O programa
secreto do capitalismo totalitárioComo Charles Koch e outros bilionários financiaram, nas sombras, um projeto político que implica devastar o serviço público e o bem comum, para estabelecer a “liberdade total” do 1% mais rico
É o capítulo que faltava, uma chave para entender a política
dos últimos cinquenta anos. Ler o novo livro de Nancy MacLean, Democracy in
Chains: the deep history of the radical right’s stealth plan for
America [“Democracia Aprisionada: a história profunda do plano oculto da
direita para a América] é enxergar o que antes permanecia invisível.
O trabalho da professora de História começou por acidente.
Em 2013, ela deparou-se com uma casa de madeira abandonada no campus da
Universidade George Mason, em Virgínia (EUA). O lugar estava repleto com os
arquivos desorganizados de um homem que havia morrido naquele ano, e cujo nome
é provavelmente pouco familiar a você: James McGill Buchanan. Ela conta que a
primeira coisa que despertou sua atenção foi uma pilha de cartas confidenciais
relativas a milhões de dólares transferidos para a universidade pelo bilionário
Charles Koch1.
Suas descobertas naquela casa de horrores revelam como
Buchanan desenvolveu, em colaboração com magnatas e os institutos fundados por
eles, um programa oculto para suprimir a democracia em favor dos muito ricos.
Tal programa está agora redefinindo a política, e não apenas nos Estados
Unidos.
Buchanan foi fortemente influenciado pelo neoliberalismo
de Friedrich Hayek e Ludwig von Mises e pelo supremacismo de
proprietários de John C Carlhoun. Este último argumentava, na primeira metade
do século XIX, que a liberdade consiste no direito absoluto de usar a
propriedade – inclusive os escravos – segundo o desejo de cada um. Qualquer
instituição que limitasse este direito era, para ele, um agente de opressão,
que oprime homens proprietários em nome das massas desqualificadas.
James Buchanan reuniu estas influências para criar o que
chamou de “teoria da
escolha pública. Argumentou que uma sociedade não poderia ser
considerada livre exceto se cada cidadão tivesse o direito de vetar suas
decisões. Queria dizer que ninguém deveria ser tributado contra sua vontade.
Mas os ricos, dizia ele, estavam sendo explorados por gente que usa o voto para
reivindicar o dinheiro que outros ganharam, por meio de impostos involuntários
usados para assegurar o gasto e o bem-estar social. Permitir que os
trabalhadores formassem sindicatos e estabelecer tributos progressivos eram,
sempre segundo sua teoria, formas de “legislação diferencial e discriminatória”
sobre os proprietários do capital.
Qualquer conflito entre o que ele chamava de “liberdade”
(permitir aos ricos fazer o que quiserem) e a democracia deveria ser resolvido
em favor da “liberdade”. Em seu livro The Limits of Liberty [“Os limites da
liberdade”], ele frisou
que “o despotismo pode ser ser a única alternativa para a estrutura
política que temos”. O despotismo em defesa da liberdade…
Ele prescrevia o que chamou de uma “revolução
constitucional”: criar barreiras irrevogáveis para reduzir a escolha
democrática. Patrocinado durante toda sua vida por fundações riquíssimas,
bilionários e corporações, ele desenvolveu uma noção teórica sobre o que esta
revolução constitucional seria e uma estratégia para implementá-la.
Ele descreveu como as tentativas de superar a segregação
racial no sistema escolar do sul dos Estados Unidos poderiam ser frustradas com
o estabelecimento de uma rede de escolas privadas, patrocinadas pelo Estado.
Foi ele quem primeiro propôs a privatização das universidades e cobrança de
mensalidades sem nenhum subsídio estatal: seu propósito original era esmagar o
ativismo estudantil. Ele recomendou a privatização da Seguridade Social e de
muitas outras ações do Estado. Queria romper os laços entre os cidadãos e o
governo e demolir a confiança nas instituições públicas. Ele queria, em
síntese, salvar o capitalismo da democracia.
Em 1980, pôde colocar este programa em prática. Foi chamado
ao Chile, onde ajudou a ditadura Pinochet a escrever uma nova Constituição – a
qual, em parte devido aos dispositivos que Buchanan propôs, tornou-se quase
impossível de revogar. Em meio às torturas e assassinados, ele aconselhou o
governo a ampliar seus programas de privatazação, austeridade, restrição
monetária, desregulamentação e destruição dos sindicatos: um pacote que ajudou
a produzir o colapso econômico de 1982.
