Em Berlim, Toni Negri, Michael Hart e novos movimentos debatem: por que “primaveras” de 2011-2013 fracassaram? Pode-se combinar horizontalismo com construção de programas e estratégias?
No início de
maio, aconteceu em Berlim o Congresso Marx200: Política – Teoria –Socialismo,
na Fundação Rosa Luxemburgo, em cooperação com o Teatro HAU Hebbel am Ufer.
Foram quatro dias de extensa programação sobre a vida e obra de Karl Marx, em
comemoração dos 200 anos de seu nascimento, em 5 de Maio de 1818. Foram dezenas
de workshops, palestras e eventos paralelos como a exposição: Revoltem-se! Maio
de 68/Poder e Impotência de uma Utopia (Empört euch! Mai 68/ Macht und Ohnmacht
einer Utopie). Autores foram convidados para falar a partir das mais variadas
perspectivas dentro da chamada crítica pós-marxista, temas atuais como o
colonialismo, o feminismo e os movimentos sociais contemporâneos.
O evento, um
painel a demonstrar que Marx revive principalmente na crítica pós-colonial e
feminista, não se restringiu aos debatedores europeus. Estiveram lá pensadores
árabes, latino-americanos, japoneses, africanos, indianos, chineses, que
abordaram uma ampla diversidade de temas em composição com conceitos
fundamentais da obra de Marx, como luta de classes hoje, relação entre Estado,
sociedade e democracia; trabalho, antropologia. Outros temas presentes:
Marxismo e feminismo, Psicanálise e Marxismo, Marx no Japão, Cyber-Marx, Marx na
China, na África do Sul, Ecossocialismo e mostraram a força do pensamento
marxista hoje.
Kavita Krishnan,
secretária da Associação das Mulheres Progressistas da Índia (All India
Progressive Women’s Association – AIPWA), membro do Partido Comunista da Índia
– Marxist-Leninist (CPI-ML) e editora da revista Liberation falou sobre a
revolta dos Dalits e a luta contra o fascismo, resistência e imaginação
política, numa mesa sobre Linhas de Fuga da Perspectiva Socialista/Comunista e
Utopia (Die Fluchtlinien sozialistisch/kommunistischer Perspektive und Utopie).
Discussões sobre como a tradição marxista é transposta para outros contextos e
quais os usos que se faz da interpretação sobre as relações entre Estado e
sociedade na China, com Zhang Shuangli, da Universidade de Fudan e da
Universidade de Shanghai, tiveram destaque na programação, assim como a
palestra Marx Global, Classes e Política com Gayatri Spivak. Essas não foram as
únicas mulheres; a presença feminina foi marcante em todas as mesas e debates.
Hardt e Negri:
perguntas que importam
Não por acaso a
palestra inaugural foi proferida por Michael Hardt, filósofo político e teórico
literário conhecido pelos livros que escreveu com Antônio Negri, especialmente,
a trilogia Império (2001), Multidão: guerra e democracia na era do império
(2005) e Bem-Estar Comum (2016). Intitulada Assembly (para nós assembleia
ou reunião), o assunto pairou em todas as discussões posteriores sobre como
pensar resistência, utopia e imaginação hoje, e como desempoar o vocabulário da
esquerda marxista trazendo-o para as lutas contemporâneas.
Assembly (2017)
também é título do mais recente livro de Hardt e Negri, ainda sem tradução para
o português. O livro não deixa de ser contíguo aos outros e nasce da pergunta
que permaneceu em suspenso para os autores desde os movimentos globais contra
governos autoritários e o neoliberalismo, que eclodiram desde 2011, numa linha
temporal que segue até hoje. A onda iniciada com a Primavera Árabe em 2010 e
atingiu países como a Tunísia, Egito, Líbia e outros do Oriente Médio e da
África; que reverberou no 15-M, na Espanha e no Ocuppy Wall Street, desde 2011;
e nas Jornadas de Junho de 2013 no Brasil, para citar alguns, repercutiu nos
movimentos estudantis mundo afora, na revolta dos Dalits na Índia, no Black
Lives Matter, no Ni Una Menos.
