quarta-feira, 30 de maio de 2018
Michael Löwy: A descoberta do último Marx - Michael Löwy,
Michael Löwy: A descoberta do último Marx
"Karl Marx não era dos que se aposentam da revolução: continuou pensando, escrevendo, lutando, até seu último suspiro. A morte interrompeu um extraordinário processo de reelaboração, de reformulação, de reinvenção do materialismo histórico e da teoria da revolução."
Fonte: https://blogdaboitempo.com.br/2018/05/30/michael-lowy-a-descoberta-do-ultimo-marx/#prettyPhoto
"Karl Marx não era dos que se aposentam da revolução: continuou pensando, escrevendo, lutando, até seu último suspiro. A morte interrompeu um extraordinário processo de reelaboração, de reformulação, de reinvenção do materialismo histórico e da teoria da revolução."
Os últimos anos da
vida de Marx costumam ser vistos como um período em que ele já teria saciado a
própria curiosidade intelectual e parado de trabalhar. O novo livro de Marcello
Musto que a Boitempo lança agora no bicentenário do barbudo chega para desfazer
de uma vez por todas essa lenda e abrir novos caminhos para impulsionar o
pensamento crítico e a transformação social hoje! A partir do estudo de
manuscritos que vieram a público recentemente e ainda não foram traduzidos do
alemão nem publicados em livro, O velho Marx: uma biografia de seus últimos anos (1881-1893) demonstra como Marx passa a se
interessar por antropologia, pelas sociedades não ocidentais e pela crítica ao
colonialismo europeu. Ele defende que por trás disso, não havia, como se tem
dito, mera curiosidade intelectual, mas o propósito teórico-político de alargar
e refinar a compreensão do capitalismo. Confira, abaixo, o que Michael Löwy tem a dizer sobre o livro.Marcello
Musto vem ao Brasil para uma
série de debates de lançamento da obra em três diferentes estados. Saiba mais
ao final deste post!
* * *
Karl Marx não era dos que se aposentam da revolução:
continuou pensando, escrevendo, lutando, até seu último suspiro. Muitos
pesquisadores – inclusive quem vos escreve – se interessaram pelo jovem Marx;
outros preferiram estudar a grande obra “da maturidade”, O capital. Marcello Musto, no
formidável livro O velho Marx: uma biografia de seus últimos
anos, é o primeiro a analisar com profundidade o “último Marx”
(1881-1883), descobrindo as fascinantes pistas que abriu, em seus derradeiros
anos, o grande adversário do capitalismo. Conhecido por seus excelentes
trabalhos sobre a história da Primeira Internacional, Musto explora o novo
material publicado pela MEGA (a nova edição das obras completas de Marx e
Engels), assim como documentos e cadernos de notas ainda inéditos, para
examinar estas pistas: a antropologia, nos famosos mas pouco estudados Cadernos etnográficos; as formas
pré-capitalistas de propriedade comunal; o colonialismo; os desenvolvimentos
econômicos e sociais em países não ocidentais, tais como a Rússia, a Argélia e
a Índia.
O quadro que esses escritos – certo, inacabados e não
sistemáticos – vão desenhando é de um Marx extraordinariamente “heterodoxo”,
isto é, pouco conforme com o marxismo pseudo-ortodoxo que tanto estrago fez no
curso do século XX. Um Marx que critica impiedosamente o economicismo, a
ideologia do progresso linear, o evolucionismo, o fatalismo histórico, o
determinismo mecânico. A morte interrompeu um extraordinário processo de
reelaboração, de reformulação, de reinvenção do materialismo histórico e da
teoria da revolução.
Um dos exemplos mais impressionantes da “heresia” do
velho Mouro são seus últimos escritos sobre a Rússia, em particular a
carta, com seus rascunhos, a Vera Zasulitch. Em 1881, essa jovem revolucionária
russa havia consultado o autor de O capital sobre o futuro
da tradicional comuna rural no país dela. Na resposta, Marx manifesta sua
simpatia pelos integrantes do movimento Narodnaia Volia (A Vontade do Povo) e
avança a hipótese de um caminho russo ao socialismo, que pudesse evitar a esse
povo todos os horrores do capitalismo. Um caminho que se apoiaria nas tradições
coletivistas “arcaicas” da comuna rural russa para desenvolver um processo
revolucionário ao mesmo tempo antitsarista e anticapitalista – em associação
com a revolução social nos países industrializados da Europa.
