos o
lucro, no caso, das empresas de transporte. Como estamos vendo, seria muito
difícil que o sopro do tal passe aplacasse a dor dessa porrada dupla. Cabe
agora saber se os renovados estoques de bombas, os novos tanques, táticas e
fantasias futuristas da polícia podem aumentar o hematoma a ponto de deixá-lo,
por ora, e mais uma vez, dormente.
2. Qual será a mecânica da mobilização esse ano?
Junho de 2013 conseguiu romper uma permanência que até então
se arrastava indefinidamente: a gestão universal, ao mesmo tempo securitária e
mercadológica, que encerra a política, por um lado, na participação
empreendedora, por outro, na prevenção de riscos, quaisquer riscos – em
especial, do risco social que emana das periferias, daí o body count preventivo
cotidiano. A força daquele movimento esteve na profanação dos dois princípios.
Em primeiro lugar, os manifestantes se recusaram a
compactuar com a formulação participativa de mais um entre os infindáveis
projetos “factíveis”, ou seja, previstos pela gestão orçamentária – horizonte
máximo do que se acostumou sub-designar a política. Afirmando sua pauta
minimalista, os R$ 0,20, ao mesmo tempo, como o mínimo que se possa fazer e um
absoluto inegociável, inventaram uma recusa concreta. Além disso, os moços e
moças de Junho toparam correr uma infinidade de riscos, do atropelamento,
quando trancaram as ruas, ao ódio de uma opinião pública acostumada, há mais de
uma década, com a lógica inapelável trabalho/segurança, passando, evidentemente,
pelo risco das balas de borracha. Ao fazerem o que fizeram, correram riscos
pessoais, mas também os socializaram: o trabalhador que dá entrevista ao Jornal
Nacional não mente quando afirma que pode ser demitido por chegar atrasado ao
trabalho quando um ato paralisa a cidade… O extraordinário de Junho foi o fato
de essa socialização ter sido aceita de bom grado, como mostram as pesquisas de
opinião feitas à época.
Contudo, na força de Junho também reside sua fragilidade: o
carisma se rotiniza, como diriam alguns sociólogos. Não se pode esperar que, um
ano e meio depois, grande mídia, polícia e governo sejam pegos de calças
curtas. A primeira já ignora as ruas, contando, nas rebarbas do silêncio, com
material forjado em 2013: a necessidade, da ordem da natureza, do aumento da
tarifa, os “violentos” contra os “pacíficos”, a reação necessária da polícia
contra os “baderneiros” etc. Porém, visto que já não lhe é possível atacar o
direito de manifestação em si mesmo, como se acostumara até 2013, é provável que
surjam novidades, como já há indícios. Contou-me um amigo que, ao acompanhar a
cobertura televisiva do primeiro grande ato, percebeu a recorrência de um termo
novo, os manifestantes agora não são tanto “vândalos”, como, principalmente,
“aprontam”. O caminho que liga o novo termo às recentes declarações do prefeito
de SP, segundo o qual “eles não sabem o que fazem”, não é tortuoso: trata-se de
uma anulação do conflito pela infantilização daquele que luta. Pode ser uma
pista para o que virá em termos discursivos, a ver…
Já a polícia deu mostras da mesma brutalidade de sempre, mas
agora com mais eficiência. Na primeira sexta-feira, a dispersão – com bombas,
gás, prisões e pancadas aleatórias – se realizou também pelo meio da
manifestação e não apenas a partir de suas pontas. Essa tática, que desmente,
sem a necessidade de qualquer mediação reflexiva, o discurso segundo o qual se
tratou de reação contra “badernas” pontuais, conseguiu fazer evaporar da rua
dezenas de milhares de pessoas em poucos minutos. Ao primeiro choque repressivo
seguiu-se uma varredura pelas ruas adjacentes, que impediu os manifestantes de
retornarem às grandes avenidas, como ocorria nas primeiras manifestações da
jornada passada. Além da dispersão, a caçada realiza sua principal função: incutir
medo, fazendo com que cada um dos indivíduos ali presentes sinta nos olhos,
ouvidos, pernas, pele e dentro de si, em seus pulmões, a força de um poder do
qual não há escapatória.
Por fim, a prefeitura, sem a menor vergonha, tira da cartola
uma representação de movimento, formada por um grupo de jovens de seu próprio
partido e adjacências, e com ela celebra uma reunião de conto de fadas, claro,
a portas fechadas; enquanto o governador do Estado fica na moita, apesar de já
ter anunciado seu assalto para trens e metrôs e de ser o mandante dos massacres
de manifestações, e lá é deixado pela mídia.
