quinta-feira, 26 de abril de 2018
“A liberdade não se concede, conquista-se. Que a conquistem os negros!” - por Lucinda Canelas
“A liberdade não se
concede, conquista-se. Que a conquistem os negros!”
A Mário Domingues devem-se, nos anos 20, os primeiros textos da imprensa portuguesa a defender abertamente a independência das colônias. Hoje são poucos os que conhecem a obra deste anarquista, que denunciou as brutalidades cometidas pelo império na África e que, com o Estado Novo, trocou os jornais pela ficção. Um breve ensaio volta agora a recuperar parte da sua história.
A Mário Domingues devem-se, nos anos 20, os primeiros textos da imprensa portuguesa a defender abertamente a independência das colônias. Hoje são poucos os que conhecem a obra deste anarquista, que denunciou as brutalidades cometidas pelo império na África e que, com o Estado Novo, trocou os jornais pela ficção. Um breve ensaio volta agora a recuperar parte da sua história.
O bilhete de identidade basta para que comecemos a falar de
uma história singular – a de um rapaz que nasceu na ilha do Príncipe no final
do século XIX, filho de um homem branco e de uma angolana que para lá tinha
sido levada para trabalhar nas plantações de cacau da roça Infante D. Henrique.
Quem lhe faz o registro, já em Portugal, onde chegou com apenas 18 meses para
viver com a família paterna numa casa onde não faltava nada, não tem sequer a
certeza do dia exato em que nasceu – Junho ou Julho de 1899 –, nem do nome da
sua mãe – “Congala” ou “Manga” é o que consta no espaço que lhe é destinado,
assim, sem quaisquer apelidos, ao passo que o pai tem direito a nome completo (António
Alexandre José Domingues).
“Isto era o que acontecia com os escravos, não se lhes
conheciam apelidos”, diz José Luís Garcia, sociólogo que há mais de 20 anos
reúne informação sobre o jornalista e escritor Mário Domingues (1899-1977), um
dos primeiros que em Lisboa levantou a voz pela independência das colônias na
África, na década de 1920, numa série de artigos que são verdadeiros manifestos
de defesa dos direitos humanos sustentados pelas leituras que fazia do
movimento de libertação dos negros norte-americanos e pelos ideais anarquistas
e, ao mesmo tempo, notas de denúncia das barbaridades cometidas pelo império
português, sobretudo em São Tomé e Príncipe e em Angola.
No artigo de 20 páginas que agora publica no volume Media and the Portuguese Empire(coord.
de José Luís Garcia, Chandrika Kaul, Filipa Subtil e Alexandra Santos, Ed.
Palgrave Macmillan, 2017), uma edição em inglês que reúne 17 ensaios que
analisam as relações entre o poder e a informação e olham para o império
português tomando os meios de comunicação como agentes das lutas sociais,
políticas e culturais, José Luís Garcia concentra-se em alguns dos 30 artigos
que Mário Domingues escreveu nos anos 1920 nas páginas do diário
anarquista A Batalha.
Estes artigos, escreve o sociólogo, revelam três atitudes de
base: uma oposição sistemática a todas as formas dissimuladas de escravatura,
que continuava a existir nos territórios portugueses na África sob o rótulo de
trabalho forçado; a denúncia do racismo que atravessava toda a política e
administração coloniais, e a que as instituições eram também altamente
permeáveis; e a consciência da importância da independência africana.
A Batalha é,
a partir de 1919, um jornal que critica abertamente a estratégia republicana
para os territórios africanos e apoia as reivindicações da população negra em
Portugal continental e nas colônias.
É neste quadro, em que se “começa a consolidar uma
consciência anticolonial em alguns setores”, que Mário Domingues escreve os
seus artigos “absolutamente visionários inspirados pelas leituras que faz sobre
o movimento identitário dos afro-americanos”, diz José Luís Garcia.
“Vários jornalistas do Batalha começam a escrever sobre a
corrupção entre os funcionários administrativos das colônias, sobre o
tratamento privilegiado que é dado a muitas empresas que têm lá atividade, o
racismo, a perseguição aos negros que reivindicam os seus direitos e que têm
jornais próprios (O Angolense ou A Verdade) para o fazer e,
sobretudo, sobre o trabalho escravo”, explica, expondo um regime de servidão
que não é muito diferente daquele em que milhares viviam antes da abolição da
escravatura em todo o território português, em 1869.
O regime republicano persegue todo aquele que ousa resistir
às regras impostas ou manifestar-se contra as condições degradantes em que se
vive, enquanto os altos-funcionários inescrupulosos vão abusando do seu poder e
enriquecendo à boleia de negócios com as multinacionais e com as minas da
antiga Rodésia (Zimbabwe) e da África do Sul, ex-colônias britânicas, para onde
enviam grandes contingentes de trabalhadores negros. As prisões estão cheias de
pessoas que ficam detidas durante longos períodos sem saberem sequer do que são
acusadas – prisões onde os castigos físicos são severos e o jejum uma imposição
recorrente.
“Outros escrevem sobre estas situações degradantes, mas o
Mário Domingues é o primeiro a defender claramente a independência das colônias
portuguesas de forma coerente num jornal português de grande popularidade”, diz
este sociólogo, que tem na cabeça uma exposição e na gaveta um livro sobre este
jornalista que desde cedo mostrou ter uma inclinação para a escrita e uma
apetência invulgar para as línguas (inglês, alemão e francês). “O fato de ler
jornais e revistas internacionais e de estar a par das mais atuais
reivindicações de direitos humanos que vinham dos Estados Unidos fazem dele um
caso muito singular.” Domingues saúda a criação, em 1921, do Partido Nacional
Africano (PNA), naturalmente anticolonial, que A Batalha apoia de imediato, e acompanha o
pensamento de ativistas da justiça racial como o norte-americano W.E. Burghardt
Du Bois e o jamaicano Marcus Garvey, uma das figuras mais importantes do
movimento nacionalista negro.
“Ele tira partido da sua diferença racial e politiza-a. Ele
é um mulato que pega nas leituras que faz sobre a identidade e os direitos dos
negros a que muitos não tinham acesso e adapta-as à realidade que conhece.” E
fá-lo escrevendo e escrevendo na primeira pessoa ou inventando personagens para
ilustrar pontos de vista.
Liberdade
pela luta
Para melhor compreender os artigos de Domingues n’A Batalha importa olhar
para o contexto em que são publicados, só brevemente enunciado no ensaio que
Garcia assina no volume Media
and the Portuguese Empire.
A República empenha-se em dar continuidade à política
colonial da monarquia, que iniciara uma nova fase nas relações com África nas
duas últimas décadas do século XIX, com a ocupação militar e administrativa dos
territórios ultramarinos, escreve muito antes este investigador do Instituto de
Ciências Sociais no artigo “A
Batalha e a questão colonial”, que publica com o colega José
Castro em 1995 na revista acadêmica Ler
História.
É a República que cria o Ministério das Colônias, logo em
1911, e que nomeia para a sua administração figuras importantes dos seus
quadros (Norton de Matos e Brito Camacho). É também com a República, nas
décadas de 1910 e 1920, que os brancos se começam a estabelecer em força nas
colônias portuguesas na África e que a presença militar se consolida, abrindo
caminho a uma administração civil cada vez mais abrangente e incisiva, que
beneficia da aprovação do “estatuto jurídico das populações indígenas”, lembram
os autores.
“Os vetores fundamentais desta construção ideológica são a
ideia da vocação colonial civilizadora dos portugueses e o paternalismo
humanitário em relação aos negros”, defendem Castro e Garcia, falando de uma
“missão civilizadora” que não passa de um falso pretexto para pôr em prática um
projeto político que tem sobretudo grandes motivações econômicas.
“O que eles queriam de fato era garantir, tal como a
monarquia já queria, que as colônias continuavam a dar matérias-primas baratas
e a servir de destino aos produtos que se faziam em Portugal continental, e
isto sem levantar problemas. Os militares e administração estavam lá para
isso”, diz Garcia, lembrando que não se olhava a meios para atingir estes fins.
“A escravatura já tinha sido abolida formalmente, mas ela continuava nas
colônias, sob a forma de trabalho forçado [criado em 1890]. Ninguém tem dúvidas
disso hoje ou ninguém devia ter. A forma como se trabalhava nas roças do cacau
em São Tomé e Príncipe é típica de um quadro de escravatura.”
O aumento da população branca nos territórios africanos
alimentou, naturalmente, o racismo. A República, lembram Castro e Garcia,
dividia a população negra entre “crioulos ‘assimilados'” e “indígenas”, e
recusava-se a que os primeiros servissem de mediadores entre os colonos e os
segundos. Ora, isso fez crescer entre os “crioulos” o sentimento de pertença à
raça negra e a necessidade de combater o racismo.