Este belo livro de Marcello Musto confirma, mais uma vez,
que a obra de Marx é um arsenal inesgotável de armas não só para entender mas
também, e sobretudo, para transformar a realidade. Na verdade, mais que uma
“obra” acabada, é um imenso canteiro de obras, que segue aberto e em expansão…
***
“Todos nós estamos rediscutindo Marx. Dentre a vasta
literatura existente, o novo trabalho de Marcello Musto se destaca como uma
cuidadosa análise contextual dos últimos escritos e contributos de Marx para a
nossa compreensão do mundo – ontem, hoje e amanhã. O
velho Marx é uma obra excepcional e essencial para todos nós.” – Immanuel Wallerstein
Michael Löwy,
sociólogo, é nascido no Brasil, formado em Ciências Sociais na
Universidade de São Paulo, e vive em Paris desde 1969.
Marx, 200 anos: como reinventar a emancipação? – por Luisa Barreto
Marx, 200 anos: como reinventar a emancipação?
Em Berlim, Toni Negri, Michael Hart e novos movimentos debatem: por que “primaveras” de 2011-2013 fracassaram? Pode-se combinar horizontalismo com construção de programas e estratégias?
Em Berlim, Toni Negri, Michael Hart e novos movimentos debatem: por que “primaveras” de 2011-2013 fracassaram? Pode-se combinar horizontalismo com construção de programas e estratégias?
No início de
maio, aconteceu em Berlim o Congresso Marx200: Política – Teoria –Socialismo,
na Fundação Rosa Luxemburgo, em cooperação com o Teatro HAU Hebbel am Ufer.
Foram quatro dias de extensa programação sobre a vida e obra de Karl Marx, em
comemoração dos 200 anos de seu nascimento, em 5 de Maio de 1818. Foram dezenas
de workshops, palestras e eventos paralelos como a exposição: Revoltem-se! Maio
de 68/Poder e Impotência de uma Utopia (Empört euch! Mai 68/ Macht und Ohnmacht
einer Utopie). Autores foram convidados para falar a partir das mais variadas
perspectivas dentro da chamada crítica pós-marxista, temas atuais como o
colonialismo, o feminismo e os movimentos sociais contemporâneos.
O evento, um
painel a demonstrar que Marx revive principalmente na crítica pós-colonial e
feminista, não se restringiu aos debatedores europeus. Estiveram lá pensadores
árabes, latino-americanos, japoneses, africanos, indianos, chineses, que
abordaram uma ampla diversidade de temas em composição com conceitos
fundamentais da obra de Marx, como luta de classes hoje, relação entre Estado,
sociedade e democracia; trabalho, antropologia. Outros temas presentes:
Marxismo e feminismo, Psicanálise e Marxismo, Marx no Japão, Cyber-Marx, Marx na
China, na África do Sul, Ecossocialismo e mostraram a força do pensamento
marxista hoje.
Kavita Krishnan,
secretária da Associação das Mulheres Progressistas da Índia (All India
Progressive Women’s Association – AIPWA), membro do Partido Comunista da Índia
– Marxist-Leninist (CPI-ML) e editora da revista Liberation falou sobre a
revolta dos Dalits e a luta contra o fascismo, resistência e imaginação
política, numa mesa sobre Linhas de Fuga da Perspectiva Socialista/Comunista e
Utopia (Die Fluchtlinien sozialistisch/kommunistischer Perspektive und Utopie).
Discussões sobre como a tradição marxista é transposta para outros contextos e
quais os usos que se faz da interpretação sobre as relações entre Estado e
sociedade na China, com Zhang Shuangli, da Universidade de Fudan e da
Universidade de Shanghai, tiveram destaque na programação, assim como a
palestra Marx Global, Classes e Política com Gayatri Spivak. Essas não foram as
únicas mulheres; a presença feminina foi marcante em todas as mesas e debates.
Hardt e Negri:
perguntas que importam
Não por acaso a
palestra inaugural foi proferida por Michael Hardt, filósofo político e teórico
literário conhecido pelos livros que escreveu com Antônio Negri, especialmente,
a trilogia Império (2001), Multidão: guerra e democracia na era do império
(2005) e Bem-Estar Comum (2016). Intitulada Assembly (para nós assembleia
ou reunião), o assunto pairou em todas as discussões posteriores sobre como
pensar resistência, utopia e imaginação hoje, e como desempoar o vocabulário da
esquerda marxista trazendo-o para as lutas contemporâneas.
