O ato final do ex-secretário de Meio Ambiente paulista foi
sumir com uma estátua do guerrilheiro no Vale do Ribeira, esbravejando contra
“herói ideológico”. Reavivou uma memória incômoda, que inclui bombardeios de
napalm pela ditadura
Encaixotado e escondido em um canto qualquer está o símbolo
maior do ocaso do ex-secretário do Meio Ambiente de São Paulo, Ricardo Salles
(PP), que deixou o governo de Geraldo Alckmin (PSDB) na semana passada. No dia
8 de agosto, um dia depois de ter assinado a carta de renúncia da pasta que
comandou por um ano, Salles decidiu marcar sua saída com um gesto grandioso.
Em visita ao Parque do Rio Turvo, na região do Vale da
Ribeira, sul do Estado de São Paulo, indignou-se com um busto do capitão Carlos
Lamarca, líder guerrilheiro da organização VPR, que lutava contra a ditadura, e
ordenou que o coronel Alberto Maufe Sardilli, comandante da PM Ambiental, que
estava ao seu lado, retirasse a estátua. Além dela, o secretário proibiu de
figurar no Museu do Parque um painel que contava a passagem de Lamarca e outros
oito guerrilheiros por aquela região em 1970, onde estabeleceram um campo de
treinamento.
Em visita ao Vale do Ribeira, o ex-secretário do Meio
Ambiente de São Paulo, Ricardo Salles (PP), ordenou a retirada do busto de
Lamarca (Foto: Pedro Calado/ Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São
Paulo)
Segundo relatos de funcionários do parque, o então
secretário esbravejou que a estátua estava “plantando o comunismo no coração
das crianças”.
“Pra mim ele não justificou nada não”, disse o prefeito de
Cajati, que acompanhava a visita, à Agência Pública. “Simplesmente quando veio
o secretário junto com o coronel, ele disse: ‘Pode tirar isso aqui’. Quem
retirou foi o funcionário do parque, e perguntou se tinha como eu ajudar a
tirar, pôr no carro.”
Busto de Lamarca antes de ser retirado do Parque do Rio
Turvo (Foto: Reprodução)
O gesto de Ricardo Salles, advogado e fundador da página
Endireita Brasil, antecedeu em cinco dias o conflito que eclodiu em
Charlottesville, nos Estados Unidos, por conta justamente dos planos de retirar
a estátua em homenagem a Robert E. Lee, um general confederado durante a Guerra
Civil Americana, símbolo dos brancos sulistas que defendiam a permanência da
escravidão. Em protesto, uma marcha de brancos supremacistas levou a confrontos
que deixaram três mortos e 34 feridos. Nos dias seguintes, dezenas de
estátuas semelhantes foram derrubadas em diversas cidades dos Estados Unidos,
abrindo uma grande discussão sobre o papel da preservação da história e a
exaltação de ideologias racistas. Por aqui, em Cajati, onde fica o Parque do Rio Turvo, os cerca de 30 mil habitantes mal ficaram sabendo da queda da estátua. O artefato tampouco lembra o garboso monumento americano: pesa 40 quilos, é feito de cimento e coberto de piche. E não guarda lá tanta semelhança com Lamarca.
Feita de maneira sorrateira e sem anúncio no Diário Oficial, a retirada do busto e do painel – este custou aos cofres públicos cerca de R$ 12 mil – foram justificados por Ricardo Salles por meio de nota ao site Direto da Ciência: “Narrar fatos é uma coisa. Erguer bustos com dinheiro público e em parque público é bem diferente. Marighella [sic] foi um guerrilheiro, desertor e responsável pela morte de inúmeras pessoas. A presença desse busto no local é inadmissível”. À coluna de Mônica Bergamo, na Folha, o secretário disse: “Parque não é lugar para ter busto de herói ideológico de nenhum lado”.
A retirada não gerou protestos da população, mas um zunzunzum no Facebook. A filha de Lamarca, Claudia Pavan Lamarca, chamou o ato de “autoritário”. “Resta a figura minimizada e patética do homem, travando uma ‘luta’ irracional com um fragmento de rocha e metal inerte. A cena, mais do que grotesca e medieval, traduz o MEDO que a figura do Lamarca ainda provoca nos representantes da direita”.
