quarta-feira, 30 de setembro de 2020

A pedra de Edward Said contra o colonialismo – por Fernando Pureza

A pedra de Edward Said contra o colonialismo

O destacado intelectual palestino Edward Said faleceu neste dia em 2003. Para Said, o intelectual deveria ter compromisso político com suas teses – e as dele demoliam o arcabouço ideológico que sustentava o imperialismo no Oriente Médio.

Edward Said arremessando uma pedra contra uma torre de vigia israelense na fronteira com o Líbano em 2000.

No dia 7 de julho deste ano, uma articulista do periódico americano Newsweek publicou uma estranha “homenagem” a Edward Said, chamando-o de “profeta da violência política nos Estados Unidos”. O texto, repleto de clichês pejorativos contra muçulmanos – embora Said viesse de uma família de cristãos protestantes – acusava o crítico literário palestino, apontado como uma “super-estrela da esquerda radical”, de “niilismo intelectual” e de “manipular os estudantes para que eles se engajassem em violência política”. O que leva a articulista da Newsweek arremeter contra Said é um incidente na fronteira entre Israel e Líbano, no ano de 2000, quando o intelectual foi fotografado arremessando uma pedra contra uma torre de vigia israelense. A pedra de Said contra Israel seria um prenúncio dos protestos confrontacionais que tomaram as ruas das grandes cidades dos Estados Unidos nos últimos tempos. 

O texto da Newsweek é horroroso, mas ao mesmo tempo serve como um bom pretexto. Pensar Said como um profeta de mobilizações massivas como as do Black Lives Matter é de fato inspirador, mesmo que a sua figura não seja explicitamente reivindicada nos protestos. Há um curioso detalhe esquecido nesse evento. Desde 1991, Edward Said lutava contra uma leucemia crônica, que acabou abreviando a sua vida em 2003. Um homem enfermo, nos seus últimos anos de vida, lançando uma pedra contra uma estrutura militar de um poderoso exército de ocupação é o pretexto perfeito para falar sobre o que significava ser um intelectual para Said.

A pedra de Rosetta e o orientalismo

A trajetória de vida de Edward Said, como intelectual de origem árabe palestina, marca sua obra profundamente. Ao estudar os cânones da “literatura ocidental”, Said pode experimentar como seu espaço de “não-ocidental” era constantemente demarcado. No fundo, uma questão o inquietava: enquanto árabe, os seus pares anglo-saxões só lhe permitiram escrever sobre a cultura árabe? Esse era um mundo acadêmico em que, diante do contexto de Guerra Fria, as universidades norte-americanas viram proliferar os chamados “area studies”, ou os “estudos de área”, campos multidisciplinares que se debruçavam sobre uma região ou país estrategicamente importante para os EUA. Dessa forma, muitos intelectuais ao redor do mundo foram atraídos pelas universidades norte-americanas, tornando-se especialistas.

Said sabia que, por muitos anos, muitos intelectuais europeus e norte-americanos se sentiam seguros para falar sobre a cultura árabe, reconhecidos como especialistas no tema – os chamados “orientalistas”. Os estudos “do Oriente”, afinal de contas, eram uma tradição antiga em grandes universidades como Oxford, Cambridge, Sorbonne etc. Museus como o Museu Britânico e o Louvre incorporavam a memorabília e os artefatos dos mais diferentes povos e impérios ao redor do globo. Diante disso, o que cabia aos árabes, ao adentrarem o espaço acadêmico norte-americano, era somente falar da cultura árabe, legitimando a posição dos “especialistas”? Na esteira dessas reflexões, a questão primordial para Said era: afinal, o que permitia que o Ocidente tivesse tamanha primazia sobre os estudos do chamado “Oriente”?

Com base nessas reflexões e mergulhando na crítica literária ocidental, Said lança em 1978 a sua principal obra, O Orientalismo, uma reflexão devastadora sobre como o chamado Ocidente construiu uma noção de “Oriente” que, em última instância, serviu para construir e referendar a posição de dominação imperialista de países como Inglaterra, França e EUA. O imperialismo, por sua vez, não pode ser entendido somente em sua dimensão econômica, mas também cultural: o domínio sobre diferentes povos, a acumulação de riqueza, a espoliação de sociedades e impérios tradicionais, tudo isso veio acompanhado de uma imensa quantidade de novos “especialistas” que se davam o direito de dizer o que pensavam os chineses, os indianos, os árabes, enquanto saqueavam suas riquezas e exploravam sua mão-de-obra. Esse caráter duplo do imperialismo, econômico e cultural, pode ser visto na dominação inglesa em Bengala, já no final do século XVIII: o início do imperialismo britânico na Índia, que culminou na morte de 10 milhões de bengaleses por fome, foi marcado também pela impressionante proliferação de traduções inglesas sobre textos clássicos do hinduísmo. Dessa forma, os primeiros orientalistas que surgiram no Ocidente nasceram tendo de omitir os brutais crimes que os ingleses cometiam em abundância na Índia.

Não se trata de mero detalhe que a narrativa de Said dê ênfase na famosa pedra de Rosetta. A estela de pedra que traduzia hieróglifos das pirâmides e dos templos do Egito antigo para o grego, foi capturada pelos franceses, na conquista napoleônica na região. Com a derrota das tropas de Napoleão, o artefato foi levado para o Museu Britânico, em 1802, onde se encontra até hoje. Para Said, o roubo dessa relíquia foi um divisor de águas, pois permitiu que, por meio do saque e da pilhagem, o Ocidente pudesse estudar o Oriente como um “objeto”, definindo-o de forma restrita e singular, segundo seus próprios interesses. No final das contas, era como se agora o Ocidente pudesse contar a própria história desse outro não-ocidental, dizer como era sua história, sua cultura, sua língua e seus costumes. Em outras palavras, não eram apenas as riquezas que estavam sendo saqueadas, mas a própria história dos povos do chamado “Oriente”.

Dessa forma, o século XIX viu as universidades europeias se tornaram centro de produção do que Said chamou de “orientalismo”, o estudo sistemático sobre o outro “Oriental”, convertido agora em objeto da ciência moderna europeia. A produção desse discurso era tanto causa como efeito do imperialismo ao longo dos séculos XIX e XX, na medida em que legitimava e validava ideologicamente o papel dominante das potências capitalistas ocidentais.