Assembly (2017)
também é título do mais recente livro de Hardt e Negri, ainda sem tradução para
o português. O livro não deixa de ser contíguo aos outros e nasce da pergunta
que permaneceu em suspenso para os autores desde os movimentos globais contra
governos autoritários e o neoliberalismo, que eclodiram desde 2011, numa linha
temporal que segue até hoje. A onda iniciada com a Primavera Árabe em 2010 e
atingiu países como a Tunísia, Egito, Líbia e outros do Oriente Médio e da
África; que reverberou no 15-M, na Espanha e no Ocuppy Wall Street, desde 2011;
e nas Jornadas de Junho de 2013 no Brasil, para citar alguns, repercutiu nos
movimentos estudantis mundo afora, na revolta dos Dalits na Índia, no Black
Lives Matter, no Ni Una Menos.
A pergunta que
Hardt colocou na inauguração do evento foi: “Por que esses movimentos, que
expressaram tantas necessidades e desejos não foram capazes de realizar as
mudanças que estavam buscando?”
Ela leva a
retomar questões sobre liderança e estratégia, dois pontos críticos na obra dos
autores e que vez ou outra retornam na crítica aos escritos deles. Hardt
reforçou que, principalmente após a eleição de Donald Trump, a pergunta se
tornou inevitável e emergente, já que os protestos não parecem mais
suficientes.
Muito se
argumenta hoje em dia, a partir do conceito de multidão tal como elaborado por
Hardt e Negri, se a falta de projeto claro a ser sustentado pelas revoltas e
manifestações não é uma característica da própria horizontalidade dos
movimentos atuais, que lutam contra temas diversos, porém imbrincados, sendo
extremamente árdua a tarefa de criar um projeto que se efetive e concretize
numa reorganização estratégica da esquerda global.
Onde estão os
novos Rudi Dutschke, Martin Luther King, Antonio Gramsci, Nelson Mandela, Che
Guevara e a própria Rosa Luxemburgo? – perguntou ele. Afinal, precisamos ou não
de líderes carismáticos como os de outrora? O sentido de urgência desta
pergunta não tem a ver com não reconhecer a potência e as ações dos movimentos
que irrompem mundo afora, mas com recolocar a questão sobre o que significa
assumir uma posição de liderança e quais seriam os requisitos e perigos de
incumbir-se deste lugar, uma vez que ser um líder carismático é assumir uma
posição de risco, disse o autor.
Eis aqui o
paradoxo que emerge da própria questão e também dos livros escritos pelos
autores. A tendência a recusa das formas centralizadas de liderança da esquerda
tradicional, associadas ao elogio a multidão resultaram numa rejeição a
autoridade, à liderança e, em consequência, na recusa a organização. Nos
movimentos sociais dos últimos 50 anos, feministas, estudantis, dos
trabalhadores, a posição de liderança foi duramente atacada e criticada, dentro
dos próprios grupos, especificamente no que diz respeito à centralização da
figura do líder, fato que deu início a uma série de práticas de democratização
dentro dos próprios grupos, como garantir que todos falem, organizar
assembleias e coordenar narrativas nas redes sociais e meios de comunicação.
Hardt citou o
movimento Black Lives Matter, que vem constantemente rejeitando ou ao menos
problematizando o modelo do líder carismático masculino, tão celebrado na
história do movimento negro nos Estados Unidos, na forma de um acionamento do
sistema imunológico do próprio movimento, como mecanismo de proteção e defesa
das figuras proeminentes que coreografam ações e discursos através das mídias
sociais. E não somente, mas também como estratégia de contenção do avanço de
alguma figura, em particular, que se torne a representação do grupo como um
todo, suprimindo a comunicação democrática e horizontal.
A relevância
deste ponto na fase atual da obra de Hardt e Negri demonstra a necessidade de
desatar o nó, até então amarrado, sobre a confusão entre criticar a posição de
liderança e disto ter sido traduzido muitas vezes como recusa da organização,
das instituições ou como falta de projeto político. Afinal, o lugar da
liderança pressupõe uma certa expertise, capacidade de monitoramento sobre os
movimentos da polícia e da própria multidão, de comunicação, de ouvir e aplicar
ideias discutidas em comum, estratégias de defesa e de proteção, ou seja, ainda
que esta capacidade que se aplicava geralmente a figura do líder seja
generalizada pelo próprio intelecto geral, a multidão precisa se tornar
multidão estratégica, disse Hardt.