É neste quadro que Mário Domingues assina no jornal
anarquista uma série de artigos denunciadores, alguns deles verdadeiros
manifestos, ainda que apoiados em fatos, em que desmonta o sistema colonialista
da República e o que o sustenta, defendendo a independência da África.
Escreve o primeiro desses artigos (“O ideal da
independência”, 5 de Julho de 1922) depois de ler outro que o deixou indignado,
assinado pelo seu colega Cristiano Lima (“Na Feira Mayer. Uma exibição cruel e
aviltante”, 28 de Junho de 1922), e nele assegura que “o espírito separatista”
existe em quase toda a África portuguesa, “revigorado a cada perseguição,
robustecido pela própria tirania de alguns brancos sem escrúpulos”.
Cristiano Lima parte de uma barraca de feira em que um homem
branco com o rosto pintado de preto serve de alvo aos que lhe atiram bolas de
pano e serradura para ganhar um charuto – por cima desta “diversão” havia “um
dístico chamariz” onde se podia ler “o preto que resiste a todos os
portugueses” – para denunciar uma “brutal e inútil selvajaria” com que
compactuam todos os que permanecem em silêncio perante tamanho ataque à
dignidade humana que evoca “épocas longínquas de escravidão e despotismo”, mas
sem nunca se referir às condições em que vivem os negros nas colônias.
O que escreve Mário Domingues logo no primeiro título da
série, por seu turno, não deixa dúvidas sobre o que pensa do domínio colonial
na África, garantindo ser missão de todos proclamar a verdade corajosamente:
“(…) O separatismo alojou-se definitivamente no cérebro e no coração do negro
escravizado e vexado por uma colonização iníqua. (…) Porque não houve ainda
quem, público e raso, afirmasse desassombradamente que talvez não tardem dez,
15 ou 20 anos que Portugal corra o risco de ficar sem colônias para explorar,
sem negros para tiranizar?” E continua: “Às infâmias praticadas pelo despotismo
branco, na África, só um ideal de independência se pode opor com eficácia.” E
insta os negros a lutarem pela sua liberdade, “unidos numa consciência rácica”
e com a certeza de que as suas reivindicações são mais do que justas. “A
liberdade não se concede, conquista-se. Que a conquistem os negros!” “Têm ou
não os negros direito à independência? Têm. Como alcançá-la? Lutando.”
E termina, num artigo carregado de interrogações e
exclamações que parece destinar-se mais a ser ouvido que lido, apelando a uma
grande manifestação dos negros de Lisboa como forma de tornar pública a
urgência da libertação das colônias. “Desejamos ardentemente a independência do
povo negro, porque somos partidários da independência de todos os povos, porque
queremos ver a humanidade livre, absolutamente livre, vivendo em paz e
harmonia!”
Noutro texto, o último desta série a que deu o nome Para a história da colonização
portuguesa, apela a que os “organismos negros” exijam de imediato o
fim dos castigos corporais, a anistia para todos os presos políticos, a
equiparação de salários entre brancos e negros e a liberdade de trabalho e
imprensa, em consonância com outros movimentos revolucionários que vão surgindo
no plano internacional. “É preciso que o negro português ingresse também nesse
movimento colossal… que tem por objetivo a independência da África.”
“Ele não escreve sobre a libertação das colônias portuguesas
na África como se fosse uma utopia distante e eternamente inalcançável. Nem o
faz como se este movimento se pudesse isolar de outros que se opõem ao
imperialismo europeu e ao seu sistema de dominação”, sublinha José Luís Garcia.
“O Mário Domingues faz exigências muito concretas e quer ver resultados.”
O
guarda-livros contrariado
Mário Domingues não seria o único na redação do A
Batalha a defender estes ideais independentistas e a denunciar as
atrocidades cometidas pelo colonialismo português, atrocidades que a República
perpetuara, apesar de (algumas) boas intenções iniciais, mas é o primeiro a
escrever abertamente sobre a total libertação dos territórios ultramarinos.
Tudo isto é publicado por um diário claramente vinculado aos
ideais anarquistas e não está isento de contradições. São artigos que defendem
os direitos humanos em geral e o direito dos negros a serem livres em
particular, mas não podem ser isolados de um contexto em que as reivindicações
do proletariado também estão muito presentes. “Mas o Mário Domingues fala muito
mais de raça e da emancipação dos negros” do que os seus colegas Cristiano Lima
e Ferreira de Castro, por exemplo. “Quase todo o seu trabalho jornalístico
tinha que ver com o fato de ele ser um homem negro a trabalhar num meio
dominado por homens brancos e a viver numa sociedade em que aos negros não eram
reconhecidos os mesmos direitos que aos brancos”, acrescenta José Luís Garcia.
Domingues chegou a Lisboa com apenas 18 meses para viver com
os seus avós paternos num ambiente de classe média. O pai queria que recebesse
uma educação séria e a casa dos avós proporcionou-lhe um ambiente seguro.
Nunca mais viu a mãe e, durante anos, por causa da
informação que lhe era transmitida pela família paterna, acreditou que morrera
quando ele era ainda bebê.
Há uma passagem em O
Menino entre Gigantes – romance autobiográfico que publica em
1960 numa edição cuja capa é assinada pelo seu filho, o pintor surrealista
António Domingues – em que a avó do protagonista foge às perguntas que ele lhe
faz sobre a mãe ao pegar numa camisa de bebê que estava guardada numa gaveta.
“Havia nele uma tristeza que vinha da ausência da mãe e do
fato de ter descoberto que as pessoas que lhe mentiram sobre ela foram das que
mais amou na vida. Essa mágoa ficou. Falava muito da mãe, do fato de ela ser
negra”, diz José Luís Garcia, que chegou a conversar com pessoas que o
conheciam bem e a quem a nora do escritor, Adelina Domingues, confiou muitas
das suas fotografias e documentos.
Em Lisboa acaba por fazer, contrariado, o Curso Comercial no
antigo Colégio Francês, começando a trabalhar como ajudante de guarda-livros,
mesmo tendo consciência da atração que sentia pela escrita desde sempre. Foi
pela ficção, aliás, que chegou ao jornalismo, carreira que viveu intensamente
durante quase 20 anos. Publicou o seu primeiro conto no diário A
Batalha quando tinha apenas 19, tendo escrito e até ajudado a criar
outros jornais e revistas (ABC,
Ilustração, África Magazine, Imprensa Livre, Repórter X, Detective).
Se o entusiasmo pela escrita não bastasse para abandonar a contabilidade,
bastaria o salário – Alexandre Vieira, o então diretor do Batalha,
prometeu pagar-lhe o dobro do que ganhava e cumpriu, contou Domingues num
programa da RTP, em Agosto de 1970.
Sempre
no meio
Até ao final de 1919, começos de 1920, Mário Domingues
assinou sobretudo ficção e crítica de arte (era um entusiasta de modernistas
como Amadeo de Souza-Cardoso e Almada Negreiros), escreve Garcia, embora
defendendo que é natural que alguns dos artigos contra a política colonial que
já antes disso A Batalha publicava
sob anonimato fossem, na realidade, do jornalista. “É o estilo dele, a ironia
com que escreve”, diz o sociólogo, fazendo referência a um em particular, em
que o autor aborda o problema da escravatura nas roças de São Tomé, descrita
como a mais próspera das colônias portuguesas, procurando desmontar o sistema
falacioso de contratação dos chamados “serviçais”, completamente explorados e
deixados à mercê das vontades dos proprietários das grandes fazendas de cacau,
trabalhando das seis da manhã às seis da tarde e vendo os seus contratos
renovados automaticamente, sem que fosse essa a sua intenção. Mas depois, e até
ao começo dos anos 1930, assina a série da colonização portuguesa, transformada
num apelo ao “belo ideal da independência africana”.
São 30 artigos em que denuncia mortes e violações, em que
ataca as grandes companhias que usam a abusam da força para disciplinar os seus
trabalhadores que tratam como escravos, em que contesta as limitações à
liberdade de imprensa e em que expõe a falsidade da “missão civilizadora dos
portugueses” na África. “Falar de brancos e negros implica falar da
colonização, e a colonização, mesmo hoje, não pode ser definida senão numa
palavra – crime”, escreve num dos textos desta série em que passa em revista
500 anos de império.
“O primeiro artigo em que fala de uma África independente é
de uma falta de cautela deliciosa e vai pagar o resto da vida por ela.” Porquê?
“Porque fica eternamente no meio – vê-se inicialmente arredado pelo Estado Novo
e pelo salazarismo e, depois, é menosprezado pelo anti-salazarismo e por aquela
parte da elite portuguesa que se habituou a menorizar o jornalismo e a
literatura de aventuras e de cordel, coisas muito importantes para a criação de
imaginários.”