Ao afirmar que o “Oriente” é uma construção ocidental amparada na dominação imperialista – e que tem como propósito justamente embasar um campo de estudos cujo enfoque era legitimar essa relação – Said escandalizou parte do mundo acadêmico anglófono. Para muitos deles, era inaceitável que seu “amor” pelo saber sobre as sociedades e culturas do “exótico Oriente” pudesse ser questionado. Por trás dessa sensibilidade afetada, estava a recusa em reconhecer, de onde se falava sobre o outro, ou dito de outra maneira: de reconhecer privilégios, omissões e até mesmo a cumplicidade com os crimes do imperialismo. A recusa em aceitar que o saque das metrópoles à história das colônias havia sido determinante na construção de todo um campo de conhecimento era uma prova cabal do quanto o argumento de Said foi certeiro.

As pedras dos exilados

Se a atividade intelectual exigia que os sujeitos tomassem partido e indicassem de onde falavam (sem usar de mistificações como “amor” ou “neutralidade”), a pergunta que os críticos de Said fizeram era justamente de onde falava esse intelectual, nascido na Palestina, mas que viveu boa parte da sua vida nos EUA. A resposta para a pergunta é suficiente para nos fazer pensar sobre algo crucial na obra de Edward Said, que sempre se reconheceu como um exilado. Ao nascer em Jerusalém antes da criação do Estado de Israel, passou parte de sua infância entre Egito e Palestina até 1951, quando se muda para os EUA. Said nunca deixou de reafirmar sua condição de exilado – em especial em sua obra de caráter autobiográfico, Reflexões sobre o exílio. Sua formação acadêmica, em instituições onde dominava a perspectiva anglo-saxã, não fez dele um inglês ou um norte-americano. No final das contas, sempre se reconheceu como árabe, experimentando uma espécie de antagonismo com seus professores.

Estudando no Egito, Said refletiu sobre sua dependência da educação dada pelo já moribundo império britânico – no que ecoava sempre a máxima chauvinista de Thomas Macaulay, que dizia que “uma única prateleira de uma biblioteca inglesa tem muito mais valor do que toda a literatura indiana e árabe”. Essa formação intelectual, movida pelo sentimento de estar sempre “fora do lugar”, o tornou um intelectual público capaz de reafirmar sempre o seu não-pertencimento – em especial a partir de 1967, quando passou a criticar abertamente a cobertura da imprensa norte-americana às guerras árabe-israelenses. 

A postura política pública o aproximou da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), reafirmando assim seu compromisso com a independência palestina. Said considerava que a própria criação de Israel, movida pelo sionismo de Theodor Herzl, precisava ser repensada. Como expresso em seu livro A Questão da Palestina, defendia uma solução binacional para o conflito árabe-israelense. O reconhecimento de duas nacionalidades no mesmo território, seria a única forma de conceber um Estado verdadeiramente secular na região, capaz de alcançar uma real democracia.

A militância política de Said pela causa palestina e pela necessidade da solução binacional fez com que se envolvesse diretamente com partidos e instituições palestinas nos anos 1970 e 1980. Foi eleito membro independente do Conselho Nacional Palestino em 1977 e manteve sua posição até 1991, quando foi diagnosticado com leucemia. Defendeu a Primeira Intifada em todas as suas manifestações públicas e criticou duramente as representações sobre o Islã e o mundo árabe que emergiram na mídia norte-americana, em especial após 1967 e os acordos de Camp David. Para Said, a luta pela liberdade palestina exigia um compromisso político de um intelectual que, mesmo exilado, sentia a obrigação política de posicionar-se em qualquer espaço que ocupasse.

Em 1992, frente às negociações para os Acordos de Oslo, anunciou-se uma ruptura de Edward Said com a OLP. Sua objeção derivava da posição a favor de um Estado bi-nacional. O efeito, contudo, foi nulo: os acordos foram assinados e Said tornou-se persona non grata pela Autoridade Palestina, chegando a ter a venda de seus livros temporariamente banida em território palestino. O exílio seguiu, portanto, sendo uma constante em sua trajetória de intelectual e militante.

Da perda às novas pedras

A partida precoce de Said nos obriga a retomar sua obra. Vários de seus livros foram traduzidos no Brasil, mas muitos dos seus ensaios tardios ainda não receberam atenção por aqui. Foi um intelectual que até nos últimos anos de vida produziu incansavelmente. A sua luta pela Palestina foi registrada em diversos livros e artigos, assim como a paixão pela música e literatura. São elementos cruciais para entender que tipo de intelectual Said procurou encarnar: alguém engajado com um projeto contra-hegemônico até as últimas consequências.

Said já não estava vivo para ver George W. Bush levar a “guerra ao terror” para o Iraque, dando continuidade à obra de destruição iniciada por Bush pai. A partir de 2004, os livros e artigos de Said passaram a ganhar mais destaque na imprensa, mas gradualmente foram esquecidos de novo. Suas teses, infelizmente, seguem vivas. As chamadas “democracias liberais” nunca abandonaram os vícios orientalistas, alimentados pela propaganda imperialista, parte de um esforço de pilhagem global para acesso a petróleo e gás natural barato. Os estereótipos orientalistas continuaram se avolumando nos países capitalistas ocidentais.

É curioso que um dos críticos de Said, o célebre orientalista britânico, Bernard Lewis, o acusasse de “politizar” os estudos sobre o Oriente Médio. Possivelmente essa acusação daria orgulho a esse intelectual palestino em constante exílio. Said ousou perguntar para os saberes instituídos dos grandes impérios: o que os legitimava a falar sobre o outro? A simbólica pedra de Said contra a máquina de guerra colonialista israelense não é, portanto, nada menos do que uma manifestação de uma intelectualidade que transcendia os limites da academia e não aceitava os “modos de dominação inerentes” a ela. Que as classes dominantes considerem essa pedra tão perigosa a ponto de, décadas depois, encontrá-la refletida na mobilização insurgente da juventude que toma as ruas e derruba estátuas de antigos senhores de escravos, só dá mais valor ao ato insubmisso de Edward Said. Quando se compara um intelectual que, já no fim da vida, arremessa uma pedra em protesto à violência da ocupação contra o povo palestino, com movimentos de massas como o Black Lives Matter, que se levantam contra o racismo e o sumpremacismo branco, vemos a potência de um pensamento a serviço da emancipação. O vigor de um intelectual não reside apenas em suas palavras. Afinal, parafraseando o poeta, na luta de classes vale tudo: poemas, paus… e pedras.

