segunda-feira, 31 de julho de 2017

Situacionismo, 60 anos - Por Erick Quintas Corrêa

Situacionismo, 60 anos
Da esquerda para a direita, os fundadores da IS em Cosio di Arroscia (Itália): Giuseppe Pinot Gallizio, Piero Simondo, Elena Verrone, Michele Bernstein, Guy Debord, Asger Jorn e Walter Olmo.

Pistas para compreender o movimento anticapitalista fundado entre outros por Guy Debord, influente em 1968 e que ousou propor a “reaparição do movimento revolucionário moderno“
No dia 27 de julho de 1957, há sessenta anos, a Internacional Situacionista (IS) era fundada na província italiana de Cosio di Arroscia, por alguns intelectuais e artistas de diferentes grupos de vanguarda da Europa.

Em seu Prefácio de 1979 à quarta edição italiana de A sociedade do espetáculo, Guy Debord (1931-94), o mais influente membro da organização, realiza uma síntese de seu próprio percurso, indissociável do desenvolvimento que o levaria do letrismo de Isidore Isou, no início dos anos 1950, à fundação da Internacional Letrista (1952-57) e, posteriormente, da Internacional Situacionista (IS – 1957-72)
“Em 1952, quatro ou cinco pessoas pouco recomendáveis de Paris decidiram investigar a superação da arte. Por feliz consequência da marcha ousada nessa direção, as velhas linhas de defesa que haviam barrado as ofensivas anteriores estavam descontroladas e corrompidas. Surgiu assim a ocasião de se tentar mais uma. Essa superação da arte é a ‘marcha para noroeste’ da geografia da verdadeira vida, que tantas vezes fora buscada durante mais de um século, sobretudo a partir da autodestruição da poesia moderna. As tentativas anteriores, em que tantos exploradores se perderam, nunca tinham chegado diretamente a essa perspectiva. Talvez porque ainda lhes faltasse devastar alguma coisa da velha província artística, e sobretudo porque a bandeira das revoluções parecia manejada anteriormente por outras mãos, mais experientes. Mas, além disso, nunca essa causa havia sofrido derrota tão completa nem havia deixado o campo de batalha tão vazio, como no momento em que viemos ocupá-lo” (1997, p. 152).
Os doze números da revista “Internationale Situationniste” publicada entre 1958 e 1969 pela organização homônima fundada em 1957 e dissolvida em 1972.

O termo “situacionista” aparece pela primeira vez em novembro de 1956, em um ensaio do então Guy-Ernest Debord (aos vinte e cinco anos) chamado “Teoria da deriva”, publicado no nono número da revista pós-surrealista belga Les Lèvres Nues e, mais tarde, republicado no segundo número da revista da IS: “Entre os diversos procedimentos situacionistas, a deriva se define como uma técnica de passagem veloz através de ambiências variadas” ([1958] 1997, p. 51). Segundo advertem os próprios situacionistas em 1964, o termo “exprime exatamente o contrário daquilo a que, em português, se chama […] um partidário da situação existente” (1997, p. 388).
É curioso notar como o termo “situacionista” também ganharia em língua portuguesa outro sentido, agora oriundo do universo artístico de vanguarda, na obra do brasileiro Hélio Oiticica:

“Nessa fase da arte na situação, de arte antiarte, de ‘arte pós-moderna’ […] os valores propriamente plásticos tendem a ser absorvidos na plasticidade das estruturas perceptivas e situacionistas” (PEDROSA, [1965] 1986, p. 9. Grifos nossos). Entretanto, para os situacionistas, os happenings e performances artísticas apresentavam-se senão como imagem invertida da construção de situações perseguida pela IS: “Falamos de recuperação do jogo livre, quando ele é isolado no único terreno da dissolução artística vivida” ([1963] 1997, p. 316).
Nas Teses sobre a Internacional Situacionista e seu tempo (1972), publicadas após o refluxo gerado pela derrota da greve geral com ocupações de fábricas e universidades de maio-junho de 1968, Debord e Sanguinetti (os últimos remanescentes da organização), realizam um balanço histórico da experiência situacionista, no momento de sua autodissolução: “o que chamam de ‘ideias situacionistas’ nada mais são do que as primeiras ideias do período de reaparição do movimento revolucionário moderno. O que é radicalmente novo nelas corresponde precisamente às novas características da sociedade de classes, ao desenvolvimento real de suas conquistas passageiras, de suas contradições, de sua opressão […] é evidentemente o pensamento revolucionário nascido nos dois últimos séculos, o pensamento da história, restaurado nas atuais condições como em sua casa; não ‘revisado’ a partir de suas próprias posições antigas legadas como um problema aos ideólogos, mas transformada pela história atual. A IS teve sucesso simplesmente na medida em que exprimiu ‘o movimento real que suprime as condições existentes’ e que soube exprimí-lo” (2006, p. 1088-9).

Referências
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo; Prefácio à 4ª edição italiana de A sociedade do espetáculo; Comentários sobre A sociedade do espetáculo [1967, 1979, 1988]. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
______. Œuvres. Paris: Gallimard, 2006.
PEDROSA, Mário. “Arte ambiental, arte pós-moderna, Hélio Oiticica”. In: OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
SITUATIONNISTE, International. Internationale Situationniste (1958-1969). Texte intégral des 12 numéros de la révue. Paris: Fayard, 1997.

Erick Quintas Corrêa é autor de uma dissertação de mestrado em Ciências Sociais (UNESP/FCLAr, com apoio do CNPq) intitulada Guy Debord: Crítica e crise da sociedade do espetáculo (2017).

Fonte: http://outraspalavras.net/destaques/situacionismo-60-anos/

Queda de braço entre Venezuela e o Império do Mal - por Latuff

Fonte: https://www.brasildefato.com.br/artes/2017/07/30/charge-do-latuff-queda-de-braco-entre-venezuela-e-o-imperio/

sexta-feira, 28 de julho de 2017

MST ocupa terras de corrupto - por Latuff

Fonte: https://www.brasildefato.com.br/artes/2017/07/25/mst-ocupa-terras-de-corrupto/

Pouco tempo para evitar a grande barbárie – por Eduardo Mancuso

Pouco tempo para evitar a grande barbárie
O capitalismo está em crise global, mas os atores que poderiam oferecer uma alternativa parecem enfraquecidos e dispersos. Rosa Luxemburgo e Marcuse serão capazes de insinuar uma saída?

I.
Há pouco mais de uma década ainda se falava de um mundo unipolar. O colapso da União Soviética e o fim da Guerra Fria, no início dos anos 1990, haviam dado o domínio absoluto da globalização capitalista e da geopolítica mundial aos EUA, como única superpotência existente. A grande preocupação das potências ocidentais era com o acelerado crescimento econômico global da China, já que a Rússia, isolada pelo avanço e cerco da OTAN em sua antiga área de influência do Leste Europeu, ainda se recuperava da transição selvagem ao capitalismo conduzido pelo FMI, e da crise financeira de 1998.
No início do século XXI, a América Latina, com a resistência heroica de Cuba e o ciclo de vitórias eleitorais de governos de esquerda e progressistas, era a única região em que alternativas soberanas e democráticas ao neoliberalismo e aos EUA se desenvolviam, na contracorrente mundial. Após a derrota histórica das esquerdas no final do século 20 – colapso do comunismo burocrático e dos nacionalismos anti-imperialistas, conversão da social-democracia ao liberalismo – o mundo unipolar parecia se impor no planeta. O capitalismo global triunfante proclamava a sua Nova Ordem Mundial.

II.
Por outro lado, em janeiro de 2001, o novo século iniciava de forma promissora com o Fórum Social Mundial de Porto Alegre. O FSM afirmava que “o mundo não é uma mercadoria”, e que “outro mundo é possível”, fazia o contraponto ao Fórum Econômico Mundial, dos ricos e poderosos de Davos, e reunia os movimentos políticos e sociais que lutavam contra a globalização capitalista.

O novo internacionalismo altermundialista emergia, inaugurado pelo levante zapatista de 1994, ampliado pelas manifestações antineoliberais de Seattle, em 1999, e de Washington, em 2000 (momentos marcantes da emergência da nova esquerda global), mostrando que a utopia da emancipação humana continuava viva. Então, chegou o 11 de setembro, com os terríveis atentados nos EUA, perpetrados pela Al-Qaeda. Este evento marcou tragicamente o início do século 21, deflagrando uma nova época, caracterizada pelo choque de barbáries. Ao contrário da previsão conservadora do “choque de civilizações”, o que o mundo assistiu a partir daí (como vítima), foi o confronto de barbáries reacionárias: do imperialismo belicista, financeiro e tecnológico, e de seus aliados (como as monarquias petrolíferas do Golfo); com o crescimento da extrema-direita, em suas mais variadas formas e com o retorno do fascismo; e a expansão global do terrorismo jihadista (monstros criados pelo imperialismo).
Após a superpotência deflagrar sua resposta militarista ao terror, invadindo o Afeganistão do Taleban, santuário de Bin-Laden e da Al-Qaeda, o governo neoconservador de Bush Jr. lança seu plano de reorganização do Oriente Médio, estágio inicial para pavimentar o caminho do “novo século americano”. Invade o Iraque, passando por cima da divisão existente na ONU, enfrenta as maiores manifestações de massas da história, contra a guerra e pela paz, que se espalharam por centenas de cidades do planeta, entre 2002 e 2003, e inaugura a sua “cruzada pela democracia”, justificando a invasão com mentiras sobre supostas “armas de destruição em massa” de Sadan Hussein.