Estratégia,
nesse sentido, como uma forma de entender a própria liderança e como habilidade
de tomar decisões, ter uma visão ampliada das questões em disputa, buscar uma
continuidade para projetos de longa duração. Diferente, portanto, de tática,
cujo campo de ação tende a ser temporal e espacialmente limitado. A questão da
generalização da habilidade é fundamental, pois ainda que se tenha como
pressuposto a democratização dos movimentos e a não concentração da tomada de
decisão ou da definição da estratégia na figura do líder, é a generalização da
habilidade de criar e de dar continuidade às estratégias criadas coletivamente
que estão em jogo. Ou seja, o movimento centrífugo da multidão, que teria como
partitura e ponto de partida o próprio intelecto geral, seria ou deveria ser
radicalizado a partir da capacidade de criar estratégia.
Logo, a multidão
estratégica seria a fundação da assembleia, estrutura e base das ações de
resistência hoje, tendo como ponto de partida a inversão das funções comumente
associadas a estratégia e a tática. A estratégia, nas palavras de Hardt,
deveria ser função da multidão e dos movimentos e a tática deveria limitar-se à
liderança. Multidão-estratégica e liderança-tática seriam os polos
constitutivos de movimentos como o chamado municipalismo espanhol e o partido
político Podemos, fundado na Espanha em 2014, o movimento Ni Una Menos na
Argentina e o Diem25, Democracia na Europa 2025, movimento político pan-europeu
de esquerda fundado por Yanis Varoufakis, ex-ministro das Finanças da Grécia.
No Brasil
crescem não só os movimentos organizados como a Frente Povo Sem Medo (FPSM) e o
MTST, mas lideranças como Marielle Franco, Sônia Guajajara, Davi Kopenawa
Yanomami, Raoni Metuktire, Guilherme Boulos, Manuela D´Ávila, Jean Wyllys e
tantos outros mais ou menos populares, mais ou menos escondidos. Seriam eles
líderes estratégicos e carismáticos?
Após um breve
apanhado das questões que motivara os primeiros livros, como os conceitos de
produção social ou biopolítica, multidão, comum, Hardt tocou no conceito de
empreendedorismo da multidão, “o mais irritante do último livro”, segundo ele.
O termo, que nos transformou em empreendedores de si endividados, saturado pelo
discurso neoliberal e pilar da crítica ao capital humano, foi reformulado pelos
autores com novo sentido. Hardt afirmou a necessidade de restaurar o
vocabulário da esquerda capturado pelo discurso econômico, como democracia e
amor, fazer novo uso de conceitos que vem sendo apagados, negativizados ou
substituídos. Empreendedorismo, longe de ser um vocabulário da esquerda, traz
em si a ideia de empreender, criar. Segundo o autor, não há nada em comum com
preencher um lugar deixado vazio pelo Estado; empreender, nesse sentido, não
tem a ver com iniciativa privada, inovação, nem com uma forma de ascensão do
precariado.
Como
organizarmo-nos contra o avanço conservador e como empreender novos mundos? São
as perguntas antigas com as quais estamos lidando em momentos como o atual. A
palestra, muito bem amarrada e dentro do tempo, acabou com a dúvida também
antiga: protesto e resistência são suficientes do ponto de vista estratégico e
da construção de novos modos de vida?
As perguntas
feitas ao autor ao final levantaram questões importantes sobre como estamos
lidando com a ascensão dos líderes carismáticos de direita, e com o crescimento
do conservadorismo em tempos de revolta da multidão. O papel do intelectual
público, o qual Hardt e Negri exercem, foi questionado e colocado como forma de
ausência de responsabilidade e de criação de estratégia. Ao final, com todos já
cansados e sem respostas, pairou uma atmosfera de dúvida onde havia, de fato,
mais perguntas que respostas. Michael esboçou uma justificativa, dizendo que
seu lugar é o de trabalhar com os movimentos e aprender com eles, working with
e learning from. Serão os próximos conceitos a serem tratados pelos autores os
de risco e de responsabilidade?