Fernando Pureza é professor do Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba.

Fonte: https://jacobin.com.br/2020/09/a-pedra-de-edward-said-contra-o-colonialismo/

Cristofobia - por Jota Camelo


 Fonte: https://twitter.com/ojotacamelo

A verdadeira história dos anarquistas negros - Por Livia Gershon (A.N.A.)

A verdadeira história dos anarquistas negros

Com frequência nas notícias atuais, o anarquismo é totalmente mal compreendido. Um dos mitos é que se trata de um movimento para pessoas brancas

Os opositores dos protestos por justiça racial que acontecem por todo país geralmente condenam os ativistas como “anarquistas”. Trata-se de uma falsa caracterização que pretende difamar os manifestantes como violentos e niilistas. E ainda, como o sociólogo Dana M. Williams escreve, o anarquismo moderno – uma filosofia política que geralmente se opõe à coerção, hierarquia e desigualdade, tanto no interior de movimentos ativistas quanto no mundo em geral – tem uma história de décadas na organização antirracista liderada por negros.

Williams escreve que houve alguma interação entre a organização dos direitos civis nos anos 1950 e os amplos grupos anarcopacifistas liderados por brancos. Mas o anarquismo negro realmente tem início no final da década de 1960, surgindo principalmente por fora da tradição anarquista americana branca.

Os movimentos de Direitos Civis e Black Power dos anos 1960 dependiam amplamente de estruturas centralizadas. Lorenzo Kom’boa Ervin, que ajudou a criar a Black Autonomy Network of Community Organizers (BANCO) [Rede Autônoma Negra de Organizadores Comunitários] e a Federation of Black Community Partisans (FBCP) [Federação de Partidários da Comunidade Negra], escreveu que o Partido dos Panteras Negras, influenciado pelo marxismo-leninismo, “falhou, em parte, por causa do estilo de liderança autoritária de Huey P. Newton, Bobby Seale e outros no Comitê Central… Não havia muita democracia interna no partido e, quando as contradições emergiam, eram os líderes que decidiam sobre a resolução, não os membros.”

No final da década de 60, o Partido dos Panteras Negras estava se fragmentando sob o peso da violência da polícia e do FBI, divisões internas e a contínua resistência branca em relação à mudança antirracista. Alguns ex-membros se voltaram para o nacionalismo cultural, comunismo ou a política do Partido Democrata. Mas outros se tornaram anarquistas.

Alguns negros radicais – incluindo Ervin, Ashanti Alston, que hoje atua no comitê diretor do National Jericho Movement para libertação de presos políticos dos EUA, e Kuwasi Balagoon, um ex-membro do Black Liberation Army – encontraram pela primeira vez as ideias anarquistas na prisão. Como alguns anarquistas europeus brancos, eles enxergaram na ideologia um antídoto contra a influência corruptora do poder no interior das organizações de esquerda. Como Alston escreveu em 1999:

Organizações de-cima-para-baixo [e] organizações de liderança são relações baseadas em alguns terem cérebro e a maioria não ter cérebro, e, por consequência, PRECISAM daqueles com cérebros. Eu rejeito isso. Eu me amo e amo o Povo e, por conta disso, todos nós temos cérebros e juntos somos mais espertos do que qualquer pequeno grupo de filhos da puta que afirmam ser meus/nossos líderes.

Balagoon, que se identificou como um Novo Anarquista Africano, salientou que a orientação antiestatal dos anarquistas os tornava anti-imperialistas. Ervin, por outro lado, argumentava que o anarquismo se opõe a todas as formas de opressão, incluindo “patriarcado, supremacia branca, capitalismo, comunismo de estado, ditames religiosos, discriminação contra gays, etc.” Ele apoiou sociedades de ajuda mútua baseadas na comunidade, sistemas de alimentação controlados por trabalhadores, recusa a impostos, greves de aluguel e oposição à brutalidade policial.

Embora o anarquismo nunca tenha se tornado central para o pensamento radical negro, Williams observa que muitas das figuras mais importantes, incluindo Angela Davis, bell hooks e Audre Lorde, analisaram questões políticas de modo antiautoritário. Estas ideias continuam a influenciar os atuais protestos antirracistas liderados por negros, muitos dos quais abrangem estratégias locais de apoio mútuo, metas políticas como a abolição da polícia e das prisões, e estruturas não hierárquicas de “liderança”.

Fonte: https://daily.jstor.org/the-real-story-of-black-anarchists/?fbclid=IwAR2kj6cOMBM4gZYNdmDMk2C7on4SSWey0A4L2NqpDIvPd34-Ca0GLmtvb4U

Tradução > Erico Liberatti

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agência de notícias anarquistas-ana

A lua da montanha
Gentilmente ilumina
O ladrão de flores.

Issa

Fonte: https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2020/09/29/eua-a-verdadeira-historia-dos-anarquistas-negros/

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Quem mente para o #Brasil, mente também para o mundo! - por Latuff

Fonte: https://twitter.com/LatuffCartoons 

O verdadeiro Winston Churchill – por Richard Seymour

O verdadeiro Winston Churchill

“Churchill não foi um herói - foi um racista vil e fanático da violência, que apoiava ferozmente o imperialismo”.

Durante os protestos em maio de 2.000 nada enfureceu mais o establishment britânico – imprensa, políticos, tribunais, e opinião respeitável – do que a profanação da estátua de Winston Churchill na Praça do Parlamento. O sangue selvagem vermelho pintado com spray em torno da boca de Churchill, a lívida marca verde que sugeria um corte de cabelo mohawk, transformando o estoico pai da nação em palhaço, era inconcebível.

É difícil transmitir o valor simbólico e emocional deste homem para a classe dominante britânica e um número significativo, embora em declínio, de cidadãos. Aqueles cuja consciência nacional é moldada pelas memórias da Segunda Guerra Mundial, provavelmente o último momento de “grandeza” do império, salvo a vitória na Copa do Mundo de 1966, conhecem principalmente Churchill como o homem que esmagou a ameaça nazista. Dirigindo um governo de coalizão ele exortou o que tinha sido uma nação mal-liderada e esgotada para ousar e vencer. Ele salvou o estado britânico, orientando-o através de uma de suas piores crises. Churchill foi o último líder britânico verdadeiramente amado; ninguém se aproximou disso. 