A professora de geografia e pesquisadora Lisângela Kati do Nascimento, que estudou o ensino de história nas escolas ao redor do parque, manifestou sua indignação em outro post. “Eu joguei nas redes sociais e falei a população não está sabendo sobre isso. Foi totalmente arbitrário da parte do secretário”, disse em entrevista à Pública. “A referência a Lamarca é superforte na memória da população de Cajati. Poderia ser retirado se tivesse uma consulta pública, junto à população, decidindo tirar. Mas ele mandar tirar é tipo chamar a população de ignorante.”
Ex-secretário do Meio Ambiente de São Paulo durante a visita
ao Parque do Rio Turvo (Foto: Reprodução)
Inaugurada em 2012, a estátua foi uma decisão do Conselho do Parque, integrado por membros do poder público e da comunidade. Um deles é o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Adilson Vieira Alves. “A intenção quando se levantou essa proposta era ele ser mais um atrativo para visitação. Aqui no parque tem a própria cachoeira, com o nome de Noiva do Capitão, e tem uma cachoeira menor que tem o nome de cachoeira do Lamarca, que foi onde eles ficaram na época da guerrilha.” Os recursos vieram da construção de um pedágio da rodovia BR-116. O valor total da construção do museu foi de R$ 640 mil. “O mais interessante é que ele é o terceiro secretário que visitou o núcleo e os dois anteriores não se importaram, nem o Xico Graziano nem o Pedro Ubiratan.”
No dia da inauguração, alguns dos ex-integrantes da
guerrilha foram participar das fotos oficiais. “Tem uma foto com os
companheiros, o sargento Darcy Rodrigues também foi lá, eu fui convidado por um
camarada que trabalhava na secretaria do Meio Ambiente”, relembra José Araújo
Nóbrega, o sargento Nóbrega, um dos militares que se juntaram a Lamarca para
treinamentos na região. “Pra ser sincero, eu nunca pensei que fossem chegar ao
nível a que chegaram. Isso é muito baixo”, revolta-se. “Isso é tão pequeno…
Eles vão mexer com um busto!”. Para ele, a ação do ex-secretário não foi nada
mais do que uma “jogada de marketing”. “Ele fez isso pra aparecer. Pra poder
aparecer como de direita.”
Passaram-se semanas até que a reclamação fosse ouvida por
alguns políticos. Mais precisamente, dois. O deputado Luiz Turco, do PT, fez
uma moção de repúdio na Assembleia Legislativa estadual no dia 24 de agosto.
“Você já pensou se qualquer cidadão sair quebrando estátua por aí porque gosta
ou não gosta? Pega o pessoal da esquerda e sai quebrando essas estátuas que tem
aqui em São Paulo, com nome de torturador, generais?”, disse à Pública o
vice-presidente da comissão de Meio Ambiente do Legislativo. “Não é justo. É
uma coisa simples, mas simbólica.”
O deputado Carlos Giannazi, do Psol, foi além e protocolou
uma ação do Ministério Público Estadual por improbidade administrativa e
dilapidação do patrimônio público. A ação ainda não foi distribuída, mas,
segundo o deputado, Salles terá de responder mesmo longe da vida pública. “Ele
não podia ter feito aquilo pelo fato de ter diferenças ideológicas.”
Foto de Lamarca que inspirou a obra
Mas, afinal, onde foi parar o busto? Procurada pela Pública,
a Secretaria do Meio Ambiente se recusou a responder. “A
Fundação Florestal está apurando o caso, mas, como estamos passando
por um momento de transição de comando tanto na FF como na Secretaria de Meio
Ambiente, não temos nada a comentar no momento”, afirmou em nota a
fundação responsável pelos parques paulistas.
Já o prefeito de Cajati, que garante que na cidade ninguém
ligou muito para a retirada do busto, disse que também não tem nem ideia do seu
paradeiro. “O busto saiu numa viatura da Policia Ambiental. Levou o busto, não
sei se tá aqui no registro pra onde foi. Parece, pelo que eu vi, que iam
devolver o rapaz que não recebeu o pagamento”, explica o prefeito. É que a
pendenga também levantou fantasmas antigos, como o do pagamento do jornalista
Luiz dos Passos, que garante ter feito o busto e jamais ter sido recompensado.
Luiz disse que demorou 15 dias para fazer a estátua, que pesa 40 quilos e é
feita de ferro, cimento e brita. “É bem artesanal mesmo. Depois que o cimento
secou, foi pintado com piche para ficar preto”, diz ele, que se baseou em uma
foto que achou na internet. A estátua, entretanto, ainda não está finalizada.