A conjuntura é outra daquela de 2013, mas disso tudo, e
também dos limites impostos pela própria permanência, que permanece, o
movimento tem clareza. Daí a importância do chamado para as lutas nas
periferias. O MPL tem insistido, tanto nas manifestações das últimas semanas
como em seus meios de comunicação virtual, para a importância da
auto-organização local, o que cimentaria uma luta a contrapelo: da periferia ao
centro. Trata-se de unir as pontas de 2013 a 2015 através da substância que deu
ao movimento sua vitória: a aceitação popular da recusa e do risco. Caso isso
ocorra novamente, não haverá virilidade cínica, silêncio, condescendência,
distorção, manobras sacanas e brutalidade pura capazes de dar conta do recado.
3. As manifestações ocorrem essencialmente pela tarifa?
Evidente que sim! É essa a pauta amplamente divulgada pelo
movimento, debatida nas assembleias dos atos e gritada nas ruas. Sua pergunta
só faz sentido quando à luz da dispersão de bandeiras ocorrida em um segundo
momento de Junho de 2013, concomitante à massificação do dia 17. Deixando de
lado as inúmeras hipóteses a respeito de tal passagem, seria esdrúxulo
descartar o pavio que fez a permanência explodir: os famigerados vinte
centavos. Esdrúxula, no entanto, não teme ser a narrativa que se busca
construir hoje, segundo a qual “o problema não era exatamente a tarifa”, mas a
corrupção, a violência, ou seja lá o que se tenha formulado quando a casa já
havia caído, ou seja, quando a legitimidade da luta já havia sido conferida
pela maioria da população – não pela mídia, que nada mais fez que correr atrás
do prejuízo.
O “não são apenas vinte centavos” foi e é uma mentira, cega
que é ao significado dessa mixaria para quem sabe não ser mixaria. Há alguns
anos, em conversa com uma aluna da periferia de Guarulhos, dei mostra de minha
ignorância de classe quando, a um argumento elevado qualquer, ela retrucou:
“quer saber o que é ser pobre? É saber, a cada dia, exatamente quantas moedas
você tem no bolso e qual o valor de cada uma delas”. Coisa impensável para mim,
impensável para quem repete o tal “apenas”. Pois o que essas moedas, não lidas,
mas contadas no tato, compram, é um transporte odioso, do qual dá uma pequena
mostra o pequeno documentário “Terminal
Grajaú: humilhação coletiva”, disponível na internet. Negar a explosão
política dessa humilhação coletiva é, ainda outra vez, uma violência.
Mas as ideologias têm seu momento de verdade, o “apenas”
sabe do nexo de humilhações entrecortadas pelas longas e apertadas horas dentro
dos ônibus e vagões. Se sua decodificação, em termos de mercadorias políticas –
cujo princípio da troca é exposto todas as vezes que se apresenta a tese/ameaça
do “cobertor curto”: “se dou transporte devo tirar da educação…” –, é fácil e
funcional para o mundo filhote de mais de uma década de despolitização, não é a
única possível. O MPL não é um movimento de contenção, ou seja, sabe que não
basta minimizar os terríveis danos gerados a cada reajuste dos transportes.
Como o próprio nome afirma, seu objetivo é o passe livre, mais que gratuito,
livre do princípio da troca. A luta, para além do reajuste, obedece a outra
lógica, não a que enfileira demandas sociais como se fossem produtos em
supermercado, mas que aponta para a impossibilidade da própria realização de
direitos, em sua integralidade concreta e universal, no capitalismo. A
repressão milionária ao pedido mínimo é mais uma prova da contradição então
exposta. Dessa perspectiva, a bandeira que acusa os centavos é, como foi, mais
que suficiente para alterar o campo da disputa: da gestão para a política.
4. Outros atores podem se juntar com outras reivindicações
diante de um cenário político ainda mais conturbado do que o de 2013?
Quando as ruas estão abertas, tudo pode acontecer, até
porque a cidade dos cinquenta centavos é, agora, a mesma localizada à beira do
abismo da falta d’água. Caso essa nova humilhação, ainda mais elementar,
encontre o caminho, ao mesmo tempo óbvio e espantoso, que liga a sede ao ultra
capitalismo…
Já os assim chamados “coxinhas”, aquela massa amorfa que
baixou nas ruas de 2013, esses tiveram seu tempo na frigideira para delimitar
um pouco melhor o lado em que devem sambar. No segundo momento das jornadas de
Junho, nem todos os que usavam verde-e-amarelo achavam justo que se espancasse
membros de partidos e movimentos; tantos outros pediam paz por uma espécie de
compaixão pré-política e não por entenderem que a luta é ilegítima ou por não
passarem de papagaios de mídia; alguns ainda tiraram selfies em uma espécie de
inércia das formas vazias de sociabilidade hoje acessíveis.