Quando eu estava na escola, na década de 1980, no norte da Irlanda, a joia esmeralda do Império, este ainda era um sentimento poderoso. Nosso professor de história, explicando a Segunda Guerra Mundial, contou com orgulho uma história apócrifa em que Hitler, depois de ter ouvido que Churchill estava liderando o esforço de guerra, disse: “O que faremos agora?” E nós, com as pupilas e olhos brilhantes, ficamos muito satisfeitos pensando nisso. O que você vai fazer agora?

Churchill é, além de mito nacional, objeto de uma pequena indústria artesanal e fonte interminável de nostalgia. Livros comemorando sua sagacidade perversa, canecas enfeitadas com sua imagem, toalhas de chá citando o grande homem, intermináveis historiadores da corte – e quando se trata de Churchill, quase não há outro tipo de historiador – recapitulando suas glórias. Há um filme sobre ele agora, com Gary Oldman? Jogue-o na pilha com o último filme com Brian Cox, e aquele anterior com Brendan Gleeson, e outro antes dele com Albert Finney e o anterior com Michael Gambon. É uma indústria dos “tesouros nacionais”, e um mini-boom agora está em andamento, já que certos sentimentos que o Brexit colocou em circulação alimentam um retorno cultural ao Império.

Para mim, no entanto, seu brilho desapareceu há muito tempo, e fui à Praça do Parlamento para admirar aqueles manifestantes. O que deu errado?

A indústria cultural não é sempre um lugar tão ruim para descobrir a verdade sobre Churchill. O ator Richard Burton, ao se preparar para representar Churchill em um drama de televisão, escreveu para o New York Times: 

Durante a preparação, percebi de novo que odeio Churchill e todos de seu tipo. Os odeio fortemente. Eles tiveram um poder infinito ao longo da história. ... O que um homem são diria ao ouvir sobre as atrocidades cometidas pelos japoneses contra prisioneiros de guerra britânicos e do ANZAC: “Nós os destruiremos, cada um deles, homens, mulheres e filhos. Não haverá uma esquerda japonesa na face da terra”? Essa ânsia de vingança me deixa com horror, devido à sua ferocidade simples e implacável.

Por essa iconoclastia, Burton foi impedido de trabalhar novamente na BBC, acusado de “agir de forma não profissional” e, evidentemente, considerado como traidor. No entanto, ele trouxe algo sobre Churchill que muitas vezes constrange a sensibilidade britânica, de tal modo que geralmente não se fala nisso: o gosto pelo massacre. Em todo canto, parece que Churchill baba sangue. Ele era um fanático da violência.

Churchill vinha da alta aristocracia; era filho do chanceler Lord Randolph Churchill, foi um menino destinado aos altos cargos. É importante notar que o jovem Churchill não era um reacionário total. Membro do Partido Conservador, ele se considerava liberal. Defendia o livre comércio, a democracia e algumas melhorias suaves para a classe trabalhadora – refletindo a ideologia Whiggy (White Guy Groupie), e um liberalismo que estava em declínio. A única exceção foi sua rejeição da ideia de Irish Home Rule – um governo autônomo irlandês.

Mas ser um liberal na época não era de modo algum incompatível com o imperialismo, o racismo, o antisemitismo, o apoio à eugenia e o desdém patriarcal pelo sufrágio universal. Como Candice Millard sugere em Herói do Império, onde conta a história da participação de Churchill na Guerra dos Boer (na África do Sul), ele foi um político criado e formado pelo Império Britânico. Atingiu a idade adulta com um senso avançado de sua grandeza potencial, como alguém que apreciava sua reputação de coragem diante da morte. O Império Britânico tinha milhões de pessoas dispostas a viajar a todo o mundo para dominar pessoas que não tinham a chance desse tipo de aventura. Era um império que dominava 450 milhões de pessoas, cujas revoltas e lutas ocorriam no sul da África, no Egito e na Irlanda. Millard escreve: 

Para Churchill, tais conflitos distantes ofereciam uma oportunidade irresistível para a glória e o avanço pessoal. Quando entrou no exército britânico e finalmente se tornou um soldado, com a possibilidade real de morrer em combate, o entusiasmo de Churchill não vacilou. Pelo contrário, ele escreveu para sua mãe que aguardava a batalha por causa dos riscos que oferece.

Churchill conseguiu provar-se um homem dos padrões imperiais, lutando na Índia e no Sudão, ajudando os espanhóis a reprimir os lutadores pela liberdade de Cuba e, após uma breve carreira parlamentar na África do Sul, lutando na Segunda Guerra dos Boers. Esta experiência preparou-o para buscar soluções semelhantes em problemas domésticos. Quando se uniu ao governo liberal de 1906, defendeu medidas agressivamente autoritárias para controlar a desobediência social. A promoção de Churchill no governo, quatro anos depois, ocorreu em um momento de turbulência política crescente no Reino Unido: a luta irlandesa pelo Home Rule, sufragismo, etc. Churchill se opôs a todos com violência.

Há muita ênfase, na hagiografia de Churchill, para refutar a ideia de que ele ordenou o ataque das tropas contra mineiros em greve no País de Gales, algo pelo qual é desprezado na região até hoje. O que de fato aconteceu foi que Churchill enviou batalhões de polícia de Londres e manteve tropas em reserva em Cardiff, caso a polícia não conseguisse fazer o trabalho. Nunca houve dúvida de que Churchill estava ao lado dos patrões, e preparou-se para mobilizar toda a força do estado britânico para resolver as questões. Durante uma disputa com anarquistas armados em Stepney, foi dele a decisão incomum de assumir o comando operacional da polícia durante o cerco; e, finalmente, optou por matar o inimigo ao permitir que eles fossem queimados em uma casa onde estavam presos.

No entanto, esse papel foi de curta duração. Churchill foi nomeado para uma posição militar sênior, que o colocou no comando político da Marinha Real. Um tecnófilo, ele a empurrou para a modernização, o combate aéreo e, mais tarde, os tanques. Mas nada em sua experiência poderia prepará-lo mais para a glória na Primeira Guerra Mundial: “Meu Deus!”, exclamou em 1915. “Isso é história viva. Tudo o que estamos fazendo e dizendo é emocionante – será lido por mil gerações, pense nisso!”.

A natureza guerreira de Churchill pode ter sido culpada pelo desastre militar em Gallipoli em 1915. Num esforço para tomar o Estreito Dardanelos e manter a Turquia fora da guerra, ele foi responsável por uma operação que enviou britânicos, franceses, neozelandeses e australianos – principalmente voluntários, mal treinados – para a derrota na Península de Gallipoli. A debacle que se seguiu destruiu essas unidades e resultou no rebaixamento de Churchill, que deixou o governo e se juntou ao Exército para comandar um batalhão.