No começo da aventura imperialista da “Guerra Global contra o Terror”, sob o comando do cada vez mais direitista Partido Republicano, atendendo aos interesses do complexo industrial-militar e das grandes empresas petrolíferas, os EUA acreditavam que consolidariam a sua hegemonia inconteste sobre a nova ordem mundial. Na verdade, em poucos anos, semearam o caos geopolítico e comprometeram o próprio plano de relançamento da hegemonia global dos EUA. Infelizmente, para a humanidade, o projeto imperialista havia deflagrado uma dialética reacionária que empurraria o mundo para o choque de barbáries e a crise de civilização.
III.
Uma década e meia depois qual é a situação mundial? Estagnação econômica e desemprego estrutural, desigualdade crescente e regressão social, mudança climática e risco de colapso ecológico, crise de hegemonia e caos geopolítico, migrações maciças e a pior crise humanitária já vista (conforme a Cruz Vermelha). Um mundo em que a maior crise econômica desde 1929 (Grande Depressão), iniciada em 2008, no coração do capitalismo financeiro anglo-saxão, não parece ter fim. Ao contrário, transformou-se em Grande Recessão (alguns falam de Estagnação Secular).

O sonho neoconservador de prolongar o “momento unipolar” dos EUA nos anos 1990, e relançar a hegemonia global por todo o século 21, virou pesadelo. Nesse curto espaço de tempo, o governo de Bush Jr. atolou os EUA no pântano do Oriente Médio, com guerras desastrosas que minaram e desgastaram a superpotência imperial, desorganizaram a região, produziram o caos e a destruição de países, com centenas de milhares de mortes e milhões de refugiados, além de gerar “fábricas” de terroristas, especialmente o abominável Estado Islâmico.
O reflexo desse fracasso foi tremendo, a ponto de impedir o governo do Partido Democrata, de operar o planejado pivô da política externa para a região da Ásia-Pacífico (buscando retomar o protagonismo e conter a China). Durante oito, anos Obama tentou, mas não conseguiu retirar os EUA do atoleiro do Oriente Médio. Tampouco os EUA de Obama conseguiram superar a crise de 2008 (que já vai completar uma década), o que expressa o esgotamento da globalização neoliberal, que jogou a economia mundial em uma longa recessão, com as significativas exceções da China (mas que foi obrigada a reduzir o seu alto patamar de crescimento), Índia, Austrália e dos países do Sudeste Asiático, o que também demonstra o relativo deslocamento de poder do Ocidente para o Oriente.

Uma década de crise mostra, em primeiro lugar, que o fenômeno não é conjuntural, mas sistêmico e estrutural; em segundo lugar, que se constitui a partir da convergência de várias crises: econômica, financeira, social, geopolítica, ecológica. A partir desta compreensão, o FSM de 2009, em Belém do Pará, caracterizou a situação mundial como de crise de civilização. Esse conceito não significa a previsão de um colapso iminente do sistema-mundo capitalista, mas a sua insustentabilidade, a longo prazo, e o seu declínio inevitável, que, caso não seja detido, pode arrastar a humanidade para a barbárie e para o colapso ambiental.
Segundo Thomas Piketty, os níveis de desigualdade atuais se aproximam daqueles existentes no início do século XX (a Oxfam calculou que apenas oito megabilionários globais possuem riqueza equivalente à da metade mais pobre da população do planeta, ou seja, incríveis 3 bilhões e 600 milhões de seres humanos!); e a economia mundial não retomará o crescimento das últimas décadas, muito menos o padrão do capitalismo fordista e keynesiano do pós-guerra (“30 anos de ouro”).

IV.
O capitalismo financeiro globalizado é uma máquina de exclusão, desdemocratização, desemprego estrutural, ataques ao Estado de Bem Estar, aos direitos dos trabalhadores e dos povos. Nessas primeiras décadas do século XXI, como lembrou o sociólogo e ativista do FSM, Boaventura de Sousa Santos, a democracia perdeu a luta para o capitalismo, que gera apartheid social e implementa uma “democracia de baixa intensidade”. A crise mundial, provocada pelo neoliberalismo, não encontrou ainda uma alternativa democrática. E o paradoxo é que, após os governos salvarem os mercados do próprio colapso, agravaram dramaticamente a situação fiscal, tornando-se ainda mais reféns do sistema financeiro, além de politicamente instáveis e antipopulares.

Assim, com a crise mundial assistimos não ao surgimento de um novo padrão capitalista de desenvolvimento (mais regulamentado e menos selvagem), mas o relançamento agressivo do projeto político neoliberal das elites financeiras — isto é, a luta de classes dos ricos contra os pobres. Políticas austericidas na Europa; ataques dos mercados contra os direitos dos trabalhadores mundo afora. Para essa situação contribuíram decisivamente as derrotas e o refluxo das resistências democráticas dos povos e dos movimentos sociais na última década (do altermundismo, Primavera Árabe, Indignados e Occupy Wall Street; capitulação do Syriza, e os golpes contra o ciclo de governos progressistas na América Latina), sobrepujados pelo relançamento agressivo do projeto neoliberal de luta de classes contra os pobres em escala internacional – o capitalismo das elites financeiras – responsável pela irreversibilidade do aquecimento global e pelos futuros desastres ambientais. Pode-se resumir o neoliberalismo como a forma e o conteúdo do capitalismo nas últimas décadas, ideologia dominante e dogma do “pensamento único”, o projeto político dos ricos contra a maioria da humanidade.
V.
Temos hoje um mundo multipolar, em crise sistêmica, profundamente injusto e instável, no qual a única superpotência perdeu a condição de plena hegemonia, vive grandes contradições políticas internas e não tem capacidade de liderar a ordem global ou relançar a economia mundial. O fenômeno político Trump na presidência dos EUA é um sintoma do declínio. Em poucos meses produziu abalos significativos na estratégia imperialista ocidental (UE, OTAN, Acordo Transpacífico, Acordo Climático de Paris, G20), que explicitam a crise de hegemonia das potências imperialistas e da própria superpotência mundial. Para o nacionalista Trump, a União Europeia (superpotência econômica, mas pouco relevante na geopolítica), representa competição comercial e gastos excessivos para os EUA, ou seja, um “mau negócio”.

A União Europeia (UE) encontra-se em uma encruzilhada: o impacto da crise econômica e financeira atingiu-a fortemente, o “déficit democrático” e a austeridade ortodoxa do projeto europeu tem alimentado a crise social e política do bloco, gerando crise de legitimidade, crescimento dos nacionalismos e da extrema-direita. A saída do Reino Unido (com o Brexit) e o governo Trump enfraqueceram muito a UE. Se a Alemanha de Merkel consolida sua liderança, em aliança com a França (agora sob o “neoliberalismo progressista” de Macron), pode apenas administrar a estrutura institucional e a economia do euro, sem poder competir com as grandes potências.
Enquanto isso, a China ocupa os espaços abertos pelos EUA (comerciais, diplomáticos e ambientais); e a Rússia se recoloca no tabuleiro internacional, depois do colapso dos anos 1990 e da humilhação produzida pelo cerco da OTAN, absorvendo suas antigas áreas de influência (descumprindo os acordos com Gorbachov). No início do século XXI, a China evitava envolver-se em disputas internacionais, mantinha um discreto protagonismo diplomático, centrado no seu próprio fortalecimento. Mas nos últimos trinta anos, teve o mais rápido desenvolvimento econômico da história da humanidade, que converteu um país de camponeses pobres na potência econômica mais relevante do planeta, junto com os EUA. Transformar-se na “fábrica do mundo” em poucas décadas teve um alto custo para a China, com sua transição econômica para um capitalismo de Estado globalizado, sob a “ditadura do proletariado” do Partido Comunista: corrupção sistêmica, urbanização e consumismo desenfreados, aumento da desigualdade, autoritarismo estatal, poluição e desastres ambientais. Porém, suas grandes reservas financeiras, incomparável capacidade industrial, a expansão de seus investimentos em diversas regiões do globo (África, Ásia e América Latina), o aumento da capacidade militar e a aliança estratégica com a Rússia (fornecedora de energia e de tecnologia militar), são pontos fortes da potência emergente.