quinta-feira, 17 de maio de 2018
Israel: 70 anos de brutalidade - por Greg Shupak
Desde a criação do Estado hebreu, palestinos são expulsos de suas casas,
presos, torturados, mortos e submetidos a violência econômica grosseira. É a
“nakba”. Poderia ser a “solução final” de Hitler
Em
14 de maio de 1948, setenta anos atrás, Israel lançou sua “declaração de
independência”. Desde então, todo dia 15 de maio tem sido o Dia Nakba
quando os palestinos marcam a limpeza étnica sofria por seu povo depois da
criação de Israel. [Nakba é uma palavra árabe que significa “desastre”
ou “catástrofe”, termo similar a shoá em hebraico, que os judeus
utilizam para designar o massacre nazista – nota OP]. Este Dia Nakba foi
marcado pela Grande Marcha de Retorno, uma grande mobilização em massa até a
cerca que Israel ergueu para separar Gaza e Israel, para manifestar seu desejo
de passar pela barreira. Até o momento, Israel já matou pelo menos 52
manifestantes palestinos, no que a Anistia Internacional chamou de “uma
violação repugnante da lei internacional”, envolvendo “o que parecem ser
assassinatos intencionais, que constituem crimes de guerra”.
Como
outros estados coloniais, Israel pretende asfixiar a vida social das populações
dos territórios ocupados que procura dominar. Esse imperativo é particularmente
urgente no caso de Israel, onde as populações judias e não-judias são de
tamanho equivalente e a terra em questão é relativamente pequena. A negação
discriminatória de direitos estende-se aos palestinos em outros países -são
cidadãos de segunda classe em Israel, sob ocupação, na diáspora ou em campos de
refugiados. Todos são impedidos de retornar às suas casas através do uso da
violência e com a ajuda decisiva dos EUA.
A
mensagem inconfundível para os palestinos de todas as gerações, desde antes da Nakba
até a Grande Marcha de Retorno, é que a menor resistência ao etnoestado
erigido em sua terra natal será combatido com prisões e mortes.
Anatomia
da repressão
A
violência israelense permeia todos os aspectos da vida dos palestinos, com
estratégias de controle que assumiram uma variedade de formas ao longo do
tempo. Para criar o Estado em 1948, as forças sionistas expulsaram 750.000
palestinos de suas casas. No processo, realizaram cerca de dez massacres em
grande escala, cada um com pelo menos cinquenta vítimas, juntamente com cerca
de cem massacres menores. As forças dos paramilitares israelenses mataram
palestinos em quase todas as suas aldeias, despejando repetidamente os corpos
das vítimas em covas, antes da oficialização do Estado de Israel. Em várias
ocasiões, milícias sionistas mataram crianças e estupraram mulheres palestinas.
Atrocidades
semelhantes continuaram nos primeiros anos do Estado de Israel. Em 1953, as
forças israelenses massacraram 69 aldeões palestinos em Qibya, depois de
alegarem “infiltração” do território israelense por refugiados palestinos.
Durante o conflito de Suez, três anos depois, eles mataram 48 trabalhadores
palestinos em Kafr Kassim; 275 civis palestinos em Khan Yunis e num campo de
refugiados próximo; em seguida, mais 111 palestinos no campo de refugiados de
Rafah.
Depois
de 1967, com o estado de Israel consolidado, o governo começou a perseguir o
que Tariq Dana e Ali Jarbawi chamam de “sonho de uma ‘Grande Israel’ com o
máximo de terra e o mínimo de árabes”. Mais de 350.000 palestinos foram
expulsos de suas casas, enquanto Israel ocupava a Cisjordânia, Gaza e Jerusalém
Oriental (assim como as Colinas de Golan da Síria e o Sinai do Egito). Quase
600.000 colonos adentraram ilegalmente nos territórios ocupados com o apoio do
Estado. E os massacres de palestinos em Israel continuaram desde então: no
verão de 2014, Israel matou 2.251 palestinos – incluindo 1.462 civis e 556
crianças – durante a fúria assassina chamada Operação Margem Protetora.
Como observou o estudioso canadense Nahla Abdo, a violência dos palestinos deve
ser vista no contexto dessa “relação assimétrica” entre os dois lados.
Enquanto
isso, aos palestinos nos territórios ocupados é sistematicamente negado o
devido a processo legal: mantidos sem julgamento em detenções administrativas
ou submetidos a processos militares e rotineiramente torturados. Tal tratamento
estende-se às crianças palestinas, sujeitas a práticas que, nas palavras da
UNICEF, “resultam em tratamento ou punição cruel, desumano ou degradante, de
acordo com a Convenção sobre os Direitos da Criança e a Convenção contra a
Tortura”, incluindo ameaças de “morte, violência física, confinamento solitário
e agressão sexual, contra si mesmos ou um membro da família”. Atualmente,
existem mais de 6.000 presos políticos palestinos em prisões israelenses.
