quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

Revolta popular contra a tarifa: notas sobre os limites da tática - Por Eugênio Varlino



Revolta popular contra a tarifa: notas sobre os limites da tática

Podemos avançar rumo à radicalização das lutas por meio da articulação pela base de pautas específicas e métodos organizativos de revolta popular para além do modelo de protesto em massa que se reapropria e obstrui as principais ruas da cidade? Por Eugênio Varlino.

Que limite?
Na jornada de luta contra o aumento da tarifa de ônibus de junho de 2013, vigorou uma tática que podemos chamar de “revolta popular” [1]. Esta tinha em seu centro gigantescos atos que bloqueavam as principais vias da cidade, decorando tais ruas e avenidas com cartazes e palavras de ordem. A radicalidade dos protestos muitas vezes residia no próprio trajeto percorrido, uma vez que se operavam reapropriações populares do espaço público, dessacralizando não apenas algumas instituições, que se tornaram alvo privilegiado de depredações etc., como também ruas e avenidas que simbolizam o poder capitalista, tal como a Avenida Paulista. Em 2013 a presença massiva e insistente dos manifestantes nas ruas, o caos urbano subsequente à revolta em face da violenta repressão policial contra os manifestantes, os danos ao patrimônio público e privado e o amplo apoio da chamada opinião pública exerceram pressão suficiente para levar os governantes a anular os aumentos da tarifa em diversas cidades de todo o Brasil. A tática da revolta popular foi portanto vitoriosa e aquele modo de luta se mostrou “suficiente” para garantir a demanda imediata da revogação dos aumentos. [A tentativa de ampliação/diluição da pauta e apropriação dos atos pela direita, na chamada “revolta dos coxinhas”, constitui tema paralelo ao assunto destas notas].
Embora tenha conquistado em 2013 seu objetivo imediato, parte da militância demonstra enxergar que a tática da revolta popular continha desde o início um forte limite se a estratégia das lutas se radicalizasse e a demanda popular passasse a visar a garantia da tarifa zero por meio da autogestão popular do transporte, para não dizer a autogestão da cidade. Planejados pelo restrito grupo do Movimento Passe Livre (MPL), os protestos funcionavam por meio da adesão popular a uma pauta imediata (revogação do aumento) e ampla (tarifa zero), desdobrando-se em atos que negavam o serviço de transporte nos moldes capitalistas, seja bloqueando ruas, pulando catracas ou depredando ônibus etc. Os protestos canalizavam, ainda, o descontentamento e a rebeldia popular frente à barbárie cotidiana a qual somos submetidos, o que ficou comprovado pela expansão da revolta para outros espaços periféricos da cidade, e tendo outras pautas, nem sempre diretamente relacionadas à questão do transporte público, como por exemplo os protestos contra a repressão policial nas favelas “pacificadas” pelas UPPs cariocas. Nesse sentido os protestos apareceram como forma de liberação e desencadeamento de uma rebeldia mais ou menos instintiva contra a ordem de coisas e contra algumas das facetas mais desagradáveis do capitalismo, como por exemplo a expulsão da classe trabalhadora para a periferia das cidades, o que visa manter a especulação imobiliária no centro e tem como consequência que aqueles que ali trabalham se veem forçados a perder até 5 horas de seu dia dentro de meios precários e caros de transporte de casa ao trabalho. Essa liberação da rebeldia já fez de 2013 um ano paradigmático da história brasileira, uma vez que ninguém poderá negar que a classe trabalhadora conquistou naquele ano aquilo pelo qual lutou, e isso num país em que as principais mudanças societárias jamais foram reconhecidas como fruto da luta do povo e sim como concessão dos poderosos.