Por outro lado, os EUA possuem um conjunto de alianças e bases militares na região Ásia-Pacífico, e tem usado a questão da Coreia do Norte como elemento de pressão (negando-se a estabelecer um elementar acordo de paz definitivo, uma situação que se arrasta desde a Guerra da Coreia), enquanto a China ainda não tem status de potência naval para competir diretamente (mas já vem desenvolvendo novas alianças regionais e a sua marinha de guerra de forma acelerada). A Rússia reergueu-se no cenário internacional e, mesmo sem voltar à condição de uma superpotência, como a antiga União Soviética, ainda é o único poder nuclear a fazer frente aos EUA. A fobia anti-Rússia dos EUA empurrou o gigante da Eurásia para uma aliança estratégica com a China, incluindo a criação da poderosa Organização para a Cooperação de Xangai, entre outros projetos comuns; e os erros estratégicos das potências ocidentais no Oriente Médio, e a provocação golpista na Ucrânia, permitiram ao regime autoritário de Putin vitórias militares e diplomáticas na Síria e na Crimeia (a política de Trump para Cuba, também abriu a oportunidade do retorno da relação russa com a ilha socialista).
VI.
O cenário do próximo período aponta para a continuidade da crise econômica (sujeita ao estouro de uma nova bolha financeira), baixo crescimento, desemprego estrutural e exclusão social crescentes, ataque aos direitos dos povos, desastres ambientais, caos geopolítico, e uma confusa assimetria multilateral (característica da atual desordem mundial), sem hegemonia clara, além da ditadura das finanças globais.

A hipótese de aliança de um bloco Rússia e China com os EUA, poderia conformar um novo sistema internacional bipolar, na medida em que a potência asiática emergente (ainda) não explicita um projeto de hegemonia global, enquanto a superpotência ocidental declinante não consegue sustentar mais o poder absoluto. Os EUA continuam tendo enorme poder científico, tecnológico, energético, cultural e econômico, além de incomparável poder militar, capaz de se projetar em todo o planeta (nesse aspecto, somente a Rússia pode confrontar os EUA no terreno do armamento nuclear estratégico). Mas todo o poderio dos EUA não foi suficiente para superar a crise econômica e financeira mundial, manter a liderança hegemônica ou vencer as guerras assimétricas no Afeganistão (a mais longa dos EUA) e no Iraque.
VII.
Para o sociólogo Immanuel Wallerstein, o sistema-mundo capitalista vive uma crise estrutural, e parece ter entrado em um período de transição, que deve durar décadas. Nessa transição sistêmica, bifurcações históricas devem se multiplicar e alternativas podem surgir mais facilmente do que em períodos em que o sistema está estabilizado. Porém, sem o surgimento de alternativas democráticas sustentáveis, impulsionadas por sujeitos políticos coletivos (e não por novas hegemonias estatais), o sistema pode continuar o seu declínio e arrastar a sociedade para a barbárie e a destruição de todas as classes envolvidas (como Marx e Engels assinalaram no Manifesto Comunista).

O capitalismo encontra-se em crise terminal, de longa duração, que pode desembocar em guerras generalizadas (simétricas e/ou assimétricas), crise humanitária, estagnação econômica prolongada, desastres ecológicos e aumento exponencial da exclusão e da desigualdade. O tempo para a humanidade encontrar uma saída democrática e sustentável está se esgotando.
Existe o perigo real de que os EUA, na medida em que não consigam retomar a condição hegemônica ou construir um acordo bipolar com a China ou a Rússia, lancem mão de guerras para manter sua dominação global. A presidência de Trump, como um comerciante da morte, vendendo bilhões de dólares em armas sofisticadas para seus aliados (alguns, inclusive, são inimigos entre si), em pleno caos geopolítico do Oriente Médio, se parece com a imagem do piromaníaco dentro do paiol de pólvora.

A alternativa democrática e ecológica à crise de civilização capitalista depende da emergência de um amplo movimento popular e progressista mundial, capaz de retomar, em escala ampliada, a agenda e o papel que o altermundismo cumpriu na virada do século, superando a dialética reacionária do choque de barbáries, impondo uma alteração radical na correlação de forças sociopolíticas, para buscarmos uma mudança de paradigma socioeconômico em escala global.
A frustração política de uma urgente revolução democrática mundial e/ou de um novo período de reformismo social sustentado (uma “utopia possível”, ou uma “utopia disponível”), significará que as catástrofes continuarão a se acumular no horizonte da humanidade (conforme a terrível imagem do Anjo da História, de Walter Benjamin). Para o historiador marxista Mike Davis, contra este futuro devemos lutar como o Exército Vermelho nas ruínas de Stalingrado. Lutar com esperança, ou sem ela, mas em todos os casos, lutar.

VIII.
Quais seriam, então as tarefas de uma nova esquerda mundial para superar as derrotas históricas (e as mais recentes) e assim poder enfrentar e superar a crise de civilização capitalista?

Em primeiro lugar, como ressalta Boaventura de Sousa Santos, as esquerdas precisam unir-se em torno das convergências fundamentais, minimizando as divergências, para assim buscar a hegemonia ampla necessária para impor soluções programáticas alternativas à agenda repressiva, excludente e antiecológica dos imperialismos e da ditadura dos mercados. Essa unidade na diversidade é absolutamente fundamental, pois é preciso ter claro que, como lembra o filósofo Slavoj Zizek:
a nova política emancipatória não será ato de nenhum agente social particular, mas combinação explosiva de diferentes agentes. O que une todos, nesse caso, é que, diferente da imagem clássica dos proletários que nada tinham a perder “além de suas cadeias”, todos estamos sob risco de perder tudo.

Como roteiro para a construção da contra-hegemonia anticapitalista (ecossocialista?), Göran Therborn sugere uma bela síntese: organizar e apoiar a resistência à exploração capitalista, à brutalidade humana e às ameaças ao ambiente e lutar por uma vida boa para os 99% da população mundial. O grande sociólogo sueco lembra que essas são proposições marxistas clássicas, mas que alcançá-las hoje requer novas análises e inovações criativas em matéria de organização e mobilização.
Como estamos no centenário da Revolução de Outubro de 1917, talvez seja uma boa ideia para a esquerda mundial retomar (e recriar) seus melhores valores e ensinamentos estratégicos: a atualidade da utopia expressa na democracia soviética e em seu programa de paz entre as nações e os povos; a política de Frente Única da Internacional Comunista, de Lenin e Trotsky (que combinava resistência ao inimigo comum com luta pela hegemonia); o internacionalismo dos explorados e oprimidos, inspirado nos princípios fundadores, solidários e democráticos, de autonomia e diversidade da Primeira Internacional de Marx, e o seu compromisso maior com a emancipação humana.

Rosa Luxemburgo, durante a Primeira Guerra Mundial, anunciou o dilema da história moderna: socialismo ou barbárie. Walter Benjamin, no início da Segunda Guerra Mundial, lançou um alerta “heterodoxo” ao avanço da barbárie, que continua atual na pós-modernidade:
Marx disse que as revoluções são a locomotiva da história mundial. Mas talvez as coisas se apresentem de maneira muito distinta. Pode ser que as revoluções sejam o ato pelo qual a humanidade que viaja nesse trem aciona os freios de emergência.

Imagem: Otto Dix, Tropas de choque avançam sob gás (1924)
Fonte: http://outraspalavras.net/mundo/america-latina/pouco-tempo-para-evitar-a-grande-barbarie/

quinta-feira, 27 de julho de 2017

A “limpeza social” de Alckmin e Dória na “São Paulo, Cidade Linda”! - por Latuff

Fonte: https://latuffcartoons.wordpress.com/

Anselm Jappe: “As camadas mais reacionárias do Brasil retomaram o seu antigo poder”

Anselm Jappe: “As camadas mais reacionárias do Brasil retomaram o seu antigo poder”

"Em todo o mundo, a crise ressuscitou os piores reflexos do passado, em particular o racismo, o antissemitismo e o desprezo pelos pobres. E no Brasil, ressurgiram as atitudes herdadas de uma sociedade escravocrata. Não é o custo – bastante moderado – do Bolsa Família que escandaliza, mas a ideia de que os pobres possam ter direitos."

A atual crise política no Brasil é um sintoma da impossibilidade de lutar contra o capitalismo com seus próprios meios. A avaliação é do filósofo e crítico social Anselm Jappe, um dos principais representantes atuais da crítica marxista do valor. Professor do Colégio Internacional de Filosofia, em Paris, desde o final da década de 90 Jappe tem passado pelo Brasil e acompanhado de perto a conjuntura política, econômica e social no país frente às dinâmicas do capitalismo global de hoje. Para ele, o atual quadro “tem efetivamente ares de um golpe que traz à tona tempos sombrios” mas ao mesmo tempo reúne os melhores motivos para se retomar uma verdadeira “antipolítica” – termo que longe de significar a renúncia da ação pública e coletiva, descreve um ato de superação do que atualmente chamamos de “política” ancorado em uma recusa da lógica econômica que a enseja.