A pergunta que
Hardt colocou na inauguração do evento foi: “Por que esses movimentos, que
expressaram tantas necessidades e desejos não foram capazes de realizar as
mudanças que estavam buscando?”
Ela leva a
retomar questões sobre liderança e estratégia, dois pontos críticos na obra dos
autores e que vez ou outra retornam na crítica aos escritos deles. Hardt
reforçou que, principalmente após a eleição de Donald Trump, a pergunta se
tornou inevitável e emergente, já que os protestos não parecem mais
suficientes.
Muito se
argumenta hoje em dia, a partir do conceito de multidão tal como elaborado por
Hardt e Negri, se a falta de projeto claro a ser sustentado pelas revoltas e
manifestações não é uma característica da própria horizontalidade dos
movimentos atuais, que lutam contra temas diversos, porém imbrincados, sendo
extremamente árdua a tarefa de criar um projeto que se efetive e concretize
numa reorganização estratégica da esquerda global.
Onde estão os
novos Rudi Dutschke, Martin Luther King, Antonio Gramsci, Nelson Mandela, Che
Guevara e a própria Rosa Luxemburgo? – perguntou ele. Afinal, precisamos ou não
de líderes carismáticos como os de outrora? O sentido de urgência desta
pergunta não tem a ver com não reconhecer a potência e as ações dos movimentos
que irrompem mundo afora, mas com recolocar a questão sobre o que significa
assumir uma posição de liderança e quais seriam os requisitos e perigos de
incumbir-se deste lugar, uma vez que ser um líder carismático é assumir uma
posição de risco, disse o autor.
Eis aqui o
paradoxo que emerge da própria questão e também dos livros escritos pelos
autores. A tendência a recusa das formas centralizadas de liderança da esquerda
tradicional, associadas ao elogio a multidão resultaram numa rejeição a
autoridade, à liderança e, em consequência, na recusa a organização. Nos
movimentos sociais dos últimos 50 anos, feministas, estudantis, dos
trabalhadores, a posição de liderança foi duramente atacada e criticada, dentro
dos próprios grupos, especificamente no que diz respeito à centralização da
figura do líder, fato que deu início a uma série de práticas de democratização
dentro dos próprios grupos, como garantir que todos falem, organizar
assembleias e coordenar narrativas nas redes sociais e meios de comunicação.
Hardt citou o
movimento Black Lives Matter, que vem constantemente rejeitando ou ao menos
problematizando o modelo do líder carismático masculino, tão celebrado na
história do movimento negro nos Estados Unidos, na forma de um acionamento do
sistema imunológico do próprio movimento, como mecanismo de proteção e defesa
das figuras proeminentes que coreografam ações e discursos através das mídias
sociais. E não somente, mas também como estratégia de contenção do avanço de
alguma figura, em particular, que se torne a representação do grupo como um
todo, suprimindo a comunicação democrática e horizontal.
A relevância
deste ponto na fase atual da obra de Hardt e Negri demonstra a necessidade de
desatar o nó, até então amarrado, sobre a confusão entre criticar a posição de
liderança e disto ter sido traduzido muitas vezes como recusa da organização,
das instituições ou como falta de projeto político. Afinal, o lugar da
liderança pressupõe uma certa expertise, capacidade de monitoramento sobre os
movimentos da polícia e da própria multidão, de comunicação, de ouvir e aplicar
ideias discutidas em comum, estratégias de defesa e de proteção, ou seja, ainda
que esta capacidade que se aplicava geralmente a figura do líder seja
generalizada pelo próprio intelecto geral, a multidão precisa se tornar
multidão estratégica, disse Hardt.
