quarta-feira, 13 de setembro de 2017

O professor de histeria e a História – por Lúcio de Castro

O professor de histeria e a História

Não ligava o nome à pessoa.

Embora tenha travado razoável contato com a maior parte da bibliografia dos grandes historiadores do Brasil nos quatro anos dos bancos escolares da saudosa faculdade de História, passei incólume pelo tal Marco Antônio Villa.

Não me lembro de nenhuma ida ali na sinuca, pedir pro Renato, responsável pela xerox (acho que hoje com a internet a pirataria mudou de forma!), e pedir: “vê pra mim o texto do Villa”.

Fui ouvir ontem, ao saber que ele andou se agarrando a sempre mais fácil forma de tentar um pouco de luz para quem não tem nenhuma produção relevante no currículo: pegar carona no brilho de um terceiro para tentar algum holofote. No caso, o jornalista Juca Kfouri. E, pelo que leio, podia ter ficado sem essa. Jogou conversa fora, inventou e, confrontado pessoalmente, cacarejou.

Não preciso falar sobre Juca. A trajetória, a história e o currículo falam por ele. Nem o caso precisa de repercussão ou solidariedade. O que me traz aqui é outra razão.

É que tive a curiosidade em saber quem era o tal “historiador”, cujo nome, como disse, jamais tinha ouvido no velho Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, o IFCS, do Largo de São Francisco. O que por si só era muito estranho, porque não se passa em branco durante uma formação de historiador por alguém com produção minimamente relevante. (tem alguns contemporâneos ifcsianos que andam virtualmente por aqui pela Agência Sportlight, como o Simas, o Almeidinha e tantos outros. Se lembrarem de algum texto recomendado de tal autor e eu tiver sendo injusto, me avisem).

E eis que me deparo com coisas absolutamente estarrecedoras. Que provavelmente expliquem a irrelevância do mesmo na produção historiográfica brasileira. Que explicam a irrelevância do mesmo.

Pois descubro que o tal Villa escreveu um texto na Folha (“Ditadura à brasileira) no qual, pasmem, argumenta que a ditadura brasileira só existiu entre 1968 e 1979 e não como classicamente se fala, entre 1964/1985. Em seus argumentos, diz que o período entre 1964 e 1968 não pode ser assim classificado. Com o AI-5, em 68, quando aí sim começaria a ditadura, segundo ele. Como sempre pode piorar, descubro que tal ideia virou um livro com o mesmo título do artigo.

Descubro mais, e algo que me deixa absolutamente perplexo: na gravação de um programa de TV, assente que a “tortura só teria começado em 1968”, pós-AI-5.

Carlos Fico, este sim historiador com produção reconhecida e respeitada no mundo inteiro e considerado unanimemente como um dos grandes especialistas sobre o período, quiçá o maior, não tem dúvidas em apontar em sua produção ou entrevistas: “Os primeiros anos do Castelo foram mais brandos mas já havia tortura”.

Confesso que aqui tenho dúvidas. Se o sujeito que nega ditadura e tortura no Brasil entre 64 e 68 realmente desconhece os fatos ou se é simplesmente um negacionista.

O segundo caso preocupa muito mais. Alguém que desconhece os fatos é provavelmente apenas um mero desconhecedor de fatos, um apedeuta clássico. Usado aqui e acolá em entrevistas e programas de TV quando convém a estes para ilustrar narrativas que vão ao encontro do que pretendem passar.

Já o negacionista é um tipo muito mais perigoso. É alguém que é cúmplice do horror. Alguém que é cúmplice de perpetuar a barbárie.

Em outros lugares, aponta-se para tal tipo de negacionistas e negacionismos com a devida ênfase que merecem. Para que não possam dar tintas mornas para os genocídios, para que tais coisas sejam tratadas como tal. Evitando-se assim que se repitam, se perpetuem.

Como entender um “historiador” negar a ditadura logo após o primeiro dia do golpe de 1964?

Em tais lugares, essas figuras são expostas em sua vilania ao serem cúmplices do holocausto. Ao serem sócios do horror.

Por aqui, por incrível que pareça, muitos não conseguem estabelecer a conexão de que a negação da tortura dos anos de chumbo, de que a não punição dos responsáveis, é massa de fermento para o genocídio diário de pretos e pobres de nossas cidades. De que a negação daquele horror responde pela perpetuação dele em outras formas.

Como entender um historiador negar a ditadura logo após o primeiro dia do golpe de 1964? Está lá, no Ato Institucional 1 (AI-1), de 9 de abril de 1964, portanto alguns dias depois do golpe, a ditadura configurada e expressa em todas as letras, o princípio da soberania popular afastado pela mano dura e fora da lei, a constituição rasgada desde o primeiro momento e trocada pela ditadura: “A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima por si mesma.” Nota: o que chamavam de “Revolução” é só mesmo o golpe de 64, da mesma forma que o que alguns chamam de “impeachment” é também só um golpe mesmo.

Seguindo: o dia seguinte ao golpe de 64, já era a ditadura escancarada. Começou ali a perseguição das lideranças populares, assim como a perseguição e criminalização dos movimentos sociais. Menos de 24 horas depois do AI-1, vieram 102 cassações, direitos políticos suspensos por 10 anos, entre essas 41 deputados federais, como Leonel Brizola, Jango, Arraes, Rubens Paiva, Plínio de Arruda Sampaio, Celso Furtado, o embaixador Josué de Castro, Darcy Ribeiro, Nelson Werneck Sodré, entre tantos.

Muitos outros exemplos poderia ser citados do que era a ditadura pós-golpe de 64. São bem conhecidos. Fiquemos apenas na Lei de Segurança Nacional, de 3 de março de 1967, portanto também antes do que o tal Villa considera o início da ditadura.

Quanto a tortura, a clássica foto que ilustra essa página, do imenso Gregório Bezerra, deveria falar por ela mesmo. Mas ela não fala. Ela grita.

O episódio é por demais conhecido. Preso imediatamente, horas após o golpe de 64. Arrastado pelas ruas do Recife enquanto um militar incitava a população ao linchamento. Ainda teve os pés imersos em solução de bateria de automóvel e depois obrigado a andar na brita. Então não houve tortura entre 64 e 68…É algo tão estarrecedor…

É claro que a sistematização da tortura e todo o horror clássico em grande escala que conhecemos é pós-AI-5, assim como a Operação Condor. Mas a foto de Gregório é tapa na cara definitivo que não devia permitir aberrações parecidas. Não foi o único. Como tantos outros casos antes de 68.

A negação da tortura é hedionda. Assim como a negação da existência de uma ditadura desde suas primeiras manifestações. Contra isso, sempre será preciso gritar. Sobre o resto, o personagem, deixemos pra lá, não se fala mais nem se dá luz a quem não tem. Ou como diz o Juca, “não se briga com gambá. Mesmo ganhando, você acaba ficando com o cheiro dele”. Adelante. Vamos ao que e a quem interessa.

Fonte: http://agenciasportlight.com.br/index.php/2017/07/27/o-professor-de-histeria-e-a-historia/

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