Esta conversa, conduzida por Gabriel Zacarias (pós-doutorando USP/EHESS-Paris) e traduzida por Luc Duffles Aldon (MD18), dá sequência à série de entrevistas do Movimento Democrático 18 de Março (MD18) com grandes intelectuais de esquerda publicadas no Blog da Boitempo. Leia a primeira entrevista da série, com o sociólogo franco-brasileiro Michael Löwy, clicando aqui, a segunda, com o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, clicando aqui, a terceira com o historiador Luiz Marques clicando aqui, e a quarta, com o cineasta Eryk Rocha, clicando aqui.
* * *
Você visitou o Brasil pela primeira vez no final da década de 1990 e voltou várias vezes, sendo a última logo após as manifestações de junho de 2013. Quais são as mudanças que você observou durante esse período?
Visitei o Brasil pela primeira vez em 1999 e depois voltei quase todos os anos para participar de conferências no meio acadêmico, e também tive a oportunidade de observar outros meios da sociedade. Nos primeiros anos, notei a forte “xenofilia” dos intelectuais brasileiros: boa parte dos professores brasileiros havia estudado no exterior, e o fato de ter feito um doutorado em Paris ou em Londres era uma garantia quase certa de obter, em seguida, um cargo de professor no Brasil – especialmente após o fim da ditadura. Da mesma forma, intelectuais europeus, ainda que não fossem muito conhecidos em seus próprios países, eram recebidos no Brasil com grande respeito e, por vezes, tornavam-se estrelas. Os visitantes estrangeiros eram facilmente convidados para ficar e ensinar em condições muito favoráveis. Assim, predominava a impressão, até no plano intelectual, de se estar em um país “semiperiférico”.

Alguns anos depois, isso mudou. As importações foram substituídas por produtos locais. As principais universidades brasileiras passaram a produzir um grande número de doutores, de boa qualidade, que em seguida ocupavam as cadeiras das universidades em rápida expansão no país. Sentia-se que universidades como as de São Paulo ou de Porto Alegre se propunham a competir com Harvard ou com a Sorbonne, queriam jogar com os grandes. A cada ano, chegavam mais estudantes brasileiros na Europa. Paris estava repleta. Parecia que qualquer estudante brasileiro que quisesse uma bolsa para estudar no exterior a recebia. Na Europa, ao contrário, as universidades estavam em crise. Aqui só se falava em cortes no orçamento e em cortes de empregos, e encontrar trabalho tinha se tornado quase impossível para os jovens doutores. Vi vários universitários europeus chegarem ao Brasil em busca de emprego, até em lugares distantes dos grandes centros. Além disso, nunca parecia faltar dinheiro para organizar simpósios e convidar palestrantes. Lembro-me bem que por volta de 2010, confrontando as situações das universidades brasileiras e europeias, eu tinha a sensação de que era eu que vinha do terceiro mundo!
Mas isso não durou muito…
Sim, o milagre desapareceu tão rápido quanto havia aparecido. A situação atual em muitas universidades brasileiras parece desastrosa – disseram-me que professores são orientados a não acender a luz muito cedo! O número de bolsistas brasileiros na Europa parece ter caído tão rápido quanto o número de colóquios faustosos no Brasil, e o fluxo de migração se reverteu novamente. Embora essas observações só se refiram ao microcosmo universitário, eu acho que refletem uma realidade mais ampla. A ambição de sair do “subdesenvolvimento”, a convicção, depois de vários anos de crescimento, de ter definitivamente virado a página e de ser agora “um país como os outros”, isto é, como os Estados Unidos ou Europa; e, finalmente, a amarga desilusão, que é uma das causas da crise política atual.
A “crítica do valor”, corrente crítica na qual se inserem seus escritos, argumenta que o capitalismo entrou numa fase irremediável de crise, devido a uma contradição estrutural. O Brasil é um país onde essa corrente tem suscitado interesse desde os anos 1990. As vicissitudes que você descreveu afetaram a forma com a qual a wertkritik foi recebida no país?
Sim, poderíamos acompanhar essa evolução também através do recebimento da crítica do valor e do seu autor mais conhecido, o alemão Robert Kurz. Ele atingiu um grande público no Brasil na década de 1990, depois da tradução de O colapso da modernização (Paz e Terra, 1991). Esse livro anunciava que o capitalismo mundial, apesar da atmosfera de triunfo que prevaleceu no Ocidente depois da queda da URSS, inevitavelmente entraria em colapso. Enquanto novas catástrofes econômicas reapareciam no Brasil (por exemplo, o retorno da hiperinflação que se repetiu várias vezes), a teoria da crise de Kurz permaneceu bastante debatida. Através de sua coluna na Folha de São Paulo, ele se tornou um formador de opinião no Brasil. Ele me disse que, cada vez que havia uma má notícia econômica no Brasil, seu telefone começava a tocar e chamavam-no para entrevistas. Mas, com a euforia coletiva que começara a se estabelecer durante os anos Lula, ninguém queria ouvir falar de crise. Mesmo os grupos de pesquisa no Brasil que se inspiravam na crítica do valor relatavam manter apenas alguns de seus aspectos. Eles diziam que, naquele contexto, era impossível falar de uma crise do capitalismo no Brasil sem que rissem da nossa cara. A Folha fechou a coluna de Kurz.

O fato de que o Brasil aparentava ter sido poupado da crise mundial de 2008 parecia reforçar ainda mais a impressão de que o capitalismo só estava em crise nos seus antigos centros e que simplesmente havia passado a tocha para a ex-periferia: os famosos países BRICS. Assim, o sentimento de nova riqueza foi acompanhado pela satisfação de uma espécie de revanche histórica que finalmente permitia ao Brasil fazer parte do clube das potências. O país reivindicava então um assento permanente no Conselho de segurança da ONU, propunha-se como mediador entre países em conflito em outros continentes e investia maciçamente fora das suas fronteiras. Finalmente, o Brasil não era mais o “primo pobre”.
Além disso, aqueles que aprovavam o governo do PT podiam enfatizar que não eram apenas os indicadores econômicos que subiam, mas que também havia uma evolução para uma maior igualdade social e mais serviços básicos, mais respeito das minorias e um espírito menos colonialista. Por isso, inclusive nesse sentido, o Brasil tornou-se “moderno” e foi integrado ao mundo globalizado. De fato, eu já não via mais, ao longo da estrada que leva do aeroporto de Guarulhos a São Paulo, as favelas particularmente miseráveis que havia visto em 1999 – quem sabe para onde eles foram deslocadas… Em todo caso, agora sabemos que bastou pouco para acabar com este conto de fadas.

O que houve?
O país foi alcançado pela crise mundial, com uma crise política caseira em bônus. Não é necessário recordar aqui os detalhes. Há, sobretudo, duas questões que devem ser colocadas: o fato de que o Brasil tenha caído tão rapidamente seria o resultado de más políticas que poderiam ter sido evitadas ou seria a consequência inevitável de uma lógica pétrea do capitalismo mundial? E por que os grupos dominantes no país – o grande capital, a finança, os latifundiários, a grande mídia – têm atacado obstinadamente o governo de Dilma, apesar dos anos de prosperidade que o governo do PT lhes proporcionou, desde 2002? Que razão teria o Capital para desaprovar o PT (e não os seus eleitores populares decepcionados)?

Você diz que o Brasil teve uma “recaída”. Você acredita que o que está acontecendo pode ser descrito como um retrocesso?
“Recaída”, “retrocesso”, sim, é o caso de usar essas palavras. No plano econômico, em primeiro lugar. A situação atual demonstra que o Brasil nunca tinha se liberado do pecado capital das economias “atrasadas”: a dependência das exportações de matérias-primas. Pelo contrário, a sua incidência na economia nacional quase dobrou desde 2000. A economia brasileira continua tão frágil e dependente quanto antes, o que resultou no rápido retorno da inflação e da pobreza, a partir do momento em que a economia mundial piorou. Os observadores sérios são unânimes no seu diagnóstico: era essencialmente a demanda voraz da China, em termos de matérias-primas, que estimulava a economia brasileira, e a economia chinesa dependia, por sua vez, da capacidade dos países ocidentais de absorver seus produtos manufaturados. No momento em que esse esquema mundial instável – que se baseava apenas no crédito – começou a vacilar, o milagre econômico brasileiro já tinha terminado. Mesmo internamente, ele só funcionava a base de crédito. O crédito ao consumo e o crédito imobiliário criavam uma sensação de enorme expansão das classes médias e geravam consenso social, enquanto que o Estado fazia investimentos maciços que eram igualmente financiados a crédito. A famosa inclusão de milhões de pessoas pobres não era fruto de qualquer redistribuição real, mas apenas um subproduto – um “derivado” – da bolha especulativa global. O PT anunciou que deveria fazer o bolo crescer para poder distribuir a todos; mas, no final das contas, o bolo tinha apenas inchado com fermentos artificiais… Em suma, o boom econômico não tinha base sólida em termos capitalistas, mas era estritamente o resultado de fatores externos e incontroláveis.