Estratégia,
nesse sentido, como uma forma de entender a própria liderança e como habilidade
de tomar decisões, ter uma visão ampliada das questões em disputa, buscar uma
continuidade para projetos de longa duração. Diferente, portanto, de tática,
cujo campo de ação tende a ser temporal e espacialmente limitado. A questão da
generalização da habilidade é fundamental, pois ainda que se tenha como
pressuposto a democratização dos movimentos e a não concentração da tomada de
decisão ou da definição da estratégia na figura do líder, é a generalização da
habilidade de criar e de dar continuidade às estratégias criadas coletivamente
que estão em jogo. Ou seja, o movimento centrífugo da multidão, que teria como
partitura e ponto de partida o próprio intelecto geral, seria ou deveria ser
radicalizado a partir da capacidade de criar estratégia.
Logo, a multidão
estratégica seria a fundação da assembleia, estrutura e base das ações de
resistência hoje, tendo como ponto de partida a inversão das funções comumente
associadas a estratégia e a tática. A estratégia, nas palavras de Hardt,
deveria ser função da multidão e dos movimentos e a tática deveria limitar-se à
liderança. Multidão-estratégica e liderança-tática seriam os polos
constitutivos de movimentos como o chamado municipalismo espanhol e o partido
político Podemos, fundado na Espanha em 2014, o movimento Ni Una Menos na
Argentina e o Diem25, Democracia na Europa 2025, movimento político pan-europeu
de esquerda fundado por Yanis Varoufakis, ex-ministro das Finanças da Grécia.
No Brasil
crescem não só os movimentos organizados como a Frente Povo Sem Medo (FPSM) e o
MTST, mas lideranças como Marielle Franco, Sônia Guajajara, Davi Kopenawa
Yanomami, Raoni Metuktire, Guilherme Boulos, Manuela D´Ávila, Jean Wyllys e
tantos outros mais ou menos populares, mais ou menos escondidos. Seriam eles
líderes estratégicos e carismáticos?
Após um breve
apanhado das questões que motivara os primeiros livros, como os conceitos de
produção social ou biopolítica, multidão, comum, Hardt tocou no conceito de
empreendedorismo da multidão, “o mais irritante do último livro”, segundo ele.
O termo, que nos transformou em empreendedores de si endividados, saturado pelo
discurso neoliberal e pilar da crítica ao capital humano, foi reformulado pelos
autores com novo sentido. Hardt afirmou a necessidade de restaurar o
vocabulário da esquerda capturado pelo discurso econômico, como democracia e
amor, fazer novo uso de conceitos que vem sendo apagados, negativizados ou
substituídos. Empreendedorismo, longe de ser um vocabulário da esquerda, traz
em si a ideia de empreender, criar. Segundo o autor, não há nada em comum com
preencher um lugar deixado vazio pelo Estado; empreender, nesse sentido, não
tem a ver com iniciativa privada, inovação, nem com uma forma de ascensão do
precariado.
Como
organizarmo-nos contra o avanço conservador e como empreender novos mundos? São
as perguntas antigas com as quais estamos lidando em momentos como o atual. A
palestra, muito bem amarrada e dentro do tempo, acabou com a dúvida também
antiga: protesto e resistência são suficientes do ponto de vista estratégico e
da construção de novos modos de vida?
As perguntas
feitas ao autor ao final levantaram questões importantes sobre como estamos
lidando com a ascensão dos líderes carismáticos de direita, e com o crescimento
do conservadorismo em tempos de revolta da multidão. O papel do intelectual
público, o qual Hardt e Negri exercem, foi questionado e colocado como forma de
ausência de responsabilidade e de criação de estratégia. Ao final, com todos já
cansados e sem respostas, pairou uma atmosfera de dúvida onde havia, de fato,
mais perguntas que respostas. Michael esboçou uma justificativa, dizendo que
seu lugar é o de trabalhar com os movimentos e aprender com eles, working with
e learning from. Serão os próximos conceitos a serem tratados pelos autores os
de risco e de responsabilidade?
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