Domingues viveu sempre esta condição de quem está “no meio”,
uma condição que começa na cor da sua pele: “Não podemos esquecer que ele fez
tudo o que fez sendo um mulato, com tudo o que isso implicava no Portugal do
seu tempo.” Por isso, e sobretudo pelo caráter visionário e pela qualidade da
sua escrita, José Luís Garcia não podia deixar de o incluir no volume que a
Palgrave Macmillan lançou em Dezembro (disponível em papel e em versão
digital): “Eu não podia perder a oportunidade de o apresentar no plano
internacional que ele merece, já que em Portugal está ainda muito longe de ser
devidamente reconhecido.”
Um
não-alinhado
Entre artigos de opinião e a reportagem, gênero a que dedica
boa parte da sua energia em jornais como o Detective, chegando a disfarçar-se de mendigo,
pedindo esmola e dormindo nas ruas para depois poder escrever, a partir de
dentro, sobre o apoio aos mais pobres e sobre as condições de vida nas prisões,
Mário Domingues continuou a ter tempo para a ficção, publicando o seu primeiro
livro em 1923, Audácia de
Um Tímido, a que se seguiram Anastácio José (1927), O Preto do Charleston (1930), Uma Luz na Escuridão (1937)
ou já referido O Menino
entre Gigantes (1960), romance que dedica à mãe e em que,
dando voz a Zezinho, um menino mulato educado em Lisboa por uma família
burguesa que não pode ser outro se não o próprio autor, escreve: “Eu ficara
sucumbido como se me vibrassem uma bofetada à traição. Era a primeira vez que
me faziam sentir, de maneira humilhante, a cor negra da minha pele. Talvez não
acredites, Marisa adorada: eu nunca fizera até então reparo em que era muito
diferente das pessoas que me cercavam.”
“Percebi a dada altura que persistir na minha carreira
jornalística era prejudicar a minha carreira nas letras”, diz na mesma
entrevista à televisão pública, justificando o abandono dos jornais. Em momento
algum do programa em que a RTP o acompanha pelas ruas e praias da Costa da
Caparica, onde vivia, se lhe houve qualquer comentário às limitações à
liberdade de imprensa impostas pelo Estado Novo, o que é natural, já que o
programa passa quatro anos antes da revolução que depõe a ditadura.
Trocado o jornalismo pela ficção, Mário Domingues passa a
dedicar-se aos romances policiais e de aventuras, sob pseudônimo – Os Mistérios da Índia, Segredos da
Espionagem Oriental, Perdidos na África –, conseguindo viver
da sua escrita, como queria desde a adolescência: “Durante dez, 15 anos escrevi
uns 160 ou 170 livrinhos desses de cerca de 200 páginas, recheados de
aventuras, cheios de imprevistos, com índios e cowboys, viagens extraordinárias por regiões do
mundo que eu nunca tinha visto.”
A estes romances seguiram-se as biografias de grandes vultos
da história de Portugal (D. Manuel I, Padre António Vieira, Nun’Álvares
Pereira), figuras que serviam na perfeição a retórica do Estado Novo. E isto
tendo ainda no “currículo” traduções de obras de Charles Dickens e George
Eliot.
“Mário Domingues era um escritor notável. Primeiro foi um
jornalista incrível, repórter impressionante, e depois transformou-se no nosso
Emilio Salgari [o escritor italiano que criou o corsário Sandokan]. Nunca parou
de escrever, porque sempre quis viver da escrita”, diz Garcia.
Mas, se foi autor de uma obra tão vasta quanto
diversificada, e sobretudo de uma série de textos absolutamente pioneiros no
que toca à defesa da independência das colônias portuguesas, por que razão
permanece Mário Domingues praticamente esquecido e, com raras exceções,
confinado a publicações acadêmicas? Porque durante o Estado Novo troca os
artigos revolucionários nos jornais por livros de cowboys e de aventuras?
Porque a dada altura decide escrever sobre os “heróis” que tanto agradavam ao
regime e acaba por ele condecorado?
“Fica oculto, porque não alinha com o PCP. Termina a vida
pouco crítico, mas sem deixar o anarquismo, nem a ideia de viver apenas da
escrita, condição típica e desgraçada do intelectual do século XX. É um
não-alinhado”, acrescenta este investigador que está habituado a estudar as
relações entre os meios
de comunicação e o poder político – Garcia coordenou, com
Tânia Alves e Yves Léonard, a obra Salazar, o Estado Novo e os Meios de Comunicação,
que saiu no ano passado com a chancela das Edições 70 –, e que gosta de tratar
os jornais como “arquivos da realidade” e não como meras ferramentas
instrumentalizáveis ao serviço de determinado programa que lhes é exterior.
“Os meios de comunicação influenciam
estilos de vida, comportamentos, opiniões, e são, nessa medida, atores de
primeiríssimo plano da história, pelo menos a partir da segunda metade do
século XX. (…) A política faz-se com ideias, linguagens, correntes de opinião,
e isso coloca os meios de
comunicação no coração do processo.”
agência
de notícias anarquistas-ana
por uma só fresta
entra toda a vida
que o sol empresta
Alice Ruizentra toda a vida
que o sol empresta
Nova York retira estátua de médico que operava escravas sem anestesia – A.N.A.
Nova York retira estátua de
médico que operava escravas sem anestesia
https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2017/08/17/eua-baltimore-remove-estatuas-de-herois-confederados-no-meio-da-noite/
https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2017/08/15/eua-manifestantes-derrubam-estatua-de-soldado-confederado-na-carolina-do-norte/
linhas
zibelinas sozinhas
Estátua de J. Marion Sims,
considerado o ‘pai da ginecologia moderna’ foi retirada do Central Park após
protestos
Pela primeira vez, a cidade de Nova York retirou um
monumento de uma figura histórica ligada a práticas de racismo. Na terça-feira
retrasada (17/04) a estátua do médico J. Marion Sims, considerado o pai da
ginecologia moderna, foi removida de uma base de granito no Central Park, onde
ela permaneceu nos últimos 84 anos.
A retirada foi aprovada na segunda-feira por um comitê que
está revisando os monumentos da cidade a pedido do prefeito Bill de Blasio,
após o protesto de supremacistas brancos em Charlottesville, em agosto do ano
passado, e faz parte de um movimento que tem mirado estátuas em todos os
Estados Unidos.
A estátua de Sims foi retirada porque, na década passada,
foi descoberto que ele testava técnicas cirúrgicas em escravas negras à força e
sem o uso de anestesia.
Depois da violência em Charlottesville, o monumento, que
ficava diante da Academia de Medicina de Nova York, foi vandalizado algumas
vezes. Agora, ele será transferido para um cemitério no Brooklyn, onde o corpo
do médico está enterrado.
Fonte: agências de notícias
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agência de notícias anarquistas-ana
folhinhaslinhas
zibelinas sozinhas
V. Maiakovski
Fonte: https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2018/04/24/eua-nova-york-retira-estatua-de-medico-que-operava-escravas-sem-anestesia/
segunda-feira, 23 de abril de 2018
O ‘anti-imperialismo’ dos idiotas - por Leila Al Shami
O 'anti-imperialismo' dos idiotas
Uma vez mais, o movimento “antiguerra”
ocidental se despertou para mobilizar-se em torno da Síria. Esta é a terceira
vez desde 2011. A primeira foi quando Obama contemplou atacar a capacidade
militar do regime sírio (mas não o fez) após os ataques químicos em Ghuta em
2013, considerados uma ‘línha vermelha’. A segunda vez foi quando Donald Trump
ordenou um ataque que atingiu uma base militar vazia em resposta aos ataques
químicos contra Khan Sheikhun em 2017. E hoje, quando os Estados Unidos, o
Reino Unido e a França tomam medidas militares limitadas (ataques seletivos contra
os ativos militares do regime e instalações de armas químicas) depois de um
ataque com armas químicas em Duma que matou ao menos 34 pessoas,
incluídos muitos menores que se refugiavam dos bombardeios nos porões.
https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2018/03/06/eua-o-problema-com-mitos-esquerdistas-sobre-a-siria/
https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2018/03/02/franca-carta-para-ghouta/
https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2018/03/27/espanha-comunicado-sobre-a-guerra-da-siria-de-mulheres-de-negro-de-madrid-contra-a-guerra/
borboleta amarela
toda luz do dia
O primeiro que devemos ressaltar das três
principais mobilizações da esquerda “antiguerra” ocidental é que tem pouco que
ver com que se acabe a guerra. Mais de meio milhão de sírios foram assassinados
desde 2011. A grande maioria das mortes de civis se produziram mediante o uso
de armas convencionais e 94% destas vítimas foram assassinadas pela aliança
sírio-russa-iraniana. Não há indignação nem se finge preocupação por esta
guerra, que seguiu à brutal repressão do regime contra manifestantes pacíficos
e em favor da democracia. Não há indignação quando se lançam bombas de barril,
armas químicas e napalm em comunidades democraticamente auto-organizadas ou em
hospitais e trabalhadores de resgate. Os civis são prescindíveis; as
capacidades militares de um regime genocida e fascista não o são. De fato, o
lema “Mãos fora da Síria” realmente significa “Não tocar Assad” e geralmente se
brinda apoio para a intervenção militar da Rússia. Isto foi evidente ontem em
uma manifestação organizada por Stop the War UK, onde se exibiram
vergonhosamente várias bandeiras do regime e russas.