Você acredita então que essa nova queda era previsível?
Sim, esta queda era previsível porque a economia global, na era neoliberal, não é mais baseada na única fonte real de “rentabilidade” no sentido capitalista: isto é, a transformação do trabalho vivo em valor e sua constante acumulação. Desde que a substituição do trabalho vivo pela tecnologia – que não cria valor econômico – ultrapassou um determinado nível, mais ou menos na década de 1970, a economia mundial só simulou o crescimento econômico, com uma utilização cada vez mais maciça de crédito e de todas as formas de capital fictício (bolsas, valores imobiliários etc.). A crise de 2008 foi apenas o começo do colapso dos valores irreais criados pela finança e, desde então, nada foi feito para reavivar a economia global de forma sustentável – apenas empréstimos e ainda mais empréstimos.

Também era previsível que o deslocamento de acumulação global dos centros – imaginados como velhos e cansados – para a periferia – imaginada como jovem e cheia de energia – não ocorreria. O capitalismo não é uma receita que, se devidamente aplicada, dá os mesmos resultados em todos os lugares. Foi baseado desde o início sobre o caráter não-contemporâneo das diversas economias e sobre uma divisão de tarefas, tudo em benefício dos países que tinham um nível maior de produtividade. São sempre os mesmos países que, inevitavelmente, têm mantido suas vantagens iniciais, o que remonta ao século 19. A globalização, a partir da década de 1970, destruiu as últimas possibilidades de estabelecer economias nacionais ou regionais, seja na União Soviética, seja como parte de um “desenvolvimentismo”. A partir daí, a única integração possível ao mercado mundial se deu pela via das exportações – o Brasil e a Rússia o fizeram com as matérias-primas; a China, com produtos manufaturados que os estadunidenses compravam quase gratuitamente, graças à função do dólar como moeda mundial. Neste sistema, sempre há um país “atrasado” que deve vender barato seus recursos ou seu trabalho para países mais “produtivos”. Pode-se, é claro, combater essa desigualdade global, mas deve-se, então, lutar contra o sistema capitalista como tal. Quando se aceita o capitalismo como horizonte intransponível, também se aceita, goste-se ou não, o fato de que há vencedores e perdedores. As políticas mais ou menos apropriadas dos diferentes governos só podem mudar detalhes – vemos isto todos os dias.
Em outras palavras, poderíamos dizer que assistimos mais uma vez ao fracasso daquilo que Kurz chamara de “modernização retardatária”?
Sim, exatamente. Se podemos aplicar o conceito de “retrocesso”, também é nesse outro sentido: o fracasso da “modernização retardatária” mostrou que a modernização da sociedade brasileira em si foi em muitos aspectos um verniz superficial. Uma vez que o quadro econômico piorou e que não havia mais abundância para distribuir aos ricos e aos pobres, os velhos demônios, que nunca dormiram realmente, finalmente despertaram. Apesar de todas as benesses que favoreceram a burguesia, esta nunca gostou da política do PT. De um ponto de vista puramente econômico e prático, isso pode parecer ódio irracional ou pelo menos ingrato. Mas a satisfação social do sujeito capitalista não é medida apenas pelos produtos que consome, mas também por sua distinção em relação aos outros sujeitos. E essas questões de status são ainda mais importantes, onde os restos de uma mentalidade pré-moderna e colonialista persistem. Dizem que o Bolsa Família desagradou aos pequenos burgueses porque havia se tornado mais difícil encontrar empregadas domésticas. A presença delas, até mesmo em famílias da pequena burguesia, é uma característica da vida brasileira que causa grande impacto nos visitantes estrangeiros. A perda desse status simbólico foi certamente angustiante para muitas pessoas. Da mesma forma, estudar na universidade ou viajar para o exterior deixou de ser o sinal de se pertencer a uma elite.

Como diziam alguns, “os aeroportos viraram rodoviárias”…
Sim, isso mesmo. E por que os velhos burgueses suspiravam assim? Eles não tinham perdido nada de seus bens materiais, mas agora dificilmente poderiam sentir o prazer abjeto de ver o engraxate aos seus pés. Vemos que questões de identidade podem contar tanto quanto questões materiais. Em todo o mundo, a crise ressuscitou os piores reflexos do passado, em particular o racismo, o antissemitismo e o desprezo pelos pobres. E no Brasil, ressurgiram as atitudes herdadas de uma sociedade escravocrata. Não é o custo – bastante moderado – do Bolsa Família que escandaliza, mas a ideia de que os pobres possam ter direitos.

Mas que relação podemos estabelecer entre a persistência de mentalidade ultrapassada e o cenário político atual?
Também reconhecemos essa persistência do passado na facilidade com que os “poderes fortes” em alguns países invertem o jogo “democrático” assim que o jogo não lhes convém. É claro que, em nenhum lugar do mundo, os dominantes aceitam mais as regras “democráticas” antes estabelecidas por eles mesmos. Mas, no caso brasileiro, a ânsia pelo poder tem efetivamente ares de um golpe que traz à tona tempos sombrios. Claro, não temos que ter pena do PT: ele tropeçou no seu próprio tapete, ele foi vítima de seu próprio jogo, traído por aliados que ele próprio levou ao poder e os instalou em lugares de onde eles poderiam golpeá-lo. Mas esta consideração não altera o fato de que as camadas mais reacionárias do país retomaram o seu antigo poder. A composição do governo Temer é uma confirmação caricatural. Do ponto de vista da pura lógica do capital e do dinheiro, um branco e um negro, uma mulher e um homem, um gay e um pai de família, um evangélico e um ateu, um descendente dos colonizadores e um descendente de escravos são iguais – mas a mesma lógica ainda mantém seu lado obscuro irracional de que essas pessoas não se equivalem, de forma alguma.

No entanto, a queda da Dilma não foi apenas o resultado de uma conspiração nos corredores de um Parlamento de corruptos. Foi precedida por enormes manifestações pedindo o impeachment, muito maiores e mais contínuas do que as de 2013. Um dos fatores que precipitaram a desgraça do PT, junto ao estrato social que até então tinha beneficiado de suas políticas, foi o fenômeno já observado pelo sociólogo francês Emile Durkheim no final do século XIX, quando tentava entender por que, paradoxalmente, a taxa de suicídio aumentava durante períodos de prosperidade: as expectativas crescem mais rápido do que as possibilidades reais, causando uma maior decepção do que antes. Prometeram às novas classes médias, criadas pelas políticas do PT, que viveriam como nos países mais “desenvolvidos”; consequentemente, elas rapidamente consideraram intoleráveis situações que antes elas teriam considerado como “progresso”. Eu não pretendo fazer um discurso culturalista sobre as “mentalidades eternas” dos povos. Pelo contrário, é um discurso sobre a impossibilidade de lutar contra o capitalismo com seus próprios meios. Ele nunca permitirá que o Brasil tenha um melhor lugar no mercado mundial, nem que os pobres conquistem o seu lugar na sociedade brasileira.
Em meio a essas perspectivas pouco animadoras, que possibilidades de resistência podemos vislumbrar?
Antes do governo do PT, existiram fortes movimentos sociais. Houve as manifestações – um tanto misteriosas – de 2013. Os melhores motivos para se retomar uma antipolítica estão reunidos. Mas ela deve absolutamente se separar de qualquer referência aos partidos, sejam esses quais forem, ao Estado e ao “desenvolvimento”. Ela não deve redistribuir a falsa riqueza capitalista, o dinheiro, mas sim lutar pelo acesso de todos às riquezas concretas.

Poderia nos explicar melhor o que entende por “antipolítica”?
A antipolítica não tem nada a ver com a renúncia da ação pública e coletiva. Pelo contrário, é uma forma de agir que percebe que na sociedade de mercado não pode haver uma esfera da política autônoma, lugar de decisão soberana e consciente, que seria capaz de ditar a lei a uma esfera separada da economia e do mercado. Enquanto o valor, o dinheiro e o trabalho formarem a síntese social, eles serão como um a priori, um filtro inconsciente que se interpõe entre todas as decisões dos sujeitos e o mundo no qual querem agir. Observamos isso na famosa questão da “financiabilidade”: numa sociedade de mercado, nós não nos perguntamos se a solução proposta é apropriada ou não, mas se podemos ou não “financiá-la”. Qualquer política que atue no campo pressuposto e não questionado do dinheiro e do trabalho já perdeu a partida de antemão, e só pode se tornar executora da lógica econômica. É por isso que todos os governantes do mundo, mesmo aqueles que poderiam, no início, ser “honestos” ou “de esquerda”, acabam aplicando receitas neoliberais. É preciso romper com a própria lógica econômica, o que significa uma espécie de revolução antropológica que vai além do que chamamos atualmente de política. Não se trata, porém, de uma perspectiva utópica ou irrealista. Considerando-se o desastre ao qual a lógica econômica nos levou em todas as áreas (e, em particular, na área do meio-ambiente), a única via “realista” seria tentar experiências de vida social para além da economia e do mercado. Mesmo que seja no meio de milhares de incertezas, é o espírito que parece animar uma parte de movimentos sociais na América Latina, sejam os zapatistas no México, os movimentos indigenistas ou os movimentos de apropriação de terras, usinas, serviços. Eu acho que é muito mais promissor do que continuar a confiar em partidos, Estados, eleições…

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O Movimento Democrático 18 de Março (MD18) nasceu da luta contra o golpe de Estado no Brasil. Sediado em Paris, e com grande presença de pesquisadores, professores universitários, artistas e militantes de movimentos sociais, o movimento propõe ampliar a reflexão sobre as possibilidades da esquerda na atual conjuntura de crise. É com esse objetivo que o MD18 inaugura uma série de entrevistas com intelectuais, artistas e militantes de diferentes horizontes, que visam ampliar o debate sobre as formas de resistência que podem e devem advir. O projeto se inicia com a participação de grandes pensadores da esquerda como Michael Löwy, Boaventura de Sousa Santos, Nancy Fraser e Anselm Jappe, além de contar com a colaboração de inúmeros intelectuais brasileiros. As entrevistas serão disponibilizadas em português e em francês no site do MD18.