Quando
os palestinos não estão sendo algemados, torturados, bombardeados ou abatidos,
eles vivem sob a ameaça contínua de tais ações. Depois da guerra de 1967,
Israel estabeleceu um regime para examinar tudo, desde oficinas palestinas que
fabricam móveis, sabão, tecidos, produtos de azeitonas e doces, até listar
quantos televisores, refrigeradores, fogões a gás, pomares, animais e tratores
os palestinos possuem, muitas vezes censurando livros, romances, filmes,
jornais e panfletos políticos.
Expropriação
econômica
A
violência econômica – a expropriação da riqueza palestina e a destruição da
capacidade dos palestinos de se sustentarem – marcou o tratamento de Israel aos
palestinos desde o início do Estado israelense. Nos anos imediatamente
posteriores a 1948, Israel adotou políticas destinadas a confiscar e controlar
a terra palestina, destacadamente com a Lei da Propriedade Desocupada de 1950,
pela qual Israel garantiu para si 90% da terra, designando como “desocupada”
toda terra que os palestinos tivessem sido obrigados a abandoar devido
repartição conduzida pelas Nações Unidas em 1947.
Os
assentamentos israelenses são construídos em áreas ricas em recursos,
projetados para explorar a água palestina e a terra arável – uma política que
aumenta os recursos de Israel e priva os palestinos de desenvolvimento
econômico. Após a ocupação de 1967, Israel construiu um regime econômico
destinado a incorporar a economia palestina à economia de Israel, tornando seu
governo colonial um empreendimento barato e, ao mesmo tempo, frustrando o
desenvolvimento econômico palestino. Entre as medidas adotadas estavam o
fechamento de instituições financeiras e monetárias árabes, a imposição da
moeda israelense, a proibição de exportações e importações, exceto através de
fronteiras controladas por Israel, a imposição de altos impostos (alfândega,
imposto de renda, IVA), quase nenhum investimento em infraestrutura nas áreas
palestinas, licenciamento restrito para atividades industriais e controle sobre
comunicações, recursos de eletricidade, água e recursos naturais. As políticas
israelenses transformaram o mercado palestino num mercado cativo, que se tornou
um conveniente lixão para produtos industriais israelenses de má
qualidade que não podiam competir com os fabricantes dos países
industrializados da Europa e EUA. Isso não só trouxe grande lucro para a
economia israelense, mas igualmente formou uma nova classe de capitalistas
israelenses, cujas principais atividades industriais foram projetadas para os territórios
ocupados.
Assim,
as políticas israelenses provocaram uma deterioração da base econômica
palestina e criaram uma dependência estrutural à economia de Israel, na medida
em que o Estado ocupante controla os principais pontos nodais da atividade econômica,
como fronteiras, terras, recursos naturais, comércio, movimentação de
mão-de-obra, gestão fiscal e zoneamento industrial. Por mais de uma década,
além disso, um brutal cerco militar combinado entre EUA e Israel e o Egito
dizimou Gaza, a ponto de em breve a região ser inabitável. Militares e colonos
de Israel arrancaram centenas de milhares de oliveiras palestinas na
Cisjordânia e na Faixa de Gaza e nos primeiros anos do milênio o exército
israelense arrasou quatro milhões de metros quadrados de terra cultivada.
A
Grande Marcha do Retorno
Desde
o início da Grande Marcha do Retorno, em 30 de março, Israel matou dezenas de
palestinos e feriu quase 4.000. Nenhum israelenses foi morto ou ferido. O poder
da Marcha é que ela chama a atenção para a ilegitimidade de manter
artificialmente uma maioria demográfica judaica na Palestina histórica.
Enquanto massas de palestinos aproximam-se da cerca entre Gaza e Israel, os
manifestantes personificam a “ameaça” de palestinos retornando a seus lares e
vivendo em uma Palestina-Israel que não pode ter como premissa manter os
palestinos fora e perpetuamente apátridas -como refugiados ou como uma minoria
oprimida dentro de Israel.
Os
manifestantes estão, em suma, tentando afirmar, pelo menos temporária e
simbolicamente, seu direito à sua terra, identidade, nacionalidade, liberdade
-o que as negociações com Israel e seu patrono norte-americano não produziram
até hoje.
terça-feira, 15 de maio de 2018
quarta-feira, 9 de maio de 2018
O ano em que o velho mundo balançou - por Jean Tible
Estudantes manifestam-se na Cidade do México, em setembro de 1968.