Na jornada de agora, ao menos em seus primeiros atos,
aqueles cujo ódio não é capaz de ultrapassar o ressentimento pequeno burguês
não deram as caras, afinal, o caráter anti-sistêmico do movimento já está
bastante claro. A nova direita inventou seu próprio espaço, passeando pela
Paulista, entoando o hino nacional, bajulando a polícia, rezando o padre nosso
e, eventualmente, atacando algum desavisado que ande pela calçada trajando
cores consideradas inaceitáveis (nota: no primeiro grande ato de 2015, foi
visto um único e solitário rapaz coberto por uma bandeira verde-e-amarela,
calçando coturno, careca, sua presença foi ignorada. Não seria exercício fútil
imaginar a mesma situação em cores invertidas e o que decorreria disso). Muitos
outros, por outro lado, puderam, nesse meio tempo, se apropriar, com maior
conhecimento de causa, da pauta e das táticas do movimento pelo transporte
livre. Imagino eu que tantos outros tenham simplesmente voltado para seu
circuito sem fim ou, como esperam governador e prefeito, gozem suas férias.
Seja como for, como afirmei antes, quando as ruas estão abertas…
5. Qual o papel da polícia e como ela pode influenciar na
mobilização?
Até agora, além de ferir para amedrontar, seu objetivo tem
sido não deixar nenhum ato alcançar seu destino. Sexta-feira passada tal
finalidade estava clara como o céu de Janeiro. Descendo a Consolação, a
manifestação se via cercada, não pelo “envelopamento” de costume, que acompanha
os manifestantes de perto, mas por policiais-robocops – cuja armadura, por si
só, é capaz de desmentir a já clássica mistificação que reza a
comensurabilidade de duas violências –, prostrados em cada uma das esquinas
seguintes às da avenida principal. A distância relativa confere maior
concretude à ratoeira que o envelopamento, pois indica que não haverá paralela
para a qual correr quando as bombas estourarem; além disso, a quadra que separa
o ato de sua negação amplifica a inumanidade daqueles que apenas esperam uma
ordem. A coreografia da dispersão se iniciou quando, no fim da avenida, a passagem
dos manifestantes foi dificultada pela polícia; três quadras acima, a mão que
leva do centro à Rebouças foi fechada para os carros que, até então,
acompanhavam a descida das pessoas em contramão. Então aconteceu o que era, de
um lado, pressentido, do outro, planejado: resistência, explosões e névoa.
Aqueles que correram encontraram os que esperavam. Dessa vez, contudo, a
manifestação, machucada, seguiu, e chegou até o fim, onde nova arapuca estava
armada.
Seria irônico, não fosse funesto, que absolutamente todos os
desfiles verde-amarelos do ano passado tenham completado seus trajetos, não
obstante tomarem a mesma Av. Paulista que, para o ato contra o aumento da
tarifa, estava trancada por fileiras de policiais robôs; não obstante suas
bandeiras e discursos pró-golpe militar; não obstante a truculência, vastamente
documentada, de seus membros contra transeuntes (nota: alguns participantes da
chacrinha chegaram a hostilizar, no começo do Dezembro passado, um pequeno ato
que chamava a atenção para a luta dos deficientes físicos por acessibilidade, e
que teve o azar de dividir com eles o mesmo vão de museu: “Petralhas!”,
gritavam, para cadeirantes, os mais exaltados entre os exaltados). Nenhum
desses “revoltados” foi revistado em nenhum de seus atos, mesmo após um de seus
líderes ter sido fotografado portando uma arma – não uma garrafa de vinagre,
não uma máscara, não um Pinho Sol, um revólver mesmo; já na manifestação da
sexta-feira última, pelo transporte livre, todos os que chegaram até as 16h40
tiveram suas mochilas vasculhadas pela polícia, que, ao mesmo tempo,
enfileirava ônibus atrás de ônibus, carregados com mais soldados, preparados
para prisões. Nos tristes domingos da direita ninguém foi preso, ninguém tossiu
ou vomitou gás, ninguém teve um osso quebrado, ninguém teve que correr – se o
fizeram foi por vontade própria, para perseguir algum repórter aos berros de
“viado”. Apesar de aterradora, a situação não chega a ser surpreendente,
afinal, a onda só bate no peito de quem nada contra a corrente.
São Paulo, 17 de Janeiro de 2015
***
Silvia Viana é professora de sociologia da FGV-SP. Graduada
em ciências sociais pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), possui mestrado e doutorado pela mesma
instituição.
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