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Anselm Jappe é um dos principais autores da crítica do valor (wertkritik) hoje, corrente de teoria crítica marxista que tem como alguns de seus nomes mais conhecidos Robert Kurz, recentemente falecido, e Moishe Postone, autor de Tempo, trabalho e dominação social. Ensina atualmente no Colégio Internacional de Filosofia, em Paris, e é autor de diversas obras traduzidas para o português, entre elas. As aventuras da mercadoria (Antígona, 2006) e Crédito à morte (Hedra, 2013)

Documentário quer mapear o punk feminista no Brasil dos anos 1990 – por Milena Coppi

Documentário quer mapear o punk feminista no Brasil dos anos 1990
 ‘Faça você mesma’ está reunindo verbas através de financiamento coletivo

A diretora Leticia Marques e a produtora Patricia Saltara, responsáveis pelo documentário “Faça você mesma”, fazem parte de uma geração pioneira de meninas a pegar em guitarras, plugar amplificadores e gritar alto pelo movimento Riot grrrl. Quase 30 anos após seguirem as bandas de mulheres mais rebeldes dos anos 1990, as duas se juntaram a um time de garotas para registrar, pela primeira vez no cinema, a história da cena punk feminista no Brasil.

Boa parte do filme foi feito com recursos próprios, mas faltava verba para que o projeto pudesse ser finalizado. Assim, como era feito entre os grupos punk feministas, que se mantinham de forma independente e colaborativa, Leticia e Patricia estão reunindo verbas desde o começo de junho através de financiamento coletivo no Catarse (catarse.me/faca_voce_mesma_filme_9b8b) para viabilizar o documentário.
— Senti necessidade de contar essas histórias. Afinal, se gente não for fazer esse filme, quem vai? — diz a diretora, que foi convidada no ano passado para tocar o projeto junto a Patrícia, com quem mantém amizade desde a adolescência. — Lembro que, em 2013, li o livro “Riot grrrl: revolution girl style now!”, da Nadine Monem, e fiquei com um sentimento de nostalgia. A partir daí, comecei a escrever um esboço, que acabou ficando de lado, até que veio o convite. Não ter me afastado desse grupo de meninas também ajudou. Acho que estamos fazendo isso na hora certa.

Até agora, o projeto tem 95 colaboradores e conseguiu arrecadar R$ 6.795. Mas ainda é pouco. O objetivo é chegar a R$ 30 mil e, para isso, o filme conta com a ajuda de doações que variam entre R$ 20 e R$ 5 mil. Em troca, os “padrinhos” e “madrinhas” receberão uma série de recompensas, que variam de acordo com o valor investido no projeto, com estreia prevista em dezembro de 2018.
— Assim que finalizarmos o filme, a ideia é inscrevê-lo no circuito de festivais internacionais para, depois, partir para o circuito nacional. Mas ainda não há nada concreto — disse a diretora, apontando para a possibilidade de disponibilizar o documentário na internet. — Pensamos sim em explorar outras janelas e plataformas, como o Vimeo e o iTunes. Mas isso fica para o futuro — acrescentou.

Meninas rebeldes
Houve um tempo em que mulheres eram subestimadas quando o assunto era rock, gênero dominado por homens até os dias atuais. Se por um lado acreditava-se que garotas eram incapazes de tocar guitarra tão bem quanto os garotos, do outro, nascia um movimento que provaria para o mundo que lugar de mulher também é na bateria, no baixo e onde mais ela quiser.

Assim surgiu o Riot grrrl, movimento criado nos Estados Unidos nos anos 1990 e popularizado por bandas como Bikini Kill e Tribe 8, que defendiam a expressão radical do feminismo através da música e da arte. Na mesma década, jovens brasileiras foram influenciadas pela atitude rebelde e empoderadora do punk, como conta Marina Pontieri, integrante do grupo TPM (sigla de trabalhar para morrer) e entrevistada no “Faça você mesma”.
— Nasci e cresci numa família bastante intelectual, meus pais eram feministas, e hoje vejo que fui privilegiada. Mas, claro, fora desse espaço, enfrentamos um cenário de pouquíssima representatividade. Éramos poucas bandas de mulheres versus centenas de bandas masculinas, ou com uma vocalista — explicou Marina.

Além da maioria masculina, a artista também revelou que “muitos machinhos do hardcore” torciam o nariz quando as garotas subiam ao palco. Mesmo assim, elas continuaram.
— Agora vejo que a união de garotas era muito mais empoderadora do que eu enxergava na época. É muito bacana ver que as jovens estão tendo ideias que não passavam pela minha cabeça aos 16 anos. E, nesse sentido, acho importante que essas meninas saibam de onde veio tudo isso. Por isso o documentário é tão importante — completou.

Teaser promocional: https://vimeo.com/221422853
Fonte: https://oglobo.globo.com/cultura/musica/documentario-quer-mapear-punk-feminista-no-brasil-dos-anos-1990-21586973

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https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2016/10/24/franca-lancamento-riot-grrrls-cronica-de-uma-revolucao-punk-feminista-de-manon-labry/

agência de notícias anarquistas-ana

o azul mais azul
além do cetim da safira
e do lápis-lazúli
Cláudio Daniel

Fonte: https://noticiasanarquistas.noblogs.org/

ENTÃO -Entrevista: Marcelo Viegas - por Bruno Lisboa

ENTÃO -Entrevista: Marcelo Viegas
“Skatista, cientista social, jornalista, editor e pai do Milo”. É assim que o multifacetado Marcelo Viegas se autodescreve na orelha de “Então”, coletânea de entrevistas que compila em pouco mais de 220 páginas mais de 20 anos dedicados ao jornalismo cultural (a primeira entrevista, com Alexandre Sesper, do Garage Fuzz, é de 1995, e a temática abordada na conversa continua atualíssima como se tivesse sido feita domingo passado), que, como a autodescrição adianta e não diz tudo, não foi a única atividade a que Marcelo Viegas se dedicou neste tempo.

Incansável, Marcelo Viegas é um autêntico militante da cultura alternativa. Sob a sua batuta já nasceram fanzines (“the answer”), um selo musical (o sHort records, que lançou discos de Pin Ups, The Butchers’ Orchestra e Hateen, entre outros) e uma loja de discos. Ele ainda cantou em bandas como The Sundance Season, Chocolate Diesel e ästerdon, trabalhou como editor na revista cemporcentoskate e na Edições Ideal, responsável por colocar no mercado uma série de livros imperdíveis sobre o universo da música. E tamanha experiência o permitiu estar próximo (e entrevistar) artistas das mais variedades esferas. Os anos de dedicação resultaram neste “Então”, seu primeiro livro, lançado pela sHort Books, sua própria editora..
Na conversa abaixo, Marcelo Viegas fala sobre o livro, a cultura do it yourself (“Enquanto existir contracultura, existirá também a presença do espírito “do it yourself”), sua experiência como editor, jornalismo independente (“As entrevistas feitas “cara a cara” têm muito mais vida”), a experiência de ter com a sHort Records (“Não apenas foi uma chance de contribuir com a cena lançando várias bandas, como também – e principalmente – permitiu que eu conhecesse pessoas incríveis, de todos os cantos do Brasil”) e muito mais . Confira!
 “Então” é uma compilação das várias entrevistas que você fez nos últimos anos. Como se deu a seleção?
Antes de falar especificamente da seleção das entrevistas, queria só dar uma palavrinha sobre o nascimento do projeto. O livro nasceu dentro do MBA Book Publishing que estou fazendo, a ideia era que cada grupo produzisse um ebook. Falei com o pessoal do meu grupo e disse que tinha esses arquivos das entrevistas que fiz ao longo dos anos. Eles curtiram e, então, mergulhei no material para fazer a seleção. O primeiro passo foi pensar no recorte e percebi que daria para amarrar esses três temas: skate, arte e música. Como não sou o sujeito mais desorganizado do mundo, tinha o back up da maioria das entrevistas. E, como elas já estavam transcritas, o trabalho mais pesado foi o de escrever novas introduções, além de revisar, editar e criar uma certa padronização. Adotei o rumo de só selecionar entrevistas estilo “pergunta e resposta”, o que exigiu que eu deixasse de fora muitas entrevistas legais no esquema de texto corrido (como, por exemplo, as entrevistas do Carlos Dias e do Stephan Doitschinoff). Tinha uma entrevista que eu não tinha back up: a do Garage Fuzz, de 1995. Então, fotografei o zine e mandei para a Karina Goto, e ela fez a nova transcrição que está no livro.
O lançamento do livro foi feito por sua conta, sem apoio de nenhuma editora. Por que você optou por trilhar este caminho?
Porque esse é o nicho do nicho. Mesmo uma editora independente, que não é tão focada no aspecto comercial, encontraria dificuldades para “fechar a conta” no caso de um livro com essas características. Eu já sabia disso, e sabia também que seria infrutífero e desgastante ficar correndo atrás de editora para esse projeto. Por outro lado, eu sabia que talvez fosse possível viabilizar o lançamento fazendo por conta própria. E, para que isso acontecesse, a primeira decisão foi optar por uma pequena tiragem. Como já tive selo musical nos anos 90, sei muito bem como era difícil desovar as prensagens de mil CDs – e não queria repetir essa experiência agora. O livro poderia ter até um preço de capa mais barato se eu tivesse feito mil exemplares, mas não tenho a menor intenção de dormir em cima dos livros pelos próximos anos. (risos)