Há quem defenda que enquanto o automóvel for o meio de transporte mais amplamente usado e as ruas o principal meio de escoamento das mercadorias seus bloqueios continuarão a gerar transtornos político-econômicos suficientes para que a luta obtenha resultados. O limite da tática da revolta popular residiria, então, somente no âmbito da estratégia mais pretensiosa (a consolidação da tarifa zero e a viabilização da autogestão da cidade), enquanto a tática da revolta popular seguiria sendo suficiente para garantir o atendimento da demanda defensiva pela revogação dos aumentos. Por outro lado, existe um outro aspecto do limite da tática, o qual reside, e talvez este seja o nó górdio da questão, no próprio modus operandi da organização da luta e dos protestos, em geral feita por uma vanguarda constitutiva do MPL e coletivos afinados politicamente com ele. É verdade que essa organização contava e ainda conta com o aprimoramento espontâneo das táticas no calor das lutas. Quanto a isso caberia lembrar a formação espontânea, ainda no início daquele junho, de grupos de manifestantes que se colocavam nas extremidades dos atos, assumindo a tarefa de conter a violência policial, preservando a integridade física dos demais. Essas fileiras “militares” eram inicialmente simplesmente reconhecidas como “vândalos”, mas acabaram por se cristalizar, no refluir daquele ascenso de massas, sob a identidade do ”black bloc”, incorporando a referência de uma cultura de resistência que surgira em contextos de outros países. Esta logo tornou-se pauta preferida dos grandes meios de comunicação e dos inquéritos policiais, e entre os adeptos do black bloc a ação passou a ser um fim em si mesma. Esses setores passaram a ser um problema extra a ser manejado pelos movimentos de rua, na medida em que recorrentemente se recusavam a se submter às propostas coletivas nos atos, e também do fato de que o caráter mascarado e “incontrolável” de cada black bloc tornou essa fileira a mais frágil para a infiltração de P2 [policiais infiltrados].

Pontuadas essas questões, cabe questionar se bastaria ao MPL e coletivos amigos repetir um “novo junho” em janeiro de 2015 para vermos atendidas nossas demandas pela redução da tarifa. Será?

Pistas
A nova onda de lutas contra a tarifa iniciou há algumas semanas e já lança luz sobre os limites e possibilidades da tática vitoriosa em 2013. Até aqui tivemos de 3 a 4 atos nas principais cidades do país, os quais demonstraram, acima de tudo, que o que não falta é disposição para a luta. Nos quatro atos que tivemos até aqui em São Paulo o Governo Estadual através da Polícia Militar tentou minar tanto a tática do bloqueio das ruas quanto a dos danos às propriedades, sendo inclusive competente em evitar que os protestos ocorressem na Avenida Paulista. Tal fato indica que ainda existem problemas na tática, mas tais problemas bastam para que atestemos que ela contém em si mesma um limite estrutural, insuperável? Cabe pensar com cuidado essa questão, fundamental para a realização da própria estratégia da tarifa zero sob controle popular.


Pode-se dizer que a forma organizativa mais ou menos “conspiratória” da revolta popular e a estratégia de pressionamento do poder público via ocupação em massa das principais vias da cidade, levando-a a “parar”, constituiu uma tática que chegou ao ápice e se tornou parcialmente anacrônica ainda em 2013. De fato, não obstante os atos sigam empolgando os manifestantes e a população urbana que toma contato direto com os protestos, apoiando-o a partir de suas casas, apartamentos e locais de trabalho no decorrer das passeatas, ao que parece a nova onda de protestos em 2015 surge e se desenvolve num ritmo diferente. O grande número de manifestantes, bem como a forte repressão policial, não mais surpreende e não chega a encher de indignação à população que não participa dos atos e não sente na própria pele a violência gratuita dos policiais, tal como ocorreu em 2013, o que até aqui tem dado certa folga aos governantes e capitalistas do setor de transporte. Se nos atermos à opinião pública em geral e aos resultados atingidos até aqui, poderia parecer que estamos diante de uma progressiva saturação da revolta popular enquanto forma de luta, muito embora contra todas as adversidades essa tática ainda se mostre sedutora ao ponto de levar milhares de pessoas às ruas. Tal é a energia da revolta popular, que não toma ciência dos próprios limites e encara de frente a repressão do Estado.

Se quisermos pensar seriamente os limites e potencialidades da tática da revolta popular precisamos ter em mente que todos os atores envolvidos no novo ciclo de lutas contra a tarifa já se apresentam diante dos protestos a partir de um outro patamar de experiência e, exatamente por terem vivenciado as jornadas de 2013, se colocam desde o início a partir de um outro lugar, munidos de táticas mais ou menos renovadas.

Os governantes, por exemplo, já largam a disputa em várias cidades do país com a carta na manga do “benefício” do passe livre estudantil, visando com isso arrefecer as lutas por meio da não participação dos estudantes contemplados, ao mesmo tempo em que procuram reverter essa concessão (conquistada na luta) em ganhos para sua própria imagem pública.