Esta esquerda mostra tendências
profundamente autoritárias, aquela que coloca aos próprios estados no centro da
análise política. Portanto, a solidariedade se estende aos estados (vistos como
o ator principal na luta pela liberação) em lugar de grupos oprimidos ou
desfavorecidos em qualquer sociedade, sem importar a tirania desse estado.
Cegos à guerra social que ocorre dentro da Síria, os sírios (ali onde existam)
são vistos como simples peões em um jogo de xadrez geopolítico. Repetem o
mantra ‘Assad é o governante legítimo de um país soberano’. Assad, que herdou
uma ditadura de seu pai e nunca realizou, e muito menos ganhou, uma eleição
livre e justa. Assad, cujo “exército árabe sírio” só pôde recuperar o
território que perdeu graças ao respaldo de uma miscelânea de mercenários
estrangeiros e com o apoio de bombas estrangeiras, e que estão lutando, em
geral, contra rebeldes e civis nascidos na Síria. Quantos considerariam
legítimo a seu próprio governo eleito se começassem a realizar campanhas de
violação em massa contra os dissidentes? Tal posição só é possível pela
desumanização completa dos sírios. É um racismo que vê aos sírios como
incapazes de conseguir, e muito menos de merecer, algo melhor que uma das
ditaduras mais brutais de nosso tempo.
Para esta esquerda autoritária, o apoio se
estende ao regime de Assad em nome do “anti-imperialismo”. Assad é visto como
parte do “eixo de resistência” tanto contra o império estadunidense como contra
o sionismo. Pouco importa que o próprio regime de Assad tenha apoiado a
primeira guerra do Golfo, ou tenha participado no programa de entregas ilegais
dos Estados Unidos onde os supostos terroristas foram torturados na Síria em
nome da CIA. O fato de que este regime provavelmente tenha a duvidosa distinção
de massacrar a mais palestinos que o estado israelense é constantemente
ignorado, como o é o fato de que está mais decidido a utilizar suas forças
armadas para reprimir a dissidência interna que a liberar o Golã ocupado por
Israel.
Este ‘anti-imperialismo’ de idiotas é um
que equipara o imperialismo somente com as ações dos Estados Unidos. Parecem
ignorar que os Estados Unidos bombardeou a Síria desde 2014. Em sua campanha
para liberar Raqqa do Daesh, abandonaram todas as normas internacionais de
guerra e considerações de proporcionalidade. Mais de 1.000 civis foram
assassinados e a ONU estima que 80 por cento da cidade é agora inabitável. Não
houve protestos contra esta intervenção de parte das organizações que dirigem o
movimento contra a guerra, nem chamadas para assegurar a proteção dos civis ou
da infraestrutura civil. Ao invés disso, adotaram o discurso da “Guerra contra
o Terrorismo”, outrora domínio dos neoconservadores e agora promulgada pelo
regime, de que toda oposição a Assad é terrorismo jihadista. Fizeram vista
grossa quando Assad enchia seu gulag com milhares de manifestantes seculares,
pacíficos e pró-democracia para matá-los por tortura, enquanto liberava
militantes islamistas do cárcere. Do mesmo modo, ignoraram os contínuos protestos
em áreas opositoras liberadas contra grupos extremistas e autoritários como
Daesh, Nusra e Ahrar Al Sham. Não se considera que os sírios possuam a
sofisticação necessária para ter uma ampla gama de opiniões. Os ativistas da
sociedade civil (incluídas muitas mulheres surpreendentes), os jornalistas
cidadãos e os trabalhadores humanitários são irrelevantes. Toda a oposição se
reduz a seus elementos mais autoritários ou é vista como um mero correio de
transmissão de interesses estrangeiros.
Esta esquerda pró-fascista parece cega a
qualquer forma de imperialismo que não seja de origem ocidental. Combina a
política identitária com o egoísmo. Tudo o que acontece se vê através do prisma
do que significa para os ocidentais: só os homens brancos têm o poder de fazer
história. Segundo o Pentágono, atualmente há ao redor de 2.000 tropas
estadunidenses na Síria. Pela primeira vez na história da Síria, os Estados
Unidos estabeleceu uma série de bases militares no norte controlado pelos
curdos. Isto deveria preocupar a quem quer que apoie a autodeterminação síria,
ainda que seja pouco em comparação com dezenas de milhares de tropas
iranianas e milícias xiitas respaldadas pelo Irã que agora ocupam grande parte
do país, ou os criminosos bombardeios realizados pela força aérea russa em
apoio à ditadura fascista. Agora, a Rússia estabeleceu bases militares
permanentes no país e lhes outorgaram direitos exclusivos sobre o petróleo e o
gás da Síria como recompensa por seu apoio. Noam Chomsky uma vez sustentou que
a intervenção da Rússia não podia ser considerada imperialismo porque foi
convidada a bombardear o país pelo regime sírio. Segundo essa análise, a
intervenção dos Estados Unidos no Vietnã tampouco foi imperialista, convidada
como o foi pelo governo sul vietnamita.
Várias organizações pacifistas justificaram
seu silêncio sobre as intervenções russas e iranianas argumentando que “o
inimigo principal está em casa”. Isto os desculpa de empreender qualquer
análise de poder séria para determinar quem são realmente os principais atores
que impulsionam a guerra. Para os sírios, o principal inimigo está realmente em
casa: é Assad o que comete o que a ONU chamou ‘crime de extermínio’. Sem ser
conscientes de suas próprias contradições, muitas das mesmas vozes se
proclamaram opostas (e com razão) ao ataque atual de Israel contra
manifestantes pacíficos em Gaza. Claro, uma das principais formas em que
funciona o imperialismo é negar as vozes autóctones. E assim, as principais
organizações ocidentais contra a guerra fazem conferências na Síria sem
convidar a nenhum palestrante sírio.
A outra tendência política mais importante
por ter apoiado o regime de Assad e organizar-se contra os ataques dos Estados
Unidos, do Reino Unido e da França contra a Síria é a extrema-direita. Hoje, o
discurso dos fascistas e estes “esquerdistas anti-imperialistas” é praticamente
indistinguível. Nos Estados Unidos, o supremacista branco Richard Spencer, o
produtor de podcasts da direita alternativa (alt-right) Mike Enoch, e a
ativista anti-imigração, Ann Coulter, se opõem aos ataques norte-americanos. No
Reino Unido, o ex-líder do BNP (Partido Nacional Britânico), Nick Griffin, e a
islamófoba Katie Hopkins se unem ao clamor. O lugar onde convergem com
frequência o alt-right e o alt-left (esquerda alternativa) é em torno à
promoção de várias teorias de conspiração para absolver o regime de seus
crimes. Afirmam que as matanças químicas são bandeiras falsas ou que os
trabalhadores de proteção civil são Al Qaeda e, portanto, objetivos legítimos
de ataques. Aqueles que difundem tais informes não estão no terreno na Síria e
não podem verificar independentemente o que reclamam. Geralmente dependem dos
meios estatais de propaganda russos ou de Assad porque “não confiam na mídia”
ou nos sírios diretamente afetados. As vezes, a convergência destas duas
correntes aparentemente opostas do espetro político se converte em uma
colaboração aberta. É o caso da coalizão ANSWER, que está organizando muitas
das manifestações nos Estados Unidos contra um ataque a Assad. Com frequência,
ambas as linhas promovem narrativas islamofóbicas e antissemitas. Ambos
compartilham os mesmos argumentos e os mesmos memes.
Existem muitas razões válidas para opor-se
à intervenção militar externa na Síria, seja por parte dos Estados Unidos, da
Rússia, do Irã ou da Turquia. Nenhum destes estados está atuando no interesse
do povo sírio, da democracia ou dos direitos humanos. Atuam unicamente por seus
próprios interesses. Hoje, a intervenção dos Estados Unidos, do Reino Unido e
da França não pretendem tanto proteger os sírios das atrocidades massivas mas
sim fazer cumprir uma norma internacional de que o uso de armas químicas é
inaceitável, por temor a que algum dia se utilizem contra os próprios
ocidentais. Mas bombas estrangeiras não trarão paz nem estabilidade. Há pouca
intenção de expulsar Assad do poder, o que contribuiria para terminar com a
pior das atrocidades. No entanto, ao opor-se à intervenção estrangeira, alguém
tem que encontrar uma alternativa para proteger os sírios da matança. É no mínimo
moralmente repreensível, esperar que os sírios calem e morram para proteger o
princípio superior do “anti-imperialismo”. Os sírios propuseram muitas vezes
alternativas à intervenção militar estrangeira, que foram ignoradas. E então
fica a pergunta, quando as opções diplomáticas falharam, quando um regime
genocida está protegido da censura por poderosos apoios internacionais, quando
não se consegue deter os bombardeios diários, pôr fim aos cercos por inanição
ou liberar os prisioneiros torturados em escala industrial, o que se pode
fazer?