Se suas credenciais de classe dominante fossem menos estimáveis, ele teria sido afastado devido àquele fracasso. Em vez disso, retornou ao parlamento em 1916 e mais uma vez subiu nas fileiras do governo – ministro de munições, secretário de guerra, e depois secretário do Ar.

Ele foi um feroz defensor da intervenção para reprimir a Revolução Russa, e escreveu furiosamente sobre o perigo dos “Judeus Internacionais” (comunistas) e sua “sinistra confederação”, contra os quais ele invocou o “judeu nacional” (o sionismo), muito mais aceitável – e isso foi interpretado de maneira mistificada por biógrafos como Martin Gilbert, como prova de seu filossemitismo.

Além de ser motivado por uma dicotomia profundamente antissemita – “bom judeu-mau judeu” – os fundamentos colonialistas do apoio de Churchill ao sionismo foram mais tarde esclarecidos quando se dirigiu à Comissão Real da Palestina, sobre a autodeterminação palestina. Recorrendo ao bestilógico em suas imagens, ele comparou o autogoverno a um cão correndo em seu próprio canil – e ele não reconhecia esse direito. “Eu não admito”, continuou, “que um grande erro tenha sido cometido com os índios da América, ou os negros da Austrália... pelo fato da forte disputa, uma raça de grau mais alto... tenha entrado e tomado seu lugar”.

Como um tático imperial, Churchill recomendou combater a insurgência contra o Mandato Britânico no Iraque com o uso de gás. Na verdade, ele fora pioneiro no uso de armas extremamente mortais na Rússia, contra os bolcheviques. É importante reconhecer que, com o seu apoio ao combate aéreo, ele justificou isso como uma alternativa “humana” e de alta tecnologia a métodos mais brutais. “Sou fortemente a favor do uso de gás envenenado contra tribos não civilizadas”, escreveu e explicou: “O efeito moral deve ser tão bom que a perda de vidas deve ser reduzida ao mínimo”.

Quando alguns no governo britânico da Índia criticaram “o uso de gás contra os nativos”, ele considerou essas objeções “irracionais”. “O gás é uma arma mais misericordiosa do que bombas de alto poder e obriga o inimigo a aceitar uma decisão com menos perda de vida do que qualquer outra arma de guerra”. Essa lógica, como o historiador Sven Lindqvist lembra, tem sustentado algumas das novidades mais bárbaras da guerra. Mesmo o uso de bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki foi justificado em parte como um meio para salvar vidas.

Churchill, como conservador liberal, deveria ter ficado alarmado com a ascensão do fascismo na Europa. No entanto, ele era fortemente otimista e acreditava que Mussolini era um bom governante para a Itália, e o fascismo era útil contra o comunismo. Seu nacionalismo, militarismo e apoio à ordem e à tradição social marcavam sua interpretação do movimento fascista emergente.

“Com o fascismo como tal... ele não teve objeções”, escreve o historiador Paul Addison. "Em fevereiro de 1933 ele elogiou Mussolini... como 'o maior legislador entre os homens'". Paul Mason acrescenta que Churchill agradeceu a Mussolini por ter "prestado um serviço ao mundo" em sua guerra contra o comunismo, sindicatos e a esquerda. Visitando a Itália em 1927, ele declarou: “Se eu fosse italiano, tenho certeza de que deveria ter estado de todo coração com você desde o início para terminar sua luta triunfante contra os apetites e paixões bestiais do leninismo”. Ele escreveu sobre suas “relações íntimas e fáceis com Mussolini, acrescentando que “no conflito entre fascismo e bolchevismo, não havia dúvidas sobre as condolências e convicções”.

Em 1935, Churchill expressou sua “admiração” por Hitler e “a coragem, a perseverança e a força vital que lhe permitiu... superar todas as... resistências em seu caminho”. Addison explica que, enquanto Churchill não aprovava a perseguição do nazismo aos judeus, foram as “ambições externas dos nazistas, e não sua política interna, que causaram o maior alarme de Churchill”.

Mas quais eram as ambições externas que o preocupavam? A invasão da Etiópia pela Itália não perturbou a Churchill. Estava longe, numa zona considerada legítima para a disputa colonial. Quanto ao Terceiro Reich, muitas das suas concepções estratégicas e territoriais inspiraram-se no Império Britânico. Na verdade, o fetiche mais sagrado, “a raça ariana”, foi inventado pelos britânicos, por seus filólogos e arqueólogos que trabalhavam no sudeste asiático. Hitler queria tomar os motivos do império e aplicá-los à Europa.

Isso pode implicar uma guerra de aniquilação contra o “bolchevismo judeu”, e é difícil acreditar que Churchill ou qualquer outra pessoa na classe dominante britânica teria tido algum problema com isso. Mas a expansão no continente europeu era outra questão. Em outras palavras, o fascismo só se tornou um problema quando Churchill reconheceu nele uma ameaça para o Império Britânico e a ordem européia de estados-nação dominante. Só então, e somente a esse respeito, o fascismo se tornou pior do que o comunismo.

Churchill tornou-se um proeminente advogado do rearmamento e um adversário da maioria do establishment militar e político britânico, que queria apoiar Hitler em sua guerra contra a Rússia. No entanto, ele continuou pensando que os nazistas poderiam ser isolados e que um eixo poderia ser criado com os fascismos italianos e espanhóis e, como tal, continuava a lisonjear Mussolini e se opunha a qualquer apoio à Espanha republicana, antifascista. Na Guerra Civil Espanhola, que foi, em muitos aspectos, um prelúdio para a Segunda Guerra Mundial, ele considerou a República como uma “frente comunista” e os fascistas apoiados por Hitler, um “movimento anti-vermelho” apropriado. Certamente, Churchill não poderia ter tido nenhuma objeção a Franco bombardear seus inimigos com gases venenosos, trazendo para território espanhol os métodos de combate usados no Marrocos, uma vez que eram métodos que ele próprio considerava humanos e condignos.

Em última análise, a agressão de Hitler forçou a classe dominante britânica a abandonar sua preferência majoritária pela colaboração com o Terceiro Reich (“apaziguamento”). A invasão da Polônia convenceu o governo de Neville Chamberlain a entrar na guerra. Mas o julgamento do governo sobre a guerra em breve resultou em uma crise, levando-o ao colapso e à sua substituição por uma coalizão liderada por Churchill.