A polícia, por outro lado, aperfeiçoou sobremaneira suas táticas contra-insurgentes e já não deixa escapar rotas de fuga aos manifestantes, cercando permanentemente todo o ato e antecipando ataques com vistas à dispersão, quando não evitando o próprio ato de ocorrer [2].
A mídia comercial já não gasta tanto tempo de seus noticiários divulgando a luta e denunciando os abusos, e quando noticia os atos demonstra o quanto aprimorou seus métodos próprios de contra-informação e manipulação da opinião pública a favor de seus próprios interesses, que em geral coincidem com os do poder público e dos capitalistas do ramo do transporte.

Já os manifestantes também contam com seu acúmulo de experiência pós-junho de 2013, o que todavia não se mostrou ainda suficiente para contrabalançar a evolução tática dos mecanismos contra-insurgentes de governo, mídia e aparato policial. Uma interessante inovação da parte da extrema-esquerda reside nas Assembleias populares para decisão do trajeto do ato, o que dá menos tempo para as forças policiais armarem suas estratégias repressivas e se posicionarem de antemão ao longo do trajeto a fim de garantir a eficácia de seus estratagemas. Ao mesmo tempo, tais Assembleias permitem aos manifestantes colocar em prática os mecanismos de democracia direta que se pretende pôr em prática quando a tarifa zero for conquistada e a autogestão do transporte público estiver nas mãos dos usuários.

Já da parte da esquerda governista, há a articulação de uma Frente de Esquerda [3] que no âmbito dos protestos contra a tarifa tem repercutido no sentido de uma inovadora tentativa de minar os protestos por fora, via acordos [4] [5] em reuniões arranjadas com os governantes e/ou promoções de atos paralelos aos do MPL, porém com a mesma pauta de revogação do aumento da tarifa. Não por acaso tais atos não recebem o mesmo tratamento repressivo da parte do aparato policial: levados a cabo por organizações menos combativas e mais voltadas para os acordos institucionais entre Estado e movimentos sociais, esses atos vão na mesma mão dos interesses do governo e por isso sua realização agrada aos governantes: basta vermos o caso do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), que fez em São Paulo, dois dias antes do 2º Ato do MPL-SP, um ato que passou por dentro de um terminal de ônibus e se encerrou com a entrega das reivindicações na Secretaria de Transporte, sendo aclamado pela mídia como um ato “de caráter pacífico”, enquanto os atos do MPL são propositalmente reprimidos pela polícia, reforçando o discurso midiático de que o MPL seria intransigente, violento etc., e visando distribuir o medo entre os manifestantes, na tentativa de diminuição do contingente nestas manifestações.[6] [7] E temos também uma decidida tentativa de disputa, da parte da esquerda governista, da hegemonia dentro dos próprios atos do MPL. As ofensivas vêm de toda parte, é preciso estar atento para antecipar os movimentos dos adversários da tarifa zero.

Esse novo cenário não foi suficiente para impedir que novos atos organizados pelo MPL ocorressem e sigam ocorrendo, com massiva presença de dezenas de milhares de manifestantes descontentes com o aumento da tarifa. O que mudou é que até o momento esses gigantescos atos parecem exercer uma pressão muito menor sobre o poder público, no sentido deste se ver impelido a atender às reivindicações, se compararmos à pressão que atos até mesmo de igual magnitude exerceram há cerca de um ano e meio. Será que a persistência da luta e sua ampliação, mesmo que chegue outra vez a levar milhões de pessoas às ruas, bastará para reverter esse quadro e incomodar o poder público e os capitalistas do transporte o suficiente para que vejamos atendida a demanda pela revogação do aumento? Nesse caso a tática da revolta popular mostraria que ainda tem o que render enquanto forma de luta contra a tarifa. Mas e se o fôlego deles for maior que o ânimo da rebeldia popular, que faremos além de seguir ocupando e nos reapropriando das ruas e principais vias da cidade? Quem terá mais fôlego, os estratagemas contra-insurgentes ou a rebeldia popular?
Rotas de fuga do limite
O desenvolvimento dos aparatos e táticas repressivas, bem como o aperfeiçoamento das técnicas midiáticas de contra-informação e todo o conjunto de dificuldades que os protestos de rua apresentaram e seguem apresentando levaram o MPL a prever esse cenário crítico e chegar à conclusão de que um novo junho talvez não bastaria para se ver atendida a demanda pela anulação do aumento, e muito menos a tarifa zero. Era preciso, portanto, antecipar o limite da tática oxigenando-a, se o movimento quisesse obter novas vitórias rumo ao passe livre.