Não tenho respostas. Sempre me opus a toda
intervenção militar estrangeira na Síria, apoiei o processo liderado pela Síria
para livrar seu país de um tirano e respaldei procedimentos internacionais
baseados em esforços para proteger os civis e os direitos humanos e garantir a
prestação de contas de todos os atores responsáveis de crimes de guerra. Um
acordo negociado é a única maneira de terminar esta guerra e isso ainda parece
tão distante como sempre. Assad (e seus protetores) estão decididos a frustrar
qualquer processo, buscar uma vitória militar total e esmagar qualquer
alternativa democrática que sobreviva. Centenas de sírios estão sendo
assassinados todas as semanas da maneira mais bárbara imaginável. Os grupos
extremistas e as ideologias estão prosperando no caos criado pelo Estado. Os
civis continuam fugindo de milhares a medidas que se implementam como
mecanismos legais. Como a Lei Nº 10, para garantir que nunca regressarão a seus
lares. O sistema internacional em si mesmo está em colapso sob o peso de sua
própria impotência. As palavras ‘Nunca mais’ soam ocas. Não há um movimento
popular importante que se solidarize com as vítimas. Ao contrário, são
caluniados, seu sofrimento é negado ou objeto de burla, e suas vozes, ausentes
dos debates ou postas em dúvida por pessoas que estão longe, que não sabem nada
da Síria, da revolução ou da guerra, e que arrogantemente creem que sabem o que
é melhor. É esta situação desesperada a que faz com que muitos sírios deem as
boas-vindas à ação dos Estados Unidos, Reino Unido e França, e que agora veem a
intervenção estrangeira como sua única esperança, apesar dos riscos
que sabem que isso implica.
Uma coisa é certa: não vou perder o sono
pelos ataques dirigidos contra as bases militares do regime e as fábricas de
armas químicas que podem proporcionar aos sírios um breve respiro da matança
diária. E nunca serei uma aliada daqueles que põem os discursos rimbombantes
acima das realidades vividas, que apoiem regimes brutais em países longínquos,
ou que promovam o racismo, as teorias da conspiração e a negação das
atrocidades.
> Leila Al Shami é uma ativista síria britânica que luta pelos direitos humanos e justiça
social na Síria e no Oriente Médio desde 2000. Ela foi membro fundadora da rede
Tahrir-ICN, ligada às lutas antiautoritárias em todo Oriente Médio, Norte da
África e Europa.
Fonte: https://leilashami.wordpress.com/2018/04/14/the-anti-imperialism-of-idiots/
Tradução > Sol de Abril
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https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2018/03/27/espanha-comunicado-sobre-a-guerra-da-siria-de-mulheres-de-negro-de-madrid-contra-a-guerra/
agência de notícias anarquistas-ana
tarde cinzaborboleta amarela
toda luz do dia
Alexandre Brito
Fonte: https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2018/04/23/o-anti-imperialismo-dos-idiotas/
segunda-feira, 16 de abril de 2018
sexta-feira, 6 de abril de 2018
Por que as elites apelam ao golpe – por Róber Iturriet Avila e João Santos Conceição
Por que as elites apelam ao golpe
Em
13 de Março de 1964, João Goulart fala no Comício da Central e defende as
Reformas de Base. Dezoito dias depois, estaria deposto
Num país dividido em Casa Grande e Senzala, poucos governos ousaram
elevar salários e cobrar impostos dos ricos. Nenhum deles permaneceu de pé
As
destituições presidenciais ocorridas em 1964 e 2016 possuem
distinções em termos de método, instrumento e velocidade. Um olhar mais
cuidadoso, entretanto, é capaz de identificar nestes epifenômenos causalidades
nos interesses políticos dos respectivos grupos sociais representados e
contrários aos então presidentes. Este breve texto, de forma simplificadora,
busca quantificar e qualificar algumas dessas causas através da variação real
do salário mínimo, da
incidência tributária e das políticas
sociais distributivistas interrompidas ou restringidas.
No
curto espaço de tempo da forma de governo presidencialista da gestão de João
Goulart, houve a proposição das Reformas de Base.
Nelas, estavam incluídas as seguintes reformas: agrária, bancária, fiscal,
educacional, urbana e administrativa. Tais proposições alterariam com
profundidade o quadro de distribuição de renda no País.
A
reforma agrária previa a autorização de desapropriações, para que a terra
servisse a sua função social, ampliaria os direitos do trabalhador rural e
permitiria o fortalecimento sindical. Já a reforma bancária tinha o intuito de
ampliar a concessão de crédito. A reforma educacional almejava a valorização da
magistratura e a erradicação do analfabetismo. A reforma urbana visava diminuir
a especulação imobiliária e o déficit habitacional.
A
reforma fiscal, entretanto, parcialmente implementada, possuía impactos
redistributivos relevantes. Além da ampliação da alíquota máxima de imposto
para a faixa de 65%, havia previsão de impostos sobre ganhos especulativos de
imóveis, implementação de tributos diferenciados de acordo com o setor das
empresas, estímulo à reinversão de lucros, etc. Aliada a esses fatores houve
uma valorização real do salário mínimo, em 18,76%. Esse foi um dos
fatores de instabilidade do governo Goulart, que encontrava crescente
resistência dos grupos econômicos dominantes (SOUZA, 2010; MOREIRA, 2011). O
governo subsequente, de Castelo Branco, reverteu rapidamente as políticas
implementadas por Goulart.
Na
destituição de 2016 é possível elencar semelhanças e diferenças. Sabidamente,
as gestões petistas tinham seu elo fundador nas políticas sociais que visavam à
redução das desigualdades do País. Seja através da valorização real de 90,55%
do salário mínimo, seja através de políticas sociais como: minha casa minha
vida, farmácia popular, cotas sociais e étnicas nas universidades, bolsa
permanência a estudantes carentes, programas de agricultura familiar, bolsa
família, etc.
Na
área fiscal, o governo Lula tentou realizar uma reforma tributária no seu
primeiro ano de governo. Dentre as propostas, havia a ampliação de impostos
sobre doações, heranças e sobre a aquisições de imóveis. Contudo, o projeto
encontrou resistências no Congresso Nacional, especificamente nos grupos
empresariais e conservadores. (SALVADOR, 2014).
O
governo Dilma acenou para volta da tributação sobre os dividendos e para o
aumento das alíquotas do imposto sobre heranças e doações, além de tentar
instituir a taxação sobre grandes fortunas e retomar a CPMF. Esses acenos nunca
foram encaminhados ao Congresso Nacional, motivada pela sinalização de que não
seriam aprovados.
Ambos
os governos conviveram com a desaprovação dos grupos sociais de renda mais
elevados, não apenas por desgostarem das políticas, mas fundamentalmente porque
os ganhos sociais representam a redução relativa da apropriação de renda das
camadas superiores e, eventualmente, redução do lucro empresarial. O Gráfico
1 (logo abaixo) explicita uma trajetória de elevação da participação
dos salários no PIB a partir de 2004 e, consequentemente, uma queda do
excedente operacional bruto sobre o produto no mesmo período.
Nota: Foram excluídas as receitas governamentais e o rendimento de
autônomos. No rendimentos do trabalho foram inclusas contribuições sociais
A
variação do salário mínimo tem relação direta com o aumento dos ganhos sociais.
O gráfico 2 indica a concomitância dos valores salariais elevados e acentuados
conflitos políticos. No governo de Castelo Branco, posterior ao golpe, a
variação real do salário foi negativa. Houve queda de 36,03%. No governo de
Michel Temer, a variação do salário mínimo seguiu a regra previamente
estabelecida, mas a reforma trabalhista implementada rebaixa os ganhos dos
trabalhadores, uma vez que viabiliza uma jornada de trabalho menor do que 44
horas. Adicionalmente, é uma clara precarização das relações de trabalho.
Cabe
destacar que ambas destituições tiveram aberto apoio de grupos empresariais,
dos grandes grupos midiáticos, das federações de bancos e das agremiações
ruralistas — em um termo, das elites. As políticas regressivas adotadas nos
governos sem a legitimidade das urnas, mas apoiados pelas elites, demonstram a
dificuldade desses grupos conviverem com políticas distributivistas. Fenômeno
mais intenso do que em países desenvolvidos, os quais possuem, em sua maioria, políticas fiscais e sociais mais
redistributivistas. Além de mais conservadora, a elite brasileira
parece ser mais autoritária, dispensando a democracia em momentos que seus
interesses estão em jogo.