Nada disso perturbou a Academia Sueca que, por meio de Assar
Lindbeck, um devoto na Universidade de Estocolomo, conferiu a James Buchanan o
Nobel de Economia de 1986. Foi uma das diversas decisões que tornaram duvidosa
a honraria.
Mas seu poder realmente intensificou-se quando Charles Koch,
hoje o sétimo homem mais rico nos EUA, dicidiu que Buchanan tinha a chave para
a transformação que desejava. Para Koch, mesmo ideólogos neoliberais como
Milton Friedman e Alan Greenspan eram vendidos, já que tentavam aperfeiçoar a
eficiência dos governos, ao invés de destruí-los de uma vez. Buchanan era o
realmente radical.
Nancy MacLean afirma que Charles Koch despejou milhões de
dólares no trabalho de Buchanan na Universidade George Mason, cujos
departamentos de Direito e Economia parecem muito mais thinktanks corporativos que
instituições acadêmicas. Ele encarregou o economista de selecionar o “quadro”
revolucionário que implementaria seu programa (Murray Rothbard, do Cato
Institute, fundado por Koch, havia sugerido ao bilionário estudar as técnicas
de Lenin e aplicá-las em favor da causa ultraliberal). Juntos, começaram a
desenvolver um programa para mudar as regras.
Os documentos que Nancy Maclean descobriu mostram que
Buchanan via o sigilo como crucial. Ele afirmava a seus colaboradores que “o
sigilo conspirativo é essencial em todos os momentos”. Ao invés de revelar seu
objetivo último, eles deveriam agir por meio de etapas sucessivas. Por exemplo,
ao tentar destruir o sistema de Seguridade Social, sustentariam que estavam
salvando-o e argumentariam que ele quebraria sem uma série de “reformas”
radicais. Aos poucos, construiriam uma “contra-inteligência”, articulada como
uma “vasta rede de poder político” para, ao final, constituir um novo establishment.
Por meio da rede de
thinktanks financiada por Koch e outros bilionários; da
transformação do Partido Republicano; de centenas de milhões de dólares que
destinaram a disputas legislativas e judiciais; da colonização maciça do
governo Trump por membros
de sua rede e de campanhas muito efetivas contra tudo – da Saúde
pública às ações para enfrentar a mudança climática, seria justo dizer que a
visão de mundo de Buchanan está aflorando nos EUA.
Mas não apenas lá. Ler seu livro desvendou, para mim, muito
da política britânica atual. O ataque às
regulamentações evidenciado pelo incêndio da Torre Grenfell, a
destruição dos serviços públicos por meio da “austeridade”, a regras de
restrição do orçamento, as taxas universitárias e o controle das escolas: todas
estas medidas seguem à risca o programa de Buchanan.
Em um aspecto, ele estava certo: há um conflito inerente
entre o que ele chamava de “liberdade econômica” e a liberdade política. Deixar
os bilionários de mãos livres significa, para todos os demais, pobreza,
insegurança, contaminação das águas e do ar, colapso dos serviços públicos.
Como ninguém votará em favor deste programa, ele só pode ser imposto por meio
de decepção e controle autoritário. A escolha é entre o capitalismo irrestrito
e a democracia. Não se pode ter os dois.
O programa de Buchanan equivale à prescrição de capitalismo
totalitário. E seus discípulos apenas começaram a implementá-lo. Mas ao menos,
graças às descobertas de Nancy Maclean, agora podemos compreender a agenda. Uma
das primeiras regras da política é conhecer seu inimigo. Estamos a caminho.
1Nos
últimos anos, reportagens e vídeos têm começado a jogar luz sobre a atividade
política dos irmãos Charles e David Koch, e seus vínculos com a ultra-direita
nos EUA e em outras parte do mundo. Vale assistir, por exemplo, a Koch Brothers
exposed, documentário de Robert Greenwald (https://www.youtube.com/watch?v=2N8y2SVerW8);
ou ler “Por dentro do império tóxico dos irmãos Koch”, publicado pela revista Rolling
Stones (em inglês) http://www.rollingstone.com/politics/news/inside-the-koch-brothers-toxic-empire-20140924
Fonte: http://outraspalavras.net/capa/o-programa-secreto-do-capitalismo-totalitario/
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