“O que falta? Como só foi passado piche, não foi lixada, eu ia passar uma resina
para ficar com a aparência bem legal.”
E agora?
A saída de Salles foi à Trump: dois dias antes de sua
renúncia ter aparecido no Diário Oficial, ele anunciou no seu Facebook com
alarde que sairia da pasta, deixando a secretaria uma bagunça – e um rastro de
acusações no seu encalço. É alvo de uma ação civil pública sob a acusação de
ter alterado ilegalmente o zoneamento da Área de Proteção Ambiental da Várzea
do Rio Tietê, que envolve 12 municípios , alterando mapas para beneficiar
indústrias e empresas de mineração. O MP estadual também instaurou um inquérito
para investigar sua iniciativa de chamar empresários para discutir a concessão
ou venda de 34 áreas do Instituto Florestal sem a devida autorização do
legislativo.
Além do busto, claro, que virou um enorme pepino para o novo
secretário do Meio Ambiente, Maurício Brusadin, expert em comunicação digital e
sócio de Xico Graziano.
“Essa é uma pergunta que eu faço querendo esclarecimento. O
que ele [Ricardo Salles] fez com o busto? Ele vai ter que devolver esse busto.
Vou acompanhar”, garante o deputado Carlos Giannazi, celebrando a saída do
ex-secretário. “Já vai tarde.”
Procurado por e-mail, Ricardo Salles não respondeu ao pedido
de entrevista.
Passada a onda de repercussão pelo Facebook, Lisângela Kati
diz ter poucas esperanças de que a estátua volte à cidade onde nasceu. “Eu
gostaria muito que tivesse alguma resposta, mas eu não acredito muito que
tenha. Só teria se a população estivesse se mobilizando mais intensamente”,
diz.
Já o sargento Nóbrega revela certo otimismo. “Aquele busto
não atrapalhava nada, inclusive era um busto muito malfeito, me desculpe dizer.
Tomara que agora façam um busto melhor.”
Um passado mais horroroso do que a estátua
Embora feio e coberto de piche, o busto de Lamarca
representava para a pequena comunidade de Cajati algo muito maior do que o
próprio guerrilheiro: uma história de terror em que foi envolvida no ano 1970 e
sobre a qual não se aprende nas escolas.
A Pública descobriu em 2015 que o local foi alvo de bombardeios de
napalm pela Força Aérea Brasileira durante a ditadura, na busca para
capturar Lamarca e outros oito guerrilheiros que alugaram um sítio no local para
fazer treinamentos. Além de um documento relatando o uso, assinado pelo adido
militar francês, encontramos fragmentos das bombas de napalm atiradas pelos
aviões T6 e B26, da FAB. Os fragmentos foram entregues para o Ministério
Público estadual. Encontramos 12 testemunhas dos bombardeios e fomos levados
por moradores a locais onde ainda se veem crateras feitas pelas bombas.
A Operação Registro mobilizou 2.954 homens, entre membros do
Centro de Informações do Exército, regimentos de infantaria e paraquedistas das
forças especiais, policiais da Policia Militar e Rodoviária de São Paulo e do
Dops. Durante 30 dias de cerco, a população foi torturada, houve prisões
massivas e bombardeios. Os militares decretaram “toque de recolher” durante a
noite. Os que se atreviam a sair sem permissão eram presos durante dias.
Luiz dos Passos, o jornalista e autor da obra, tinha apenas oito anos quando caíram as bombas. “Eu vi os bombardeios. A minha casa era de frente pra serra onde era feita a busca deles pelo Exército. E via o comentário das pessoas que vinham do sítio, contavam que o pessoal do Exército abordava os moradores”, lembra.
“Tem pesquisadores que dizem que o vale tem antes do Lamarca e depois do Lamarca”, explica Ocimar Bin, pesquisador do Parque do Rio Turvo e ex-gestor da área. “Depois vieram investimentos em infraestrutura, escolas. O Estado passou a ter um olhar para a região.” Para ele, o cerco é ainda mais relevante na memória de uma população que é extremamente rural ainda hoje. “O acontecimento na época foi uma coisa muito grandiosa, bombardeio, 3 mil homens, houve um grande tiroteio em Eldorado, que é uma cidadezinha. A figura de Lamarca ficou muito comentada. E essas histórias de tortura deixaram marcas nas pessoas.”
Fonte: http://apublica.org/2017/09/onde-esta-o-busto-de-lamarca/
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