Gráfico 2 – Variação real do salário mínimo 1940-2018 e destituições de
João Goulart e Dilma Roussef
Nota: A preços de 2018, deflacionado pelo INPC. Elaboração própria
Do
ponto de vista do método, é também possível identificar semelhanças em meio às
diferenças. Quando o retorno do capital é ameaçado, há uma rápida articulação
entre grupos empresariais, midiáticos e amplos setores da classe média, que se
mobilizam com a mesma narrativa. Dessa forma, observa-se a técnica,
bem-sucedida, de associar governos moderados à esquerda radical, abrindo espaço
à extemporânea retórica anticomunista. O discurso anticorrupção se presta a
conquistar corações e mentes. Dessa maneira, nos termos de Santos (2017), tal
método disfarça “que as prioridades dos governos usurpadores não têm sido o
combate a corrupção, mas, isso sim, notável, a adoção de medidas estancando
políticas favoráveis aos destituídos”.
______________
Os autores agradecem as contribuições de João Batista Santos Conceição,
Pedro Sofiati de Sá e Mário Lúcio Pedrosa, eximindo-os das posições aqui
firmadas
______________
REFERÊNCIAS
MOREIRA,
Cássio da Silva. O projeto nação do governo João Goulart: o Plano Trienal e as
Reformas de Base (1961-1964). 2011. 406. Tese (Doutorado em Economia).
Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2011.
SALVADOR,
Evilasio. As implicações do sistema tributário nas desigualdades de renda. 1.
Ed. Brasília, 2014.
SANTOS,
Wanderley Guilherme dos. A Democracia Impedida: O Brasil no Século XXI. Rio de
Janeiro: FGV, 2016
Situação no Império Brasil: as Oligarquias se levantam, as Burocracias caem – por A.N.A.
Situação no
Império Brasil: as Oligarquias se levantam, as Burocracias caem
O Brasil nasceu no Império e assim segue. As oligarquias imperialistas das regiões sulistas e brancas do Império, aliadas às oligarquias coloniais do Nordeste e do Norte, conseguem não só manter-se, desde a época da escravidão, mas também com a chegada dos meios de comunicação nas décadas de 60, 70 e 80 do século passado e da informática nos últimos 20 anos, conseguem êxito em manter e aumentar a exploração sobre os trabalhadores ao passo em que deixam a massa ainda mais alienada.
O Brasil nasceu no Império e assim segue. As oligarquias imperialistas das regiões sulistas e brancas do Império, aliadas às oligarquias coloniais do Nordeste e do Norte, conseguem não só manter-se, desde a época da escravidão, mas também com a chegada dos meios de comunicação nas décadas de 60, 70 e 80 do século passado e da informática nos últimos 20 anos, conseguem êxito em manter e aumentar a exploração sobre os trabalhadores ao passo em que deixam a massa ainda mais alienada.
Na
Década Sócio-liberal, o sonho induzido às massas alienadas e ignorantes de
elevarem-se à categoria de consumidores médios (cidadãos), acabou com o golpe
burocrático-legal imposto pelos mesmos aliados do Governo deposto.
As
oligarquias não estavam dispostas a continuar a dar qualquer pedaço do bolo:
sua ganância psicopática exige roubar tudo e agora. As burocracias culturais,
partidárias e sindicais, acomodadas nos salários seguros e saborosos do Estado,
servos leais das Oligarquias, não eram, como já se comprovou, inimigos, mas,
parceiros na putrefata tarefa de manter os explorados e oprimidos imersos na
eterna desmobilização, no incontestável assistencialismo, paternalismo e
alienação estatal e ou religiosa.
É
digno de atenção como uma década de liberalismo social burocrático e populista
pode desaparecer totalmente em um ano de governo das Oligarquias tradicionais,
aliadas, como não, com seus pares estrangeiros.
Os
“direitos” dos trabalhadores, indígenas, quilombolas, estudantes e a brutal
exploração do território, o uso indiscriminado de agrotóxicos, além dos desastres
ecológicos impunes, a liberação de Licenças Ambientais, tem sofrido em poucos
meses, modificados de forma que permita às Oligarquias acumularem muito mais
dinheiro e poder, e para que as pessoas sejam ainda mais exploradas, oprimidas
e alienadas.
As
burocracias municipais, estaduais, federais, sindicais, universitárias e de
ONGs também tem sido afetadas. Todo esse movimento social é semelhante ao que
ocorreu na Europa ou nas Américas, mas o que levou décadas para deteriorar-se
lá, no Império Brasil foi alcançado em pouco mais de 12 messes.
E
ainda não acabou, pois a recente militarização do Rio de Janeiro, a Reforma da
Previdência, a venda do Aquífero Guarani, a Militarização e Venda da Amazônia
negociadas com seus sócios e companheiros norte-americanos, demonstram
tragicamente que as ânsias predatórias da Oligarquia Psicopática que dominam o
Império Brasil ainda não estão satisfeitas ou saciadas. Para a Oligarquia
Imperialista Brasileira, o território e seus habitantes são meios para aumentar
seus patrimônios, benefícios e delírios.
O
fazem de forma efetiva graças à capacidade em se disfarçar como “Estado de
Direito” e “República Federativa”, contudo, basta apenas a leitura das notícias
diárias para ver facilmente que a divisão de poderes entre executivo,
legislativo e judiciário no Império Brasil é uma grande mentira propagada pelas
mídias e meios de comunicação de massa, totalmente dominados e controlados por
seus proprietários, as Oligarquias.
A
Justiça é outra corrupção descaradamente hipócrita, delirante e inapresentável.
As
supostas organizações ou movimentos que, supostamente, enfrentam a estas
Oligarquias, como em qualquer Estado ou Império, também estão corruptas e
burocratizadas. Mas, uma das características do Império Brasil em sua fração de
“esquerda”, é a forma triste e bruta de vender-se e beijar a mão do opressor,
compartilhando de sua lógica (Democracia, Estado de Direito, Pátria-Nação,
Paternalismo, Liderismo…) e com soberba presunção, hipocritamente utilizar-se
da situação de opressão do povo para jogar discursos tão inúteis como
retrógrados.
Sua
função de recuperadores à serviço dos oligarcas é evidente, e até mesmo alguns
destas esquerdas são tão autoritários e obtusos, que nem sabem a quem servem,
amparados por um marxismo vulgar, cheio do frente populismo mais repugnante e
regado com academicismo asqueroso. Esperar algo de todas essas esquerdas
acomodadas, sindicatos burocráticos e ineficientes, academias tristes e
presunçosas é tão inútil e ilusório como rezar para que em um bem-aventurado
dia o Império Brasil se refaça e se torne uma democracia escandinava.
O
tratamento assassino da polícia contra a população da periferia, pobre (61.000
homicídios em 2016), número de encarcerados (730.000), o autoritarismo,
racismo, xenofobia e machismo a cada dia maior entre as Oligarquias, pequena
burguesia e até entre os trabalhadores e pobres alienados, é escandaloso. A
polícia e os meios de comunicação são tão brutos e alienantes quanto os seus
pares norte-americanos… ou mais!
Sem
a proposta de Autonomia e Autogestão, não há como se pensar em mudança para os
povos oprimidos. Continuar acompanhando as organizações burocráticas é perder
energia e tempo, desperdiçar situações.
Acabar
com o Império Brasil, iniciar um caminho nesta direção exige uma ação municipal
e regional, esquecendo-se de uma vez das “Coordenações Nacionais” que apenas
repetem a dialética territorial e a ideologia burguesa repassada dos
opressores, burocratizando ainda mais qualquer tentativa legítima de se iniciar
algum movimento autônomo de base. Continuar acompanhando as organizações
religiosas ou marxistas corriqueiras é ir a lugar nenhum.
Construir
Assembleias Autônomas convocadas e autogeridas pelas mesmas Comunidades, e não
pela lista interminável de organizações de esquerda, ONGs e burocratas
culturais e acadêmicos, para avançar na Autonomia dos indivíduos, das
Comunidades, na perspectiva da Autogestão generalizada.
Construir
escolas livres, um sistema de saúde alternativo, autogestão de alimentos
saudáveis para a comunidade, um sistema de habitação autogerido e igualitário,
indústrias ecológicas e úteis, aposentadorias dignas e progressivas,
solidariedade de vizinhança e comunidade… Podem ser alcançados de forma
autônoma, assemblearia e autogestiva.
Para
se alcançar uma justiça restaurativa e não punitiva, para acabar com a Guerra
das Drogas, com as prisões desumanas e as pragas da marginalidade e do crime
cotidiano, é necessária outra cultura, de Solidariedade e Apoio Mútuo e, acima
de tudo, deixar de confiar na Reforma de Impérios ou Estados que historicamente
provaram ser assassinos corruptos e ineficazes.