Mesmo após sua nomeação, Churchill persistiu em buscar uma aliança, menos ambiciosa, com os regimes fascistas. A historiadora Joanna Bourke relata o pedido desesperado de Churchill a Mussolini em maio de 1940: 

É tarde demais para impedir que um rio de sangue flua entre os povos britânico e italiano?... Os herdeiros comuns da civilização latina e cristã não devem ser voltados uns contra os outros em conflitos mortais. Olhe para isso, eu imploro em toda honra e respeito antes que o sinal de medo seja dado.

No mesmo ano, ele abordou Franco em um tom semelhante

A política e os interesses da política britânicas são baseados na independência e na unidade da Espanha e estamos ansiosos para vê-la assumir o devido lugar como um grande poder mediterrâneo e como um dos principais membros da família da Europa e da cristandade.

Embora isso não tenha acontecido na Itália, Churchill chegou a uma aliança com Franco que prolongou a vida de seu regime.

É claro que, como muitos sugeriram, a Segunda Guerra Mundial não era apenas uma só guerra. Ernest Mandel argumentou que eram pelo menos cinco guerras: ao lado da guerra entre poderes imperialistas, havia também uma guerra popular anti-colonial envolvendo assuntos coloniais do sul da Ásia e África, a autodefesa da Rússia, a luta da China contra o imperialismo japonês e uma guerra antifascista popular. Havia lutas populares contra o fascismo na Grécia, Espanha, Jugoslávia, Polônia e França, enquanto na China, Vietnã, Índia e Indonésia a resistência era contra o imperialismo japonês. Mesmo na Grã-Bretanha, houve uma forte radicalização após 1940, e esforços concertados para transformar o esforço de guerra em uma guerra popular e antifascista.

Para Churchill, no entanto, era apenas uma guerra imperialista, e a dirigiu como tal. Foram os britânicos que primeiro bombardearam civis durante o conflito, atacando-os nos subúrbios de Berlim. A Grã-Bretanha não conseguiu derrotar o Terceiro Reich através de um enorme exército continental, afirmou, mas “deve destruir o regime nazista através de um ataque absolutamente exasperante e exterminador de bombardeiros muito pesados”. A grande maioria das bombas foi voltada para edifícios e áreas residenciais, em vez da infraestrutura estratégica. De acordo com o diretor da Air Intelligence, citado pelo historiador Richard Overy, as bombas foram direcionadas para “as casas, a cozinha, o aquecimento, a iluminação e a vida familiar daquela parte da população que, em qualquer país, é menos móvel e mais vulnerável a um ataque aéreo geral – a classe trabalhadora". Isso culminou, notoriamente, no bombeamento de Dresden. 

A tática de incineração de civis apostou, absurdamente, na ideia de que isso desmoralizaria a população e eliminaria a resistência – uma ideia que o Império britânico devia ter repetidamente aplicado nas guerras coloniais. Uma guerra antifascista poderia ter poupado a população civil, em busca de apoio para um movimento de resistência antifascista que aceleraria o colapso do nazismo. Mas para Churchill, isso era simplesmente impensável. Ele foi o homem que se juntou à carga de cavalaria em Omdurman para se vingar do general Gordon, e cuja carreira militar foi marcada por um entusiasmado amor pelo perigo e pela morte.

Churchill foi o homem que lutou para reprimir os insurgentes em todos os lugares, o homem que considerou adequado bombardear “nativos” onde quer que eles recusassem o domínio britânico. A guerra total foi a culminação lógica.

Após a guerra, quando houve um debate entre os Aliados sobre o uso da dependência de Franco sobre o petróleo para persuadir o regime a moderar, Churchill ficou indignado com raiva, declarando que era “pouco menos do que revolver uma revolução na Espanha”. Você “começa com o petróleo, e acabará rapidamente com o sangue”. Os comunistas, disse,”se tornariam mestres da Espanha” e a “infecção se espalharia muito rapidamente pela Itália e pela França”. Derrotada a agressão nazista, o comunismo era de novo o principal inimigo, e ele daria o sinal disso no discurso onde forjou a expressão “cortina de ferro”, em março de 1946, que anunciou a Guerra Fria.

Quando a guerra acabou Churchill estava enfraquecido. Ele fora extremamente popular durante o conflito, e continuaria a ser muito respeitado por sua decisão de lutar, e sua implacável energia na luta. Mas havia forte demanda por grandes reformas sociais, e isso significou uma mudança entre os trabalhadores.

Churchill gozou de mais um período como primeiro ministro, a partir de 1951 e durante ele, manteve a maioria das reformas implementadas pelo Partido Trabalhista, mas foi principalmente brutal contra a revolta do Mau Mau, no Quênia, e a insurgência malaia. Na da Malásia, Churchill voltou a ser um “modernizador” bélico: a Grã-Bretanha foi o primeiro país a usar o agente laranja e herbicidas do mesmo tipo, e adotou com alegria a mesma política de bombardeio de saturação que os Estados Unidos aplicariam no Vietnã. E então, ficando decisivamente doente, Churchill se aposentou.

Tendo passado grande parte de sua vida repelindo ameaças “nativas” ao Império Britânico, ele ajudou a salvá-lo do Terceiro Reich. Mas as pessoas que julgou aptas para governar, na maioria dos casos conseguiram derrubar essa regra, em parte por causa da mobilização mundial contra Hitler.

Faz sentido que o estado britânico idolatre Churchill. Sua história é a história do império. Mas quem, sabendo o que é essa história, pode participar da reverência a ele?

Richard Seymour é o autor de vários livros, incluindo Corbyn: The Strange Rebirth of Radical Politics. Ele mantém o blog Lenin’s Tomb.

Fonte: https://gz.diarioliberdade.org/artigos-em-destaque/item/341727-o-verdadeiro-winston-churchill.html

David Graeber, 1961-2020 | “É inacreditavelmente doloroso acreditar que ele se foi” – por Debbie Bookhin (A.N.A.)

David Graeber, 1961-2020 | “É inacreditavelmente doloroso acreditar que ele se foi”.