Protesto espalhou-se pelo mundo, na forma de lutas da juventude e do
acirramento das guerras de libertação, no Terceiro Mundo
Há meio século, um vírus de desobediência contagiou
o planeta. Todas as hierarquias foram postas em xeque. Mas 1968 está sendo?
Onde foi parar sua explosão inventiva?
A barricada fecha a rua, mas abre caminhos.
Uma das frases símbolos dos muros de Paris em maio de 1968.
68, uma revolução mundial.
Um vírus da desobediência contagiou todo o planeta: Paris, Senegal, Japão, Vietnã, Cidade do México, Praga, Estados Unidos, Palestina, dentre outros pedaços.
Uma explosão de vida. A palavra-chave: experimentação. Novos desejos, aspirações e conexões brotam e desabrocham em todos os cantos do mundo. Um novo espírito do tempo, tempo do mundo.
Uma das frases símbolos dos muros de Paris em maio de 1968.
68, uma revolução mundial.
Um vírus da desobediência contagiou todo o planeta: Paris, Senegal, Japão, Vietnã, Cidade do México, Praga, Estados Unidos, Palestina, dentre outros pedaços.
Uma explosão de vida. A palavra-chave: experimentação. Novos desejos, aspirações e conexões brotam e desabrocham em todos os cantos do mundo. Um novo espírito do tempo, tempo do mundo.
O que parecia sólido se desmanchou no ar, o que parecia estável vazou
(ainda que somente por alguns dias, semanas, meses – mas os efeitos ainda nos
atingem). Colonialismo, patriarcado, supremacia branca, capitalismo e
socialismo autoritário bambearam. Ou pereceram ou se reorganizaram – e
continuam sendo questionados por inúmeras ações. Apesar da diversidade de
situações e países, um elemento comum: o anticonformismo – seja encarando uma
ditadura militar, poderes coloniais, sociedades capitalista ou socialista. Tratou-se
de uma irrupção em defesa do direito de discordar, da multiplicação de vozes,
da polifonia.
Abrir as portas dos asilos, das prisões e das escolas foi outro
lema-pixo forte. Ninguém mais quis cumprir seu papel social habitual,
embarcando num êxodo de libertação e busca de novas vias: operários (ocupando
fábricas e locais de trabalho), estudantes (tomando universidades), artistas e
criadores (dando outros significados para seus espaços e práticas), camponeses
(se levantando), negros (se sublevando), mulheres, gays, lésbicas e muitas
outras (afirmando novos corpos). Fuga do trabalho e busca da vida. Isso tudo já
vinha ocorrendo, mas em 68 se acelerou e se reforçou, encontrou e produziu
novos caminhos, pessoas, coletividades. Inspirações.
Todas as autoridades foram questionadas e hierarquias postas em xeque:
patrões, professores, pais, chefes, tiranos, colonizadores, padres, pastores,
rabinos, irmãs, representantes culturais e midiáticos… Uma viralidade do
dissenso, um deslocamento das dominações e opressões e uma afirmação das
singularidades. Desejos de autonomia, de novas vidas: o levante de uma nova
geração político-existencial. Político e existencial: quem separou um dia essas
esferas? A revolução é uma eztetyka (Glauber Rocha, 1967).
Política e vida, política e arte – a busca pelo fim da representação em ambas.
Impossível separar. Política e jogo, política e humor, política e festa,
política e prazer, política e psicoativos. Política é criação – o resto é
burocracia. Só interessa o que é inventor: “o trabalho criador propõe uma nova
sociedade” (Helio Oiticica).
1968 é também (e sobretudo!) uma insubordinação anticolonial nos países
da periferia (Argélia, Vietnã, Angola, Cuba…) e nos do centro (Panteras Negras
e muitas outras nos EUA e outras partes). O Vietnã (e sua heroica resistência
de camponeses pobres contra o maior Império) constituíram um poderoso
catalisador das imaginações subversivas. Criar, um, dois, mil Vietnãs,
declamava Che Guevara. Reforçando os nexos política-cultura, Zé
Celso desloca essa frase ao dizer que o “objetivo é abrir uma série de
Vietnãs no campo da cultura, uma guerra contra a cultura oficial, de consumo
fácil”. O oposto da morte é o desejo – práticas de descolonização dos corpos.
No Brasil, 1968 são as lindas e corajosas greves de Osasco e Contagem, as
irrupções estudantis e, também, uma busca coletiva para se libertar
definitivamente do complexo colonial – conectando-se com a busca de Oswald
de Andrade pela exportação de poesia (e não mais sua importação enlatada).