Por esse motivo o MPL vem promovendo e incentivando, paralelamente aos tradicionais atos de rua no centro, atos diferenciados nas periferias das grandes cidades, e recentemente tem se esforçado, com sucesso, para realizar os próprios Atos na periferia da capital paulista.[8] O intuito é potencializar a amplitude política e geográfica dos protestos, descentralizando-os, o que pode dificultar sua repressão policial e reforçar a pressão sobre o poder público. Ao mesmo tempo esse movimento de abertura do leque político traz consigo a potencialidade de radicalização das revoltas populares nos bairros e locais de trabalho, extrapolando em muito o controle e capacidade organizativa do próprio MPL. Essa iniciativa vem sendo seguida de perto pelas organizações afinadas com os governos estadual e municipal. O MTST, por exemplo, passou a reproduzir a tática de realização dos atos contra o aumento da tarifa na periferia, sem somar com os atos convocados pelo MPL, mas tentando adiantar-se a eles.[9] Ao mesmo tempo, tais atos visam manter a posição do MTST enquanto movimento que é capaz de mobilizar a classe e, portanto, um movimento com o qual os governos precisam seguir negociando.

Ao oferecer espaços de mobilização e de organização da classe, o MPL e outras organizações buscam superar um dos supostos limites das revoltas de 2013: a falta de espaços organizativos capazes de garantir o maior envolvimento da classe trabalhadora como um todo (desempregados, trabalhadores informais e assalariados de carteira assinada), não apenas nos protestos de rua, mas em articulação com as lutas específicas nos locais de trabalho e moradia. O foco, naturalmente, reside nos trabalhadores urbanos, mas o movimento feito certamente tem a potencialidade de atingir o entorno da cidade, especialmente as zonas que também sofrem os percalços de um transporte público caro e de péssima qualidade, ou até mesmo bairros que ainda não dispõem de linhas de transporte público.

Além disso, ao trabalhar no surgimento e desenvolvimento de espaços de organização de classe o movimento social abre uma via de escape para a fração da classe trabalhadora que está organizada em siglas assimiladas pelo petismo (por exemplo, em ordem cronológica, CUT, MST e MTST).
Em 2013 algumas cidades, especialmente São Paulo e Rio de Janeiro, foram palco de revoltas explosivas e espontâneas em diversos pontos da cidade, simultaneamente. Foi um belo começo de generalização da revolta popular, mas os trabalhadores não conseguiram manter e estender maciçamente essa revolta popular nas periferias e locais de trabalho, criando assim as condições para uma radicalização das lutas que chegasse a tomar a forma de uma greve geral constitutiva de órgãos de poder popular, o que certamente levaria à contestação de bem mais que os 20 ou 50 centavos da tarifa. Se a classe trabalhadora lograsse essa auto-superação de suas formas de luta tradicional em prol das lutas de base, mais ou menos espontâneas, que surgiram junto e na sequência da onda de protestos do segundo semestre de 2013 (greves selvagens contrárias à posição conciliadora dos sindicatos, tal como no caso da greve dos garis e motoristas/cobradores cariocas, ou ainda ocupações espontâneas de terrenos nos extremos sul e leste de São Paulo), exercendo um tipo de pressão radical por sobre a base dos próprios aparatos de luta historicamente assimilados, teríamos talvez as condições para desdobramentos insurrecionais que justificariam a histeria de alguns sobre a “pré-revolução brasileira” e coisas do gênero. Mas o fato é que estivemos e seguimos ainda muito longe desse patamar de ofensiva anticapitalista.

Podemos avançar rumo à radicalização das lutas por meio da articulação pela base de pautas específicas e métodos organizativos de revolta popular para além do modelo de protesto em massa que se reapropria e obstrui as principais ruas da cidade? Se conseguirmos, a revolta popular demonstraria que contém em si mesma a semente da organização de órgãos de controle popular da produção e reprodução da vida social, e então a tarifa zero será apenas o começo de uma onda de conquistas substantivas para a classe trabalhadora.

Notas

[1] Revolta popular: o limite da tática. Caio Martins e Leonardo Cordeiro.










Fonte: http://passapalavra.info/2015/01/102196

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