Eu conheci David depois que meu pai, Murray Bookchin, faleceu, em 2006. Meu pai, embora um orgulhoso revolucionário, tornou-se um crítico severo de certos aspectos do anarquismo, e ele próprio se declarava um comunalista. Procurei David como parte de um sentimento incipiente de que era necessário construir pontes onde meu pai havia às vezes (na minha cabeça, pelo menos) criado abismos desnecessariamente grandes. Anarquistas e comunalistas compartilham muito de suas visões por uma sociedade livre, e parecia certo discutir esses assuntos com David.

Eu sabia que David era brilhante e um dos escritores mais talentosos de sua geração, mas eu não tinha como prever que amigo sincero, leal, e gentil ele seria. Ele era profundamente modesto e profundamente generoso: quando você dava um presente a David, ele tentava te retribuir com três. E ele era divertido. O humor de David era irresistível, porque para ele a irracionalidade do mundo era algo para se rir – e combater.

Então, havia sua generosidade intelectual. Ele parecia projetar seu próprio brilho nos outros, pegando o núcleo latente de uma ideia não reconhecida por um palestrante e seguindo sua lógica, e então costurando-a junto com seu próprio conhecimento de história, antropologia, e teoria política até ele tecer uma bela síntese, uma análise compreensiva do objeto em questão, pelo qual ele sempre estava inclinado a dar o crédito ao orador original.

Antes de sua morte, comecei a ler o manuscrito de seu novo livro com David Wengrow, The Dawn of Everything (“O amanhecer de tudo” em tradução livre). Ele o enviou para mim com seu eufemismo característico, dizendo: “Este é, hmmm, meio longo”. Mas quando respondi a mensagem, pasmo com o quão elegante sua escrita era — como se fosse possível para ele ser ainda mais eloquente do que em seu trabalho anterior — ele se iluminou com entusiasmo. “Você já chegou à parte sobre Kandiaronk?? É incrível que ninguém tenha ouvido falar dele…” E ele ia embora.

David sempre me dizia que seu livro favorito escrito pelo meu pai era Post-Scarcity Anarchism (“Anarquismo Pós-Escassez” em tradução livre). Isso não era coincidência. David era um verdadeiro utópico: e aquele trabalho do início da década de 1970 estava transbordando da promessa de um novo mundo possibilitado pelos saltos extraordinários na tecnologia e pelo idealismo de uma contracultura que exigia que fizéssemos o impossível. Todos os dias, David concretizava essa visão pessoal, durante uma vida inteira de estudos, análises e ativismo. Essa visão se mostrava especialmente em seu intenso comprometimento com o projeto curdo em Rojava, uma sociedade em grande parte sem Estado que para David provava que  a democracia de assembleia poderia funcionar até em grande escala. Ele ficou profundamente frustrado porque a esquerda mais ampla não incluiu Rojava com mais força, também.

A bondade de David surgiu naturalmente para ele, e ele nos presenteou com muito. É inacreditavelmente doloroso acreditar que ele se foi. Ele tinha uma crença vibrante nas possibilidades inexploradas da imaginação humana e nunca perdeu seu otimismo de que nós teríamos sucesso em criar uma sociedade digna do melhor em nós. Acho que ele poderia nutrir esse sonho até nas piores circunstâncias, porque em suas próprias ações, ele exemplificava a própria humanidade com que ele sonhava. A abertura e a vontade de David de estar presente com quem quer que estivesse na sala eram como um alívio, uma bondade que ele projetava inocentemente para o mundo. Parecia que ele poderia sozinho corrigir as injustiças da sociedade simplesmente sendo quem ele era. Esse sonho vai viver em sua enorme obra. Cabe ao resto de nós trazê-lo à vida.

Tradução > Brulego

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agência de notícias anarquistas-ana

As águas silentes
E a névoa sobre o capim —
Entardece agora.

Buson

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segunda-feira, 21 de setembro de 2020

A eleição de Bolsonaro não foi apenas resultado da política local brasileira, mas também parte dos esforços da Casa Branca para encurralar o governo venezuelano. A visita de Mike Pompeo à fronteira #Brasil-#Venezuela não foi por acaso - por Latuff

Fonte: https://twitter.com/LatuffCartoons

O neoliberalismo e a falácia da modernização - por Beatriz Contelli

O neoliberalismo e a falácia da modernização

Sustentado pela fábula do empreendedorismo, é conveniente ao neoliberalismo que o trabalhador tenha a ilusão de não estar sendo explorado e carregue em si a promessa de uma suposta autonomia e independência. Sob o signo da flexibilidade, os trabalhadores estão cada vez mais subordinados ao capital, o vínculo empregatício e a proteção social desaparecem e mascara-se a exploração da mais-valia.

Encabeçado pela retórica do laissez-faire, o neoliberalismo propaga uma suposta liberdade individual e econômica que aos olhos de muitos entusiastas chega quase a ser perfeita. Aliada de políticas antipopulares, esta doutrina dissemina uma modernização que além de excludente, agride diretamente a ampliação da oferta de serviços públicos, a preservação dos povos originários, a conquista de direitos trabalhistas, entre outros segmentos essenciais da sociedade. 

O neoliberalismo, ao imprimir uma marca não apenas na esfera econômica, mas também na forma como se vê o público em relação ao privado, reconfigura uma noção de que o primeiro é ineficiente e oferece serviços precários, enquanto o segundo é sinônimo de eficiência e qualidade. 

Os ataques sistemáticos à educação, do ensino básico ao ensino superior, sob a escusa do desenvolvimento tecnológico e da necessidade de adaptação do ensino às demandas do mercado, é uma ofensa à educação pública, gratuita e de qualidade, direitos estes reservados pela Constituição. 

Em 2012 falava-se da aprovação da Lei de Cotas nas universidades. Em 2019 o assunto já era sobre um tal programa Future-se, que ao usar terminologias como “inovação” e “incubadoras de startups”, escondia seu real objetivo: ser o primeiro 

passo para a privatização das universidades e contribuir para a mercantilização da educação. 

Assim como o ensino, o transporte público está entre os segmentos mais afetados pelas políticas de privatização. Diferente do que foi defendido por muitos, o setor privado não garante mais conforto e eficiência aos passageiros dos transportes coletivos. Com uma arquitetura que não comporta o número de usuários – observado principalmente nos horários de pico – as estações do Metrô decorrentes das parcerias público-privada (PPP) não só tiveram suas obras atrasadas, como exigiram gastos públicos exorbitantes, favorecendo a degradação de estações que não fazem parte das PPP. 