Consideramos 1922 como início de uma revolução cultural no Brasil, nos disse
Glauber Rocha em 1969.
1968 marca o início do nosso mundo contemporâneo. Uma revolução sempre
acompanha-se das reações, da contrarrevolução, daí a reação-repressão por todos
os lados nos anos seguintes. A economia se reorganizou e buscou capturar a
inventividade expressada, os poderes viram um excesso de democracia (onde ela
existia minimamente) e de demandas sociais e existenciais. A partir daí, as
desigualdades entraram numa perigosa espiral de aumento generalizado, tendo o
Chile de Pinochet como laboratório desse novo modelo (neoliberalismo). No
Brasil, o contragolpe veio bem rápido: o golpe civil-militar de 1964 reforçou
ainda mais seu autoritarismo com o AI-5 de 13 de dezembro de 1968, e, na
sequência, milhares de pessoas punidas, cassadas, presas, torturadas e centenas
de filmes, peças, livros, programas de rádio, letras de música, revistas
censurados.
1968 está sendo? Continua sua explosão inventiva? Vive, creio, numa nova
sensibilidade, numa transesquerda (Zé Celso), num protagonismo negro,
feminista, dos trabalhadores e criadores, em sua rebelião sempre renovada. Os
tempos são outros mas guardam semelhanças, no Brasil contemporâneo e alhures, e
nos pedem: criemos com alegria e cuidemo-nos – só nos resta resistir e criar,
reexistir.
SP - Vídeo independente do desastre na ocupação do Largo do Paissandu - por Juliano Angelin
SP - Vídeo independente do desastre na ocupação do Largo do
Paissandu
“Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça”.
“Quanto mais miséria tem, mais urubu ameaça”.
Foi a frase que ficou na minha cabeça ao
longo do dia.
Fiquei pensando sobre como é estar do lado
detrás da câmera registrando um desastre desse.
Como registrar e comunicar o acontecimento e
a situação sem chover no molhado e sem explorar a condição delicada dessas
pessoas? Muitas vezes tive vergonha de mim por estar ali numa situação de
privilégio, preocupado em pegar bons takes e entrevistas,
enquanto as pessoas acabaram de perder sua moradia, seus pertences e seus entes
queridos.
Por um momento tive a impressão de ser o
único ali incomodado com esse comportamento carniceiro da mídia. Quer dizer,
único não, havia um grupo de crianças revoltadas gritando para não serem
filmadas ou fotografadas. Ainda assim, a mídia fez (e está fazendo) seu papel:
espreme a ferida para o sangue jorrar.
Isso sem contar com as especulações e boatos
sobre a causa do incêndio. Histórias confusas e até com requintes de crueldade.
Cheguei a ouvir que um casal brigando ateou fogo num bebê de 5 meses e o
incêndio começou (!!!).
Claro, para o senso comum, as pessoas que
moram em ocupações são maníacos selvagens capazes dos atos mais terríveis.
E a história do aluguel… Realmente, aquelas
pessoas pagavam para uma galera, que se dizia do movimento e que na hora do
desastre evaporou, ninguém sabe onde está. E mais uma vez, depois de tudo,
quem leva a culpa é o pobre. Já que essa história do aluguel vai ser mais um
argumento para criminalizar os movimentos sociais e combater as ocupações.
Conversei com uma repórter que pediu para não
aparecer no vídeo. Quando perguntei para ela “Será que a corda não vai estourar
novamente para o lado mais fraco”, ela me respondeu com a pergunta “Você
trabalha para quem?”
Quando questionei um jornalista que filmava,
sem autorização e de forma bastante invasiva algumas crianças dormindo, ele se
escondeu atrás da câmera e focou em mim, como se o equipamento de filmagem fosse
ao mesmo tempo um escudo e uma arma que o tornasse invencível contra qualquer
lei ou ética.
O cenário é bastante desolador e triste. Na
volta para casa, passei pelo show da CUT (Central Única dos Trabalhadores), e
não entendi como era possível haver aquilo ali, enquanto a poucos metros
trabalhadores e trabalhadoras estavam sem ter onde dormir ou queimavam debaixo
dos escombros.
Em entrevista, uma das sobreviventes disse
chorando: “…Mas a vida continua“.
Voltei pensando: “Continua, mas nunca será
como antes”.
> Assista o vídeo (06:42) aqui:
agência de notícias anarquistas-ana
que flor é esta,
que perfuma assim
toda a floresta?
que perfuma assim
toda a floresta?
Carlos Seabra
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