As entrevistas no livro foram realizadas num formato “old school”, de forma presencial e com gravador registrando a conversa. Com o advento da internet surgiu a possibilidade de realizar uma entrevista a distância. Você acha que isto interferiu de alguma forma no gênero?
Na verdade, nem todas as entrevistas do livro foram feitas de forma presencial. Creio que metade foi feita por e-mail ou Facebook. O que salta aos olhos, e isso não é nenhuma novidade, é o fato de que as entrevistas feitas “cara a cara” têm muito mais vida, muito mais sabor e uma dinâmica bem mais interessante. Nada substitui a experiência de uma entrevista “olho no olho”. Por outro lado, não podemos negligenciar as facilidades que a Internet trouxe para a vida dos repórteres. Encurtou distâncias e permitiu que conseguíssemos conteúdos que antes pareciam praticamente inacessíveis. Tento me consolar com a comparação com o passado: nos anos 90, fiz várias entrevistas “por carta”. Parece jurássico, mas funcionava: de cabeça, lembro que entrevistei, por carta social, bandas como Pinheads, Muzzarelas e até o Pirexia, do Uruguai. O e-mail é mais ou menos isso, só que mais rápido. (risos)
Grande parte dos entrevistados tem em comum o fato de dividirem as mesmas paixões que você pela música, o skate e a arte. A afinidade é um dos elementos essenciais para você realizar uma entrevista?
Nesse aspecto, creio que tive sorte: nunca precisei fazer uma entrevista demasiadamente chata. Sempre trabalhei com esse nicho do skate, da música e da cultura alternativa, o que permitiu dialogar com pessoas que compartilham de interesses similares aos meus. Estaria mentindo se dissesse que a afinidade foi obra do acaso, pois não foi. Pra ser sincero, tenho até curiosidade para saber como eu me sairia se tivesse que trabalhar em uma outra editoria, entrevistando pessoas de outras áreas.


Você teve na década de 90 um fanzine (o “The answer”). Qual a importância do gênero para época?
Os zines desempenharam um papel fundamental nos anos 90. Naquele mundo pré-Internet, ou de Internet ainda engatinhando, os zines eram veículos essenciais na divulgação da cena independente. Todo um circuito nacional de bandas novas encontrava espaço nas páginas dos zines. Zines e demo-tapes circulavam pelo país, criando um verdadeiro networking alternativo. Tenho muito orgulho de ter participado daquela cena dos anos 90.
E de certa forma, o blog veio a substituir a lacuna deixada pelo fanzine. Você acha que o mesmo é hoje a melhor forma de realizar jornalismo de forma independente?
Acho que o blog é uma das plataformas possíveis. Creio que também dá pra fazer jornalismo independente pelo Instagram, pelo Twitter, em autopublicações etc. Como sustentar financeiramente esses projetos são outros quinhentos, e acho que as novas gerações sabem fazer isso bem melhor, com mais naturalidade. Nos dias atuais, os zines (e eles seguem firmes e fortes) desempenham outro papel, menos informativo e mais conceitual/artístico, por assim dizer.


Como foi a experiência de ter tido um selo musical (o sHort Records)?
Guardo com muito carinho e orgulho a experiência da sHort (tinha essa grafia metida). Não apenas foi uma chance de contribuir com a cena lançando várias bandas, como também (e principalmente) permitiu que eu conhecesse pessoas incríveis, de todos os cantos do Brasil. Naquela época, a cena tinha vários problemas – alguns permanecem até hoje –, mas tinha um plantel ótimo de bandas. E tive o prazer de trabalhar com algumas delas na sHort: Pin Ups, Hateen, Snooze, Echoplex, Dread Full, Thee Butchers’ Orchestra e por aí vai. O selo começou em 1995 e ficou na ativa até 2004 (11 CDs lançados). Uma das coisas mais legais era a famosa banquinha, que misturava trabalho e prazer, comércio e risadas, e percorreu muitos quilômetros por esse Brasilsão: além de São Paulo, a banquinha da sHort também marcou presença em Goiás, Distrito Federal, Rio de Janeiro, Paraná e Sergipe.
A sHort foi criada numa época em que os selos musicais independentes começaram a surgir. Você acha que hoje o grande número de selos existentes, de alguma forma, dão continuidade ao legado deixado por você, pela Midsummer Madness (ainda na ativa), a Banguela, a Rock it!. entre outros?
Com certeza. Tem muito selo legal colocando boa música na praça, dos mais diferentes gêneros da música alternativa (indie, punk, crust, experimental etc). E tem essa mescla de selos novos (Balaclava, Transfusão Noise, Nada Nada Discos, HBB Recs, No Gods No Masters etc) com selos da antiga, afinal muitos estão na ativa até hoje (Läjä, Submarine, Peculio, Midsummer etc). São os independentes de verdade, e não aqueles pseudo-independentes que apareceram nos anos 90 (Banguela, Tinitus), que eram subsidiados por majors. Faço sempre essa distinção, para separar o joio do trigo.


A parte das entrevistas musicais consegue expor cronologicamente como o universo da música mudou nos últimos anos. Foi intencional?
Não foi intencional. A intencionalidade reside na tentativa de selecionar entrevistas das mais diferentes épocas, desde material de meados dos anos 90 até coisas que foram feitas no ano passado (2016). Pode ser que essas mudanças apareçam no conteúdo dessas conversas ao longo dos anos, de modo natural. Mas não foi algo planejado.
E hoje em dia, quais artistas você tem acompanhado e recomenda?
Do “estrangeiro”, posso dizer seguramente que a minha banda favorita da atualidade é o DIIV. Nessa mesma onda, o álbum novo do Beach Fossils tem pelo menos duas pérolas (“This Year” e “Down the Line”). O novo do Afghan Whigs também está bem legal (a maravilhosa “Oriole” poderia estar tranquilamente no “Black Love”). Além desses, também tenho escutado muito Turnover (toca no Brasil em dezembro), The Radio Dept., Run The Jewels, A Tribe Called Quest, Mars Red Sky e o punk grudento lindo do Beach Slang. Das bandas de cá, tem os de sempre: Hurtmold, Parteum, Merda etc. Das paradas que estou ouvindo agora, tenho gostado bastante do material mais recente da rapper Lívia Cruz; a banda Rakta tem feito um trabalho impecável, acho foda; o Herzegovina, novo projeto do Rafael Crespo, encontrou uma sonoridade bem interessante; e acabei de escutar o EP novo da banda Os Chás (“Já Delírio”) e recomendo com entusiasmo!