Esperar
que o Estado ou o Império dos Oligarcas e dos Burocratas facilitem a Autonomia
e a Autogestão é inútil e ilusório. Basta conhecer a história dos últimos 200
anos. Certamente, as realidades mexicanas dos zapatistas em Chiapas ou as
autodefesas em Guerrero, o movimento Mapuche na região chilena e na Argentina,
ou as Autodefesas Indígenas no Cauca colombiano podem servir de referência. Ou
a auto-organização de cidades, municípios e comarcas na Bolívia ou entre as
comunidades indígenas no Equador. Também as práticas no Curdistão de
Municipalismo Libertário – Confederalismo Democrático – deveriam servir para
aprender sobre a Autogestão da Comunidade e sobre a nocividade dos Estados e
dos Impérios Capitalistas, Patriarcais e Ecocidas
Destruir
o Império Brasil e construir Comunidades e Municípios livres. Autonomia contra
a burocracia e a psicose social. Vamos colocar nossa inteligência,
sensibilidade, vontade, cultura e organização à serviço da ação libertadora.
– Irrecuperável –
Upaon
Açu, Março de 2018
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terça-feira, 3 de abril de 2018
Entre os matadouros e a prefeitura: a luta dos trabalhadores da cidade de São Paulo - por Danilo Chaves Nakamura*
Entre os matadouros e a prefeitura: a luta dos trabalhadores
da cidade de São Paulo
Ao reler a apresentação do livro escrita pelo crítico literário Roberto Schwarz, pensei que a atual greve dos servidores públicos contra a reforma da previdência municipal também poderia compor uma boa peça de teatro. O assunto seria a crise econômica e as necessárias reformas estruturais para reequilibrar as contas públicas e capitalizar as empresas privadas. “A crise do capital”, diríamos tempos atrás. Os personagens seriam muitos. De um lado, os professores, a categoria majoritária dos protestos, mas juntos, os agentes de saúde, os funcionários do administrativo, os bibliotecários, os agentes de vigilância sanitária e, por que não, os coveiros dos cemitérios municipais. Disputando as consciências, os sindicatos e os radicais grupos de oposição. Do lado oposto, um prefeito empresário e vereadores representando os mais diversos ramos dos negócios. Na segurança, uma horda uniformizada pronta para bater nos manifestantes e defender o patrimônio. À espreita, nos bastidores, empresários de conglomerados internacionais que investem na educação. Socialites, filantropos e lumpens dos institutos especializados na formação de professores. E, claro, gestores dos fundos de pensão que querem ampliar suas carteiras. Serviriam de lugares, as escolas e as ruas, obviamente. Também as diretorias de ensino, onde funcionários comissionados fingiriam que nada está acontecendo. A câmara de vereadores, o gabinete do prefeito (com câmeras para selfies e fantasias para publicidade), o quartel da horda de policiais e, claro, a bolsa de valores. A linguagem, agressiva e descalibrada, mas certa do que precisa expressar, por parte dos trabalhadores em greve. Debochada e populista, por parte dos políticos despreparados. Cínica ou puramente técnica por parte dos políticos que aprenderam o beabá do marketing eleitoral. As canções seriam variadas. Ora escutaríamos salmos a favor do livre mercado, ora coros entusiasmados por um intervencionismo estatal miraculoso.
O vereador é direto nas palavras. É necessário aumentar a alíquota de 11% para 14%, porque atualmente o IPREM é deficitário. Os servidores (ativos e inativos) contribuem com 11% e a prefeitura com mais 22%. Para além desses 33%, a prefeitura gastou quase 5 bilhões do tesouro, a fundo perdido, para honrar com o pagamento da aposentadoria de aproximadamente 90 mil aposentados. Ele lembra que já houve um aumento da alíquota de 5% para 11% em 2005, no governo de José Serra, e que até então a prefeitura pouco contribuía para o sistema, apenas 2%. Mas quem criou essa situação dita “insusentável”? E estariam os aposentados apenas onerando os cofres públicos? Caio demonstra que, ao longo da história, a prefeitura, como patronal, quase nada contribuiu para a “saúde financeira” do Instituto. O vereador também destaca que os servidores aposentados, colocados como “culpados pelo rombo”, continuam contribuindo de forma solidária para os cofres da previdência e não usufruem livremente da poupança acumulada por anos de trabalho. Mas ele conclui, mesmo com a prefeitura aumentando sua contribuição e os aposentados contribuindo, o sistema atual já está falido.
As imagens que ilustram o artigo são de Tommaso Ausili.
Fonte: http://passapalavra.info/2018/03/119076
Misturada à grita dos argumentos que vem da câmara e mídia,
escutamos as vozes daqueles que sabem quais sãos as necessidades reais dos
seres humanos.
Joana: “Vocês ficam aí de camarote, os grandes figurões,
certos de que as suas trapaças não serão descobertas e não querendo saber da
miséria lá fora”.
B. Brecht – A Santa Joana dos Matadouros.
Depois de mais um dia de greve, assembleia, manifestação e
caminhada pela cidade de São Paulo – dessa vez debaixo de uma forte chuva –,
voltei para casa, tomei um banho e fui ler algo inteligente. Resolvi revisitar
a boa e velha A Santa Joana dos Matadouros, de Bertolt Brecht.B. Brecht – A Santa Joana dos Matadouros.
Ao reler a apresentação do livro escrita pelo crítico literário Roberto Schwarz, pensei que a atual greve dos servidores públicos contra a reforma da previdência municipal também poderia compor uma boa peça de teatro. O assunto seria a crise econômica e as necessárias reformas estruturais para reequilibrar as contas públicas e capitalizar as empresas privadas. “A crise do capital”, diríamos tempos atrás. Os personagens seriam muitos. De um lado, os professores, a categoria majoritária dos protestos, mas juntos, os agentes de saúde, os funcionários do administrativo, os bibliotecários, os agentes de vigilância sanitária e, por que não, os coveiros dos cemitérios municipais. Disputando as consciências, os sindicatos e os radicais grupos de oposição. Do lado oposto, um prefeito empresário e vereadores representando os mais diversos ramos dos negócios. Na segurança, uma horda uniformizada pronta para bater nos manifestantes e defender o patrimônio. À espreita, nos bastidores, empresários de conglomerados internacionais que investem na educação. Socialites, filantropos e lumpens dos institutos especializados na formação de professores. E, claro, gestores dos fundos de pensão que querem ampliar suas carteiras. Serviriam de lugares, as escolas e as ruas, obviamente. Também as diretorias de ensino, onde funcionários comissionados fingiriam que nada está acontecendo. A câmara de vereadores, o gabinete do prefeito (com câmeras para selfies e fantasias para publicidade), o quartel da horda de policiais e, claro, a bolsa de valores. A linguagem, agressiva e descalibrada, mas certa do que precisa expressar, por parte dos trabalhadores em greve. Debochada e populista, por parte dos políticos despreparados. Cínica ou puramente técnica por parte dos políticos que aprenderam o beabá do marketing eleitoral. As canções seriam variadas. Ora escutaríamos salmos a favor do livre mercado, ora coros entusiasmados por um intervencionismo estatal miraculoso.
Ironias e brincadeiras à parte, todas essas analogias com a
literatura e com o teatro rapidamente se dissiparam quando resolvi buscar
informações e assistir à entrevista
dada pelo vereador Caio Miranda Carneiro para o site Infomoney, no
dia 20 de março de 2018. De imediato concluí: Caio Miranda poderia ser um
personagem complexo, dissimulado e ligeiro, mas não é nada além de um político
banal. Poderia não ser assim, trata-se de um jovem cheio de oportunidades na
vida. Como filho de uma professora da Universidade de São Paulo e ex-professora
da rede básica de ensino, ele poderia encenar uma defesa mais contraditória da
categoria em greve, potenciais eleitores. Como advogado e ex-presidente do
centro acadêmico de direito, poderia simular uma defesa daquilo que não
acredita, ou seja, a justiça social. E, como técnico que trabalhou no Tribunal
de Contas, poderia ser mais habilidoso com os números que apresenta. Assim,
daria significações honrosas para as tabelas e os gráficos que busca apresentar
como inquestionáveis. Mas, como já foi dito, o vereador e relator do Projeto de
Lei 621/2016, que institui o Regime de Previdência Complementar Sampaprev, é um
ser que, ao tentar ser complexo e inteligente, só consegue ser simplório. Um
célebre homem que, ao defender o “bem público”, revela com todas as letras que
é apenas um serviçal do capital financeiro.
Como aqui se trata de um texto que, antes de tudo, visa o
debate esclarecido com as companheiras e os companheiros em luta, vale
abandonarmos os chistes e tentarmos reconstruir os principais argumentos do
vereador Caio Miranda na entrevista para o Infomoney. As respostas explicitam,
sem rodeios, os interesses materiais que estão por trás da “urgência” da reforma
da previdência municipal. Precisamos ter em mente que o projeto é muito mais do
que um desavergonhado aumento de alíquotas. Trata-se de um projeto de
destruição da previdência social baseada na solidariedade dos trabalhadores.