Caminhando ao lado da educação e dos transportes, as questões ambientais tiveram seus problemas aprofundados e suas soluções invisibilizadas pelo neoliberalismo. Poluição acentuada, extração elevada de recursos naturais, desmatamento crescente e até mesmo extermínio de povos nativos e negação de direitos básicos como acesso à água potável, se mostram interessantes para a doutrina neoliberal que aprofunda a problemática ambiental e social.

Com a privatização da água vem junto o aumento de preço, o que impede o acesso da população mais pobre. Com o aumento da desigualdade social, quem tem dinheiro compra água potável, quem não tem se contenta com água contaminada. E não para por aí: a privatização da água resulta em consequências para o meio ambiente. Característica de países subservientes, a redução de leis ambientais torna a privatização ainda mais atrativa aos olhos dos investimentos estrangeiros. 

O sucateamento das regulações ambientais tem efeitos perversos. Ela provoca um aumento contínuo de garimpeiros, madeireiros e conglomerados estrangeiros ilegais, que envenenam solos e rios, e traz consigo o genocídio de tribos como os yanomamis, os kanamaris e os guaranis, tratados com descaso por autoridades federais. 

No campo do trabalho não seria diferente. Dotado de uma busca brutal por produtividade, o neoliberalismo destrói a força humana que trabalha ao difundir a desregulamentação, a flexibilização e a terceirização. A nova dinâmica do desenvolvimento do capitalismo cria uma condição de insegurança e um modo de vida e de trabalho precários, produzindo o incremento da informalidade associada à perda de identidade individual e coletiva. 

Sustentado pela fábula do empreendedorismo, é conveniente ao neoliberalismo que o trabalhador tenha a ilusão de não estar sendo explorado e carregue em si a promessa de uma suposta autonomia e independência. Sob o signo da flexibilidade, os trabalhadores estão cada vez mais subordinados ao capital, o vínculo empregatício e a proteção social desaparecem e mascara-se a exploração da mais-valia. 

Assim como tudo o que é sólido desmancha no ar, o neoliberalismo e sua falaciosa modernização devastam subjetividades e economias por onde passam. Palco de experimentos fracassados, a América Latina sofre os efeitos desse discurso que ao propagar a modernização, na verdade reforça sua servidão em relação aos países centrais. 

O desmonte dos serviços públicos, a degradação do meio ambiente, a precarização do trabalho, o aumento da concentração de renda, a hegemonização dos monopólios, a disseminação de preconceitos e violências, o desprezo pelas políticas sociais, fazem parte da lógica da austeridade fiscal, que característica da agenda neoliberal, valorizam a liberdade em detrimento da igualdade. 

Aproveitador de cenários instáveis, o neoliberalismo perpetua a herança colonial dos países subdesenvolvidos e torna os interesses do capital como essencial para o seu desenvolvimento e efetivação. O neoliberalismo é perverso, é genocida, é

agressivo, é totalitário, é produto de governos e empresas que concentram privilégios, excluem a voz das maiorias nas decisões e colocam o Estado cada vez mais a serviço de objetivos elitistas, que deliciam-se com uma bonança sem precedentes enquanto os povos das nações mais atrasadas do mundo são arrasados por pobreza e opressão absolutas.

Fonte: https://lavrapalavra.com/2020/09/17/o-neoliberalismo-e-a-falacia-da-modernizacao/

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

O ódio contra Padre Júlio - por Latuff

Fonte: https://twitter.com/LatuffCartoons

Queimadas no Pantanal: a luta pela sobrevivência do maior felino das Américas em meio aos incêndios - por Vinícius Lemos

Queimadas no Pantanal: a luta pela sobrevivência do maior felino das Américas em meio aos incêndios

Na tarde da última sexta-feira (11/09), um helicóptero da Marinha do Brasil levantou voo com um passageiro incomum: uma onça-pintada. Durante o transporte aéreo, os olhos assustados do bicho, resgatado no Pantanal, em nada lembravam o felino destemido que costumava se aproximar dos barcos, característica que fez com que ele passasse a ser conhecido na região como Ousado.

Horas antes de entrar no helicóptero, o animal havia sido localizado por uma equipe de voluntários que auxiliam no resgate aos animais no Pantanal, que passa pelo pior período de queimadas das últimas décadas.

Ousado estava caído no Parque Estadual Encontro das Águas, na região de Porto Jofre, na cidade de Poconé (MT), quando foi encontrado pelos voluntários, que passavam de barco pela região. O felino estava com as patas queimadas. Ele apresentou postura agressiva e teve de ser anestesiado para que fosse retirado do local.

Localizado no Pantanal, o Parque Estadual Encontro das Águas é considerado o lugar com a maior concentração de onças-pintadas do mundo. Nas últimas semanas, porém, o local se tornou extremamente perigoso para os felinos. Isso porque dos 108 mil hectares da reserva, 77 mil foram atingidos pelo fogo até o momento, segundo dados do Corpo de Bombeiros de Mato Grosso.

Assim como no parque, o fogo tem avançado com rapidez por todo o Pantanal, que já teve mais de 2,3 milhões de hectares atingidos por queimadas, segundo o Centro Nacional de Prevenção e Combate aos Incêndios Florestais (Prevfogo). O número representa mais de 15% de toda a extensão do bioma no Brasil, conforme o Instituto SOS Pantanal. A área queimada corresponde, por exemplo, a quase três vezes a região metropolitana de São Paulo, que abriga 39 municípios, ou 15 vezes a área da capital paulista.

De janeiro ao início de setembro, foram registrados 12,1 mil focos de calor no Pantanal, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). É o maior número no período desde 1999, quando o instituto iniciou um monitoramento que se tornou referência para acompanhar as queimadas no país.

Assim como a flora, a fauna do Pantanal tem sido duramente atingida. Há diversos animais carbonizados no bioma. As onças-pintadas que vivem ali tentam fugir do fogo, mas algumas acabam machucadas pelas chamas.

>> Para ler o texto na íntegra, clique aqui:

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-54153221

Conteúdo relacionado:

https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2020/09/10/porto-velho-ro-ela-chegou-estressada-gritando-e-manchada-de-sangue/

agência de notícias anarquistas-ana

O casulo feito
bicho dentro dele dorme
vestido de seda.

Urhacy Faustino

Fonte: https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2020/09/17/queimadas-no-pantanal-a-luta-pela-sobrevivencia-do-maior-felino-das-americas-em-meio-aos-incendios/