Você foi editor da revista Cemporcentoskate e de livros lançados pela Edições Ideal. Como você entrou nessa área?
Começando pela
CemporcentoSKATE. Sou colaborador da revista desde os primórdios: ela nasceu em 95 e meu primeiro texto foi publicado em 96. Até 2005 atuei como colaborador esporádico, e em 2006 fui contratado para ser redator. Dois anos depois, passei a editor e fiquei no cargo até o final de 2012. E sigo colaborando com a revista até hoje. De certo modo, dá pra dizer que o skate determinou o curso da minha vida. Ando de skate desde 1988, mas sempre soube que não seria um skatista profissional, o que me levou a trilhar o caminho de profissional do skate, atuando na mídia. Apesar de ser formado em Ciências Sociais, minha atuação sempre se deu mais no campo do jornalismo. Tem até um fato curioso, ou melhor, incomum: o meu primeiro texto não foi publicado em um zine, mas sim em uma revista, a extinta One Street Magazine, no distante ano de 1994. O meu primeiro zine (The Answer), feito em parceria com o artista plástico Flávio Grão, só saiu em maio de 1995. Bom, depois da CemporcentoSKATE, fui chamado pelo Felipe (Gasnier) e pela Maria (Maier) para ser o editor da Edições Ideal, no início de 2013. Foram quatro anos na casa, totalizando uns 36 livros no período. Foi muito legal dar um tempo na rotina diária do skate para me dedicar a um projeto focado na música. Livros de música! E acho que a editora plantou a semente de um projeto editorial bacana, com um nicho muito bem definido e que construiu um catálogo bem interessante e diversificado. Além das biografias (Slayer, Motörhead, Ian Curtis, Kid Vinil, The Cure etc), também teve espaço para quadrinhos, livros infantis, ficção, jornalismo e livros de fotos. Muitos desses títulos talvez não existissem no mercado brasileiro se não fosse pela iniciativa da Edições Ideal.
É inegável a inter-relação entre o skate, a música e a arte. Mas como foi que nasceu esta relação para você?
Nasceu de forma natural, na medida em que esses elementos foram sendo incorporados na minha vida. Muita gente não sabe, mas durante a minha infância e adolescência eu desenhava, cheguei a cursar Desenho Artístico na ASBA (Associação São Bernardense de Belas Artes). Mas depois optei pelos textos mesmo, o que acredito ter sido uma decisão correta (risos). E a música já vinha despertando o meu interesse antes do skate entrar na minha história. Já escutava Camisa de Vênus, Replicantes, Garotos Podres, tinha já uma fogueira do punk acesa – e o skate só fez o fogo aumentar de intensidade (e direcionou com mais qualidade). Então, com 14 anos eu já tinha esses três elementos inseridos na minha vida: já andava de skate, já curtia música alternativa e já tinha um interesse pelas artes que vinha desde pivete, principalmente com a fascinação pelo universo das HQs. Mas é interessante notar como o skate tem essa capacidade de abrir horizontes culturais: tanto no âmbito das artes (as ilustrações dos adesivos, shapes e camisetas, por exemplo) quanto no campo musical (as trilhas dos vídeos, a música que toca no campeonato, na festa, a banda que é entrevistada na revista, para citar algumas ocorrências). Quando você começa a andar de skate, essa bagagem cultural é oferecida praticamente desde o primeiro dia. Aí cada um decide o que fazer – ou não fazer – com ela.


Como fruto do “do it yourself”(faça você mesmo) como você vê esta cultura hoje? Ela ainda preserva a essência do movimento?
Acho que o “do it yourself” permanece absolutamente vivo e válido. As gerações vão se sucedendo, mas o espírito continua reinando. Ele fica ali, pairando no ar e aguçando a imaginação e a criatividade das pessoas. É engraçado porque hoje muito se fala sobre o tal do empreendedorismo, tem todo esse culto ao empreendedor, mas a cena independente já sabe disso há anos, já pratica isso há décadas, mas sem os clichês corporativos e enfadonhos dos “comentaristas” da Globo News. Não é pelo lucro, mas sim pela cultura (ou contracultura) na qual você está envolvido. Vejo tanta gente vomitando esnobismo, com uma postura do tipo “sou empreendedor, sou um ser digno de reverência, blablabla”, enquanto a menina (ou menino) do punk lança disco, faz zine, monta distro, organiza show, traz banda gringa pra tocar aqui, vai com a sua banda pra tocar no exterior, edita livro, cria blog, canal do YouTube, a porra toda! Pergunte pra essa pessoa se ela é empreendedora ou punk, acho que sabemos a resposta. Vou além: faz tudo isso, colabora ativamente com a cena e não fica com aquele discurso de vitimismo (“aimeudeus, é tão difícil ser empreendedor no Brasil” ou “aimeudeus, os encargos trabalhistas aniquilam o meu negócio” ou qualquer equivalente). E o faça você mesmo pode ser aplicado nos mais diversos segmentos: para citar um exemplo recente, acabou de acontecer em São Paulo o UGRAFEST 2017. Evento incrível, inspirador. Muito bom ver a quantidade de gente produzindo publicações independentes de altíssima qualidade. Enquanto existir contracultura, existirá também a presença do espírito “do it yourself”.
Podemos esperar por um “Então” Vol. 2?
Tenho pensado sobre isso. Principalmente porque cortamos 10 entrevistas da seleção inicial. Mas não é algo que eu vá fazer nos próximos meses. De todo modo, quero também sentir como será o resultado do livro, se vou conseguir escoar toda a tiragem e tal. Em termos de projetos autorais, tenho uma outra ideia em mente, ainda na fase embrionária, mas posso adiantar que não será uma obra jornalística.

“Então” pode ser adquirido nas lojas abaixo, presencialmente ou online:
Ugra: https://goo.gl/5u2AWP
Locomotiva: https://goo.gl/ueWNWh
HS Merch: https://goo.gl/HxZ9tl
HBB Store: https://goo.gl/sJszhT
Sebo Clepsidra: https://goo.gl/oo5U2d
Sensorial: https://goo.gl/H2LLD1

Bruno Lisboa (@brunorplisboa) é redator/colunista do Pigner e do O Poder do Resumão. As fotos coloridas do texto são de Holyver Yoshida; a foto PB é de Marcelo Ribeiro, todas de divulgação.

Ateísmo crescente preocupa países do Oriente Médio – por ANA

Ateísmo crescente preocupa países do Oriente Médio
Ao longo do rio Nilo, vivem exatos 866 ateus, ao menos segundo a Dar al-IFTA, instituição estatal egípcia que difunde explicações sobre assuntos relacionados ao islã. De acordo com a entidade, a proporção de 0,001% da população do Egito não é, de forma alguma, insignificante, mas sim um motivo de alerta. Afinal, não há nenhum outro país no mundo árabe com mais ateus. O Marrocos viria em segundo lugar, com 325 indivíduos sem religião.

Os dados da Dar al-IFTA contrastam com os de uma pesquisa realizada pela Universidade Al-Azhar, do Cairo, em 2014. A universidade, que ostenta muito prestígio no islamismo sunita, entrevistou 6 mil jovens e, a partir dos resultados, estimou que 12,3% da população egípcia não siga uma religião. Com uma população de aproximadamente 87 milhões, o Egito teria, portanto, 10,7 milhões de ateus.
Em outubro de 2014, num programa da televisão estatal egípcia, o sheik de Al-Azhar, Ahmad al-Tayyib, já chamara atenção para o fato de que o ateísmo não seria mais um fenômeno marginal no país. O afastamento consciente das religiões seria um desafio social, disse.

Segundo o jornal Gulf News, os ministérios para Juventude e Fundações Religiosas já anunciaram campanhas contra tal atitude. Religiosos moderados, psicólogos, cientistas sociais e outros foram convocados para combater a perda da fé entre os jovens.
“Os jovens são alienados por pregadores militantes, que lhes dizem, dia e noite, que eles irão para o inferno”, descreveu o professor da Universidade Al-Azhar, Amnah Nusayr.

Muçulmano ou cristão, quase ninguém no Oriente Médio se distancia publicamente de qualquer forma de religião. No entanto, depois dos tumultos da Primavera Árabe, em 2011, o número daqueles que o fazem parecer estar crescendo. Na maioria dos países árabes, surgiram grupos ateístas com páginas próprias no Facebook.
No grupo “Ateus tunisianos”, cerca de 6.900 internautas clicaram o botão de “curtir”. Já no “Ateus sudaneses” foram aproximadamente 3 mil. O grupo “Sociedade Ateísta do Egito” contabiliza 585 “curtidas”, e o “Feministas ateias na Arábia Saudita”, 61.

Especialmente a Arábia Saudita, onde prevalece uma interpretação particularmente rigorosa do islã, se sente ameaçada pelo ateísmo. O governo local declarou que, da perspectiva da aplicação da lei, tal postura é tão ruim quanto o terrorismo com motivação religiosa.

O instituto de pesquisa de mercado Win/Gallup International verificou num panorama mundial para a Arábia Saudita, em 2012, que 19% da população se enquadram como não religiosos. Outros 5% se descrevem como ateístas. Para efeito de comparação: a mesma pesquisa não registrou nenhuma pessoa ateia no Iraque, onde apenas 9% se declararam “não religiosos”.
A dura reação contra pessoas que silenciosamente estão dando as costas à religião surpreende, dado o perigo real representado por islamistas radicalizados. Por um lado, os motivos são religiosos: no islã, a semeadura da discórdia é considerada um pecado grave. Aquele que nega a Deus é facilmente visto como alguém que poder espalhar a discórdia entre os fiéis.

Na maioria dos países árabes, não é expressamente proibido ser ateu. Mas as leis contra a difamação religiosa deixam margem de manobra para tomar medidas contra a prática. Casos do tipo são constantemente documentados por movimentos civis e de direitos humanos.
Fonte: http://www.paulopes.com.br/2017/07/ateismo-crescente-preocupa-paises-do-oriente-medio.html#.WW-gsITyu1t

Conteúdo relacionado:
https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2017/06/14/eua-estudo-revela-por-que-o-ateismo-apavora-tanta-gente/

agência de notícias anarquistas-ana
Como que levada
pela brisa, a borboleta
vai de ramo em ramo.


Matsuo Bashô