Já no início da entrevista, o vereador Caio Miranda afirma
que “o servidor não confia na gestão da previdência pública, por várias
razões”. Por isso, é necessário aprovar uma reforma que tem como base o
seguinte tripé:
a) Aumentar a alíquota de contribuição previdenciária dos servidores;
b) Criar um regime suplementar de previdência
autossustentável para os futuros servidores. E permitir a migração dos atuais
servidores para o novo regime;
c) Reestruturar o Instituto de Previdência Municipal de São
Paulo (IPREM), preparando-o para gerir pensão e não previdência.O vereador é direto nas palavras. É necessário aumentar a alíquota de 11% para 14%, porque atualmente o IPREM é deficitário. Os servidores (ativos e inativos) contribuem com 11% e a prefeitura com mais 22%. Para além desses 33%, a prefeitura gastou quase 5 bilhões do tesouro, a fundo perdido, para honrar com o pagamento da aposentadoria de aproximadamente 90 mil aposentados. Ele lembra que já houve um aumento da alíquota de 5% para 11% em 2005, no governo de José Serra, e que até então a prefeitura pouco contribuía para o sistema, apenas 2%. Mas quem criou essa situação dita “insusentável”? E estariam os aposentados apenas onerando os cofres públicos? Caio demonstra que, ao longo da história, a prefeitura, como patronal, quase nada contribuiu para a “saúde financeira” do Instituto. O vereador também destaca que os servidores aposentados, colocados como “culpados pelo rombo”, continuam contribuindo de forma solidária para os cofres da previdência e não usufruem livremente da poupança acumulada por anos de trabalho. Mas ele conclui, mesmo com a prefeitura aumentando sua contribuição e os aposentados contribuindo, o sistema atual já está falido.
No atual cenário, afirma Caio, o sistema seria viável se
tivéssemos 4 servidores públicos para cada 1 servidor aposentado. Hoje temos
1,2 servidores na ativa para 1 aposentado. Sobre essa questão, ele inverte o
argumento, afirma que devido à falta de recursos, a prefeitura vem privatizando
setores dos serviços públicos. Mas aqui qualquer pessoa sabe que esses números
revelam uma escolha política de todas as últimas administrações. Independente do
partido no executivo, as terceirizações e as privatizações foram crescentes e,
certamente, contribuíram para o desequilíbrio entre servidores ativos e
inativos que contribuem para o IPREM. Nas escolas, por exemplo, a limpeza e a
merenda foram entregues para empresas terceirizadas. As novas escolas infantis
e creches são todas administradas por convênios com a iniciativa privada. Os
hospitais e postos de saúde, entregues para Organizações Sociais. Os exemplos
se multiplicam em todas as áreas. Em síntese, além de diversos recursos
públicos estarem sendo canalizados para os cofres das empresas privadas,
expulsou-se do serviço público uma massa de trabalhadores, que passaram a
trabalhar de forma precarizada para empresas com reputação duvidosa. Essa
escolha política impacta na previdência social.
Mas seguindo o argumento do vereador, como conter a curva de
déficit que hoje está em R$5 bilhões e que, se nada for feito, em 10 anos
chegará a R$10 bilhões? Caio Miranda afirma que a atual reforma da previdência
municipal é uma reforma de longo prazo. O equilíbrio do IPREM seria alcançado
depois de 28 anos. Alguém acredita que Doria governa projetando três décadas?
Mas tudo bem, vamos seguir a narrativa do vereador. O aumento de 11% para 14%
na alíquota garantiria aproximadamente R$160 milhões anuais. E a alíquota
suplementar de 1% a 5% para os salários acima de R$5.531,00 traria um fluxo
anual de R$320 milhões. Mas, além disso, o município ainda ficaria num compasso
de espera pela reforma federal, pois os aumentos do tempo mínimo de
contribuição e da idade mínima impactariam significativamente nos servidores,
que é um grupo majoritariamente feminino (professoras que hoje podem se
aposentar com 55 anos teriam que contribuir por mais 10 anos).
O vereador entende que a categoria é incapaz de entender
isso. E que os sindicatos foram ágeis em desinformar os trabalhadores. No
entanto, o questionamento desses cálculos vem dos antigos companheiros de
trabalho do vereador. O Tribunal de Contas Municipais constatou que não há
cálculos na justificativa do projeto que mostre que a elevação da alíquota
“levaria ao equacionamento do déficit”. Afirma também que o projeto do prefeito
João Doria “peca no embasamento técnico, contém inconstitucionalidades” e
“possui trechos com possível caráter de confisco”. O relatório aponta que o
projeto se “insere em um momento incerto para definições sobre a previdência,
dada a suspensão da tramitação da reforma em escala federal”. E afirma que
“a alta contribuição dos servidores não pode ser feita visando a sobra de
recursos para outras áreas que não a seguridade social”.
Com um olhar atento para essa reforma, percebemos rapidamente
que João Doria não visa o equilíbrio financeiro. Suas intenções estão além da
simples matemática financeira. E, vale repetir, Caio Miranda é revelador quando
abre a boca. Para ele, não vale a pena um funcionário na ativa que ganha acima
do INSS pagar 14%, mais os 5% que incidirão sobre o que exceder do teto. Nas
palavras dele, “é melhor ter a renda para ele e aplicar no tesouro direto”.
Afinal, “as pessoas não são reféns e não precisam ficar em um sistema que ela
não criou”. Em suma, o Projeto de Lei é mais que aumento de alíquotas, ele
busca criar um sistema suplementar de arrecadação, o Sampaprev, mas atualmente
sem criar uma nova autarquia, como estava previsto no projeto do ex-prefeito
Haddad, que também cedeu às pressões da agência Standard & Poors para criar
um sistema paralelo de capitalização.
Com o sistema suplementar, o servidor poderia optar, por
exemplo, em investir no SPPREV (do Governo do Estado) ou no Funpresp (do
Governo Federal), afirma Caio. Os servidores novos já contribuiriam dentro do
novo sistema. E os que contribuem hoje para o IPREM poderiam migrar para esse
novo sistema. Na cabeça do vereador, essa migração aconteceria facilmente, pois
o servidor obteria vantagens econômicas. O vereador rememora que desde 2003 os
servidores perderam a paridade e a integralidade nas aposentadorias, na época
também com a justificativa de reduzir o déficit da previdência. Seguindo a
argumentação do vereador, o professor, por exemplo, migraria para o novo regime
porque no final da carreira ele passa a ganhar acima do teto do INSS e não
gostaria de receber um benefício de aposentadoria menor do que ganhava quando
estava na ativa, então nada melhor que uma previdência que promete ampliar seus
ganhos.
Dito isso, o sentido desse PL fica claro. A reforma não visa
o equilíbrio do atual sistema. O aumento da contribuição, a imposição do teto
do INSS e mais a criação de um sistema suplementar são ações que buscam
esvaziar o IPREM. Esquematizando:
a) Não aceitando mais nenhum funcionário novo para
contribuir para o Instituto de Previdência atual;
b) Atraindo o máximo possível de servidores que já perderam
a integralidade/paridade para o novo sistema;
c) Tornando o Instituto desvantajoso com os 19% de alíquota
sob os salários e sem nenhuma vantagem futura, uma vez que a aposentadoria
seria limitada ao teto.
Com a desculpa de que os investimentos nas áreas sociais
(saúde, educação, segurança, moradia e transporte) não estão ocorrendo porque
enormes quantias estão sendo drenadas para o pagamento das “privilegiadas”
aposentadorias dos servidores, o prefeito Doria pretende transferir a gestão da
aposentadoria pública para o capital financeiro. Nas palavras do relator do
projeto na Câmara: “transformar o sistema de previdência em um sistema de
pensão”. Em resumo, a solução da gestão Doria é criar uma segregação no
funcionalismo. Ele quer isolar os antigos funcionários no IPREM e assumir os
pagamentos desses como despesa da prefeitura. E entrega a contribuição dos
funcionários novos, que terão anos de contribuição pela frente, para os fundos
de pensão, bancos ou qualquer instituição financeira que o valha.
Temos, assim, um cenário de desmonte do serviço público para
garantir os rendimentos do capitalismo financeiro. Contra o parasitismo das
finanças escancarado pelas reformas trabalhistas e previdenciárias apresentadas
em todos os níveis de poder no país (Federal, Estadual e Municipal), os
trabalhadores têm as ruas. Assim, o que temos hoje nas ruas de São Paulo é, sem
dúvidas, a maior greve da historia do funcionalismo. Para concluirmos com o
nosso devaneio inicial, assim como na peça A Santa Joana dos Matadores, texto
sempre mais revelador que as falas insultuosas dos lacaios das finanças,
podemos dizer que, misturada à grita dos argumentos que vem da câmara e mídia,
escutamos – nas enormes manifestações dos servidores – as vozes daqueles que
sabem quais sãos as necessidades reais dos seres humanos.
São Paulo 21 de março de 2018.
*Danilo Chaves Nakamura é professor da rede municipalAs imagens que ilustram o artigo são de Tommaso Ausili.
Fonte: http://passapalavra.info/2018/03/119076
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